#50 Isabel Moreira - Direitos sociais, feminismo, racismo, regulação económica
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José Maria Pimentel
Bem vindos. Este é o sexto, e pelo menos para já o
último, episódio da série sobre orientações políticas que tenho estado a gravar.
E terminamos muito bem com a Isabel Moreira, que é Jurista e
Deputada da Assembleia da República pelo PS. Isabela é uma daquelas políticas
que divide opiniões, não só por causa dos temas chamados fraturantes porque
tem dada cara, mas também pela forma emocional e assertiva, e já
vão perceber porque uso aqui a palavra assertiva, como defende as posições
que toma. Não é, para usar uma expressão que a Daniela Oliveira
usou durante a conversa que gravamos a esquerda que a direita gosta.
E na verdade nem sequer é a esquerda de que uma parte
da própria esquerda gosta. E isto claro, num país dado ao insulto
e para mais com o crescimento das redes sociais nos últimos anos,
tem se tornado um alvo fácil nos médias. Veja-se por exemplo o
Fede Iver, aqui há uns meses, ter pintado as unhas na Assembleia,
que foi noticiado como tendo ocorrido durante o debate do Orçamento do
Estado, quando na verdade tinha passado antes deste comissário e portanto quando
o plenário nem sequer estava a decorrer. Pessoalmente, e daí ter decidido
convidá-la para o podcast, acho que a política ganha em ter em
todos os partidos pessoas como a Isabel, isto é, que não mascaram
opiniões, deixam tudo em campo e são consequentes na sua ação. Veja
se concordes ou não a quantidade de legislação marcante que a teve
como protagonista. Da minha parte, enquanto alguém mais liberal na economia e,
sobretudo, enquanto um racionalista inveterado, sinto-me muitas vezes do outro lado da
contenda, como aliás se viu durante esta conversa. E dessa posição, haverá
poucos deputados tão insuportáveis como a Isabel. Mas afinal, não é assim
que é suposto funcionar a democracia? Falando agora da nossa conversa, como
terão reparado, este é provavelmente o episódio mais longo que já publiquei.
São mais de duas horas de conversa, mas garanto que se gostarem
tanto de ouvir a discussão como eu gostei de a ter, são
duas horas que passam num instante. Aliás, falo várias vezes das vantagens
do formato do podcast por permitir-te ter uma conversa longa, sem constrangimentos
de tempo, e este episódio é um ótimo exemplo disso pela quantidade
de temas que conseguimos abordar e pela profundidade com que o fizemos,
com tempo para discutir vários aspectos de cada tema. Para terem uma
ideia dos assuntos que abordámos, gastámos grande parte do tempo, inevitavelmente, a
discutir temas da esfera dos direitos sociais barra individuais, o que acaba,
de certa forma, por complementar conversas anteriores que foram mais focadas noutras
questões. Conversámos então sobre liberdades individuais, em particular sobre projetos laicos que
a convidada esteve ligada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo
e a co-adoção, por exemplo, mas também de outros temas quentes e
ainda com muito por fazer, como a liberdade de expressão e sobretudo
o racismo, o feminismo e a desigualdade de género. A propósito do
racismo, note-se que gravamos antes da polémica recente dos acontecimentos no bairro
da Jamaica. E a propósito do feminismo barra desigualdade de género, que
acabou por dominar a conversa, acho um tema fascinante mas demasiado complexo
para ter nesta fase uma opinião aparentória. E a propósito disso, deixo
na descrição do podcast um link para uma conversa com um casal
de biólogos evolucionistas que é das coisas simultaneamente mais esclarecidas e de
maior bom senso que tenho visto sobre o tema. Vale a pena
ver depois de ouvir o episódio. No global foi então uma conversa
acalorada, como vão perceber, e sobretudo animada, a fazer lembrar aquelas discussões
que por vezes temos em jantares de amigos. Aliás, e para continuar
nesta analogia prandial, falámos ainda à sobremesa sobre políticas económicas. Isto porque
não quis deixar de obter a visão de alguém de uma esquerda
mais moderada e sobretudo sensível às liberdades negativas, como a Isabel, depois
das conversas com o Daniel Oliveira e com a Mariana Mortágua. Finalmente,
antes de passar à conversa, não queria deixar de fazer uma coisa
que me esqueci na semana passada, que é falar-vos de alguns dos
outros podcasts que fazem parte da rede do público. Começando por um
podcast na linha do tema desta conversa, recomendo que deem uma olhadela
ao podcast de poder público. Já o podcast do inimigo público dispensa
apresentações, mas a versão áudio é particularmente bem narrada. Finalmente, não deixam
também de ouvir o Histórias de Portugal, neste caso também um podcast
independente que integra a rede do público. E pronto, vamos à conversa,
convosco, Isabel Moreira. Então vá, vamos começar. Isabel, bem-vinda ao podcast, já
estou a gravar. Como estava a dizer, vou-te então pedir que te
descrevas politicamente, com a visão política, de onde é que ela vem,
como a quiseres descrever.
Isabel Moreira
Sim, e que teve muita influência do estudo de Direito Constitucional de
Direitos Fundamentais, porque, no fundo, esse estudo permitiu-me contrariar aquilo que era
o meu adquirido familiar mais próximo e que nós tendemos, antes de
nos confrontarmos com o mundo mais abrangente, por defeito, acharmos que é
aquilo que é correto, é
aquilo
que nós adquirimos em casa e ter ferramentas intelectuais e conceptuais certas
para distinguir, por exemplo, quando foi o momento do referendo sobre a
IVG, o que é que é despenalização, o que é que é
descriminalização, o que é que é liberalização, a ponderação de direitos fundamentais,
ter uma correta noção de que não há direitos absolutos, ter estudado
a evolução do constitucionalismo para o estado social atual e, nesse estudo,
ao ler vários autores de direito constitucional e direitos fundamentais, intelectualmente ter
tomado partido, porque o direito constitucional tem uma evidente dimensão política e
fui tomando partido e fui me aproximando politicamente, quando exteriorizei esse estudo
que começou a espicaçar-me, digamos assim, começou a aproximar-me do Partido Socialista,
em termos de partido que me apeteceria votar, e comecei a perceber
que era aquela a minha área.
José Maria Pimentel
Pois é, o que é engraçado no teu caso é que tu
vês uma família direta no sentido do conservadorismo cristão, não é? Sim.
É de um tipo de direita, aliás, essa é uma das coisas,
uma das conclusões, que não é especialmente original que eu tenho chegado
com esta série, é que tu tens, tendencialmente tens a esquerda e
as direitas, ou seja, tens uma série de direitas. A democracia cristã
é um tipo de direita, tem muitas coisas que são diferentes de
outras direitas, é diferente da direita autoritária, é diferente da direita liberal,
por exemplo, mas o teu caso é giro por causa disso, não
é? Por vires dessa...
Isabel Moreira
É, E houve alguns pontos de contacto, quer dizer, eu em casa
recebi muito, através do contacto com a democracia cristã, recebi muito a
preocupação com a pobreza, não é? E com a desigualdade. Isso foi-me
incutido e presenciei no discurso político que eu via em casa. E
depois quando estudei, por exemplo, a origem da fundação do que é
hoje a União Europeia e percebi a influência quer da democracia cristã,
quer do socialismo democrático, percebi que há ali pontos, não é? Sim.
E a questão da... Eu começo por uma aproximada da esquerda, precisamente
pela questão do combate à pobreza. Portanto, o meu primeiro apego à
esquerda não tem a ver com aquilo que depois me veio a
tornar mais conhecida, que são as erradamente chamadas causas fraturantes, porque para
mim não são fraturantes, mas tem a ver precisamente com a pobreza
e com o papel que eu achei que o Estado devia ter
nesse combate à pobreza e a configuração do Estado Social e é
sobre isso que brucei em termos académicos quando fiz a minha tese,
foi precisamente na altura, uma tese inovadora que tinha a ver com
a diluição de fronteiras entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos,
sociais e culturais, uma vez que aquilo que eu tinha aprendido na
faculdade é que os direitos, liberdades e garantias tinham uma força jurídica
muito mais forte do que os direitos económicos, sociais e culturais e
aquilo que eu defendi na minha tese foi que os direitos fundamentais
têm todos à partida a mesma importância e a estrutura normativa de
cada um, depois não vale a pena eu agora fazer aqui um
discurso jurídico concílio, não? Não, mas podes explicar. Enfim, é a estrutura
de cada um que depois determina a sua força em cada momento,
mas os direitos sociais não são assim nuvens etéreas que não possuem
força jurídica, assim como há direitos sociais que não têm força aplicativa
imediata, também há direitos de base garantias que não têm, era este
tanque entre uns e outros, era uma ideia que me parecia questionável
e, portanto, foi essa certeza que se foi construindo na minha cabeça
de que O papel que o Estado tem no combate às desigualdades
e, sobretudo, o peso relativo que se dá ao princípio da igualdade
e ao princípio da liberdade, é que eu acho que distingue muito
a esquerda e a direita. Claro que há outras coisas que se
pode falar, e eu sei que já outras pessoas falaram aqui contigo,
se se dá mais importância ao mérito, se dá mais importância
Isabel Moreira
acho. Que eu sem liberdade ficaria... Iria para um hospício, certamente. Agora,
eu não penso no Estado a partir da Isabel Moreira,
eu penso
no Estado a partir do peso que eu acho que os princípios
jurídico-congestionais devem ter na configuração da
sociedade.
E aquilo que eu acho é que as pessoas de esquerda dão
peso à igualdade na correlação com a liberdade que as direita não
dão, o que não nos torna moralmente superiores a uns ou outros.
São simplesmente duas concepções diferentes e daqui deriva, por exemplo, daquilo que
falaste, já falaste aqui, da direita dar mais importância ao mérito do
que a esquerda, mas derivam muitas outras coisas. Até a questão que
hoje em dia se discute tanto sobre politicamente correto, para mim deriva
daqui, deriva do facto de eu ter uma... Como mulher de esquerda
eu parto do princípio que nenhum direito a nenhum princípio constitucional é
absoluto e parto do princípio que a igualdade é uma trave mestra
na minha formação de esquerda. E portanto, é evidente, se eu puser
um coxo numa corrida com uma pessoa que corre com ótima saúde,
com as mesmas condições, é evidente que o coxo está tramado, não
é? E o Estado tem essa função corretiva. E, portanto, eu não
tenho uma visão absolutista de nenhum princípio e, portanto, a liberdade também
não é absoluta e não é em nenhuma das suas dimensões e,
portanto, também não é na dimensão da liberdade de expressão. E, portanto,
eu acho que não deve haver nenhum policiamento das palavras, acho que
as palavras... Até acho que se ensina pouco sobre a liberdade de
expressão, acho que a liberdade de expressão deve ser mais cultivada, acho
que deve ser encutida às pessoas aquilo que me foi encutido pela
minha postura de filosofia que é as palavras combatem-se com as palavras,
não é com silenciamento. Agora, coisa diferente é eu optar por não
perpetuar palavras que evidentemente continuaram no discurso coletivo, porque há uma classe
privilegiada, há grupos privilegiados que as perpetuaram, palavras que significam o esmagamento
de determinadas minorias e, portanto, eu escolho não propagar essas palavras e,
portanto, é um exercício máximo de liberdade. Exatamente. E portanto eu não
digo não podes usar essa palavra, eu digo não deves usar essa
palavra. Eu acho que o grande equívoco sobre a discussão política...
Isabel Moreira
O grande equívoco sobre a questão do politicamente correto é precisamente a
questão de muita gente atacar os defensores do politicamente correto, de querem
censurar ou querem proibir e não. É uma questão de apelar à
boa educação, é uma questão de apelar à harmonia. Alguns querem, outros
não. Sim, mas há malucos dos dois lados, não é? Mas vamos
partir de pra se tiverem duas pessoas razoáveis a falar. Aquilo que
eu quero é que as pessoas pensem que as palavras têm uma
dimensão de ação, não é? As palavras têm muita força e que
quando eu insisto em perpetuar determinadas palavras, estou a insistir na opressão
de grupos minoritários que nunca tiveram acesso à posição de privilégio que
nomeadamente eu tenho, por exemplo, enquanto mulher não, que é uma categoria
que a partir está mais apta a ser discriminada do que até
que teria uma masculina, mas enquanto pessoa branca e pessoa heterossexual, não
é? E, portanto, eu tenho noção do meu privilégio, tenho noção também
de uma privilégio de classe. Isso também foi muito importante na minha
escolha ideológica, o ter muita consciência, o ganhar-me da consciência de classe
e acho que aí o Marx ajudou-me bastante.
José Maria Pimentel
Por exemplo, a Zita Siabra fez o caminho do PSC para o
PSD. Exato.
E eu, às vezes, acho que é maltratada. Eu não a conheço
sequer, mas não concordo que ela seja maltratada por causa disso, porque,
quer dizer, a pessoa faz o que quiser com a sua vida
e com as suas opiniões. O que eu ia perguntar é o
seguinte, Como tu dizias, a democracia cristã e a social democracia, que
em Portugal estamos a falar do PS e não do PSD, sempre
há essa confusão, ou pelo menos também do PS. Não, do PS
mesmo. Eu acho que sim, eu acho que sim também, eu também
acho que sim. Há quem discorde, eu acho que sim.
José Maria Pimentel
ideologia no PSD? Eu não estou completamente de acordo contigo. Não estamos
no mesmo ponto ideológico, mas estou completamente de acordo contigo, que o
PSD não é nenhum partido social democrático. Também lá tem algumas pessoas
que se identificam, mas com umas nuances. Mas voltando atrás, houve esse
casamento que esteve na origem da União Europeia. Democracia cristã, socialdemocracia. Portanto,
há ali muitas similitudes. Tu nesse caminho que fizeste, qual foi o
primeiro... Há coisas que tu encontras em comum entre a tua filosofia
atual e aquela em que foste educada, digamos assim. Quais foram os
pontos de diferença? O que é que te fez rasgar, digamos assim,
com a... O
Isabel Moreira
das características da direita portuguesa, e a que mais me marcou no
meu crescimento, que era uma direita conservadora e a direita que nós
temos, agora já temos várias, não é? Há uma direita a polular,
a querer transformar o espaço de direita em qualquer coisa que eu
acho muito perigoso, que é a direita dos observadores. Mas é que
a direita de facto conserva, não é? A direita é conservadora. A
esquerda é progressista e, portanto, a direita gosta de conservar o status
quo. Havia um filósofo, já não lembro qual, que dizia a direita
conserva, a esquerda explode. Dizia assim desta maneira bastante ilustrativa e até
imagética. E eu sentia isso, eu sentia a necessidade da lei ser
progressista, não é? E havia qualquer coisa de insuportável para mim, quando...
Insuportável para mim, quando na situação que tínhamos, isto é, de haver
uma perseguição penal da pobreza, evidentemente, porque era essa a situação com
a penalização da IVG, e por outro lado a incapacidade de ver
a realidade por parte dos conservadores, que é sou contra o aborto,
mas então vamos proibí-lo, mas ele vai continuar a acontecer selvaticamente nas
esquinas e as mulheres vão continuar a morrer, era a segunda ou
terceira causa de morte materna em Portugal. Sim, aquilo também não é
verdade. Não queremos resolver, queremos fechar os olhos. Portanto, isto é a
incapacidade de resolver o problema. E a incapacidade de perceber que, primeiro,
legalizar não é liberalizar, e que as experiências e que a
Isabel Moreira
de direito comparado o que mostravam era que legalizar e dar esse
espaço, obviamente não absoluto, mas até um determinado número de semanas às
mulheres significava, precisamente, menos interrupções da gravidez, mais plenamente familiar e um
número a que queríamos chegar na altura e que já chegámos de
zero mortes maternas por aborto clandestino. E, portanto, quer dizer, esta incapacidade
de lidar com a realidade e de ficar num plano absoluto dos
valores, eu acho que aqui foi um momento muito contrastante e isto
para mim não é uma questão apenas de direitos humanos, é uma
questão de esquerda e direita. Não quer dizer que não haja pessoas
de direita que defenderam a IVG e que não haja pessoas de
esquerda que foram contra a IVG porque são católicos, há sempre uma
ou
Isabel Moreira
não é? Não, essa parte da económica redistributiva foi absolutamente fundamental, porque
foi, como dizia há pouco, foi quando eu começo a estudar direito
constitucional e o papel do Estado, as funções do Estado e as
várias perspectivas sobre as funções do Estado e portanto aí não há
nenhuma questão fraturante, eu começo a tomar posição sobre isso e quando
tu estudas Direito Constitucional a fundo e Direitos Fundamentais a fundo, tu
não estudas de uma forma apolítica, não há uma forma apolítica de
olhar para o Direito Constitucional. Não, de alguma forma é a política.
E portanto, quando eu olhei para o Direito Constitucional e comecei a
me interessar pela questão dos direitos sociais e pelo papel do Estado
na concretização dos direitos sociais, eu aí começo a aproximar-me da esquerda
e, portanto, aí não há nenhuma questão dita fraturante. Eu tornei-me foi
conhecida
José Maria Pimentel
É engraçado, quer dizer, o que eu vejo, nós temos a mesma
opinião em relação, presumo que a maioria desses temas, eu acho que
por vias um bocadinho diferentes isso é giro, ou seja, aquilo que
eu vejo é, eu vejo à esquerda, a posição da esquerda em
relação às questões, não sei qual é a designação alternativa de questões
faturantes, questões de costumes?
José Maria Pimentel
sim, questões de direitos individuais, então podemos chamar isso. É muitas vezes
uma questão de empatia, que eu partilho, ou uma questão de desjustiça
social e de igualdade, que eu partilho parcialmente, quer dizer, partilho totalmente,
obviamente, mas partilho parcialmente a questão da aplicabilidade, mas aquilo que em
mim me faz convergir para essa opinião e de imediato e é
das características que eu me lembro mais novo de definir é a
liberdade negativa no sentido puro, que é pensar, mas eu não tenho
nada a ver com a vida desse tipo. E há algo disso
que é muito curioso, que é, está embutido nestas questões, e já
falei disto várias vezes num podcast, é uma noção de bem, ou
seja, há uma noção de liberdade negativa de tu dizeres, duas pessoas
do mesmo sexo devem poder casar-se, Mas também há uma noção de
bem e culturalmente nós evoluímos nesse sentido de aceitar que aquilo está
bem, ou seja, aceitar que aquilo que nós enquanto sociedade apreciamos aquilo,
achamos que aquilo faz sentido. E isto, nós fizemos esse caminho, isto
faz todo sentido, as sociedades fazem-se assim. Mas a minha defesa do
casamento gay e de outras liberdades individuais está aquém disso. Quer dizer,
mesmo que eu achasse que aquilo estava mal. Quer dizer, duas pessoas,
sei lá, que têm fetiches sexuais estranhíssimos, comem as fésimas dos outros,
ou uma coisa de qualquer género, eu acho aquilo péssimo, mas eles
têm liberdade de o fazer. Não é por eu achar que aquilo
está mal que eles não têm liberdade, eu não tenho nada a
ver com aquilo. E em Portugal nós temos...
Isabel Moreira
É preciso uma lei aprovada na Assembleia da República. Portanto, não basta
a invocação da liberdade negativa. É preciso uma fundamentação que redique, de
alguma forma, no princípio da igualdade, no princípio da liberdade e no
direito fundamental a contrair casamento. Assim como tu, quando consagras a adoção
por casais do mesmo sexo, tu tens uma confluência de princípios e
de valores que não podem ter apenas a ver com a liberdade
negativa. Tem a ver com o direito a constituir família, com evidentemente
o próprio interesse, o superior interesse das crianças em causa, quer dizer,
tens uma confluência de valores ali que a liberdade em si nunca
chega para explicar. Não chega para explicar porque... Não
Isabel Moreira
porque tu estás a ter uma intervenção constitutiva por parte do Estado.
E por outro lado, é verdade que não precisa da aprovação do
Estado e eu aí vou para outra via, que é a via
do de Borkin, que é um autor de direito constitucional que eu
gosto muito, que é os direitos fundamentais serem contramaioritários, ou seja, os
direitos fundamentais impõem-se independentemente da vontade da maioria. Independentemente da vontade da
maioria. Portanto, não há nenhuma razão, não há nenhum prejuízo para terceiros,
se duas pessoas do mesmo sexo casarem e, portanto, parece-me evidente que
se a Constituição proíbe a discriminação com base na orientação sexual e,
noutro artigo consagra o direito a contrair casamento, qual é a razão
plausível para impedir o casamento, vou repetir a expressão, do direito fundamental
com o princípio da não discriminação em
Isabel Moreira
daí a noção de bem. Há aqui uma noção de valor positivo
e de igualdade, não é? Porque o Estado ao dizer o casamento,
hoje em dia eu já nem sei o que é que significa
casamento gay ou casamento lésbico, porque O casamento está definido como um
contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir uma união plena de
vida, ponto. Portanto, não há um sub-tipo. O casamento é casamento. Portanto,
não há um sub-tipo. Agora, quando o Estado faz isso, o Estado
também está a dar um sinal à sociedade de que a igualdade
está certa e a desigualdade está errada. Está a dar um sinal
à sociedade de que aqueles que diziam que o que era certo
era deixar que as pessoas homossexuais, homens e mulheres, pudessem unir-se, mas
com um nome diferente, assim como havia para os cravos, que era
o contubernio, não era um casamento que eles tinham, mas com outro
nome.
Isabel Moreira
Ter o mesmo nome é essencial para a não discriminação. Eu lembro,
por exemplo, na questão da coadoção, foi uma questão que me marcou
profundamente do ponto de vista emocional. Eu sou bastante emocional quando me
envolvo nestas leis que são causas de direitos humanos em que nós,
não sei se te lembras, ganhámos na Generalidade e depois foi uma
discussão muito acesa durante o ano na Especialidade, em que foram as
pessoas mais extraordinárias à especialidade, estes tipos de pessoas que agora parecem
achar
que
a homossexualidade deve ser curada, etc. Havia-se todas no Parlamento, na especialidade,
foram todas convenientemente chamadas por deputadas, e estou a me lembrar de
uma que estava particularmente empenhada em impedir que crianças que já estavam
em famílias vissem as suas duas mães ou os seus dois pais
reconhecidos enquanto tal. E ganhámos, claramente, o debate na especialidade, com toda
a ciência, portanto não era uma questão de opinião, era uma questão
de ciência, era o melhor
interesse
da criança, era que se já tem um pai reconhecido, que o
outro pai também fosse, ou a outra mãe também fosse, bastava faltar
um que a criança podia ficar. Se faltasse aquele que era reconhecido,
a criança podia ficar órfã dos dois, não é? De um dia
para o outro. Claro, sim, é o que dizem que não era
isso, na
Isabel Moreira
te lembras, houve aquela tentativa de referendo do encontro naval do Soares,
que tentou referenda à Criancinhas, o Tribunal Constitucional travou-o, e depois houve
uma mudança na indicação de voto do Partido Social-Democrata, e nós perdemos
na votação final global, e inclusive existiam mes naquela altura, uma mãe
em concreto que estava a assistir a votação, que estava com cancro
e portanto aquilo foi uma questão que me destruiu em termos emocionais.
Saí mesmo do país durante algum tempo. Foi uma discussão em que
se viu bem essa clivagem e viu-se bem onde é que estava
o conservadurismo e onde é que estava aquilo que era essencial para
o bem-estar dessas crianças e, sobretudo, a tática política, porque no fundo
aquelas pessoas, o PSD sabia que nós tínhamos razão, não quereria que
a Vitória fosse do Partido Socialista em relação àquela lei, não é?
Isabel Moreira
Ah, mas pronto, para dizer que estes direitos, estas questões, ah, eu
estava a dizer que se impunham e eram performativas da sociedade, era
nesse ponto que eu estava, não é? Pronto, e depois veio a
adoção. Em todas essas questões, um dos fantasmas que eu vi a
oposição a estes temas levantar é de que a sociedade portuguesa não
está de acordo com elas, que ia ser um grande rebuliço depois
disso. Nunca houve, nunca vi rebuliço nenhum, quer dizer, imediatamente a seguir
ao casamento nunca vi nada senão paz social. A seguir à aprovação
da adoção e consequentemente a co-adoção nunca vi nada senão paz social,
até porque as crianças já existiam, não é? As pessoas, os casais...
José Maria Pimentel
sim? Acho que é por isso? Então, mas espera aí, já lá
vamos. Para terminar esta questão, o ponto que eu estava a fazer
há bocadinho, e eu acho que filosoficamente ele não é irrelevante para
isto, há esta questão da noção de bem, é uma questão importante
na medida em que tu tens, e eu como imaginas, sou ultrasensível
à questão de tu não teres uma ditadura da maioria, ou seja,
não tens a maioria a forçar essa noção de bem sobre os
outros. Mas existe sempre, qualquer sociedade é feita disso, quer dizer, E
esta lei também foi aprovada, foi aprovada por várias razões, foi aprovada
porque, a meu ver, passou essa ideia...
José Maria Pimentel
Mas já quando reconhecem a paridade já tinham união de facto ou
nem sequer união de facto tinham? Podiam ter união de facto, mas
o casamento foi depois. Nós fomos pioneiros no casamento. Pois, é que
o casamento tem essa questão mais simbólica, digamos assim, das instituições. Mas
o meu ponto é que, socialmente, isso existe sempre, socialmente tu tens,
a sociedade impõe uma moral coletiva, uma moral coletiva que existe e
um caminho que nós fizemos, houve um caminho de reconhecer essa liberdade
às pessoas para terem acesso àquela instituição e parte desse caminho é
reconhecer essa liberdade individual, outra parte desse caminho é passar a ver
o facto de duas pessoas do mesmo sexo se constituírem um casal
como algo igualmente legítimo.
Que
antigamente não acontecia. Por exemplo, a poligamia é uma questão... E com
valor positivo. E com valor positivo. E A poligamia é uma questão
muito diferente. A poligamia tem uma questão de diferenças de poder, como
é óbvio, mas pondo isso de lado, vamos admitir que...
E não é uma
reclamação social. Como? Não há uma reclamação social pela poligamia. Mas imagina
que surgia uma reclamação social pela poligamia e tu conseguias destrinçar, quer
dizer, conseguias eliminar dali... E a poligamia pode ser dois homens e
uma mulher ou uma mulher e dois homens.
José Maria Pimentel
e isso, pronto. O meu ponto é que se isso acontecesse, tu
ali não estarias, nunca a debater apenas a liberdade daquelas pessoas de
o fazerem, mas também se nós enquanto sociedade achamos que aquilo cabe
naquele conceito, não é? Claro, claro. Ou seja, isso estava sempre ali,
não é? Sempre. E a oposição dos conservadores, muitas vezes mascarada, era
mascarada de... Criam aquilo com outro nome. Claro, porque no fundo achavam
que aquilo não era legítimo. Era o contubernio. Aquilo não era aquilo,
para eles não era casamento. Era o contubernio. Casamento é homem-mulher. Era
o contubernio. Era o contubernio, eu conhecia essa. Essa teve piada.
Isabel Moreira
Eu acho que há uma coisa que eu disse uma vez num
debate. As pessoas podem ter uma atitude mais progressista, ou menos progressista,
sobre as coisas, mas se estudarem História e em matéria de direitos
humanos, se tu fores ler os papers, por exemplo, a matéria de
racismo, quando foi, por exemplo, a discussão em torno do separate but
equal, a matéria de educação, nos Estados Unidos, ou a proibição do
casamento entre negros e brancos nos Estados Unidos, que é muito recente,
dos anos 60. A argumentação, se tu retirares de lá a palavra
negro e puseres lá a palavra homossexual, é a mesma. É dizer,
ah, mas não estamos a discriminar porque é separado. Ah, mas não
estamos a discriminar
porque tem acesso
a, mas num sítio diferente. Ah, mas não... E, portanto, a argumentação
é exatamente... Eu fiz esse exercício que era pegar em papelada relativamente
ao racismo e substituir com a palavra homossexual. E a dinâmica é
a mesma. A dinâmica é exatamente a mesma. Porque
Isabel Moreira
De não teres a capacidade de seres o outro e depois há
três níveis de argumentação contra isso que me deixam triste, que é
um, é o católico que quer impor a sua visão à política
e ao Estado, que é uma coisa que eu tenho muita dificuldade
em respeitar. Alguém que quer impor a sua fé a um estado
laico. Outra coisa é a total falta de empatia, isso faz muita,
muita impressão. É de facto não ser capaz de ser o outro.
Há pessoas que não têm essa capacidade, não conseguem, portanto. Se não
aconteceu um filho ou uma filha, não existe. Essas pessoas não existem,
nunca tiveram no seu universo. Não têm um amigo gay, não têm
uma amiga lésbica. Normalmente essas pessoas também não têm amigos negros. Não
tem, não existe, quer dizer, não acontece. E há essa falta de
empatia muito, muito grande. E depois é aquela ideia de que estão
a tirar-nos o nosso espaço. Isso então deixa-me... Acho extraordinário o que
é. Pronto, já têm os direitos, mas quer dizer, agora já são
um lobby. Isto aqui já... Pronto, também já... Só falta dizerem, terem
coragem de dizer... Já não os matamos, já não os torturamos, como
em alguns países, não é? Esquecem-se que ainda é crime em cerca
de 70 países, porque andia descriminalizou este ano, não é? Portanto, 70
países, eram 71, se não estou a erro. Mas dizem, pronto, não
são mortos, não são perseguidos, não é ilegal, já não há distinções
no Código Penal, já não é doença, já não estamos de acordo
com uma categorização nos anos 70 e de acordo com outra categorização
nos anos 90. Já não é doença, mas quer dizer, chega, agora
não façam mais barulho do que isto. E há essas pessoas que
acham que o casamento era nosso, era uma coisa nossa e eles
vêm para aqui chatear, uma coisa que era nossa. Acham-se proprietárias de
uma instituição jurídica do Estado laico, que é uma coisa extraordinária. O
nosso lugar, eles estavam tão bem, ali quietinhos, sem fazer barulho, e
até têm aqueles amigos que são aqueles homossexuais de quem eles gostam,
que não fizeram o coming out, com todo direito evidentemente, e que
não chateiam e que não têm relações às claras e esse devia
ser o sítio de toda a gente. Ignoram a quantidade brutal de
sofrimento que está por detrás desse tipo de pensamento, que era o
pensamento legitimado pela lei. Porque a
lei,
ao não permitir casar, ao não permitir legitimar famílias homoparentais, de casais
do mesmo sexo, ao não permitir fazer isso, a lei está a
legitimar este discurso. Está a dizer que tu és diferente, tu és
doente, tu és ilegal, tu tens de estar calado, tu tens de
estar a morar escondidas, tu não podes ter filho, tu não podes
casar, tu não pertences. É isso que a lei está a dizer.
E a lei quando faz isso provoca a depressão, provoca a exclusão,
provoca o suicídio, ou potencia tudo isso e potencia o discurso de
ódio. Quando a lei acaba com tudo isso, pode não fazer de
um dia para o outro, mas quando eu dizia que era performativo,
é que
também ajuda a construir uma sociedade em que eu acho que os
jovens de hoje vão ser muito mais abertos no futuro do que
se calhar eu era, ou os meus colegas, éramos com 15 anos
no liceu, que se calhar não fazíamos uma manifestação na escola como
fizeram os outros para defender uma coleguinha lésbica, não
José Maria Pimentel
é? Eu concordo com quase tudo o que disseste, há uma nuance
que eu introduziria aí, que é, há um conflito, há uma luta
no espaço público cultural em qualquer sociedade, não é? E, portanto, essas
pessoas, quer dizer, alguém que é conservador, há um lado disso que
não é ilegítimo. Eu acho que há um lado que é ilegítimo
no sentido em que existiam questões de liberdades básicas individuais das pessoas
e que muitas vezes eram questões de direitos humanos das pessoas, quer
dizer, por exemplo, a questão da adoção muitas vezes tinha que ver
com isso, quer dizer, com uma criança a ficar sem pai ou
uma coisa do género, mas há uma... Essa luta no espaço público
é uma luta que existe em qualquer lado. De repente tu és
um conservador ou uma conservadora e começas a ver a opinião publicada
a começar a ficar cada vez mais num determinado sentido e tu
ressentes-te disso e eu não acho isso completamente ilegítimo. E depois há
outro lado que acho que é por isso que eu apercebo mais
evoluções relativamente cadenciadas, é que em vez de revoluções, por exemplo... Tu
gostas das transições e não das revoluções? Sim. Então gostas da história
de Portugal. Como? Então gostas da história de Portugal. Porquê? Tantas revoluções,
eu não?
José Maria Pimentel
prefiro. Claro, é só neste sentido. É no sentido de que as
pessoas têm uma aversão natural à mudança. E isso tem que ver
com características de personalidade, tem que ver com características culturais. Em Portugal
existe essa aversão à mudança e essa aversão à mudança deve ser
bem gerida para que ela não fique na sombra e não se
torne depois, por exemplo, combustível para os movimentos populistas e coisas do
género. Ou seja, há pessoas, e isso até nos pode levar à
questão da liberdade de expressão, não é? E eu quero que toda
a gente possa falar, porque se as pessoas se veem silenciadas no
espaço público, aliás o Stuart Mill, voltamos a ele, na outra eu
estava a ver uma, estava a ler uma passagem daquele do On
Liberty dele, até lá uma coisa que é incrível, gostava de ter
escrito aquilo, e o homem escreveu aquilo há quase 200 anos. Eu
também gostava de ter escrito aquilo, todos nós. Pois, todos nós, mas
é incrível ter sido escrito há 200 anos. As pessoas com bom
gosto gostam de ter escrito várias coisas que o
José Maria Pimentel
E ele também era mais ou menos feminista naquele tempo, também podemos
ir aí. E a questão, a passagem que ele tem sobre a
liberdade de expressão, é extraordinária. A questão de que tu não deves
silenciar por um monte de motivos, não deves silenciar porque muitas vezes
existem coisas válidas, existe uma porção válida numa coisa que no seu
conjunto não é válida, ou seja, pode existir pontos válidos e depois
porque convém para tudo mais uma boa opinião, convém sempre teres a
má opinião ali do outro lado, para a boa opinião não dormir
na forma, não relaxar. E isso... Portanto, estes debates são importantes, quer
dizer, e são debates que vão acontecer sempre.
Mas depois também há o
popper, não é? Como?
Isabel Moreira
A fórmula é difícil, eu acho que toda a gente deve ter
espaço para falar agora. Eu tenho a perfeita noção, eu tenho muita
consciência de... Até por ser de esquerda, tenho consciência de classe, tenho
consciência de privilégio, tenho consciência de quem são os oprimidos, do ponto
de vista social, do ponto de vista económico, do ponto de vista
cultural, do ponto de vista das minorias, tenho a perfeita consciência de
que ao contrário do que os meus detratores nestes debates sobre estas
causas dizem, As pessoas LGBT não são uma elite urbana privilegiada, são
pessoas do campo, da cidade, do norte, do sul, das fábricas da
cidade,
Isabel Moreira
Eu tenho esta ideia. E portanto, eu sei que o espaço da
expressão de ideias também é um espaço de privilégio, não é? E
sei que a história foi toda contada sempre por quem esteve nesse
espaço de privilégio. A história foi-me sempre contada basicamente por homens heterossexuais
brancos, não é? A história que eu conheço, a história universal, a
história do meu país, toda a história com a qual eu levei
foi-me contada ao longo dos séculos por homens heterossexuais brancos. E percebo
que estejamos a viver um momento em que quando é dada a
voz a minorias que querem ter o seu papel na história e
que, imagine-se, se atrevem a quererem ter o seu papel na história
e reivindicaram o papel na história e a expressar-se. E as mulheres
começam a falar como nunca falaram. Os gays e as lésbicas falam
e reivindicam como nunca falaram e como nunca reivindicaram. Os negros falam
e reivindicam como nunca falaram e como nunca reivindicaram. Em Portugal, por
exemplo, agora com esta contestação à narrativa do que foi a nossa,
a minha e a tua, a narrativa que sempre recebemos dos descobrimentos
e é querendo que se fale do outro lado, da sua visão
do que é que foi para eles a questão dos descobrimentos, o
que é que essa palavra em si carrega. De repente há uma
espécie de reação conservadora que é, mas o que é isto? Estávamos
aqui nós, não é? Estávamos aqui nós e agora vêm estes grupos
todos minoritários, desatam a falar e inquietam-nos e estão-nos a tirar o
espaço, mas quase que dizem, vou fazer uma em modo piada, quase
que dizem, que chatice, não é? Nós estávamos aqui muito bem e
eles chegaram e começaram a pôr tudo em causa. E as mulheres
começam a falar de abusos sexuais, os negros que querem pôr em
causa o nome do museu, e os ativistas, negros e não negros,
é os gays e as lésbicas que falam, e as mulheres que
começam a falar do discurso inclusivo, e tudo o resto, porque isto
quer dizer, isto qualquer dia, e depois é o qualquer dia, não
é do Diácono Remédios. Não, quer dizer, sinceramente, está a ser assim
tão duro. É que eu, pela minha perspectiva, a vida continua a
ser muito mais dura para estas pessoas. A vida continua a ser
muito mais dura para uma pessoa que seja negra, para uma pessoa
que seja gay, para uma pessoa que seja lésbica, para uma pessoa
que seja pobre, para uma pessoa que seja cigana. A vida é
muito mais dura para uma pessoa que seja mulher. E, portanto, acho
um certo tupete as pessoas dizerem que... São lobbies, são lobbies. Quer
dizer, o lobby mais forte que eu sempre tive no meu país
foi o lobby conservador, se querem chamar lobby às coisas e o
lobby da Igreja Católica, sem ofensa nenhuma. Eu acho muito bem que
cada espaço faça força para que o seu lado vingue, não é?
Portanto, nós todos vimos, quando foi o referendo, voltando ao referendo do
aborto, a igreja fez o seu papel, nós fizemos o nosso, é
a vida, não é? A igreja tinha muita força. Isso faz parte.
Agora querem nos chamar a nós lobby, está bem, então sejamos, somos
todos lobbies. Agora, ficam todos inquietos, quer dizer, está a ser assim
tão difícil ser homem heterossexual branco-direita. Isso tem
que ver com o pacote. Está a
ser mesmo duro. Eu acho que continua a ser mesmo duro ser
mulher ou ser pobre, ou ser negro, ou ser gay, ou ser
lésbica, ou ser cigano. Eu acho mesmo que tem que se continuar
a dizer que é muito duro estar numa destas circunstâncias.
José Maria Pimentel
estou a pensar em sítios subdesenvolvidos, ou seja, em sítios menos desenvolvidos
do que Portugal. Estás a perceber, ou seja, o que acontece aqui
é, uma das coisas com que o ser humano está dificulado em
lidar é com a mudança e isso está muito relacionado com a
questão da previsibilidade, não é? E de repente o que isto faz,
de repente tu, de seres uma pessoa que tem essa aversão à
mudança e vê as coisas todas em catadupa e o espaço público
a inundar-se de pessoas com visões diferentes, as pessoas ficam com medo,
aquela é uma espécie de reação de medo. Ficam com medo
Isabel Moreira
e tu dizes que é preciso ter cuidado no discurso e eu
acho que sim, acho que nós fomos inteligentes. É, bem cuidado no
discurso. Acho que nós fomos inteligentes no discurso, acho que nós fomos
inteligentes na estratégia de concretização desta agenda de direitos fundamentais, acho que
trouxemos a ciência para o debate, não aparecemos a dizer que sim
porque sim. Quer dizer, por exemplo, nas questões da parentalidade homossexual tivemos
sempre a ciência do nosso lado e portanto foi um debate apurado
e foi de facto a chamada política de passo a passo, não
foi uma coisa repentista e para as pessoas isto custa muito porque
eu acho que deve ser muito difícil ser lésbica e ter uma
família, ter os meus filhos e depois estar a explicar a essa
lésbica e à sua companheira e às suas filhas olha, eu sei
que vocês querem que tenham direito a ser reconhecidas, a vossa relação,
as vossas filhas, mas vamos fazer assim, em cinco anos vamos tentar
o casamento ou em dez depois daqui a dez ou daqui a
seis depois vamos tentar reconhecer as vossas filhas. Para os próprios que
estão na situação, cada ano é uma eternidade, obviamente, até pela insegurança
jurídica em que vivem. E pela situação de desigualdade e da apartheid
social que isso significa. Acho que esse discurso teve esse cuidado e
foi passo a passo. Agora, o que eu não admito, e isso
é que me custa muito, é quando dizem que eu tenho, eu
ou nós, temos de abrandar a defesa destas causas porque puxar muito
por estas causas ou puxar pela questão de dar importância à boa
educação no discurso, as pessoas chamam politicamente correta que é a expressão
mais... É péssima a expressão, não é? A pessoa que ouve politicamente
correta apetece logo ser contra, não é? Politicamente correta, não é? Mas
Isabel Moreira
esse. Culpar as políticas identitárias pela crise da esquerda, por exemplo, das
esquerdas na Europa ou da esquerda no Brasil ou onde quer que
tu sejas, eu acho que é de uma injustiça tremenda, porque, primeiro,
a política de esquerda não tem que ser de escolhas excludentes e,
portanto, eu sou muito conhecida para estas causas, por exemplo, mas dedico-me
a muitas outras questões em relação às quais não apareço na imprensa
porque não são apetitosas. Se eu estiver a trabalhar sobre o estatuto
do Ministério Público, não apareço na imprensa. Se eu estiver a trabalhar
no Código Laboral sobre a questão da sociedade moral, por acaso apareci,
mas não é assim uma coisa. Ou se estiver na área das
pensões, das reformas, por acaso aí apareci porque fui ao Tribunal Constitucional,
mas quer dizer... Sim,
Isabel Moreira
uma política não abandona a outra. Agora, nós não podemos, por haver
Bolsonaros ou por haver Trump, deixar de afirmar este lado das coisas.
E, por exemplo, eu acho que uma pessoa que fez um caminho
extraordinário nos últimos tempos foi precisamente o Daniel Oliveira, porque o Daniel
Oliveira era uma pessoa que até há pouco tempo, do meu ponto
de vista, tinha um discurso muito bom no que toca à definição
da esquerda, ou que é a esquerda para ele, e é muito
coerente, mas estava muito reticente relativamente a ser benéfico para a defesa
da esquerda neste momento histórico. Pelo contrário, eu achava que era mau.
A insistência nas questões identitárias e até no discurso, e aliás ele
tem um podcast dele em que está num combate saudável, intelectual, com
o professor Miguel Valle Almeida, nesse sentido. E ultimamente tem feito um
caminho nos artigos que escreve em que talvez até é espicaçado pelos
acontecimentos recentes no Brasil, pelo facto de TVI ter chamado, ter feito
um branqueamento, não é uma questão de liberdade de expressão, ter feito
um branqueamento do nazi na televisão, de repente a gente vê o
Daniel Oliveira outra vez com uma paixão enorme a defender a importância
do politicamente correto, a importância dos gays e das lésbicas reclamarem os
seus direitos, das mulheres terem reclamado e continuarem a reclamar os seus
direitos, ou seja, fez uma ótima curva, não
José Maria Pimentel
é? Sim, é o meu exírito, por acaso, e estávamos a falar
um bocadinho disso e eu não tinha bem essa noção, curiosamente. Eu
ainda estava no episódio do Miguel Valdeal, mas ainda estava no início.
Não, os últimos artigos têm sido uma graça. É verdade que eu
escrevo sobre isso. Mas deixa-me falar de uma coisa, porque tu levantaste
um ponto interessante e é bom para eu estabelecer a distinção entre
duas coisas. O que eu digo não é que se deve abrandar
o discurso. Pelo contrário. Eu acho que o espaço de troca, aliás,
o podcast é isso, não é? É a pessoa falar o mais
possível e dentro do debate saudável a pessoa não calar a boca
e trocar o máximo de idadejos possível. Aquilo que eu vejo, e
eu admito, só vou fazer aqui um disclaimer, é um caveat nisto,
que é Tudo isto, eu admito que seja, é muito, muito empolado
pelas redes sociais e esse é um problema nestes debates, é que
coisas às vezes parecem mais do que são. E
José Maria Pimentel
sei como se passa por lá. Mas é muito empolado. E os
Estados Unidos, então, por exemplo, têm isto muito mais ainda até do
que nós. Agora, o que acontece muito, por exemplo, na questão do
feminismo ou na questão de questões de género, identidade de género e
desigualdade de homens e mulheres, por exemplo, o que acontece muitas vezes
é que tenta-se de certa forma silenciar quem está do outro lado
E tu não estás só a silenciar quem está num extremo exatamente
oposto, mas estás também a silenciar aquelas pessoas que estão mais ou
menos a meio e podiam ser os teus aliados. Por exemplo, questões...
A questão do casamento de pessoas mesmo sexuais. Eu lembro de assistir
a conversas entre amigos. E estava eu, amigos mais de esquerda e
depois aquelas pessoas que estão... Há que não penso muito sobre o
tema mas... E que são recuperáveis. E são perfeitamente recuperáveis. Eles
Isabel Moreira
educada pela sociedade, a sociedade é intrinsecamente machista, é intrinsecamente homofóbica, é
claro que isso tudo ficou dentro de nós. Depois fazemos um esforço
e somos ou não ajudados por livros, por pessoas que nos rodeiam,
por circunstâncias que fazem com que te levem a um determinado circuito
ou não. Isso aconteceu-me, eu por acaso dei um salto em que
fui convidada para escrever um parceiro jurídico para duas mulheres que queriam
casar e com isso entrei no ativismo. Para o Tribunal Constitucional foi
uma... Lembras-te daquelas duas primeiras mulheres que quiseram
casar quando era
proibido e foi aí que eu entrei. E portanto calhou, foram circunstâncias
da minha vida e apaixonei-me pelo tema. Mas quer dizer, foi uma
construção, eu não tinha a linguagem certa, eu não tinha... Quer dizer,
o meu mundo hoje é infinitamente mais rico, os filmes que vi,
os livros que escolhi desde Então, quer dizer, os amigos e as
amigas que tenho, as famílias que eu conheço com pais do mesmo
sexo, as crianças concretas que eu conheço, portanto, eu tenho uma sensibilidade
acrescida, eu acho que sempre tive a sorte de ter uma enorme
capacidade empática, que eu acho que isso é fundamental, de ser o
outro. De ser o outro. Isso
Isabel Moreira
minha escrita sempre tento fazer isso. Mas, tivesse a sorte, mas eu
sou política e, portanto, eu nunca faço aquele... Lá está eu dizer
que eu... Acho que há coisas que não se devem dizer mas
eu não policio no sentido de esta pessoa disse isto e nunca
mais me falo. Não! Eu tenho encontrado muitas pessoas na minha vida
que com um discurso homofóbico e a minha primeira atitude ou um
discurso que eu não considero aceitável do ponto de vista do racismo
ou do ponto de vista das mulheres, mas que eu percebo que
não há ali, se quiseres uma má intenção, há ali um... Há
ali espaço para argumentação e já vi muitas pessoas crescerem num determinado
sentido e, portanto, o diálogo é fundamental e continuar a estabelecer pontos.
O que eu quero, é evidente, é que o meu campo cresça,
mas é por isso que eu estou na política, não é? Portanto,
eu quero que o meu campo cresça e, portanto, eu não estou
numa atitude fechada. Agora quem diz uma palavra que eu não gosto,
não falo com ela. Isso é uma atitude erradíssima que tanto pode
ter um conservador ao contrário, não é? Que a palavra homossexual lhe
dá um salto, ou a palavra lésbica lhe dá um salto, ou
um ativista tão ativista, tão ativista que eu lembro-me, por exemplo, quando
foi a conquista do casamento, que houve um determinado tipo de ativismo
que não gostou, porque quando não era o casamento, já com a
adoção, então não me chuparam. Para. Pronto, quer dizer, era passo a
passo. Para mim aquilo já era o ótimo, quer dizer, era vamos
conseguir isto e depois daqui a uns tempos a adoção e depois
a procriação medicamente assistida era o possível, porque o Partido Socialista, eu
naquela altura não estava em partido nenhum, não é? Naquela altura o
que eu estava a fazer era pressão para o Partido Socialista ter
o casamento no programa de governo. Portanto, se eu não conseguia que
o Partido Socialista tivesse o casamento e a adoção, mas conseguia que
tivesse o casamento, pois fosse, não é? E era isso que se
tinha que defender.
José Maria Pimentel
Sim, mas... Não, não, quer dizer, eu pessoalmente sim, mas a direita
liberal eu acho que é muito menos, até por ser menos, se
calhar, tribal, ou seja, o liberalismo é individualista e, portanto, não se
presta tanto a esse tipo de campanhas que são precisas, não basta
pensar, é preciso agir. Não tem espírito comunitário. Exatamente, a questão da
ação é fundamental, isso para mim é um dos defeitos, para mim
a política é feita de verdades parciais, não é feita de verdades
absolutas e esse é um dos defeitos. Para mim, na questão, por
exemplo, do papel de homens e mulheres na sociedade, com a história
toda que isso vem para trás, com as questões biológicas que estão
associadas a isso, tem que haver também, para além disso, uma humildade
epistemológica, ou seja, a pessoa saber que nós não sabemos tudo, é
impossível saber tudo e esta é uma questão ultra complexa. Por exemplo,
vou-te dar um exemplo...
José Maria Pimentel
Não, não, eu acho que, por exemplo, vou-te fazer uma pergunta que
gostava de saber a tua opinião em relação a isso. Uma das
coisas polémicas, para mim não tem nada extraordinário, que neste debate é
tu, é aquele postulado de que... Ou por outro, a minha opinião
é a contrária, mas aquele postulado de dizer que biologicamente não há
diferença entre homens e mulheres tendencial e portanto nós somos só aquilo
que a cultura nos faz, somos só entre o nature versus nurture,
nós somos só o nurture. Para mim, claramente, é que dizer, o
que a ciência prova é que existe nature com duas nuances nisso,
que é, por um lado, não é só nature, ou seja, tu
tens a parte biológica, mas também tens a parte cultural e depois,
e essa para mim é a questão fundamental, uma coisa é tu
dizeres que tendencialmente existe uma coisa, quer dizer, tu dizeres que tendencialmente
os homens são mais altos que as mulheres, outra coisa é tu
teres uma pessoa, um indivíduo à tua frente e tu tratá-lo com
aquele estereótipo que é diferente, são duas coisas diferentes, ou seja, uma
é verdade, mas isso não significa que tu deves tratar...
José Maria Pimentel
Se tu tens um sistema que discrimina, um sistema educativo, por exemplo,
ou no currículo das pessoas das empresas, se quiseres que a administradora,
que o quadro da administração seja 50% homem e 50% mulheres, a
média de currículo vai ser desvantajosa em relação às mulheres. Isso não
tem nada a ver, quer dizer, tem que ver com aquilo que
vai entrar, ou seja, não é ali, não é naquele ponto que
tu corriges. E depois há um fenómeno muito interessante que é, por
exemplo, nos países nórdicos, quando mais igualitários se tornam os países, mais
homens e mulheres tendem, em média, lá está a termo da fase
dos grandes números, a escolher profissões diferentes, por exemplo, que é um
fenómeno muito interessante, fenómeno empírico, quer dizer, tu tens, por exemplo, nos
países nórdicos, o curso de engenharia, por exemplo, tem muito mais homens
do que mulheres e eles são absolutamente livres de escolher, quer dizer,
a questão é, tu tens diferenças biológicas ali que são diferenças que
Isabel Moreira
uma coisa que eu não percebo, que é, o que é que
pode nisso que estás a dizer, fazer com que não faça sentido
medidas positivas de correção de injustiças históricas que são evidentemente transitórias. A
ideia é que chega um ponto e deixe de ser necessário cotas.
Claro. Qual é o ponto em que, olhando para o que se
passa na política, ao nível do Parlamento, do Governo, das autarquias, mas
todos os níveis das autarquias, ainda tem as juntas de freguesia, e
olhando para o verdadeiro escândalo que se passa no acesso das mulheres
ao poder, porque esse é que é o ponto, porque as mulheres
hoje já têm profissões de grande destaque, não é? É evidente que
sim, mas onde está o poder? As mulheres com acesso ao poder,
ou se faz aos conselhos de administração das empresas públicas e por
aí fora, que é onde o Estado pode intervir, porque o Estado
não pode intervir nos privados, qual é o argumento ou a dúvida
que pode ser suficientemente forte contra o argumento da igualdade? Que é
o argumento de corrigir uma injustiça histórica, quando depois vês, sobretudo em
termos de resultado, que os partidos nunca vão além da cota. Quer
dizer, se estabeleceres uma cota de 30%, os partidos põem 30% de
mulheres. Se estabeleceres 35%, põem 35%. Ou seja, não há...
O sexismo
é tão forte, o espírito patriarcado é tão violento, que os partidos,
por iniciativa própria, tu próprio disseste, nós não somos dados à mudança,
não é? Os portugueses. E as
José Maria Pimentel
Não, atenção, por exemplo, no caso das listas da Assembleia, dos ex-deputados,
eu sou mais sensível a esse argumento Porque eu acho que na
Assembleia da República há uma necessidade de representatividade. Ou seja, tu não
estás... Claro. É diferente, por exemplo, de uma empresa. Ou seja, a
Assembleia deve ser representativa da população. Não é só a vontade dos
deputados de lá estarem, mas ela deve ser representativa da população. Nas
empresas, por exemplo, uma coisa empiricamente mais do que comprovada é que
a busca de poder por parte dos homens é muito maior do
que a parte das mulheres. E isto é evolutivo. Tem uma questão
cultural, mas também é evolutivo. Tem que ver com o modo como
a seleção sexual foi sendo feita, na espécie humana. Quer dizer, isto
é, bom, humilhada epistemológica de novo. Portanto, eu não quero... Tu estás-me
José Maria Pimentel
Existem as duas coisas, porque tu tens um dualismo entre a questão
biológica e a questão cultural. Por exemplo, a cultura o que faz
normalmente é pegar em coisas que são biologicamente diferentes e extremá-las. Por
exemplo, sexo e género. O género torna as diferenças entre os sexos
ainda mais pronunciadas. É o que o género faz. O género feminino
torna as diferenças da fêmea e humana face ao macho humano ainda
mais pronunciadas e a mesma coisa o sexo masculino em relação ao
macho humano, ou seja, faz, tende a diferenciar isso ainda mais. Agora,
em qualquer sociedade humana, os antropólogos estudam sociedades, encontram-se algumas sociedades matriarcais,
por exemplo, encontraram-se algumas, mas são por norma sociedades muito pequenas, ou
seja, pequenas tribos. Tudo que não seja disso, em toda a história
humana, as sociedades eram patriarcais. Aquilo é biológico, não se sabe bem
porquê, ou seja, não há uma resposta absolutamente definitiva em relação a
isso. Agora... Já agora... Não
José Maria Pimentel
Há vários... O Harari, não sei se sabes quem é o Ivol
Harari, que é um tipo que Ele tem uma coisa muito gira
sobre isso porque ele diz que a hipótese da força não justifica,
porque, por exemplo, quem mandava normalmente não eram os homens mais fortes,
propriamente, isso estava lá muito atrás. Os chefes, os grandes generais não
eram os tipos mais fortes do exército, Eles eram aqueles que conseguiam
gerir aquilo melhor e o que ele... E depois há outra coisa
contraditória que é, aparentemente, as mulheres em média, lá está tendencialmente, têm
até mais skills sociais, têm mais capacidade inter-relacional. A hipótese que ele
dá, mas não é nada definitivo, mas é interessante, é que da
mesma forma, em média, os homens tenham mais facilidade em gerir grupos
grandes. Ou seja, uma questão de escala. E quando o grupo aumentava...
Eu não conheço
Isabel Moreira
esse estudo. Aquilo que me parece é que podem-me apresentar os estudos
se quiserem e dizerem como é que evoluíram as sociedades, se foi
assim, se foi assado, que há diferenças biológicas, com certeza. Aquilo que
me parece evidente é que as mulheres são altamente discriminadas a todos
os níveis, como é evidente, começa na questão da... A questão mais
brutal que nos entra pelos olhos é a questão da violência de
género, não é? É a questão que nos magoa coletivamente, não é?
De uma maneira brutal. E depois são discriminadas desde... Se fosses mulher
durante um dia, 24 horas, perceberias o que é que é ser
mulher? Todos os dias é, sais à rua, és discriminado no espaço
público, porque o espaço público não é totalmente teu. Depois vais trabalhar
e és discriminado porque queres falar e não tens o mesmo espaço
para falar do que os homens. Depois se falas és discriminado porque
há a questão do estereótipo e se és assertivo és histérica e
um homem se fala com imenso vigor
é assertivo,
é fantástico e é tudo mais. Depois ganhas menos, depois tens de
esforçar o dobro, depois não há igualdade de género na parentalidade e
depois triplicas-te porque és mãe, não é? E a lei tenta corrigir
isso e tenta dar incentivos às licenças de parentalidade, dividir e não
sei o quê, não sei o que mais, lá está a subir
um bocadinho e tal, mas é mentira. As mães é que fazem,
têm um trabalho não remunerado muito maior do que os homens. As
mulheres que querem efetivamente aceder a lugares de poder têm muito menos
capacidade para isso. Se não fosse as cotas, na política não conseguiam.
Vais ao setor empresarial, privado ou público e aquilo que eu vejo
hoje, felizmente, muitas jovens, eu tenho a sorte de ter muitas, ter...
Bem, então quando dava aulas tinha contacto com... Eu dei 11 anos
aulas na faculdade de Direito e dava sempre ao primeiro e ao
segundo ano, portanto tinha sempre... Os meus alunos tinham sempre 18 e
19. Parecia que eu não envelhecia,
não
é? Passava um ano e eles tinham sempre 18 e eu tinha
sempre mais um. Que é aquilo que o meu pai diz sempre
dos alunos dele, porque eram também sempre o primeiro ano, ele uma
vez disse, eu tenho sempre mais um ano, eles têm sempre 18
e eu, olha mesmo isso. E eu hoje em dia, ver raparigas,
que para mim são miúdas, não é, de 21 anos a começarem
a trabalhar e dizer, e uma das coisas que elas vão ver
primeiro, é se no conselho de administração da empresa onde começam a
trabalhar há mulheres e se não houver vão embora, não querem, porque
percebem que não tem futuro ali, portanto não me venham dizer que
as mulheres não querem lá chegar, é
Isabel Moreira
Não sei quantas são, não sei qual não tenho palpite, há vários
números avançados. Agora eu tive uma iniciativa de instituir mesmo um dia
nacional de luta contra o racismo, para assinalo mesmo isso. Claro que
é daquelas iniciativas que são aprovadas por unanimidade, mas depois na discussão
da iniciativa eu vejo que há perspetivas completamente diferentes, porque para mim,
eu falei em apartheid social, disse, afirmei claramente que Portugal era um
país racista, expliquei o que se passa a nível dos crimes de
ódio, do acesso dos negros e das negras às instituições, o que
é que se passa nas periferias, o silenciamento, etc.
Isabel Moreira
pessoas que entendem que Portugal é um país acolhedor, multicultural, o racismo
não existe, nós somos um país fantástico, mas quando existe, claro, é
para condenar e portanto somos a favor da iniciativa. Ou seja, não
há consenso sobre a existência do racismo em Portugal ou sobre a
violência policial diferenciada ou sobre a justiça diferenciada e isso não deveria
ser matéria de discussão, porque tu hoje tens estudos que demonstram que
o racismo atravessa as decisões judiciais e, portanto, isso traduz-se no encarceramento
desproporcional de negros e negras ou de brancos e brancas. O racismo
atravessa, atravessa as instituições, atravessa as forças policiais, atravessa a forma como
contamos a história, como nós ouvimos a nossa história, A forma como
a nossa habitação está construída e vivida, se andarmos nos transportes públicos,
percebemos que há apartado social, não é? Se entrarmos na linha de
Sintra, percebemos que a partir de uma determinada extensão, a população muda,
não é? Portanto, quem estiver atento
José Maria Pimentel
sabe que é racismo. Mas para mim o principal problema está aí
e está no... Nem é tanto... Eu concordo que nós temos um
tipo de racismo que é muito diferente, por exemplo, do racismo americano.
Eu admito que existam pessoas racistas nesse sentido quer dizer, mas maioritariamente
nós temos o racismo passivo. E o passivo é o pior, porque
tu tens, quer dizer, eu lembro-me, tu traz a mesma experiência, eu
lembro-me na escola, na faculdade, no trabalho, eu tinha muito poucas pessoas
que não fossem brancas. Claro. Ou seja, elas não cheiram lá, estás
a perceber? O problema está muito lá atrás, está muito no sistema
educativo. Eu
Isabel Moreira
lembro-me que tive um colega negro no décimo ano e tinha um
grupo neonazi na minha escola, assim, e eles tinham um ódio brutal
e o ódio duplicava porque ele era o melhor aluno da aula.
Nos tempos livres ia para o ódio e isso que o pessoal
virava a ciência política, quer dizer, ninguém é tão inteligente aos 15,
não é? Ele era uma seca de pessoa, não é? Por exemplo,
sempre pastelar. E eles tentavam atacá-lo fisicamente e aquilo mexeu imenso comigo
e nós fazíamos contra-grupos e... Agora, foi o único colega que eu
tive na escola pública. Foi... Nenhum colega negro. Não tive. E reparo,
por exemplo, nos teus relacionamentos, eu tenho amigos e amigas negras e
basta falar com eles, eu detesto pôr-me no chamado lugar da fala,
não é? Quando há quem possa falar por mim, quer dizer, é
ouvi-los. É ouvi-los, quer dizer, o que é a experiência diária? Lá
está aquela coisa de ser mulher de manhã à noite ou ser
negro, ser negro de manhã à noite. Quer dizer, eles te explicam
de como é que é entrar num restaurante e tratar-te imediatamente como
fosse empregada de limpeza, ou entrar num serviço público, ou como é
que és tratado. Ou, por exemplo, que é uma coisa profundamente presente
em Portugal, é a cidadania... O Miguel Amanda fala muito sobre isso,
que é como nós temos ainda a nacionalidade muito ligada à questão
do sangue e cada vez menos, felizmente, há outros critérios, o território,
não é? E depois já há outros critérios, estiveres cá há seis
anos e mais isto e mais aquilo, mais aquilo outro. Mas, por
exemplo, o CDS continua a defender muito, muito, muito o critério do
sangue e acha que a Europa está a fazer um caminho ótimo
nessa matéria. E lá está. Quando se diz que não há uma
diferença entre a esquerda e a direita, eu acho que as questões...
Eu Tenho tido muito esses dossiers, os dossiers da imigração e essas
matérias. Lá está, as pessoas acham que eu não me digo outras
matérias. Aí estava essa. E aí vês-me clivagem total entre a esquerda
e a direita. E em Portugal há uma enorme dificuldade, por causa
da forma como as leis são feitas, de identificar um negro e
uma negra como portugueses. Tu se falares com amigos teus portugueses negros,
eles de certeza que te contam que são confrontados permanentemente com a
pergunta de onde é que tu és? Pois a pessoa, eu tenho
uma amiga que é de Negra, que é de Coimbra e ela
diz, sou de Coimbra. Não, tá pá, mas de onde? Tipo, perguntou
a segunda vez.
José Maria Pimentel
atenção, eu não sei se tu se calhar não aprecias esta distinção,
mas para mim, o racismo ou preconceito nesse sentido e o estereótipo
não são necessariamente a mesma coisa, ou seja, todos nós fazemos estereótipos
em relação às pessoas que nos rodeiam. Todos, todos. Ou seja, E
o estereótipo não é necessariamente mal intencionado. Tu precisas lhe fazer para
viver, não é? Para viver tu assumes, o teu cérebro vai traçando
padrões e, portanto, tu, alguém que vê um negro e assume que
ele é um empregado, não está necessariamente a fazer isso por mal.
É uma heurística cognitiva. O ter
Isabel Moreira
Metaforicamente falando. O meu bairro em todos os aspectos, porque abri os
horizontes, porque falei com pessoas, porque li, porque fui ativista, por isto,
por aquilo, por aquiloutro, porque meti na política, por o que tu
quiseres e fui construindo esta pessoa que sou hoje. Aliás, é uma
pena enorme esta voracidade que é o tempo, porque eu acho, pelo
menos no meu caso, acho que somos verdadeiramente idiotas no auge da
juventude e quando começamos a ser medianamente interessantes e mais despidos daquela
parvoeira das certezas absolutas e dos estereótipos todos, que é quando... E
que é, entre tantos, já temos 40 e poucos, não é? Pronto,
e já passaram os 20 e os 30. Eu, pelo menos, sinto
isso. Gostava imenso de injetar as coisas
todas
que eu, entretanto, aprendi naquela Isabel dos 20 anos, que era de
facto pouquichinho neste sentido, não é? Mas eu fazia essas associações. O
facto de eu não ter dolo
é
importante, claro que sim, eu fazia associações. Eu via uma pessoa, se
calhar inconscientemente, associava a negra à empregada, o gesto de determinada pessoa
ao gay, tudo isso. Eu fui tudo isso. Mas o eu não
ter uma má intenção nisso não faz com que isso objetivamente seja
uma coisa boa. Eu tenho de tentar corrigir isso na sociedade.
José Maria Pimentel
Sim, também não sei. E um estúdio tão confortável. Mas, olhando, voltando
à questão da não sei como é que lhe ia te chamar
Feminismo barra igualdade entre sexo ou igualdade entre géneros. Feminismo
mesmo.
A questão das cotas, por exemplo, há uma razão, apesar das reservas
que eu puse há pouco, para eu não ser completamente desfavorável à
questão das cotas, que é o facto de... Tem um bocadinho que
ver com a versão à mudança, não é bem a versão à
mudança, é um bocadinho aquele efeito de... Por exemplo, eu dou sempre
o exemplo do cinto de segurança, que é um exemplo um bocado
para usar, porque o cinto de segurança é importante. Antigamente não era
obrigatório, ninguém usava. De repente ficou obrigatório. Se amanhã deixasse de ser
obrigatório, toda a gente continuava a usar. Foi preciso aquele empurrãozinho para
as pessoas usarem. Estás a perceber? Ou seja, não basta... Mas eu
estou
Isabel Moreira
que foi aí que começou a derrocada da nossa autonomia individual e
do Estado meter-se no meu espaço de liberdade, o que nós chamamos,
para as pessoas perceberem, a liberdade negativa é aquele meu espaço de
atuação individual sem prejuízo para terceiros e não me venham com a
conta do hospital porque eu contribuo para o Serviço Nacional de Saúde
porque os meus impostos não são poucos e, portanto, isso valeria para
tudo, não é? Valeria para o Estado obrigar-me a fazer exercício físico,
para o Estado obrigar-me a ser saudável com o como, como te
contei, estive na Argentina no final do ano. As pessoas podem imaginar
os níveis de carne vermelha que eu atingi diariamente e portanto deveria
ser penalizada fiscalmente por causa disso? Não, não é? Eu faço o
que quero, deixo que pague os meus impostos e não prejudico terceiros.
Isto para mim é uma premissa fundamental na minha veia de liberdade.
José Maria Pimentel
Libertária? Sim, claro. Atenção, eu estou... É curioso eu estar nesta posição,
mas esse é um ponto em que o meu pragmatismo se sobrepõe
ao meu libertarianismo, não sei se se diz assim em português. Porque
a verdade é que é um facto que tu não estás a
fazer mal a ninguém, e existe essa questão da conta do sistema
de saúde que eu não achei relevante. Claro, claro. Agora, pragmaticamente, nós,
seres humanos, somos de facto imperfeitos. Quer dizer, tu tinhas... Hoje em
dia, se tu podias revogar a lei e as pessoas continuavam a
usar o assíntio de segurança, as mesmas pessoas que antes não queriam,
continuavam a usar o assíntio de segurança. Ou seja, há um ganho
social de facto com aquilo. Ah? Eu tenho que reconhecer pragmaticamente que
nós às vezes
precisamos de um bocadinho de paternalismo. Se
José Maria Pimentel
Pois, exato, sim. E também não deves ter aqueles apoios no pescoço,
não é? É, vai não é porrada. Eu já não sei o
que é que ia dizer, era a propósito da questão das cotas.
Bom, o argumento que eu dei para o cotas tu não compraste,
portanto estamos vivendo pontos diferentes desta questão, porque essa é uma razão
porque eu acho que nós precisamos um bocadinho de cotas, ou seja,
precisamos de um empurrãozinho. Agora, o meu ponto é, quando nós exageramos,
nós temos... Existe de facto, quer dizer, seja biológico, seja cultural, eu
acho que é um reforçado pelo outro, existem comportamentos entre homens e
mulheres, tendencialmente, de novo, caso individual é uma matéria completamente diferente, mas
tendencialmente isto existe, muito diferente dos homens e mulheres. E isso aliás
tem que ver com outra questão interessante que eu também gostava de...
José Maria Pimentel
Não, mas a questão é, quando tu introduzes cotas, tu estás a
obrigar uma população grande, onde estas coisas já não são irrelevantes, a
reger-se por aquele tipo de cotas. E o que tu tens, por
exemplo, nas empresas ou em qualquer tipo de organização é, tu vês
os homens mais pressionados para subir. E essa é outra questão, por
exemplo, a questão de quando se fala não há dúvida nenhuma...
Isabel Moreira
Nós estamos a falar de uma coisa mínima. Se nós, em bom
rigor, não devia haver uma cota mínima para mulheres. O que devia...
Quer dizer, eu não... Eu preocupo-me se uma... Eu já me preocupo
quando vou a uma conferência e vejo um painel só de homens
ou quando abro a televisão e vejo painéis de discussão com pessoas
que eu gosto muito, mas quando é só homens, peço imensa desculpa
a quem estiver a ouvir isto, eu desligo a televisão porque já
não aguento mais. Desde que me lembro de ver televisão com debates
políticos, homens, homens, homens, homens, homens. Ou há lá uma mulher ou
eu não vejo. Hoje em dia vejo o
Isabel Moreira
Acho que se perde a diversidade cognitiva. Hoje em dia vejo o
eixo do mal. É uma questão de decência. Eu acho que é
uma loucura hoje em dia fazer-se um debate só com homens. E
portanto, eu só vejo o eixo do mal. Sim, mas faz proibir
debates só com homens. Não é
isso,
acho que é uma questão de decência, quer dizer, não percebo como
é que ainda passa pela cabeça para alguém criar um programa do
zero agora ou fazer uma conferência hoje com oito pessoas e não
convidar mulheres. Só mostra que uma sociedade de facto é machista e
continuas a ver isso. O que nós estamos a fazer é dizer
onde é possível haver intervenção, que não é com certeza a criar
um programa de televisão, isso não tens intervenção nenhuma, é o consumidor
é que pode fazer a sua opção. Eu faço.
Eu não
vejo... Por exemplo, eu gosto imenso de ouvir as pessoas individuais que
entram sem moderação, mas eu não vejo o programa. Como é só
homens, não vejo. Olha,
paciência,
fico sem ver o programa. Mas aqui o Estado pode intervir e
o Estado o que é que diz? 40% mínimo têm que ser
mulheres. Do meu ponto de vista, em bom rigor, chocar-me-ia, por exemplo,
que um conselho de administração de uma empresa pública não tivesse mulheres.
Mas se só tivesse mulheres, para mim, devia ser permitido. Porquê?
Para equilibrar? Porque
não há problema. Não há nenhum problema de desigualdade aí.
Isabel Moreira
séculos e séculos. E o que eu nem sequer veria problema, é
o que eu estou a dizer, eu nem sequer veria problema se
fosse ao contrário, assegurar-me uma representatividade mínima dos homens. Eu estou farta
de ver... Passei toda a minha vida, e então as mulheres que
vieram antes de mim, muito mais, não é? A verem homens a
serem ditos por brilhantes, que não eram. E eram os homens que
nos governavam, que faziam as leis, que nos davam ordens, que eram,
eu estou a dizer nós no sentido de voz coletiva, feminina. Que
eram os nossos patrões, que eram quem mandavam, que eram os nossos
maridos, que eram quem tinham poder, que eram tudo, tudo. E como
os nomes que apareciam, são os nomes que escrevem a história, são
os nomes que legislam, são os políticos, são os nossos... São a
voz, foram sempre a voz, são necessariamente tidos como pessoas notáveis, quando
são conhecidas, quando se tornam conhecidas. Provavelmente, a maior parte delas não
tem nada de notável, não é? Simplesmente tornou-se notável porque era o
que aparecia, porque a mulher não tinha por onde aparecer. E agora
estamos a pedir isto, 40%? E acham que não é uma questão
de justiça
evidente? A questão do
40% não é um número pequeno, não é?
E É um digno constitucional, o Estado tem a obrigação de promover
a igualdade efetiva entre homens e mulheres, nomeadamente através de medidas positivas.
Isabel Moreira
é? Tem que lutar para que as mulheres sejam donas da sua
sexualidade e que pare de haver uma tentativa de controle das mulheres
através da sexualidade. E ainda este ano vimos que isso continua a
ser uma deriva da onda conservadora, para usar o tipo de um
livro de um amigo meu brasileiro, que foi que ela ia ao
tribunal constitucional por parte do CDS e deputados do PSD como o
portuguesado Fernando Negrão, que basicamente tentaram acabar com a procuração medicamente assistida.
Porquê? Não que tivessem horror ou anonimato o dador, porque o anonimato
do dador sempre lá esteve, ou seja, sempre, desde que a lei
existe, os casais de sexo diferente que recorriam à inseminação oficial sempre
viveram bem nas suas consciências com o facto do dador ser anónimo.
E o dador é anónimo porquê? Para dar segurança à família, para
proteger na altura o pai de facto, não é? E para que
haja dadores. A partir do momento em que fizemos a lei em
que todas as mulheres, independentemente da tutela de um homem, portanto as
lésbicas, as solteiras, as divorciadas, as viúvas, etc. Também podem aceder E
portanto há uma lei que efetivamente dá poder às mulheres. Não, afinal
isto o anonimato do dador não pode ser e lá foram rebentar
com isto tudo. Pronto, e continuou com a tentativa de controle sexual
das mulheres. Isto fez-se como? Através de deputados e deputadas foram ao
Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional reflete esta visão terrífica, não foi tão
longe como eles queriam, mas acabou de facto com o anonimato do
Dador. E, portanto, eu luto nessa vertente, luto na questão salarial, luto
na questão do emprego, luto na questão da distribuição da riqueza, luto
na questão dos estereótipos de género e nas várias vertentes em que
temos de pegar numa perspetiva integrada para combater um flagelo, que é
a violência doméstica e por aí fora. E também luto ao nível
do acesso ao poder. Portanto, a minha visão... Eu não tenho
uma
visão acantonada do feminismo do género, só me interesso por este ponto.
Eu podia ter aqui uma grande conversa sobre a discriminação salarial ou
o que é que se passa com as mulheres a nível do
mundo do trabalho ou a duplicação do trabalho, ou o trabalho não
remunerado, ou como é que vivem a maternidade e como é que
conjugam a maternidade com o trabalho. Tudo isso podia ser discutido.
José Maria Pimentel
Por exemplo, acho que era o caso do livre que caiu cotas
e depois teve dificuldade em
preencher. Não acredito.
Eu tento sempre respeitar a evidência empírica, ou o que querermos chamar.
E é o caso dos países nórdicos, é um caso muito curioso.
O caso dos países nórdicos é, primeiro, é um caso dos países
mais igualitários do mundo, dos países que se têm tornado cada vez
mais igualitários, e com o aumento dessa igualdade, com o aumento de,
por exemplo, há uma dimensão sociocultural de quem estuda a questão das
diferenças culturais, que é a questão da... Aquilo tem o nome mal
conseguido neste sentido, que é feminismo... Feminismo barra masculino, e é uma
coisa deste género, e basicamente o feminismo é quando as sociedades têm
características de género mais alinhadas e os países nórdicos são muito alinhados,
ou seja, são países em que o comportamento entre os homens e
mulheres e os estereótipos de comportamento entre homens e mulheres são mais
parecidos entre si, comparativamente com outros países, muito comparativamente com Estados Unidos
e Rússia, por exemplo, são países em que funciona muito ao contrário,
daí o Trump nos Estados Unidos era aquela figura e ia ser
eleito. E o que tu tens ali é, primeiro, tens aquela questão
das ocupações, ou seja, tens as pessoas com inteira liberdade de escolher,
com, obviamente existe uma questão cultural, eu não digo que não, mas
tens essa questão cultural, à partir da minimizada e as pessoas continuam
a escolherem cada vez mais profissões diferentes e acho que isto é
uma espécie de paradoxo das ciências sociais esta conclusão e depois tu
tens, por exemplo, nas empresas, eles começaram por fazer uma coisa que
era dar o máximo de liberdade às pessoas e dizer, dar o
orçamento para a creche, as pessoas tinham um sítio para pôr os
miúdos na creche antes, licenças partilhadas e não sei o que. E
o que tu vês, o que tu viste ali, era menos mulheres
em casa de licença e não mais. Ou seja, dado Com a
liberdade de escolha, o que mais mulheres do que menos fariam era
ficar em casa com os filhos. Isto é evidência empírica, estás a
perceber? Ou seja, eu não vou ao ponto de dizer que não
existe estereótipos e que não
Isabel Moreira
que querem estar na política, há mulheres que querem subir nas suas
carreiras empresariais ou nas sociedades de advogados, onde quer que seja, há
mulheres que querem e que não conseguem por causa do sexismo. Depois
podes-me dizer que há estudos que demonstram que em haver deliberadas mulheres
há mulheres que querem ser mães e que querem isto e querem...
Está bem, mas há muitas mulheres que querem e que não conseguem
por causa do sexismo. E deve haver uma política positiva, e aliás
a Constituição obriga a que haja, uma política positiva para corrigir isso.
E de resto tu vês que é Precisamente nesse tipo de carreira
que há maior desigualdade salarial e não nas classes mais baixas. Porquê?
Porque, por exemplo, se o salário mínimo está atabulado, está atabulado. E,
portanto, não há como.
Isabel Moreira
É um problema terrível, que é como é que tu tens tantas
pessoas em Portugal a viver de uma forma inconcebível, não é? Como
é que ainda tens os números que tens de pobreza? Como é
que tens tanta gente a viver com o salário mínimo? Como É
que tens pessoas a viverem vidas absolutamente infernais em que o dia-a-dia
é sobreviver, não é viver, é acordar de madrugada, é apanhar três
transportes para depois apanhar o barco, para depois apanhar mais três transportes,
para depois ir fazer limpezas a quatro casas, para depois fazer tudo
de volta, para depois ir em dar creche, para depois chegar a
casa, para depois limpar a casa, comer aquilo que dá dinheiro para
comer e sobreviver. E isto é a vida de milhões de pessoas
e quando é nas mulheres é brutal. Mas aí O problema não
é a disparidade salarial ou a desigualdade salarial, o problema é que
estão nivelados por baixo. Agora, em termos de... Quando há liberdade para
fixar salários, quando a carreira sobe, aí é que notas o sexismo.
Quando o Estado não tem poder para intervir...
Isabel Moreira
bem, com certeza, mas podes dizer assim, há sexismo mas também existe
isto, há sexismo mas também existe isto. É a mesma coisa que
eu ter uma mesa muito farta, imagina, com pratos de carne, isto
e aquilo, com outro, carne, prato de carne, carne, prato de peixe,
um arroz gigantesco, uma massa gigantesca, quer dizer assim, vamos, também há
aqui um copo de água. Quer dizer, é muito mais evidente a
comida, não é, do que o copo de água. Está bem, está
ali o copo de água, mas o que é estrondoso ainda é
o sexismo. E voltamos àquela nossa questão inicial, que é tão estrondoso
que as mulheres estão a unir-se, por exemplo, tanto nos últimos tempos
no movimento de enorme empatia a falarem daquilo que sofrem em termos
de abusos sexuais e isso para muita gente cria irritação, não é?
Cria irritação, são astéricas, são feministas, são isso, quer dizer...
Sim,
mas isso é uma história de lixo. Não há empatia, não há...
Não há empatia e há irritação, que é... Lá vêm elas, porquê
que não se calam? E portanto, eu acho que não é qualquer
outro fator que possa vir sustentado com o estudo, ou como é
que é no país, está na palavra bem, com certeza, mas nada
é simétrico ao que é o sexismo. O sexismo para mim é
uma coisa tão estruturante e tão violenta na nossa sociedade, que é
o fator.
José Maria Pimentel
Eu sei que não são a mesma coisa, mas têm algo em
comum. Ser homem e mulher tem mais do que isto. Eu reconheço
isto e que isto está em cima da mesa. Mas nós podemos
isolar aquele fator e falar do fator comum. E nesse sentido do
fator comum, eu acho que esse é um fator comum que no
caso do parlamento justifica a existência de cotas de uma maneira mais
densa, de uma maneira mais pesada do que nas empresas. Mas isto
é a minha visão pessoal em relação a isto. Agora, o que
acontece, para dar a minha perspectiva, ao contrário, eu acho que existe,
a nossa sociedade é patriarcal no sentido em que as mulheres historicamente
foram prejudicadas no sentido em que tiveram sobre elas uma série de
estereótipos que eram menorizantes ao longo da história e mantêm-se muitos deles
hoje em dia e portanto não há dúvida nenhuma em relação à
disparidade, só para tornar isso bem claro antes do que eu vou
dizer. Agora, eu acho que os estereótipos são maus para toda a
gente e os homens, por exemplo, têm estereótipos que são, por exemplo,
imagina, eu como homem digo-te isto, e tu sabes isso muito bem
perfeitamente, quer dizer, como homem tens uma pressão para o sucesso muito
maior do que as mulheres têm. Tu és medido pelo teu sucesso.
Tu és... A questão dos bens materiais, a questão da riqueza, a
questão da ascensão na carreira, essa é uma pressão que existe sobre
os homens e é uma pressão que existe socialmente e é feita
pelos outros homens e também pelas mulheres no sentido em que a
seleção sexual muitas vezes é feita nesse sentido.
Isabel Moreira
todos. Não, não, não, não, não, não, não. Não é, ai coitados
dos homens, não. Os homens, mais uma vez, não há simetria possível.
Isabel Moreira
um esmagamento a todos os níveis, desde logo o papel que é
dado à mulher pela religião, pelas várias religiões, não é? E portanto
o caldo cultural em que estamos e o peso que isso teve
e como as mulheres que se destacaram, isso para mim é muito
interessante. Não podem ser ordenadas, como padres. As mulheres que se destacaram,
de certa forma, ao longo da história, as que se destacaram, de
certa forma, foram dessexualizadas, isso é muito interessante.
Isabel Moreira
mulher é uma coisa subalternizada a quem se dá ordens, em quem
se pisa, a quem se tira a voz, em quem se bate
e num limite a quem se tira a vida e a quem
se dá ordens do ponto de vista da sua liberdade sexual. Isto
são as mulheres, não é? E que não têm poder, ao longo
da história não têm poder sobre o seu próprio destino e o
seu próprio devir histórico, não é? Em termos económicos de planeamento da
sua vida. Depois vens-me dizer, mas os homens, coitados, também têm aqui
uma pressão muito grande que é o seu sucesso. Eu admito que
reclamar para si o poder todo, a manutenção do poder dá trabalho.
Imagino que deve ser sucessante para vocês.
Isabel Moreira
O sexismo não tem género. Há mulheres hiper machistas, como sabes, e
terríveis. Agora, tu tens homens com... Um dos meus melhores amigos é
um feminista incrível, que tem uma desenvoltura intelectual em torno do... E
o entusiasmo em volta do feminismo verdadeiramente apaixonante. Uma vez perguntei-lhe como
é que ele se tornou tão feminista e ele disse-me, prestei atenção,
que achei uma resposta brilhante. E é muito interessante ver quando os
homens também reclamam para si a luta contra o machismo porque querem
uma sociedade que beneficie da igualdade de género, porque todas e todos
nós beneficiamos da igualdade de género. Portanto, o machismo prejudica os homens,
evidente que prejudica os homens. Eu não tenho um discurso contra os
homens, eu tenho um discurso contra o sexismo. É evidente que quando
digo, eu ironizo e digo que deve estar a ser muito difícil
para vocês, não é? Estamos aqui num pros e contras. Não, eu
não tenho discurso contra os homens, eu tenho discurso contra o sexismo.
E contra as pessoas que se põem no lugar do sexismo, sejam
homens, sejam mulheres. Agora, Acho que o stress que pode vir daí
é todo o stress que vem da reclamação do monopólio do poder.
O monopólio do poder está espilhado em todo o lado.
José Maria Pimentel
claro, mas não há uma conspiração dos homens e homens a dizer
bom agora vamos manter o poder, este ano ficas tu, amanhã fico
eu. Não, existe muita competição intrassexual, tanto nos homens como nas mulheres,
sempre existiu, ou seja, as duas realidades existem. A realidade é mais
complexa. Sempre existe, não,
Isabel Moreira
tenho que sempre focar-me nas mulheres, isto é, eu quando faço um
discurso identitário e de defesa dos direitos eu não posso… eu há
alguns tempos estava numa conversa assim, também animada sobre o assunto e
eu vi uma pessoa que me dizia, ai eu gostava muito de
que pudéssemos superar as categorias e não falar em mulheres e homens
e negros e gays e lésbicas e pronto e lutássemos pelos direitos
humanos, os direitos das pessoas. E eu disse, tudo bem, A utopia
é essa, não é? A utopia é que a gente deixe de
ter que ter categorias e que se cheguemos ao famoso direito à
indiferença. Agora, para ter um discurso político, eu tenho que utilizar as
palavras. A
Isabel Moreira
lésbica, que aliás é uma palavra que eu aprendi a gostar muito,
porque não existia muito no meu vocabulário, era sempre os homossexuais, não
é? E os gays, as lésbicas são muito apagadas, como sabes, do
debate.
Porque as
questões LGBT, porque são mulheres. Porque são mulheres, as mulheres são sempre
apagadas. E mais uma vez, e repara, os detratores dos direitos dos
homossexuais para tentarem cutir o medo em casa de se dar direitos
aos homossexuais, falam sempre em gays e, por exemplo, na questão de
paternidade falam sempre em casais de homens, nunca falam em mulheres ou
na sexualidade feminina. Porque a sexualidade entre duas mulheres é menos assustadora,
em termos imagéticos, para um homofóbico, do que a
sexualidade entre dois
Isabel Moreira
saber? E isso, o que também é uma coisa homofóbica de se
dizer. Mas é verdade, para o imaginário de um homofóbico, a sexualidade
entre duas mulheres é menos repugnante do que a sexualidade entre dois
homens. E o fantasma criado para o qual, por exemplo, a Igreja
já contribuiu de ligação inadmissível entre a homossexualidade e a pedofilia é
entre a homossexualidade masculina. E portanto, o que é que fazem os
detractores dos direitos dos homossexuais? Apagam as lésbicas do discurso. Pronto, e
também por serem mulheres, claro. E por alguma razão, volta àquela questão,
quando foi a progressão medicamente assistida, as pessoas apagaram. Foi a conquista
mais difícil, foi a última de todas e ao mesmo tempo foi
a silenciada, porque eram mulheres, eram duas coisas ao mesmo tempo, eras
a lutar ao mesmo tempo contra o sexismo e contra a homofobia,
que era dar poder às mulheres e às mulheres lésbicas, Era uma
bomba, não é? Era isso.
José Maria Pimentel
Ok, boa. Então, encerramos este assunto. Não queres falar de economia, pois
não? Podemos, o que é que era? Gostava de ter a tua,
quer dizer, gostava de saber a tua opinião em relação à economia,
digamos que há um, o meu liberalismo económico tem, bem, que é
relativamente moderado, digamos assim, mas tem se calhar duas origens. Tem uma
origem mais filosófica, mais tipo Milton Friedman, uma versão um bocadinho mais
moderada, dos mercados estarem muito associados à liberdade de escolha e tu
não tendo mercados, muitas vezes, a alternativa a ter o Estado Central.
Mas também há uma visão mais empírica porque a minha personalidade até
nem é típica, acho eu, personalidade de alguém com um calibre economicamente,
no sentido em que, por exemplo, as pessoas normalmente que eu acho
mais interessantes são as pessoas de esquerda, a esquerda tem normalmente uma
versão, identifica-se pouco com a figura do empresário ou com a figura
do comercial, até organicamente, quer dizer, de uma forma interpessoal, às pessoas
ou muito frias ou muito pouco interessantes, muito focadas na questão do
enfoque no lucro e na... Do foco naquela ética de trabalho, muito
do... Eu trabalho 12 horas por dia, que depois se vê como
estando a promover uma espécie de exploração. As pessoas do PS não.
Como? As pessoas do
PS não.
Não? Menos? Acho que uma
José Maria Pimentel
Sim, tens razão, isso é mais das termas que eu... O que
eu acho que a esquerda, e mesmo a esquerda social-democrata no sentido
do PS, na minha opinião muitas vezes não vê, ou não vê
da maneira que eu gostava que visse, é que a desregulação, e
não no sentido abstrato, isto depois tem tudo em casos específicos, são
casos específicos, mas a desregulação e a promoção do crescimento que se
consegue com isso são a prazo bons para aquilo que a esquerda
defende. Ou seja, se tu vires os estados com maior liberdade econômica,
que tendem a ser os estados com maior desenvolvimento, são estados que
a prazo se tornam estados com estados sociais que podem ser maiores
ou menores em termos absolutos, mas que aumentam face ao que eram
antes. Quase todo mundo isto acontece. Tipo os Estados Unidos? Regulação do
mercado laboral? Não, mas o estado social dos Estados Unidos, por isso
é que eu estava a dizer, independentemente de ser em termos absolutos,
é muito maior do que era há 50 anos. Está bem, mas,
para morar Deus, quer dizer, compara com o nosso. Comparado com o
nosso é mais pequeno, mas o crescimento económico levou a um aumento
do Estado Social lá. Ele não é grande, mas ele aumentou. A
questão é
Isabel Moreira
que o Estado Social está dependente de haver crescimento económico, enquanto que
o Estado Social para nós é um pilar constitutivo do nosso tipo
de Estado. É uma questão constitucional para nós, uma questão de regime
a ver o Estado Social. Podemos ter uma visão mais fechada do
Estado Social, mais estatizante, ultra estatizante, tipo PCP, uma visão mais protetora
do Estado Social e mais, se quiseres, uma visão social-democrata, que é
a minha. Eu sou bastante de esquerda nesta matéria e em matéria
de direitos laborais, por exemplo. Sou absolutamente contrária à ideia de que
subir o salário mínimo prejudica a competitividade ou que flexibilização laboral aumenta
a competitividade. Sou completamente contrária a tudo isso e também para uma
questão de direitos fundamentais e portanto mesmo que me provassem o contrário
Eu não cederia. E para nós o Estado Social, claro que precisa
de financiamento, senão ele vai à falência, não é? Pronto. E, portanto,
precisamos de crescimento económico. Agora, eu não vejo, por exemplo, que a
política de desregulação a que assistimos no período de passo escolho, tem
ajudado a um crescimento económico, não
Isabel Moreira
por exemplo, o mercado laboral foi evidente, foi uma desregulação fortíssima, fortíssima,
e portanto não vejam que é que isso contribuiu, ou a questão
do salário mínimo, a recusa em subir o salário mínimo. Até hoje,
quando nós avançamos com a proposta de subir o salário mínimo, a
resposta imediata de passo escolha é que isso seria péssimo para a
competitividade. E nós vemos hoje os resultados, podes contra-argumentar e dizer que
é por fatores exteriores os resultados que o maior incentivo tem para
apresentar. Com certeza e admito que seja muito por fatores exteriores. Agora,
o que não se pode dizer é que a subida do salário
mínimo tenha, pois tem em causa os bons resultados que o maior
incentivo tem para apresentar. E
Isabel Moreira
é uma informação, mas é o mínimo de existência condigna, é um
direito reconhecido, implícito na Constituição, que vem da dignidade da pessoa humana,
mas já está reconhecido por exemplo de pertencente a um normal constitucional
e, portanto, eu, por exemplo, quando o Governo de Passo Escolho e
de Portas, no primeiro Orçamento de Estado, acharam que a forma de
cumprir os imperativos da Troika era concentrar o esforço em alguns e
cortar o subsídio de Natal e subsídio de Férias, e portanto dois
vencimentos a categorias muito fracas, portanto a pensionistas e a funcionários públicos
com pensões e reformas muito, muito baixas. Portanto, retirar dois salários ou
duas pensões
a 600 e tal euros... Isso é
Isabel Moreira
acho é que seja ofensa dizer é ideológico. E aquilo, eu não
só estava convicta de que aquilo era inadmissível constitucionalmente e portanto era
um imperativo respeitar a lei fundamental, ponto, e lá fomos ao tribunal
constitucional e ganhámos, mas aquilo repugnava-me do ponto de vista da minha
formação, da minha área ideológica, quer dizer, como é que era possível
concentrar o esforço naquelas pessoas? Quer dizer, era uma coisa que para
mim era... Como é que lhes ocorreu? E depois insistirem no Orçamento
de Estado a seguir, obviamente foi só quase repetir o requerimento, mas
em vez de ser dois vencimentos era apenas um e ganhámos
José Maria Pimentel
Sim, peço desculpa. E a questão do feminismo que estávamos a falar
há pouco, para mim é uma questão mais complexa do que isso.
A questão do crescimento, o problema é, tu precisas ter, para teres
um Estado Social, tu precisas ter crescimento e há outra variável, há
variável temporal que é, para as gerações vindoras, tu tens que ter
uma economia competitiva a crescer, senão as gerações vindoras não vão ter
Estado Social. Mas claro que tem que haver crescimento para haver financiamento
do Estado Social. Tem que ser a primeira prioridade. Tipo, a primeira
prioridade. Mas claro que tem que haver crescimento. Não podes ter o
país que está restrignado desde o ano 2000. Mas
José Maria Pimentel
papel concordaria, mas se tu fores analisar o discurso político à direita
e à esquerda, a palavra crescimento surge mais vezes à direita do
que à esquerda, é um facto, é um facto que é uma
prioridade maior à direita do que à esquerda. E eu concordo com
o enfoque da esquerda nas liberdades positivas, no sentido em que tu
tens de ter um Estado Social para assegurar, e o meu modelo
não é o americano, quer dizer, basta ver o sistema de saúde
deles, que não existe, basta ver isso para não ser preciso dizer
mais nada. Agora, preocupa-me muito e preocupa-me seriamente, nós vivemos num país
que não cresce, não cresce, quer dizer, que tem uma economia a
nível europeu débil, não a nível mundial, obviamente, felizmente, Mas para tu
assegurares um Estado Social, quer dizer, estávamos a falar há bocadinho, vou
ser pai daqui a pouco tempo, para a minha filha poder viver
em Portugal tem que ter um país de que cresça, tem que
ter um país...
Isabel Moreira
com certeza ela tem muito mais... Tem uma capacidade para falar de...
Tem uma vontade em economia que se calhar que eu tenho em
direitos fundamentais ou em direito constitucional. Mas... E em direito constitucional eu
agora como já não dou aula... Estou na Assembleia há sete anos,
já não estudo com a profundidade que estudava, eu acho que tenho
que agora dedicar assim tipo seis horas por semana para ver se
me atualizo. Mas há uma parte que para mim é fundamental, que
não é a economia, obviamente, mas tem um reflexo na economia, que
é aquela a que eu mais me dedico na Assembleia, para além
dessas questões que nos estamos a falar, é que mais me perturba
quando não posso votar como quero ou porque não está no programa,
ou porque as coisas estão de outra forma no programa eleitoral do
Partido Socialista, que é a questão laboral. Eu, como aceito o mercado,
como sou socialdemocrata ou socialista-democrata, como quiseres, como aceito o mercado, a
forma que eu tenho de compensar o mercado com a liberdade que
tem e com a possibilidade de potenciar níveis de concentração de riqueza
tão obscenas, é uma regulação laboral forte, porque não vejo outra forma.
José Maria Pimentel
Eu acho a questão do salário mínimo importante, eu até vejo com
bons olhos a questão do... Embora seja muito complexa e vai ser
preciso ser muito depurada, a questão do rendimento básico universal, não sei
se é esta a formulação, acho que é uma solução de futuro
muito interessante para justamente fazer a coadrutora do círculo entre a necessária
dignidade das pessoas, quer dizer, e poder ter uma economia competitiva sem
pôr essa dignidade em causa, como muitas vezes acontecem em alguns países.
E os Estados Unidos é um país, infelizmente, onde isso muitas vezes
acontece. Mas, enfim, já vamos com duas horas e tal.
É sério? Peço
desculpa, é um domingo, não se faz isso. Queres passar o livro?
Isabel Moreira
é? Esse é um livro que se passa numa prisão feminina, eu
visitei muitas prisões no meu trabalho parlamentar e interessa-me muito a questão
do fenómeno concentracionário e claro que a prisão é um ótimo...
Capagira, estou a ver.
É um ótimo pretexto para tu usar todas as metáforas e falares
de muitas questões de discriminação. A partir da prisão falei dos vários
muros, os muros que existem naquelas mulheres antes de chegarem à prisão,
porque no fundo elas já são de alguma forma prisioneiras antes de
chegarem à cela. A questão das discriminações raciais dentro da própria prisão,
da despersonalização e portanto é um livro que eu publiquei, quem quiser
compra.
Mas o livro
que eu trouxe, estávamos a falar, pedes sempre um livro que nos
influencie. Os livros que mais, eu estava a dizer que os livros
que mais me influenciaram foram precisamente os livros que eu li na
área de Direito Constitucional e Direitos Fundamentais. E o meu constitucionalista português
preferido é o professor Jorge Reis Nuvais e a última, como sabes,
a última batalha em que eu estive metida e continuei metida foi
a deste tipo, a que as pessoas chamam fraturante, foi a eutanásia
e ele tem um livro... Ele está envolvido também, não é? Ele
tem um livro que chama Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Direitos
Fundamentais, e tem um capítulo absolutamente extraordinário em que ele dá cabo
daquela ideia da cultura da morte, que nós fazemos parte, nós que
defendemos a IVG ou que defendemos a eutanásia ou que defendemos a
possibilidade de técnicas medicamente assistidas para termos filhos, fazemos parte de uma
cultura da morte e tem aqui passagens absolutamente brilhantes e há aqui
uma altura que ela até lança um desafio às pessoas que dizem
que fazem parte da cultura da vida contra pessoas como eu, que
faço parte da cultura da morte. Da cultura da
Isabel Moreira
assim, em segundo lugar, é curioso que obrigações morais e jurídicas teria
alguém, segundo os próceres da cultura da vida, para não ser considerado
cúmplice da conjura da morte, num caso de eventual incêndio num laboratório
onde se encontrasse um bebê, mas também uma filera de várias dezenas
de embriões in vitro e hipoteticamente só pudesse salvar ou o bebê
ou a filera de embriões. Quem deveria merecer a prioridade do salvamento?
Na lógica de um empedernido cultor da morte, somos
nós,
não
é?
Sem dúvida o bebê. Entre um bebê nascido e uma fileira de
embriões in vitro, qualquer pessoa normal reagiria dessa forma, isto é, optaria
por salvar o primeiro.
Já
para o autodenominado cultor da vida, pelo menos para um que levasse
a sério a construção que pretende impor coativamente a toda a sociedade,
a prioridade seria o salvamento das dezenas de embriões, independentemente da sua
viabilidade ou de estarem destinados a perecer, independentemente da morte do bebê.
Da morte do bebê.
José Maria Pimentel
Isso lembra aquela questão filosófica do utilitarismo consequencialista versus o... Já Não
sei qual é o nome da outra corrente, mas que é aquela
mais kantiana dos princípios, não é? Porque esse exemplo lembra-me muito o
exemplo que é dado com mais, quer dizer, mais livre desta carga
política, que é de, imagino, tu estás numa linha de comboio, tens
um comboio que está descarrelado, não, que está numa linha e vai
matar uma pessoa se tu não mexeres. Perdão, vai matar três pessoas,
por exemplo, se tu não fizeres nada. Mas tu tens a hipótese
de o desviar para uma linha onde só mata uma. Sim. O
que é que tu fazes? Exato. É tramado, não é? Claro, é
tramado. Porque Por um lado é menos gente, mas por outro lado
estás a tomar uma ação.
José Maria Pimentel
mesmo. Exatamente, esta é muito boa. Bom, obrigado por teres vindo.
Obrigada
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Duarte Dória, Gonçalo Martins, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos
nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!