#50 Isabel Moreira - Direitos sociais, feminismo, racismo, regulação económica

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José Maria Pimentel
Bem vindos. Este é o sexto, e pelo menos para já o último, episódio da série sobre orientações políticas que tenho estado a gravar. E terminamos muito bem com a Isabel Moreira, que é Jurista e Deputada da Assembleia da República pelo PS. Isabela é uma daquelas políticas que divide opiniões, não só por causa dos temas chamados fraturantes porque tem dada cara, mas também pela forma emocional e assertiva, e já vão perceber porque uso aqui a palavra assertiva, como defende as posições que toma. Não é, para usar uma expressão que a Daniela Oliveira usou durante a conversa que gravamos a esquerda que a direita gosta. E na verdade nem sequer é a esquerda de que uma parte da própria esquerda gosta. E isto claro, num país dado ao insulto e para mais com o crescimento das redes sociais nos últimos anos, tem se tornado um alvo fácil nos médias. Veja-se por exemplo o Fede Iver, aqui há uns meses, ter pintado as unhas na Assembleia, que foi noticiado como tendo ocorrido durante o debate do Orçamento do Estado, quando na verdade tinha passado antes deste comissário e portanto quando o plenário nem sequer estava a decorrer. Pessoalmente, e daí ter decidido convidá-la para o podcast, acho que a política ganha em ter em todos os partidos pessoas como a Isabel, isto é, que não mascaram opiniões, deixam tudo em campo e são consequentes na sua ação. Veja se concordes ou não a quantidade de legislação marcante que a teve como protagonista. Da minha parte, enquanto alguém mais liberal na economia e, sobretudo, enquanto um racionalista inveterado, sinto-me muitas vezes do outro lado da contenda, como aliás se viu durante esta conversa. E dessa posição, haverá poucos deputados tão insuportáveis como a Isabel. Mas afinal, não é assim que é suposto funcionar a democracia? Falando agora da nossa conversa, como terão reparado, este é provavelmente o episódio mais longo que já publiquei. São mais de duas horas de conversa, mas garanto que se gostarem tanto de ouvir a discussão como eu gostei de a ter, são duas horas que passam num instante. Aliás, falo várias vezes das vantagens do formato do podcast por permitir-te ter uma conversa longa, sem constrangimentos de tempo, e este episódio é um ótimo exemplo disso pela quantidade de temas que conseguimos abordar e pela profundidade com que o fizemos, com tempo para discutir vários aspectos de cada tema. Para terem uma ideia dos assuntos que abordámos, gastámos grande parte do tempo, inevitavelmente, a discutir temas da esfera dos direitos sociais barra individuais, o que acaba, de certa forma, por complementar conversas anteriores que foram mais focadas noutras questões. Conversámos então sobre liberdades individuais, em particular sobre projetos laicos que a convidada esteve ligada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a co-adoção, por exemplo, mas também de outros temas quentes e ainda com muito por fazer, como a liberdade de expressão e sobretudo o racismo, o feminismo e a desigualdade de género. A propósito do racismo, note-se que gravamos antes da polémica recente dos acontecimentos no bairro da Jamaica. E a propósito do feminismo barra desigualdade de género, que acabou por dominar a conversa, acho um tema fascinante mas demasiado complexo para ter nesta fase uma opinião aparentória. E a propósito disso, deixo na descrição do podcast um link para uma conversa com um casal de biólogos evolucionistas que é das coisas simultaneamente mais esclarecidas e de maior bom senso que tenho visto sobre o tema. Vale a pena ver depois de ouvir o episódio. No global foi então uma conversa acalorada, como vão perceber, e sobretudo animada, a fazer lembrar aquelas discussões que por vezes temos em jantares de amigos. Aliás, e para continuar nesta analogia prandial, falámos ainda à sobremesa sobre políticas económicas. Isto porque não quis deixar de obter a visão de alguém de uma esquerda mais moderada e sobretudo sensível às liberdades negativas, como a Isabel, depois das conversas com o Daniel Oliveira e com a Mariana Mortágua. Finalmente, antes de passar à conversa, não queria deixar de fazer uma coisa que me esqueci na semana passada, que é falar-vos de alguns dos outros podcasts que fazem parte da rede do público. Começando por um podcast na linha do tema desta conversa, recomendo que deem uma olhadela ao podcast de poder público. Já o podcast do inimigo público dispensa apresentações, mas a versão áudio é particularmente bem narrada. Finalmente, não deixam também de ouvir o Histórias de Portugal, neste caso também um podcast independente que integra a rede do público. E pronto, vamos à conversa, convosco, Isabel Moreira. Então vá, vamos começar. Isabel, bem-vinda ao podcast, já estou a gravar. Como estava a dizer, vou-te então pedir que te descrevas politicamente, com a visão política, de onde é que ela vem, como a quiseres descrever.
Isabel Moreira
Obrigada pelo convite, eu defino-me politicamente como socialista-democrata ou social-democrata e de onde é que ela vem, vem de uma maturação lenta e tardia na minha vida. Ainda
José Maria Pimentel
bem, isso é bom sinal.
Isabel Moreira
Sim, e que teve muita influência do estudo de Direito Constitucional de Direitos Fundamentais, porque, no fundo, esse estudo permitiu-me contrariar aquilo que era o meu adquirido familiar mais próximo e que nós tendemos, antes de nos confrontarmos com o mundo mais abrangente, por defeito, acharmos que é aquilo que é correto, é aquilo que nós adquirimos em casa e ter ferramentas intelectuais e conceptuais certas para distinguir, por exemplo, quando foi o momento do referendo sobre a IVG, o que é que é despenalização, o que é que é descriminalização, o que é que é liberalização, a ponderação de direitos fundamentais, ter uma correta noção de que não há direitos absolutos, ter estudado a evolução do constitucionalismo para o estado social atual e, nesse estudo, ao ler vários autores de direito constitucional e direitos fundamentais, intelectualmente ter tomado partido, porque o direito constitucional tem uma evidente dimensão política e fui tomando partido e fui me aproximando politicamente, quando exteriorizei esse estudo que começou a espicaçar-me, digamos assim, começou a aproximar-me do Partido Socialista, em termos de partido que me apeteceria votar, e comecei a perceber que era aquela a minha área.
José Maria Pimentel
Pois é, o que é engraçado no teu caso é que tu vês uma família direta no sentido do conservadorismo cristão, não é? Sim. É de um tipo de direita, aliás, essa é uma das coisas, uma das conclusões, que não é especialmente original que eu tenho chegado com esta série, é que tu tens, tendencialmente tens a esquerda e as direitas, ou seja, tens uma série de direitas. A democracia cristã é um tipo de direita, tem muitas coisas que são diferentes de outras direitas, é diferente da direita autoritária, é diferente da direita liberal, por exemplo, mas o teu caso é giro por causa disso, não é? Por vires dessa...
Isabel Moreira
É, E houve alguns pontos de contacto, quer dizer, eu em casa recebi muito, através do contacto com a democracia cristã, recebi muito a preocupação com a pobreza, não é? E com a desigualdade. Isso foi-me incutido e presenciei no discurso político que eu via em casa. E depois quando estudei, por exemplo, a origem da fundação do que é hoje a União Europeia e percebi a influência quer da democracia cristã, quer do socialismo democrático, percebi que há ali pontos, não é? Sim. E a questão da... Eu começo por uma aproximada da esquerda, precisamente pela questão do combate à pobreza. Portanto, o meu primeiro apego à esquerda não tem a ver com aquilo que depois me veio a tornar mais conhecida, que são as erradamente chamadas causas fraturantes, porque para mim não são fraturantes, mas tem a ver precisamente com a pobreza e com o papel que eu achei que o Estado devia ter nesse combate à pobreza e a configuração do Estado Social e é sobre isso que brucei em termos académicos quando fiz a minha tese, foi precisamente na altura, uma tese inovadora que tinha a ver com a diluição de fronteiras entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, uma vez que aquilo que eu tinha aprendido na faculdade é que os direitos, liberdades e garantias tinham uma força jurídica muito mais forte do que os direitos económicos, sociais e culturais e aquilo que eu defendi na minha tese foi que os direitos fundamentais têm todos à partida a mesma importância e a estrutura normativa de cada um, depois não vale a pena eu agora fazer aqui um discurso jurídico concílio, não? Não, mas podes explicar. Enfim, é a estrutura de cada um que depois determina a sua força em cada momento, mas os direitos sociais não são assim nuvens etéreas que não possuem força jurídica, assim como há direitos sociais que não têm força aplicativa imediata, também há direitos de base garantias que não têm, era este tanque entre uns e outros, era uma ideia que me parecia questionável e, portanto, foi essa certeza que se foi construindo na minha cabeça de que O papel que o Estado tem no combate às desigualdades e, sobretudo, o peso relativo que se dá ao princípio da igualdade e ao princípio da liberdade, é que eu acho que distingue muito a esquerda e a direita. Claro que há outras coisas que se pode falar, e eu sei que já outras pessoas falaram aqui contigo, se se dá mais importância ao mérito, se dá mais importância
José Maria Pimentel
a outros fatores, etc. Sim, esse era o argumento do Daniel, sim.
Isabel Moreira
Mas isso para mim é tudo derivativo. Sim, o mérito também não sou eu a grande fã. O mais importante para mim é a questão da igualdade e a questão da liberdade. E não é o que eu acho para mim, porque eu, Isabel Moreira, por natureza sou uma apaixonada pela liberdade. Qualquer pessoa que me conheça sabe que há uma libertária dentro de mim, que
Isabel Moreira
eu sem liberdade... Eu também
Isabel Moreira
acho. Que eu sem liberdade ficaria... Iria para um hospício, certamente. Agora, eu não penso no Estado a partir da Isabel Moreira, eu penso no Estado a partir do peso que eu acho que os princípios jurídico-congestionais devem ter na configuração da sociedade. E aquilo que eu acho é que as pessoas de esquerda dão peso à igualdade na correlação com a liberdade que as direita não dão, o que não nos torna moralmente superiores a uns ou outros. São simplesmente duas concepções diferentes e daqui deriva, por exemplo, daquilo que falaste, já falaste aqui, da direita dar mais importância ao mérito do que a esquerda, mas derivam muitas outras coisas. Até a questão que hoje em dia se discute tanto sobre politicamente correto, para mim deriva daqui, deriva do facto de eu ter uma... Como mulher de esquerda eu parto do princípio que nenhum direito a nenhum princípio constitucional é absoluto e parto do princípio que a igualdade é uma trave mestra na minha formação de esquerda. E portanto, é evidente, se eu puser um coxo numa corrida com uma pessoa que corre com ótima saúde, com as mesmas condições, é evidente que o coxo está tramado, não é? E o Estado tem essa função corretiva. E, portanto, eu não tenho uma visão absolutista de nenhum princípio e, portanto, a liberdade também não é absoluta e não é em nenhuma das suas dimensões e, portanto, também não é na dimensão da liberdade de expressão. E, portanto, eu acho que não deve haver nenhum policiamento das palavras, acho que as palavras... Até acho que se ensina pouco sobre a liberdade de expressão, acho que a liberdade de expressão deve ser mais cultivada, acho que deve ser encutida às pessoas aquilo que me foi encutido pela minha postura de filosofia que é as palavras combatem-se com as palavras, não é com silenciamento. Agora, coisa diferente é eu optar por não perpetuar palavras que evidentemente continuaram no discurso coletivo, porque há uma classe privilegiada, há grupos privilegiados que as perpetuaram, palavras que significam o esmagamento de determinadas minorias e, portanto, eu escolho não propagar essas palavras e, portanto, é um exercício máximo de liberdade. Exatamente. E portanto eu não digo não podes usar essa palavra, eu digo não deves usar essa palavra. Eu acho que o grande equívoco sobre a discussão política...
José Maria Pimentel
Diz-me não deves usar e eu não uso, não é?
Isabel Moreira
O grande equívoco sobre a questão do politicamente correto é precisamente a questão de muita gente atacar os defensores do politicamente correto, de querem censurar ou querem proibir e não. É uma questão de apelar à boa educação, é uma questão de apelar à harmonia. Alguns querem, outros não. Sim, mas há malucos dos dois lados, não é? Mas vamos partir de pra se tiverem duas pessoas razoáveis a falar. Aquilo que eu quero é que as pessoas pensem que as palavras têm uma dimensão de ação, não é? As palavras têm muita força e que quando eu insisto em perpetuar determinadas palavras, estou a insistir na opressão de grupos minoritários que nunca tiveram acesso à posição de privilégio que nomeadamente eu tenho, por exemplo, enquanto mulher não, que é uma categoria que a partir está mais apta a ser discriminada do que até que teria uma masculina, mas enquanto pessoa branca e pessoa heterossexual, não é? E, portanto, eu tenho noção do meu privilégio, tenho noção também de uma privilégio de classe. Isso também foi muito importante na minha escolha ideológica, o ter muita consciência, o ganhar-me da consciência de classe e acho que aí o Marx ajudou-me bastante.
José Maria Pimentel
Eu já queria ir aí, mas já agora só para fechar esta questão da tua divergência, digamos assim, do teu referencial familiar e convergência para o socialismo, o que é que... Porque tu tens uma perspectiva única nesse aspecto, não é nada comum encontrarmos alguém que diverja daquilo que foi a sua educação, por razões óbvias. E
Isabel Moreira
as pessoas normalmente, desculpa, vêm do Partido Comunista para o Partido Socialista, mas normalmente não vêm assim da direta para a esquerda. Exatamente. É o contrário.
José Maria Pimentel
Por exemplo, a Zita Siabra fez o caminho do PSC para o PSD. Exato. E eu, às vezes, acho que é maltratada. Eu não a conheço sequer, mas não concordo que ela seja maltratada por causa disso, porque, quer dizer, a pessoa faz o que quiser com a sua vida e com as suas opiniões. O que eu ia perguntar é o seguinte, Como tu dizias, a democracia cristã e a social democracia, que em Portugal estamos a falar do PS e não do PSD, sempre há essa confusão, ou pelo menos também do PS. Não, do PS mesmo. Eu acho que sim, eu acho que sim também, eu também acho que sim. Há quem discorde, eu acho que sim.
Isabel Moreira
Tu vês mesmo alguma
José Maria Pimentel
ideologia no PSD? Eu não estou completamente de acordo contigo. Não estamos no mesmo ponto ideológico, mas estou completamente de acordo contigo, que o PSD não é nenhum partido social democrático. Também lá tem algumas pessoas que se identificam, mas com umas nuances. Mas voltando atrás, houve esse casamento que esteve na origem da União Europeia. Democracia cristã, socialdemocracia. Portanto, há ali muitas similitudes. Tu nesse caminho que fizeste, qual foi o primeiro... Há coisas que tu encontras em comum entre a tua filosofia atual e aquela em que foste educada, digamos assim. Quais foram os pontos de diferença? O que é que te fez rasgar, digamos assim, com a... O
Isabel Moreira
primeiro momento, eu acho, em que se tornou evidente foi a questão da IVG. Isso foi evidentíssimo. Porque
José Maria Pimentel
há um lado conservador na democracia. Porque eu acho
Isabel Moreira
que a direita tem outra característica, pelo menos a direita portuguesa, não é? Porque a direita que algumas pessoas defendem, e legitimamente em Portugal, que é a direita liberal, essa direita não tem expressão eleitoral, não é?
José Maria Pimentel
Eu sou uma dessas pessoas, mais ou menos.
Isabel Moreira
Tu és uma dessas pessoas.
José Maria Pimentel
Converge para essa
Isabel Moreira
linha. Exatamente, converge para essa linha, mas não tem grande expressão em Portugal, não é? Em Portugal as pessoas não dão muito valor a coisas que eu como mulher de esquerda dou muita importância, como a questão da liberdade negativa, ou o pensamento do Stuart Mill ou do Berlin, etc. Em Portugal as pessoas não adoram que o Estado tome
José Maria Pimentel
conta delas. E eu falava do Stuart Mill por causa da liberdade de expressão. Exatamente, as
Isabel Moreira
pessoas adoram que o Estado tome conta delas e diga o que é que devem comer, que não devem vapear em espaços fechados, devem controlar o sal, qualquer dia o Estado está a penalizar-nos fiscalmente se não formos ao ginásio e as pessoas acham lá que tem muito custado tomar conta delas e nem percebem que se perca muito tempo a falar nisso. Em Inglaterra não, há uma proibição de usar o sino de segurança, o Parlamento para durante vários dias a discutir a questão e as pessoas estão
Isabel Moreira
ali exaltadas por causa do suor de milímetro. Mas eu acho que uma
Isabel Moreira
das características da direita portuguesa, e a que mais me marcou no meu crescimento, que era uma direita conservadora e a direita que nós temos, agora já temos várias, não é? Há uma direita a polular, a querer transformar o espaço de direita em qualquer coisa que eu acho muito perigoso, que é a direita dos observadores. Mas é que a direita de facto conserva, não é? A direita é conservadora. A esquerda é progressista e, portanto, a direita gosta de conservar o status quo. Havia um filósofo, já não lembro qual, que dizia a direita conserva, a esquerda explode. Dizia assim desta maneira bastante ilustrativa e até imagética. E eu sentia isso, eu sentia a necessidade da lei ser progressista, não é? E havia qualquer coisa de insuportável para mim, quando... Insuportável para mim, quando na situação que tínhamos, isto é, de haver uma perseguição penal da pobreza, evidentemente, porque era essa a situação com a penalização da IVG, e por outro lado a incapacidade de ver a realidade por parte dos conservadores, que é sou contra o aborto, mas então vamos proibí-lo, mas ele vai continuar a acontecer selvaticamente nas esquinas e as mulheres vão continuar a morrer, era a segunda ou terceira causa de morte materna em Portugal. Sim, aquilo também não é verdade. Não queremos resolver, queremos fechar os olhos. Portanto, isto é a incapacidade de resolver o problema. E a incapacidade de perceber que, primeiro, legalizar não é liberalizar, e que as experiências e que a
José Maria Pimentel
experiência
Isabel Moreira
de direito comparado o que mostravam era que legalizar e dar esse espaço, obviamente não absoluto, mas até um determinado número de semanas às mulheres significava, precisamente, menos interrupções da gravidez, mais plenamente familiar e um número a que queríamos chegar na altura e que já chegámos de zero mortes maternas por aborto clandestino. E, portanto, quer dizer, esta incapacidade de lidar com a realidade e de ficar num plano absoluto dos valores, eu acho que aqui foi um momento muito contrastante e isto para mim não é uma questão apenas de direitos humanos, é uma questão de esquerda e direita. Não quer dizer que não haja pessoas de direita que defenderam a IVG e que não haja pessoas de esquerda que foram contra a IVG porque são católicos, há sempre uma ou
José Maria Pimentel
outra. Mas
Isabel Moreira
é evidente que não haveria IVG sem a força da esquerda contra o conservadurismo da direita e contra a Igreja Católica, contra a força que a Igreja Católica teve nesse combate, como teve agora recentemente na Argentina e ganhou por enquanto, não é? Sim, sim. Sabe que é engraçado. Foi o primeiro grande momento de ser a única lá em casa, não é? Votou dessa maneira. É
José Maria Pimentel
um percurso giro, sobretudo porque tu o fizeste pelo lado, digamos, social e de costumes e não tanto pelo lado económico redistributivo, que eu imagino que também tenha andado a par e passo,
Isabel Moreira
não é? Não, essa parte da económica redistributiva foi absolutamente fundamental, porque foi, como dizia há pouco, foi quando eu começo a estudar direito constitucional e o papel do Estado, as funções do Estado e as várias perspectivas sobre as funções do Estado e portanto aí não há nenhuma questão fraturante, eu começo a tomar posição sobre isso e quando tu estudas Direito Constitucional a fundo e Direitos Fundamentais a fundo, tu não estudas de uma forma apolítica, não há uma forma apolítica de olhar para o Direito Constitucional. Não, de alguma forma é a política. E portanto, quando eu olhei para o Direito Constitucional e comecei a me interessar pela questão dos direitos sociais e pelo papel do Estado na concretização dos direitos sociais, eu aí começo a aproximar-me da esquerda e, portanto, aí não há nenhuma questão dita fraturante. Eu tornei-me foi conhecida
Isabel Moreira
por elas, mas não quer
Isabel Moreira
dizer que a minha posição de esquerda não venha de uma visão sobre o papel do Estado na redistribuição de riqueza.
José Maria Pimentel
É engraçado, quer dizer, o que eu vejo, nós temos a mesma opinião em relação, presumo que a maioria desses temas, eu acho que por vias um bocadinho diferentes isso é giro, ou seja, aquilo que eu vejo é, eu vejo à esquerda, a posição da esquerda em relação às questões, não sei qual é a designação alternativa de questões faturantes, questões de costumes?
Isabel Moreira
As questões faturantes?
José Maria Pimentel
Questões de liberdade?
Isabel Moreira
Questões de direitos humanos? Sim. Questões de direitos individuais? Pronto,
José Maria Pimentel
sim, questões de direitos individuais, então podemos chamar isso. É muitas vezes uma questão de empatia, que eu partilho, ou uma questão de desjustiça social e de igualdade, que eu partilho parcialmente, quer dizer, partilho totalmente, obviamente, mas partilho parcialmente a questão da aplicabilidade, mas aquilo que em mim me faz convergir para essa opinião e de imediato e é das características que eu me lembro mais novo de definir é a liberdade negativa no sentido puro, que é pensar, mas eu não tenho nada a ver com a vida desse tipo. E há algo disso que é muito curioso, que é, está embutido nestas questões, e já falei disto várias vezes num podcast, é uma noção de bem, ou seja, há uma noção de liberdade negativa de tu dizeres, duas pessoas do mesmo sexo devem poder casar-se, Mas também há uma noção de bem e culturalmente nós evoluímos nesse sentido de aceitar que aquilo está bem, ou seja, aceitar que aquilo que nós enquanto sociedade apreciamos aquilo, achamos que aquilo faz sentido. E isto, nós fizemos esse caminho, isto faz todo sentido, as sociedades fazem-se assim. Mas a minha defesa do casamento gay e de outras liberdades individuais está aquém disso. Quer dizer, mesmo que eu achasse que aquilo estava mal. Quer dizer, duas pessoas, sei lá, que têm fetiches sexuais estranhíssimos, comem as fésimas dos outros, ou uma coisa de qualquer género, eu acho aquilo péssimo, mas eles têm liberdade de o fazer. Não é por eu achar que aquilo está mal que eles não têm liberdade, eu não tenho nada a ver com aquilo. E em Portugal nós temos...
Isabel Moreira
Mas essa fundamentação do meu ponto de vista não é suficiente. Não é suficiente porque repara, se as pessoas tiverem os fetiches que quiserem ter e têm, não é? Claro que têm e o Estado não tem intervenção nenhuma precisamente por causa do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a que tu chamas liberdade negativa. Mas aí não é preciso intervenção do Estado. Para haver casamento igualitário é
José Maria Pimentel
preciso intervenção do Estado.
Isabel Moreira
É preciso uma lei aprovada na Assembleia da República. Portanto, não basta a invocação da liberdade negativa. É preciso uma fundamentação que redique, de alguma forma, no princípio da igualdade, no princípio da liberdade e no direito fundamental a contrair casamento. Assim como tu, quando consagras a adoção por casais do mesmo sexo, tu tens uma confluência de princípios e de valores que não podem ter apenas a ver com a liberdade negativa. Tem a ver com o direito a constituir família, com evidentemente o próprio interesse, o superior interesse das crianças em causa, quer dizer, tens uma confluência de valores ali que a liberdade em si nunca chega para explicar. Não chega para explicar porque... Não
José Maria Pimentel
chega para dar esse direito, não é? Não chega
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porque tu estás a ter uma intervenção constitutiva por parte do Estado. E por outro lado, é verdade que não precisa da aprovação do Estado e eu aí vou para outra via, que é a via do de Borkin, que é um autor de direito constitucional que eu gosto muito, que é os direitos fundamentais serem contramaioritários, ou seja, os direitos fundamentais impõem-se independentemente da vontade da maioria. Independentemente da vontade da maioria. Portanto, não há nenhuma razão, não há nenhum prejuízo para terceiros, se duas pessoas do mesmo sexo casarem e, portanto, parece-me evidente que se a Constituição proíbe a discriminação com base na orientação sexual e, noutro artigo consagra o direito a contrair casamento, qual é a razão plausível para impedir o casamento, vou repetir a expressão, do direito fundamental com o princípio da não discriminação em
José Maria Pimentel
função da orientação sexual. Seria a ditadura da maioria, voltamos ao Stuart Millen. Exatamente.
Isabel Moreira
E por outro lado, eu acho que o Estado, ao intervir legislativamente numa questão como o casamento, que não pode ser comparado com o que cada um faz lá com os seus fetiches em casa, a questão do casamento é constitutiva da sociedade. A questão do que cada um faz em casa não é constitutiva da sociedade.
José Maria Pimentel
Daí a noção de bem, de que eu falava há pouco. Exatamente,
Isabel Moreira
daí a noção de bem. Há aqui uma noção de valor positivo e de igualdade, não é? Porque o Estado ao dizer o casamento, hoje em dia eu já nem sei o que é que significa casamento gay ou casamento lésbico, porque O casamento está definido como um contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir uma união plena de vida, ponto. Portanto, não há um sub-tipo. O casamento é casamento. Portanto, não há um sub-tipo. Agora, quando o Estado faz isso, o Estado também está a dar um sinal à sociedade de que a igualdade está certa e a desigualdade está errada. Está a dar um sinal à sociedade de que aqueles que diziam que o que era certo era deixar que as pessoas homossexuais, homens e mulheres, pudessem unir-se, mas com um nome diferente, assim como havia para os cravos, que era o contubernio, não era um casamento que eles tinham, mas com outro nome.
José Maria Pimentel
Ah, era, eu não sabia. Era.
Isabel Moreira
No fundo o Estado está a dizer, não, isso é discriminação, portanto, Igualdade é isto, tem que ter o mesmo nome, até por uma questão do simbólico, porque o simbólico tem muita importância na questão da não discriminação.
José Maria Pimentel
Tem que ter o mesmo nome.
Isabel Moreira
Ter o mesmo nome é essencial para a não discriminação. Eu lembro, por exemplo, na questão da coadoção, foi uma questão que me marcou profundamente do ponto de vista emocional. Eu sou bastante emocional quando me envolvo nestas leis que são causas de direitos humanos em que nós, não sei se te lembras, ganhámos na Generalidade e depois foi uma discussão muito acesa durante o ano na Especialidade, em que foram as pessoas mais extraordinárias à especialidade, estes tipos de pessoas que agora parecem achar que a homossexualidade deve ser curada, etc. Havia-se todas no Parlamento, na especialidade, foram todas convenientemente chamadas por deputadas, e estou a me lembrar de uma que estava particularmente empenhada em impedir que crianças que já estavam em famílias vissem as suas duas mães ou os seus dois pais reconhecidos enquanto tal. E ganhámos, claramente, o debate na especialidade, com toda a ciência, portanto não era uma questão de opinião, era uma questão de ciência, era o melhor interesse da criança, era que se já tem um pai reconhecido, que o outro pai também fosse, ou a outra mãe também fosse, bastava faltar um que a criança podia ficar. Se faltasse aquele que era reconhecido, a criança podia ficar órfã dos dois, não é? De um dia para o outro. Claro, sim, é o que dizem que não era isso, na
José Maria Pimentel
verdade. E ganhámos, ganhámos. E depois, como
Isabel Moreira
te lembras, houve aquela tentativa de referendo do encontro naval do Soares, que tentou referenda à Criancinhas, o Tribunal Constitucional travou-o, e depois houve uma mudança na indicação de voto do Partido Social-Democrata, e nós perdemos na votação final global, e inclusive existiam mes naquela altura, uma mãe em concreto que estava a assistir a votação, que estava com cancro e portanto aquilo foi uma questão que me destruiu em termos emocionais. Saí mesmo do país durante algum tempo. Foi uma discussão em que se viu bem essa clivagem e viu-se bem onde é que estava o conservadurismo e onde é que estava aquilo que era essencial para o bem-estar dessas crianças e, sobretudo, a tática política, porque no fundo aquelas pessoas, o PSD sabia que nós tínhamos razão, não quereria que a Vitória fosse do Partido Socialista em relação àquela lei, não é?
José Maria Pimentel
Sim, mas há umas questões que se interceptam.
Isabel Moreira
Ah, mas pronto, para dizer que estes direitos, estas questões, ah, eu estava a dizer que se impunham e eram performativas da sociedade, era nesse ponto que eu estava, não é? Pronto, e depois veio a adoção. Em todas essas questões, um dos fantasmas que eu vi a oposição a estes temas levantar é de que a sociedade portuguesa não está de acordo com elas, que ia ser um grande rebuliço depois disso. Nunca houve, nunca vi rebuliço nenhum, quer dizer, imediatamente a seguir ao casamento nunca vi nada senão paz social. A seguir à aprovação da adoção e consequentemente a co-adoção nunca vi nada senão paz social, até porque as crianças já existiam, não é? As pessoas, os casais...
José Maria Pimentel
Sim, esse último passo era... Os casais
Isabel Moreira
mesmo já tinham crianças. E depois, curiosamente, deu-se muita importância à procuração medicamente assistida para todas as mulheres, porque aí, obviamente, estava em causa dar muito poder a mulheres. Era a última conquista de todas e a imprensa não ligou nenhuma e foi a mais difícil e ninguém ligou nenhuma porque está em causa de mulheres e, portanto, já sabemos o nosso lugar. Achas que
José Maria Pimentel
sim? Acho que é por isso? Então, mas espera aí, já lá vamos. Para terminar esta questão, o ponto que eu estava a fazer há bocadinho, e eu acho que filosoficamente ele não é irrelevante para isto, há esta questão da noção de bem, é uma questão importante na medida em que tu tens, e eu como imaginas, sou ultrasensível à questão de tu não teres uma ditadura da maioria, ou seja, não tens a maioria a forçar essa noção de bem sobre os outros. Mas existe sempre, qualquer sociedade é feita disso, quer dizer, E esta lei também foi aprovada, foi aprovada por várias razões, foi aprovada porque, a meu ver, passou essa ideia...
Isabel Moreira
Qual delas?
José Maria Pimentel
Sim, desculpa, a questão do casamento de pessoas do mesmo sexo e as outras no fundo estão na mesma linha, mas depois há algumas que são... A questão da co-adoção só faz sentido se surgir na sequência, não é? Ou seja, no fundo vais... Não, na maioria das partes dos países foi ao contrário. A abolição
Isabel Moreira
foi o primeiro e o casamento depois,
José Maria Pimentel
não é? Escolhemos o caminho... Ah, curioso, mas eu achava que era o contrário. O caminho mesmo não. Pois é, por isso é que depois pensaram em fazer assim de não provar. Porque As pessoas
Isabel Moreira
efetivamente têm filhos, não é? Os homofóbicos não gostam, mas efetivamente os gays e as lésbicas têm filhos. E portanto, normalmente o percurso dos países é reconhecer primeiro a parentalidade e depois o casamento. Nós seguimos o caminho inverso.
José Maria Pimentel
Mas já quando reconhecem a paridade já tinham união de facto ou nem sequer união de facto tinham? Podiam ter união de facto, mas o casamento foi depois. Nós fomos pioneiros no casamento. Pois, é que o casamento tem essa questão mais simbólica, digamos assim, das instituições. Mas o meu ponto é que, socialmente, isso existe sempre, socialmente tu tens, a sociedade impõe uma moral coletiva, uma moral coletiva que existe e um caminho que nós fizemos, houve um caminho de reconhecer essa liberdade às pessoas para terem acesso àquela instituição e parte desse caminho é reconhecer essa liberdade individual, outra parte desse caminho é passar a ver o facto de duas pessoas do mesmo sexo se constituírem um casal como algo igualmente legítimo. Que antigamente não acontecia. Por exemplo, a poligamia é uma questão... E com valor positivo. E com valor positivo. E A poligamia é uma questão muito diferente. A poligamia tem uma questão de diferenças de poder, como é óbvio, mas pondo isso de lado, vamos admitir que... E não é uma reclamação social. Como? Não há uma reclamação social pela poligamia. Mas imagina que surgia uma reclamação social pela poligamia e tu conseguias destrinçar, quer dizer, conseguias eliminar dali... E a poligamia pode ser dois homens e uma mulher ou uma mulher e dois homens.
Isabel Moreira
Mas isso é o... Tu estás num plano tão imagético que tu é imagético, porque tu sabes perfeitamente que a poligamia tem uma desigualdade de género por base...
José Maria Pimentel
Eu sei, eu sei.
Isabel Moreira
Que me torna impossível de ser adepta. Mas entretém-se, tu dás esta... Dás a consagração legal lá, que as pessoas façam o que quiserem
José Maria Pimentel
e isso, pronto. O meu ponto é que se isso acontecesse, tu ali não estarias, nunca a debater apenas a liberdade daquelas pessoas de o fazerem, mas também se nós enquanto sociedade achamos que aquilo cabe naquele conceito, não é? Claro, claro. Ou seja, isso estava sempre ali, não é? Sempre. E a oposição dos conservadores, muitas vezes mascarada, era mascarada de... Criam aquilo com outro nome. Claro, porque no fundo achavam que aquilo não era legítimo. Era o contubernio. Aquilo não era aquilo, para eles não era casamento. Era o contubernio. Casamento é homem-mulher. Era o contubernio. Era o contubernio, eu conhecia essa. Essa teve piada.
Isabel Moreira
Eu acho que há uma coisa que eu disse uma vez num debate. As pessoas podem ter uma atitude mais progressista, ou menos progressista, sobre as coisas, mas se estudarem História e em matéria de direitos humanos, se tu fores ler os papers, por exemplo, a matéria de racismo, quando foi, por exemplo, a discussão em torno do separate but equal, a matéria de educação, nos Estados Unidos, ou a proibição do casamento entre negros e brancos nos Estados Unidos, que é muito recente, dos anos 60. A argumentação, se tu retirares de lá a palavra negro e puseres lá a palavra homossexual, é a mesma. É dizer, ah, mas não estamos a discriminar porque é separado. Ah, mas não estamos a discriminar porque tem acesso a, mas num sítio diferente. Ah, mas não... E, portanto, a argumentação é exatamente... Eu fiz esse exercício que era pegar em papelada relativamente ao racismo e substituir com a palavra homossexual. E a dinâmica é a mesma. A dinâmica é exatamente a mesma. Porque
José Maria Pimentel
é uma dinâmica de nojo.
Isabel Moreira
É uma dinâmica de segregação.
Isabel Moreira
Vamos separar. Total falta de empatia.
Isabel Moreira
De não teres a capacidade de seres o outro e depois há três níveis de argumentação contra isso que me deixam triste, que é um, é o católico que quer impor a sua visão à política e ao Estado, que é uma coisa que eu tenho muita dificuldade em respeitar. Alguém que quer impor a sua fé a um estado laico. Outra coisa é a total falta de empatia, isso faz muita, muita impressão. É de facto não ser capaz de ser o outro. Há pessoas que não têm essa capacidade, não conseguem, portanto. Se não aconteceu um filho ou uma filha, não existe. Essas pessoas não existem, nunca tiveram no seu universo. Não têm um amigo gay, não têm uma amiga lésbica. Normalmente essas pessoas também não têm amigos negros. Não tem, não existe, quer dizer, não acontece. E há essa falta de empatia muito, muito grande. E depois é aquela ideia de que estão a tirar-nos o nosso espaço. Isso então deixa-me... Acho extraordinário o que é. Pronto, já têm os direitos, mas quer dizer, agora já são um lobby. Isto aqui já... Pronto, também já... Só falta dizerem, terem coragem de dizer... Já não os matamos, já não os torturamos, como em alguns países, não é? Esquecem-se que ainda é crime em cerca de 70 países, porque andia descriminalizou este ano, não é? Portanto, 70 países, eram 71, se não estou a erro. Mas dizem, pronto, não são mortos, não são perseguidos, não é ilegal, já não há distinções no Código Penal, já não é doença, já não estamos de acordo com uma categorização nos anos 70 e de acordo com outra categorização nos anos 90. Já não é doença, mas quer dizer, chega, agora não façam mais barulho do que isto. E há essas pessoas que acham que o casamento era nosso, era uma coisa nossa e eles vêm para aqui chatear, uma coisa que era nossa. Acham-se proprietárias de uma instituição jurídica do Estado laico, que é uma coisa extraordinária. O nosso lugar, eles estavam tão bem, ali quietinhos, sem fazer barulho, e até têm aqueles amigos que são aqueles homossexuais de quem eles gostam, que não fizeram o coming out, com todo direito evidentemente, e que não chateiam e que não têm relações às claras e esse devia ser o sítio de toda a gente. Ignoram a quantidade brutal de sofrimento que está por detrás desse tipo de pensamento, que era o pensamento legitimado pela lei. Porque a lei, ao não permitir casar, ao não permitir legitimar famílias homoparentais, de casais do mesmo sexo, ao não permitir fazer isso, a lei está a legitimar este discurso. Está a dizer que tu és diferente, tu és doente, tu és ilegal, tu tens de estar calado, tu tens de estar a morar escondidas, tu não podes ter filho, tu não podes casar, tu não pertences. É isso que a lei está a dizer. E a lei quando faz isso provoca a depressão, provoca a exclusão, provoca o suicídio, ou potencia tudo isso e potencia o discurso de ódio. Quando a lei acaba com tudo isso, pode não fazer de um dia para o outro, mas quando eu dizia que era performativo, é que também ajuda a construir uma sociedade em que eu acho que os jovens de hoje vão ser muito mais abertos no futuro do que se calhar eu era, ou os meus colegas, éramos com 15 anos no liceu, que se calhar não fazíamos uma manifestação na escola como fizeram os outros para defender uma coleguinha lésbica, não
José Maria Pimentel
é? Eu concordo com quase tudo o que disseste, há uma nuance que eu introduziria aí, que é, há um conflito, há uma luta no espaço público cultural em qualquer sociedade, não é? E, portanto, essas pessoas, quer dizer, alguém que é conservador, há um lado disso que não é ilegítimo. Eu acho que há um lado que é ilegítimo no sentido em que existiam questões de liberdades básicas individuais das pessoas e que muitas vezes eram questões de direitos humanos das pessoas, quer dizer, por exemplo, a questão da adoção muitas vezes tinha que ver com isso, quer dizer, com uma criança a ficar sem pai ou uma coisa do género, mas há uma... Essa luta no espaço público é uma luta que existe em qualquer lado. De repente tu és um conservador ou uma conservadora e começas a ver a opinião publicada a começar a ficar cada vez mais num determinado sentido e tu ressentes-te disso e eu não acho isso completamente ilegítimo. E depois há outro lado que acho que é por isso que eu apercebo mais evoluções relativamente cadenciadas, é que em vez de revoluções, por exemplo... Tu gostas das transições e não das revoluções? Sim. Então gostas da história de Portugal. Como? Então gostas da história de Portugal. Porquê? Tantas revoluções, eu não?
Isabel Moreira
Não, mas o constitucionalismo é
Isabel Moreira
uma transição permanente.
José Maria Pimentel
Isso é, a minha via, um bocadinho conservador, mas não sou muito, como é que eu ia dizer, também não tenho a volúpia das evoluções. E
Isabel Moreira
se for possível uma transição a uma revolução, também
José Maria Pimentel
prefiro. Claro, é só neste sentido. É no sentido de que as pessoas têm uma aversão natural à mudança. E isso tem que ver com características de personalidade, tem que ver com características culturais. Em Portugal existe essa aversão à mudança e essa aversão à mudança deve ser bem gerida para que ela não fique na sombra e não se torne depois, por exemplo, combustível para os movimentos populistas e coisas do género. Ou seja, há pessoas, e isso até nos pode levar à questão da liberdade de expressão, não é? E eu quero que toda a gente possa falar, porque se as pessoas se veem silenciadas no espaço público, aliás o Stuart Mill, voltamos a ele, na outra eu estava a ver uma, estava a ler uma passagem daquele do On Liberty dele, até lá uma coisa que é incrível, gostava de ter escrito aquilo, e o homem escreveu aquilo há quase 200 anos. Eu também gostava de ter escrito aquilo, todos nós. Pois, todos nós, mas é incrível ter sido escrito há 200 anos. As pessoas com bom gosto gostam de ter escrito várias coisas que o
Isabel Moreira
Stuart não escreveu.
José Maria Pimentel
E ele também era mais ou menos feminista naquele tempo, também podemos ir aí. E a questão, a passagem que ele tem sobre a liberdade de expressão, é extraordinária. A questão de que tu não deves silenciar por um monte de motivos, não deves silenciar porque muitas vezes existem coisas válidas, existe uma porção válida numa coisa que no seu conjunto não é válida, ou seja, pode existir pontos válidos e depois porque convém para tudo mais uma boa opinião, convém sempre teres a má opinião ali do outro lado, para a boa opinião não dormir na forma, não relaxar. E isso... Portanto, estes debates são importantes, quer dizer, e são debates que vão acontecer sempre. Mas depois também há o popper, não é? Como?
Isabel Moreira
Depois também há o popper. Sim, claro. Gosto do resumo, mas também gosto do popper, não é? Para explicar o paradoxo da tolerância, não é? Até que
José Maria Pimentel
ponto... Claro, claro, claro. É
Isabel Moreira
que tu tens de... Qual é o limite da tolerância relativamente à intolerância,
José Maria Pimentel
não é? Pois, a fórmula é difícil, mas...
Isabel Moreira
A fórmula é difícil, eu acho que toda a gente deve ter espaço para falar agora. Eu tenho a perfeita noção, eu tenho muita consciência de... Até por ser de esquerda, tenho consciência de classe, tenho consciência de privilégio, tenho consciência de quem são os oprimidos, do ponto de vista social, do ponto de vista económico, do ponto de vista cultural, do ponto de vista das minorias, tenho a perfeita consciência de que ao contrário do que os meus detratores nestes debates sobre estas causas dizem, As pessoas LGBT não são uma elite urbana privilegiada, são pessoas do campo, da cidade, do norte, do sul, das fábricas da cidade,
Isabel Moreira
são as nossas vizinhas. Mas às vezes há um
Isabel Moreira
certo discurso que é assim um lobbyzinho que vive na
José Maria Pimentel
Lisboa. Mas não são,
Isabel Moreira
Como tu sabes, orientação sexual não nasce na Avenida de Roma.
José Maria Pimentel
Pelo contrário. Tu vês quem está na Avenida de Roma, mas isso está a dar poder a quem está no campo.
Isabel Moreira
Eu tenho esta ideia. E portanto, eu sei que o espaço da expressão de ideias também é um espaço de privilégio, não é? E sei que a história foi toda contada sempre por quem esteve nesse espaço de privilégio. A história foi-me sempre contada basicamente por homens heterossexuais brancos, não é? A história que eu conheço, a história universal, a história do meu país, toda a história com a qual eu levei foi-me contada ao longo dos séculos por homens heterossexuais brancos. E percebo que estejamos a viver um momento em que quando é dada a voz a minorias que querem ter o seu papel na história e que, imagine-se, se atrevem a quererem ter o seu papel na história e reivindicaram o papel na história e a expressar-se. E as mulheres começam a falar como nunca falaram. Os gays e as lésbicas falam e reivindicam como nunca falaram e como nunca reivindicaram. Os negros falam e reivindicam como nunca falaram e como nunca reivindicaram. Em Portugal, por exemplo, agora com esta contestação à narrativa do que foi a nossa, a minha e a tua, a narrativa que sempre recebemos dos descobrimentos e é querendo que se fale do outro lado, da sua visão do que é que foi para eles a questão dos descobrimentos, o que é que essa palavra em si carrega. De repente há uma espécie de reação conservadora que é, mas o que é isto? Estávamos aqui nós, não é? Estávamos aqui nós e agora vêm estes grupos todos minoritários, desatam a falar e inquietam-nos e estão-nos a tirar o espaço, mas quase que dizem, vou fazer uma em modo piada, quase que dizem, que chatice, não é? Nós estávamos aqui muito bem e eles chegaram e começaram a pôr tudo em causa. E as mulheres começam a falar de abusos sexuais, os negros que querem pôr em causa o nome do museu, e os ativistas, negros e não negros, é os gays e as lésbicas que falam, e as mulheres que começam a falar do discurso inclusivo, e tudo o resto, porque isto quer dizer, isto qualquer dia, e depois é o qualquer dia, não é do Diácono Remédios. Não, quer dizer, sinceramente, está a ser assim tão duro. É que eu, pela minha perspectiva, a vida continua a ser muito mais dura para estas pessoas. A vida continua a ser muito mais dura para uma pessoa que seja negra, para uma pessoa que seja gay, para uma pessoa que seja lésbica, para uma pessoa que seja pobre, para uma pessoa que seja cigana. A vida é muito mais dura para uma pessoa que seja mulher. E, portanto, acho um certo tupete as pessoas dizerem que... São lobbies, são lobbies. Quer dizer, o lobby mais forte que eu sempre tive no meu país foi o lobby conservador, se querem chamar lobby às coisas e o lobby da Igreja Católica, sem ofensa nenhuma. Eu acho muito bem que cada espaço faça força para que o seu lado vingue, não é? Portanto, nós todos vimos, quando foi o referendo, voltando ao referendo do aborto, a igreja fez o seu papel, nós fizemos o nosso, é a vida, não é? A igreja tinha muita força. Isso faz parte. Agora querem nos chamar a nós lobby, está bem, então sejamos, somos todos lobbies. Agora, ficam todos inquietos, quer dizer, está a ser assim tão difícil ser homem heterossexual branco-direita. Isso tem que ver com o pacote. Está a ser mesmo duro. Eu acho que continua a ser mesmo duro ser mulher ou ser pobre, ou ser negro, ou ser gay, ou ser lésbica, ou ser cigano. Eu acho mesmo que tem que se continuar a dizer que é muito duro estar numa destas circunstâncias.
José Maria Pimentel
Tens toda a razão, mas a dureza sentida tem que ver com as nossas expectativas e não com a dureza de facto. Ou seja, para mim um dia duro é um dia que eu apanho uma molha. Para alguém em África apanhar uma molha, está todos os dias. Mas eu
Isabel Moreira
quando te referi à Negros, porquê que falaste em África? Não,
José Maria Pimentel
estou a pensar em sítios subdesenvolvidos, ou seja, em sítios menos desenvolvidos do que Portugal. Estás a perceber, ou seja, o que acontece aqui é, uma das coisas com que o ser humano está dificulado em lidar é com a mudança e isso está muito relacionado com a questão da previsibilidade, não é? E de repente o que isto faz, de repente tu, de seres uma pessoa que tem essa aversão à mudança e vê as coisas todas em catadupa e o espaço público a inundar-se de pessoas com visões diferentes, as pessoas ficam com medo, aquela é uma espécie de reação de medo. Ficam com medo
Isabel Moreira
e tu dizes que é preciso ter cuidado no discurso e eu acho que sim, acho que nós fomos inteligentes. É, bem cuidado no discurso. Acho que nós fomos inteligentes no discurso, acho que nós fomos inteligentes na estratégia de concretização desta agenda de direitos fundamentais, acho que trouxemos a ciência para o debate, não aparecemos a dizer que sim porque sim. Quer dizer, por exemplo, nas questões da parentalidade homossexual tivemos sempre a ciência do nosso lado e portanto foi um debate apurado e foi de facto a chamada política de passo a passo, não foi uma coisa repentista e para as pessoas isto custa muito porque eu acho que deve ser muito difícil ser lésbica e ter uma família, ter os meus filhos e depois estar a explicar a essa lésbica e à sua companheira e às suas filhas olha, eu sei que vocês querem que tenham direito a ser reconhecidas, a vossa relação, as vossas filhas, mas vamos fazer assim, em cinco anos vamos tentar o casamento ou em dez depois daqui a dez ou daqui a seis depois vamos tentar reconhecer as vossas filhas. Para os próprios que estão na situação, cada ano é uma eternidade, obviamente, até pela insegurança jurídica em que vivem. E pela situação de desigualdade e da apartheid social que isso significa. Acho que esse discurso teve esse cuidado e foi passo a passo. Agora, o que eu não admito, e isso é que me custa muito, é quando dizem que eu tenho, eu ou nós, temos de abrandar a defesa destas causas porque puxar muito por estas causas ou puxar pela questão de dar importância à boa educação no discurso, as pessoas chamam politicamente correta que é a expressão mais... É péssima a expressão, não é? A pessoa que ouve politicamente correta apetece logo ser contra, não é? Politicamente correta, não é? Mas
José Maria Pimentel
pronto... Foi criado porque está do outro lado, mas... Pronto, é horrível. Mas não parece malgisada, não é?
Isabel Moreira
A pessoa não é mais péssima. A primeira vez que ouve politicamente correta a pessoa acha logo que está do... Eu acho logo que está do lado contrário, claro. Por isso é que ela é
José Maria Pimentel
bem pegisada, não é? Exato. Foi
Isabel Moreira
pensada para nos tornarem monstrinhos. Agora, quando nos dizem que, quer dizer, é melhor abarandar porque é assim que crescem bolsonaros, quer dizer, culpar... O meu ponto não era esse. Não, não vou dizer que foste tu agora. Não,
José Maria Pimentel
mas podias ter achado que era esse o ponto de outra vez. Tu sabes que o ponto é
Isabel Moreira
esse. Culpar as políticas identitárias pela crise da esquerda, por exemplo, das esquerdas na Europa ou da esquerda no Brasil ou onde quer que tu sejas, eu acho que é de uma injustiça tremenda, porque, primeiro, a política de esquerda não tem que ser de escolhas excludentes e, portanto, eu sou muito conhecida para estas causas, por exemplo, mas dedico-me a muitas outras questões em relação às quais não apareço na imprensa porque não são apetitosas. Se eu estiver a trabalhar sobre o estatuto do Ministério Público, não apareço na imprensa. Se eu estiver a trabalhar no Código Laboral sobre a questão da sociedade moral, por acaso apareci, mas não é assim uma coisa. Ou se estiver na área das pensões, das reformas, por acaso aí apareci porque fui ao Tribunal Constitucional, mas quer dizer... Sim,
José Maria Pimentel
mas não tem o mesmo... Não muda...
Isabel Moreira
Mas trabalho em muitas outras áreas, não é? Mas há quem ache que eu só me dedico a estas áreas, não é? Uma vez vi... Há pouco tempo vi uma pessoa num debate a achar que pronto, que eu agora... Acabou. Ela só fez aquilo na vida. Ela deve achar que eu vou... Era uma mulher a comentar, deve achar que eu vou para o Parlamento e pronto, acabou. Já acabaram os direitos LGBT e deve achar que não faço nada durante o dia. Era só ir ao agenda, ir lá ao botãozinho das deputadas e depois via o que é que eu faço. Mas o que eu acho é
José Maria Pimentel
que
Isabel Moreira
uma política não abandona a outra. Agora, nós não podemos, por haver Bolsonaros ou por haver Trump, deixar de afirmar este lado das coisas. E, por exemplo, eu acho que uma pessoa que fez um caminho extraordinário nos últimos tempos foi precisamente o Daniel Oliveira, porque o Daniel Oliveira era uma pessoa que até há pouco tempo, do meu ponto de vista, tinha um discurso muito bom no que toca à definição da esquerda, ou que é a esquerda para ele, e é muito coerente, mas estava muito reticente relativamente a ser benéfico para a defesa da esquerda neste momento histórico. Pelo contrário, eu achava que era mau. A insistência nas questões identitárias e até no discurso, e aliás ele tem um podcast dele em que está num combate saudável, intelectual, com o professor Miguel Valle Almeida, nesse sentido. E ultimamente tem feito um caminho nos artigos que escreve em que talvez até é espicaçado pelos acontecimentos recentes no Brasil, pelo facto de TVI ter chamado, ter feito um branqueamento, não é uma questão de liberdade de expressão, ter feito um branqueamento do nazi na televisão, de repente a gente vê o Daniel Oliveira outra vez com uma paixão enorme a defender a importância do politicamente correto, a importância dos gays e das lésbicas reclamarem os seus direitos, das mulheres terem reclamado e continuarem a reclamar os seus direitos, ou seja, fez uma ótima curva, não
José Maria Pimentel
é? Sim, é o meu exírito, por acaso, e estávamos a falar um bocadinho disso e eu não tinha bem essa noção, curiosamente. Eu ainda estava no episódio do Miguel Valdeal, mas ainda estava no início. Não, os últimos artigos têm sido uma graça. É verdade que eu escrevo sobre isso. Mas deixa-me falar de uma coisa, porque tu levantaste um ponto interessante e é bom para eu estabelecer a distinção entre duas coisas. O que eu digo não é que se deve abrandar o discurso. Pelo contrário. Eu acho que o espaço de troca, aliás, o podcast é isso, não é? É a pessoa falar o mais possível e dentro do debate saudável a pessoa não calar a boca e trocar o máximo de idadejos possível. Aquilo que eu vejo, e eu admito, só vou fazer aqui um disclaimer, é um caveat nisto, que é Tudo isto, eu admito que seja, é muito, muito empolado pelas redes sociais e esse é um problema nestes debates, é que coisas às vezes parecem mais do que são. E
Isabel Moreira
eu não tenho Twitter, nem
José Maria Pimentel
sei como se passa por lá. Mas é muito empolado. E os Estados Unidos, então, por exemplo, têm isto muito mais ainda até do que nós. Agora, o que acontece muito, por exemplo, na questão do feminismo ou na questão de questões de género, identidade de género e desigualdade de homens e mulheres, por exemplo, o que acontece muitas vezes é que tenta-se de certa forma silenciar quem está do outro lado E tu não estás só a silenciar quem está num extremo exatamente oposto, mas estás também a silenciar aquelas pessoas que estão mais ou menos a meio e podiam ser os teus aliados. Por exemplo, questões... A questão do casamento de pessoas mesmo sexuais. Eu lembro de assistir a conversas entre amigos. E estava eu, amigos mais de esquerda e depois aquelas pessoas que estão... Há que não penso muito sobre o tema mas... E que são recuperáveis. E são perfeitamente recuperáveis. Eles
Isabel Moreira
estão no ponto... Isso é essencial. Se eu tenho estratégia política tenho que receber isso. Eu faço isso diariamente. Exatamente.
José Maria Pimentel
E aquela frase clássica do até tenho amigos que são... Sim. Essa é uma frase que alguém... A esquerda odeia essa frase, mas quem está a dizer essa frase está a tentar ser bem-intencionado. Aquela pessoa, no fundo está a dizer, está a meio do caminho e está a tentar dizer uma coisa, lá está politicamente correta, e aquela pessoa tem que ser puxada para a causa. Se tu
Isabel Moreira
a conhecesse aos 20 anos apanhavas um susto. Estava lá o discurso interiorizado, homofóbico, sexista, tudo. Claro,
José Maria Pimentel
Quer dizer, isso... Não todos nós, quer dizer, mas nós é perfeito nem sequer o
Isabel Moreira
assunto é coerente. E não é isso, é porque as pessoas acham que... Muitas vezes diz que a pessoa é educada pela família, a pessoa é
Isabel Moreira
educada pela família até certo ponto, mas é
Isabel Moreira
educada pela sociedade, a sociedade é intrinsecamente machista, é intrinsecamente homofóbica, é claro que isso tudo ficou dentro de nós. Depois fazemos um esforço e somos ou não ajudados por livros, por pessoas que nos rodeiam, por circunstâncias que fazem com que te levem a um determinado circuito ou não. Isso aconteceu-me, eu por acaso dei um salto em que fui convidada para escrever um parceiro jurídico para duas mulheres que queriam casar e com isso entrei no ativismo. Para o Tribunal Constitucional foi uma... Lembras-te daquelas duas primeiras mulheres que quiseram casar quando era proibido e foi aí que eu entrei. E portanto calhou, foram circunstâncias da minha vida e apaixonei-me pelo tema. Mas quer dizer, foi uma construção, eu não tinha a linguagem certa, eu não tinha... Quer dizer, o meu mundo hoje é infinitamente mais rico, os filmes que vi, os livros que escolhi desde Então, quer dizer, os amigos e as amigas que tenho, as famílias que eu conheço com pais do mesmo sexo, as crianças concretas que eu conheço, portanto, eu tenho uma sensibilidade acrescida, eu acho que sempre tive a sorte de ter uma enorme capacidade empática, que eu acho que isso é fundamental, de ser o outro. De ser o outro. Isso
Isabel Moreira
foi uma coisa... Obrigada. E na
Isabel Moreira
minha escrita sempre tento fazer isso. Mas, tivesse a sorte, mas eu sou política e, portanto, eu nunca faço aquele... Lá está eu dizer que eu... Acho que há coisas que não se devem dizer mas eu não policio no sentido de esta pessoa disse isto e nunca mais me falo. Não! Eu tenho encontrado muitas pessoas na minha vida que com um discurso homofóbico e a minha primeira atitude ou um discurso que eu não considero aceitável do ponto de vista do racismo ou do ponto de vista das mulheres, mas que eu percebo que não há ali, se quiseres uma má intenção, há ali um... Há ali espaço para argumentação e já vi muitas pessoas crescerem num determinado sentido e, portanto, o diálogo é fundamental e continuar a estabelecer pontos. O que eu quero, é evidente, é que o meu campo cresça, mas é por isso que eu estou na política, não é? Portanto, eu quero que o meu campo cresça e, portanto, eu não estou numa atitude fechada. Agora quem diz uma palavra que eu não gosto, não falo com ela. Isso é uma atitude erradíssima que tanto pode ter um conservador ao contrário, não é? Que a palavra homossexual lhe dá um salto, ou a palavra lésbica lhe dá um salto, ou um ativista tão ativista, tão ativista que eu lembro-me, por exemplo, quando foi a conquista do casamento, que houve um determinado tipo de ativismo que não gostou, porque quando não era o casamento, já com a adoção, então não me chuparam. Para. Pronto, quer dizer, era passo a passo. Para mim aquilo já era o ótimo, quer dizer, era vamos conseguir isto e depois daqui a uns tempos a adoção e depois a procriação medicamente assistida era o possível, porque o Partido Socialista, eu naquela altura não estava em partido nenhum, não é? Naquela altura o que eu estava a fazer era pressão para o Partido Socialista ter o casamento no programa de governo. Portanto, se eu não conseguia que o Partido Socialista tivesse o casamento e a adoção, mas conseguia que tivesse o casamento, pois fosse, não é? E era isso que se tinha que defender.
José Maria Pimentel
Mas aí há outra coisa ainda por cima disso, quer dizer, no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, para mim é uma questão de direitos humanos e fica arrumado por aí. Mas
Isabel Moreira
é uma questão de esquerda. Como? Eu não acho que seja só direitos humanos, acho que é uma questão de esquerda.
José Maria Pimentel
Sim, pode ser uma questão de esquerda, sim. Quer dizer, esquerda porque ela funciona como elegeu, por isso... Há pessoas
Isabel Moreira
de direita que defendem, mas nenhuma dessas questões teria sido possível sem a esquerda.
José Maria Pimentel
Sim, absolutamente. Nenhuma. Mas aliás, esse é uma das coisas que eu reconheço da esquerda.
Isabel Moreira
Com a direita que temos, uma vez que não há uma direita liberal como a que tu defendes... Mas
José Maria Pimentel
mesmo com a direita liberal era com a esquerda. Mas era com a esquerda também, porque a esquerda tem uma capacidade de mobilização, é um dos defeitos da direita liberal.
Isabel Moreira
Mas como a direita que temos no Parlamento não é a direita que tu defendes, uma direita de liberdade negativa,
José Maria Pimentel
etc. Mas mesmo que tivéssemos, eu digo isso sem problema nenhum, mesmo que tivéssemos. A conquista
Isabel Moreira
dos direitos das mulheres e desta última agenda de terceira geração de direitos, de direitos das mulheres e dos direitos das pessoas LGBT, não existiria sem a esquerda. Portanto, é um património histórico
José Maria Pimentel
da esquerda. E mesmo que houvesse, porque a esquerda tem uma capacidade de mobilização a este nível que uma direita liberal, ou quer que lhes... Não gosto muito de chamar a direita liberal, mas estou um bocado nas cintas para isso. Liberalismo, se quiseres, não
Isabel Moreira
tem. Agora, tenho a certeza que se fôssemos a referendo estávamos os dois em campanha.
José Maria Pimentel
Sim, mas... Não, não, quer dizer, eu pessoalmente sim, mas a direita liberal eu acho que é muito menos, até por ser menos, se calhar, tribal, ou seja, o liberalismo é individualista e, portanto, não se presta tanto a esse tipo de campanhas que são precisas, não basta pensar, é preciso agir. Não tem espírito comunitário. Exatamente, a questão da ação é fundamental, isso para mim é um dos defeitos, para mim a política é feita de verdades parciais, não é feita de verdades absolutas e esse é um dos defeitos. Para mim, na questão, por exemplo, do papel de homens e mulheres na sociedade, com a história toda que isso vem para trás, com as questões biológicas que estão associadas a isso, tem que haver também, para além disso, uma humildade epistemológica, ou seja, a pessoa saber que nós não sabemos tudo, é impossível saber tudo e esta é uma questão ultra complexa. Por exemplo, vou-te dar um exemplo...
Isabel Moreira
Mendes, ainda achas que temos que estudar Biologia para dar poder às mulheres?
José Maria Pimentel
Não, não, eu acho que, por exemplo, vou-te fazer uma pergunta que gostava de saber a tua opinião em relação a isso. Uma das coisas polémicas, para mim não tem nada extraordinário, que neste debate é tu, é aquele postulado de que... Ou por outro, a minha opinião é a contrária, mas aquele postulado de dizer que biologicamente não há diferença entre homens e mulheres tendencial e portanto nós somos só aquilo que a cultura nos faz, somos só entre o nature versus nurture, nós somos só o nurture. Para mim, claramente, é que dizer, o que a ciência prova é que existe nature com duas nuances nisso, que é, por um lado, não é só nature, ou seja, tu tens a parte biológica, mas também tens a parte cultural e depois, e essa para mim é a questão fundamental, uma coisa é tu dizeres que tendencialmente existe uma coisa, quer dizer, tu dizeres que tendencialmente os homens são mais altos que as mulheres, outra coisa é tu teres uma pessoa, um indivíduo à tua frente e tu tratá-lo com aquele estereótipo que é diferente, são duas coisas diferentes, ou seja, uma é verdade, mas isso não significa que tu deves tratar...
Isabel Moreira
Mas qual é a relevância?
José Maria Pimentel
Não, a relevância é, por exemplo, quando quer estabelecer cotas, por exemplo. Eu tenho uma opinião em relação às cotas que não é... A
Isabel Moreira
questão é, as pessoas podem dar um peso maior à cultura ou à biologia. Eu dou muito mais à cultura do que à biologia. Acho que somos muito mais produtos da cultura do que da biologia. Agora, mesmo reconhecendo que há diferenças biológicas entre homens e mulheres, que parece-me que não preciso ter que reconhecer porque são evidentes...
José Maria Pimentel
Admito que sejam extremos, mas há quem não reconheça
Isabel Moreira
isso. Qual é a relevância para aquilo que eu acho que deve ser o direito? Que é alto performativo, de construção de relações sociais e de construção de uma sociedade, de uma igualdade material, que tem as suas matizes, não é? Igualdade não é uma coisa matemática? Qual é a relevância?
José Maria Pimentel
Não é relevante para o caso individual, mas é relevante para o caso coletivo. Ou seja, quando tu estabeleces cotas... Eu não sou um total opositor às cotas, por melhor depois já explico mais à frente, que tem a ver com um certo pragmatismo. Eu estudo
Isabel Moreira
a demonstrar que as cotas melhoraram o desempenho do Parlamento.
José Maria Pimentel
O quê? No Parlamento Português? Sim. Mas, por exemplo, tu tens em países... Eu já discuti isso com um convidado aqui no podcast e eu estava na posição de defender as cotas, um bocado a fazer de advogado do diabo, mas é absolutamente verdade que tu tens. Primeiro quando estabeleces cotas no curto prazo muitas vezes tens uma... Como aquilo não vai resolver o problema a montante, depois tens um problema de selecção de pessoas e depois muitas vezes o que tu vês por exemplo nos países... A sério?
Isabel Moreira
Quem é que tem um problema a selecionar mulheres?
José Maria Pimentel
Se tu tens um sistema que discrimina, um sistema educativo, por exemplo, ou no currículo das pessoas das empresas, se quiseres que a administradora, que o quadro da administração seja 50% homem e 50% mulheres, a média de currículo vai ser desvantajosa em relação às mulheres. Isso não tem nada a ver, quer dizer, tem que ver com aquilo que vai entrar, ou seja, não é ali, não é naquele ponto que tu corriges. E depois há um fenómeno muito interessante que é, por exemplo, nos países nórdicos, quando mais igualitários se tornam os países, mais homens e mulheres tendem, em média, lá está a termo da fase dos grandes números, a escolher profissões diferentes, por exemplo, que é um fenómeno muito interessante, fenómeno empírico, quer dizer, tu tens, por exemplo, nos países nórdicos, o curso de engenharia, por exemplo, tem muito mais homens do que mulheres e eles são absolutamente livres de escolher, quer dizer, a questão é, tu tens diferenças biológicas ali que são diferenças que
Isabel Moreira
são relevantes. Estereotipadas também. Como? Há estereótipos
Isabel Moreira
também. Papéis.
José Maria Pimentel
Mas há países mais igualitários do que os países nórdicos. São países onde os homens e mulheres têm licenças partilhadas. Não sei, nunca lá fui. A minha objeção a isto é empírica nesse sentido. Ou seja, eu acho a discussão ideológica muito interessante, sempre política. Mas
Isabel Moreira
há uma coisa que eu percebo... Eu
José Maria Pimentel
não estou a dizer que sou dono da verdade. Há
Isabel Moreira
uma coisa que eu não percebo, que é, o que é que pode nisso que estás a dizer, fazer com que não faça sentido medidas positivas de correção de injustiças históricas que são evidentemente transitórias. A ideia é que chega um ponto e deixe de ser necessário cotas. Claro. Qual é o ponto em que, olhando para o que se passa na política, ao nível do Parlamento, do Governo, das autarquias, mas todos os níveis das autarquias, ainda tem as juntas de freguesia, e olhando para o verdadeiro escândalo que se passa no acesso das mulheres ao poder, porque esse é que é o ponto, porque as mulheres hoje já têm profissões de grande destaque, não é? É evidente que sim, mas onde está o poder? As mulheres com acesso ao poder, ou se faz aos conselhos de administração das empresas públicas e por aí fora, que é onde o Estado pode intervir, porque o Estado não pode intervir nos privados, qual é o argumento ou a dúvida que pode ser suficientemente forte contra o argumento da igualdade? Que é o argumento de corrigir uma injustiça histórica, quando depois vês, sobretudo em termos de resultado, que os partidos nunca vão além da cota. Quer dizer, se estabeleceres uma cota de 30%, os partidos põem 30% de mulheres. Se estabeleceres 35%, põem 35%. Ou seja, não há... O sexismo é tão forte, o espírito patriarcado é tão violento, que os partidos, por iniciativa própria, tu próprio disseste, nós não somos dados à mudança, não é? Os portugueses. E as
José Maria Pimentel
instituições
Isabel Moreira
refletem aquilo que está na sociedade, portanto os
Isabel Moreira
partidos são sexistas como a sociedade é sexista. E portanto, não dão espaço às mulheres. E mesmo quando lá estamos, temos que lutar
Isabel Moreira
para ter acesso à voz, que é uma coisa diferente. É estamos lá, mas depois de lá estar ter direito a ter acesso à voz. Portanto, qual é o argumento, ou qual é a dúvida, independentemente de uns dizerem que temos diferenças biológicas, outros dizerem que não temos diferenças biológicas, qual é o argumento que pode ser mais forte do que o descaramento de estarmos em 2019 e continuarmos a ter uma sub-representação como a que temos a nível do poder das mulheres. Não consigo perceber.
José Maria Pimentel
Mas a questão é as cotas... Ou
Isabel Moreira
dos negros e das negras.
José Maria Pimentel
Não, atenção, por exemplo, no caso das listas da Assembleia, dos ex-deputados, eu sou mais sensível a esse argumento Porque eu acho que na Assembleia da República há uma necessidade de representatividade. Ou seja, tu não estás... Claro. É diferente, por exemplo, de uma empresa. Ou seja, a Assembleia deve ser representativa da população. Não é só a vontade dos deputados de lá estarem, mas ela deve ser representativa da população. Nas empresas, por exemplo, uma coisa empiricamente mais do que comprovada é que a busca de poder por parte dos homens é muito maior do que a parte das mulheres. E isto é evolutivo. Tem uma questão cultural, mas também é evolutivo. Tem que ver com o modo como a seleção sexual foi sendo feita, na espécie humana. Quer dizer, isto é, bom, humilhada epistemológica de novo. Portanto, eu não quero... Tu estás-me
Isabel Moreira
a dizer, portanto, que resulta da natureza das coisas que várias imprensas que nós conhecemos discriminem continuadamente as mulheres no que toca ao garso de topo. A questão é, há uma discriminação... Privadas e públicas. Não, repare. É assim, porque tem a ver com... Não, não, há
José Maria Pimentel
uma discriminação. Com essa coisa que estavas a dizer da evolução. Há uma discriminação, mas também há uma seleção pelos próprios, ou seja, na
Isabel Moreira
espécie humana... Nós estamos duplamente tramadas. Tu não
José Maria Pimentel
existe, por exemplo, não existe.
Isabel Moreira
Somos discriminadas e depois também há uma coisa que é a natureza.
José Maria Pimentel
Mas há mesmo uma coisa que é a natureza,
Isabel Moreira
não estou a brincar. E por cima somos discriminadas.
José Maria Pimentel
Existem as duas coisas, porque tu tens um dualismo entre a questão biológica e a questão cultural. Por exemplo, a cultura o que faz normalmente é pegar em coisas que são biologicamente diferentes e extremá-las. Por exemplo, sexo e género. O género torna as diferenças entre os sexos ainda mais pronunciadas. É o que o género faz. O género feminino torna as diferenças da fêmea e humana face ao macho humano ainda mais pronunciadas e a mesma coisa o sexo masculino em relação ao macho humano, ou seja, faz, tende a diferenciar isso ainda mais. Agora, em qualquer sociedade humana, os antropólogos estudam sociedades, encontram-se algumas sociedades matriarcais, por exemplo, encontraram-se algumas, mas são por norma sociedades muito pequenas, ou seja, pequenas tribos. Tudo que não seja disso, em toda a história humana, as sociedades eram patriarcais. Aquilo é biológico, não se sabe bem porquê, ou seja, não há uma resposta absolutamente definitiva em relação a isso. Agora... Já agora... Não
Isabel Moreira
sei, está a ver com a força?
José Maria Pimentel
Há vários... O Harari, não sei se sabes quem é o Ivol Harari, que é um tipo que Ele tem uma coisa muito gira sobre isso porque ele diz que a hipótese da força não justifica, porque, por exemplo, quem mandava normalmente não eram os homens mais fortes, propriamente, isso estava lá muito atrás. Os chefes, os grandes generais não eram os tipos mais fortes do exército, Eles eram aqueles que conseguiam gerir aquilo melhor e o que ele... E depois há outra coisa contraditória que é, aparentemente, as mulheres em média, lá está tendencialmente, têm até mais skills sociais, têm mais capacidade inter-relacional. A hipótese que ele dá, mas não é nada definitivo, mas é interessante, é que da mesma forma, em média, os homens tenham mais facilidade em gerir grupos grandes. Ou seja, uma questão de escala. E quando o grupo aumentava... Eu não conheço
Isabel Moreira
esse estudo. Aquilo que me parece é que podem-me apresentar os estudos se quiserem e dizerem como é que evoluíram as sociedades, se foi assim, se foi assado, que há diferenças biológicas, com certeza. Aquilo que me parece evidente é que as mulheres são altamente discriminadas a todos os níveis, como é evidente, começa na questão da... A questão mais brutal que nos entra pelos olhos é a questão da violência de género, não é? É a questão que nos magoa coletivamente, não é? De uma maneira brutal. E depois são discriminadas desde... Se fosses mulher durante um dia, 24 horas, perceberias o que é que é ser mulher? Todos os dias é, sais à rua, és discriminado no espaço público, porque o espaço público não é totalmente teu. Depois vais trabalhar e és discriminado porque queres falar e não tens o mesmo espaço para falar do que os homens. Depois se falas és discriminado porque há a questão do estereótipo e se és assertivo és histérica e um homem se fala com imenso vigor é assertivo, é fantástico e é tudo mais. Depois ganhas menos, depois tens de esforçar o dobro, depois não há igualdade de género na parentalidade e depois triplicas-te porque és mãe, não é? E a lei tenta corrigir isso e tenta dar incentivos às licenças de parentalidade, dividir e não sei o quê, não sei o que mais, lá está a subir um bocadinho e tal, mas é mentira. As mães é que fazem, têm um trabalho não remunerado muito maior do que os homens. As mulheres que querem efetivamente aceder a lugares de poder têm muito menos capacidade para isso. Se não fosse as cotas, na política não conseguiam. Vais ao setor empresarial, privado ou público e aquilo que eu vejo hoje, felizmente, muitas jovens, eu tenho a sorte de ter muitas, ter... Bem, então quando dava aulas tinha contacto com... Eu dei 11 anos aulas na faculdade de Direito e dava sempre ao primeiro e ao segundo ano, portanto tinha sempre... Os meus alunos tinham sempre 18 e 19. Parecia que eu não envelhecia, não é? Passava um ano e eles tinham sempre 18 e eu tinha sempre mais um. Que é aquilo que o meu pai diz sempre dos alunos dele, porque eram também sempre o primeiro ano, ele uma vez disse, eu tenho sempre mais um ano, eles têm sempre 18 e eu, olha mesmo isso. E eu hoje em dia, ver raparigas, que para mim são miúdas, não é, de 21 anos a começarem a trabalhar e dizer, e uma das coisas que elas vão ver primeiro, é se no conselho de administração da empresa onde começam a trabalhar há mulheres e se não houver vão embora, não querem, porque percebem que não tem futuro ali, portanto não me venham dizer que as mulheres não querem lá chegar, é
José Maria Pimentel
mentira. As duas coisas podem ser verdade, são verdades parciais, Ou seja, eu não faço nada daquele discurso de antidiscriminação.
Isabel Moreira
Então deixa-me lá porque é que não há negros no Parlamento?
José Maria Pimentel
Ah não, mas o racismo é um problema diferente. É um problema pouquíssimo discutido em Portugal, não percebo porquê. O problema do racismo.
Isabel Moreira
E quando é, meu Deus, quando é uma polêmica. Lá vem o João não sei quem Enrique no público e mais o outro. Logo, quer dizer, é aquilo que eu estava a dizer há pouco, começam os ativistas a discutir a sua voz, não é? E o seu peso na história e querem ter o seu papel e querem discutir as coisas e é uma fúria dos privilegiados instalados.
José Maria Pimentel
Mas eu quando falo do racismo estou a falar da questão de tu não teres... É um problema gritante, é que tu tens... Quantas pessoas afrodescendentes, não sei qual é a classificação certa, é que nós temos em Portugal?
Isabel Moreira
Em Portugal há um problema de não haver censos, não é? A grande discussão que se tem tido agora é que se...
José Maria Pimentel
Ah, por causa da questão étnica, não sei, expôs, expôs, expôs... A questão da constitucionalidade, isso... Mas, para, qual seria o teu palpite?
Isabel Moreira
Não sei quantas são, não sei qual não tenho palpite, há vários números avançados. Agora eu tive uma iniciativa de instituir mesmo um dia nacional de luta contra o racismo, para assinalo mesmo isso. Claro que é daquelas iniciativas que são aprovadas por unanimidade, mas depois na discussão da iniciativa eu vejo que há perspetivas completamente diferentes, porque para mim, eu falei em apartheid social, disse, afirmei claramente que Portugal era um país racista, expliquei o que se passa a nível dos crimes de ódio, do acesso dos negros e das negras às instituições, o que é que se passa nas periferias, o silenciamento, etc.
Isabel Moreira
Há posições, há
Isabel Moreira
pessoas que entendem que Portugal é um país acolhedor, multicultural, o racismo não existe, nós somos um país fantástico, mas quando existe, claro, é para condenar e portanto somos a favor da iniciativa. Ou seja, não há consenso sobre a existência do racismo em Portugal ou sobre a violência policial diferenciada ou sobre a justiça diferenciada e isso não deveria ser matéria de discussão, porque tu hoje tens estudos que demonstram que o racismo atravessa as decisões judiciais e, portanto, isso traduz-se no encarceramento desproporcional de negros e negras ou de brancos e brancas. O racismo atravessa, atravessa as instituições, atravessa as forças policiais, atravessa a forma como contamos a história, como nós ouvimos a nossa história, A forma como a nossa habitação está construída e vivida, se andarmos nos transportes públicos, percebemos que há apartado social, não é? Se entrarmos na linha de Sintra, percebemos que a partir de uma determinada extensão, a população muda, não é? Portanto, quem estiver atento
José Maria Pimentel
sabe que é racismo. Mas para mim o principal problema está aí e está no... Nem é tanto... Eu concordo que nós temos um tipo de racismo que é muito diferente, por exemplo, do racismo americano. Eu admito que existam pessoas racistas nesse sentido quer dizer, mas maioritariamente nós temos o racismo passivo. E o passivo é o pior, porque tu tens, quer dizer, eu lembro-me, tu traz a mesma experiência, eu lembro-me na escola, na faculdade, no trabalho, eu tinha muito poucas pessoas que não fossem brancas. Claro. Ou seja, elas não cheiram lá, estás a perceber? O problema está muito lá atrás, está muito no sistema educativo. Eu
Isabel Moreira
lembro-me que tive um colega negro no décimo ano e tinha um grupo neonazi na minha escola, assim, e eles tinham um ódio brutal e o ódio duplicava porque ele era o melhor aluno da aula. Nos tempos livres ia para o ódio e isso que o pessoal virava a ciência política, quer dizer, ninguém é tão inteligente aos 15, não é? Ele era uma seca de pessoa, não é? Por exemplo, sempre pastelar. E eles tentavam atacá-lo fisicamente e aquilo mexeu imenso comigo e nós fazíamos contra-grupos e... Agora, foi o único colega que eu tive na escola pública. Foi... Nenhum colega negro. Não tive. E reparo, por exemplo, nos teus relacionamentos, eu tenho amigos e amigas negras e basta falar com eles, eu detesto pôr-me no chamado lugar da fala, não é? Quando há quem possa falar por mim, quer dizer, é ouvi-los. É ouvi-los, quer dizer, o que é a experiência diária? Lá está aquela coisa de ser mulher de manhã à noite ou ser negro, ser negro de manhã à noite. Quer dizer, eles te explicam de como é que é entrar num restaurante e tratar-te imediatamente como fosse empregada de limpeza, ou entrar num serviço público, ou como é que és tratado. Ou, por exemplo, que é uma coisa profundamente presente em Portugal, é a cidadania... O Miguel Amanda fala muito sobre isso, que é como nós temos ainda a nacionalidade muito ligada à questão do sangue e cada vez menos, felizmente, há outros critérios, o território, não é? E depois já há outros critérios, estiveres cá há seis anos e mais isto e mais aquilo, mais aquilo outro. Mas, por exemplo, o CDS continua a defender muito, muito, muito o critério do sangue e acha que a Europa está a fazer um caminho ótimo nessa matéria. E lá está. Quando se diz que não há uma diferença entre a esquerda e a direita, eu acho que as questões... Eu Tenho tido muito esses dossiers, os dossiers da imigração e essas matérias. Lá está, as pessoas acham que eu não me digo outras matérias. Aí estava essa. E aí vês-me clivagem total entre a esquerda e a direita. E em Portugal há uma enorme dificuldade, por causa da forma como as leis são feitas, de identificar um negro e uma negra como portugueses. Tu se falares com amigos teus portugueses negros, eles de certeza que te contam que são confrontados permanentemente com a pergunta de onde é que tu és? Pois a pessoa, eu tenho uma amiga que é de Negra, que é de Coimbra e ela diz, sou de Coimbra. Não, tá pá, mas de onde? Tipo, perguntou a segunda vez.
José Maria Pimentel
Mas quem é que pergunta isso?
Isabel Moreira
As pessoas perguntam, és de onde?
José Maria Pimentel
Mas isso não é necessariamente mal intencionado. Não, não é isso. Já fiz essa pergunta a pessoas no estrangeiro. Não é mal
Isabel Moreira
intencionado, a questão é... Não há uma... Não ocorre, não ocorre ainda, não há uma integração da coisa que um negro e uma negra sejam portugueses. Quer dizer, tu explicas sou de Coimbra e a segunda pergunta é tá bem, mas de onde? Mas tá bem, mas de Coimbra.
José Maria Pimentel
Sim, de onde é que veio a tua família?
Isabel Moreira
Originariamente, quer dizer, mas...
Isabel Moreira
Porque tu tens a questão da nacionalidade não estar ligada ao facto de trabalhares num sítio, contribuíres por um sítio e fazes parta polis. Tens a questão da nacionalidade culturalmente estar
Isabel Moreira
ligada muito à questão do sangue, por exemplo. Que é uma visão... Nós temos uma voz na idade étnica grande, é um facto. É uma visão terrível, espero que mude. Eu acho que quem nasce cá deve ser português, ponto.
José Maria Pimentel
Sim, eu concordo com isso. Mas pronto, tem sido uma
Isabel Moreira
clivagem enorme entre a direita e a esquerda. E mesmo dentro do Partido Socialista, eu acho que o Partido Socialista devia ir mais longe do que tem ido. Acho que tem contribuído para boas mudanças da lei da nacionalidade. Isso
José Maria Pimentel
é uma coisa que me traz. Eu tinha um tio meu que estava muito ligado a essas questões do racismo e da questão da lei da nacionalidade. Ele me deu a altura para falar disso.
Isabel Moreira
Ou na convivência. Tu, por exemplo, tens amigos ou amigas negros ou já te relacionaste amorosamente com uma pessoa negra, eu já, só quem tiver a mentir é que diz que não sentiu racismo no restaurante ou a maneira como as pessoas olham se a pessoa dá um beijo. É evidente que é diferente. Mas
José Maria Pimentel
atenção, eu não sei se tu se calhar não aprecias esta distinção, mas para mim, o racismo ou preconceito nesse sentido e o estereótipo não são necessariamente a mesma coisa, ou seja, todos nós fazemos estereótipos em relação às pessoas que nos rodeiam. Todos, todos. Ou seja, E o estereótipo não é necessariamente mal intencionado. Tu precisas lhe fazer para viver, não é? Para viver tu assumes, o teu cérebro vai traçando padrões e, portanto, tu, alguém que vê um negro e assume que ele é um empregado, não está necessariamente a fazer isso por mal. É uma heurística cognitiva. O ter
Isabel Moreira
de uma atitude racista não tem que necessariamente ter dulo ou estares a fazer uma coisa por mal. A questão é que o racismo está interiorizado. Eu tenho, eu e Isabel Moreira, cresci com racismo, homofobia, sexismo interiorizados. E portanto, toda a vida...
José Maria Pimentel
Ah, são coisas diferentes. Eu cuspi
Isabel Moreira
estereótipos até ir limpando o mais que pude, porque me cultivei, porque convivi, porque descobri outros mundos, porque saí do meu bairro, o meu bairro metaforicamente
José Maria Pimentel
falando. Sim, cultural.
Isabel Moreira
Metaforicamente falando. O meu bairro em todos os aspectos, porque abri os horizontes, porque falei com pessoas, porque li, porque fui ativista, por isto, por aquilo, por aquiloutro, porque meti na política, por o que tu quiseres e fui construindo esta pessoa que sou hoje. Aliás, é uma pena enorme esta voracidade que é o tempo, porque eu acho, pelo menos no meu caso, acho que somos verdadeiramente idiotas no auge da juventude e quando começamos a ser medianamente interessantes e mais despidos daquela parvoeira das certezas absolutas e dos estereótipos todos, que é quando... E que é, entre tantos, já temos 40 e poucos, não é? Pronto, e já passaram os 20 e os 30. Eu, pelo menos, sinto isso. Gostava imenso de injetar as coisas todas que eu, entretanto, aprendi naquela Isabel dos 20 anos, que era de facto pouquichinho neste sentido, não é? Mas eu fazia essas associações. O facto de eu não ter dolo é importante, claro que sim, eu fazia associações. Eu via uma pessoa, se calhar inconscientemente, associava a negra à empregada, o gesto de determinada pessoa ao gay, tudo isso. Eu fui tudo isso. Mas o eu não ter uma má intenção nisso não faz com que isso objetivamente seja uma coisa boa. Eu tenho de tentar corrigir isso na sociedade.
José Maria Pimentel
Corrigir isso é de maneiras diferentes.
Isabel Moreira
Corrigir isso, não é uma coisa boa. O racismo objetivo, subjetivo, com dor, sem dor, nunca é bom, mas é racismo. Mesmo que não seja com essa intenção. Mas é racismo. Eu parti do princípio que uma
José Maria Pimentel
negra é uma empregada doméstica... Preferia usar palavras
Isabel Moreira
diferentes, por acaso. Eu partir do princípio que uma negra por ser negra é
Isabel Moreira
empregada doméstica, é claro que é racismo. É evidente que é racismo. A social é um estereótipo,
Isabel Moreira
mas porquê? Não pode ser advogada, não pode ser outra coisa qualquer, o que for, mas porquê que eu tenho partido o princípio?
José Maria Pimentel
Claro, a pessoa deve tentar contrariar esse estereótipo que nos surge automaticamente, claro que sim. Sim. Mas eu preferiria ter uma palavra diferente para as duas coisas porque o racismo americano dos Estados do Sul, quer dizer, aquele que nós vimos nos filmes ou que vemos na altura do Civil Rights, que falavas há pouco, é muito diferente, é um racismo que tem uma teoria por trás, é um racismo que diz...
Isabel Moreira
Então nós não temos uma teoria
José Maria Pimentel
por trás. Temos
Isabel Moreira
séculos de colonização, descobrimentos e depois a colonização, quer dizer, nós não temos uma teorização. Nós temos uma teorização, quer dizer, nós com a escravatura tivemos, nós ainda temos esse legado.
José Maria Pimentel
Sim, mas não existe...
Isabel Moreira
Nós teorizámos, tivemos que teorizar ao ponto, para fazer tráfico de escravos, de tornar aqueles seres humanos não sujeitos, não pessoas. Sim, sim. E, portanto, cada país
José Maria Pimentel
tem a sua
Isabel Moreira
especificidade. Mas nós temos a nossa. Há alguns séculos, quer dizer, o fim do colonialismo, O fim do trabalho forçado, que já agora para o qual o meu pai contribuiu, não é? Foi na década de 60 e, portanto, isto foi ontem.
José Maria Pimentel
O que ele diu é uma modividência que vê, por exemplo, pessoas de outras raças, como por exemplo os negros como inferiores, é algo que em Portugal haverá pessoas que pensam assim, obviamente, mas... O
Isabel Moreira
estatuto indigenado que o meu pai revogou, foi revogado em 61 ou 62. Repara-se ao nome, não é? Estatuto indigenado. Quer dizer, os brancos tinham estatuto, a gente não tinha um estatuto de
José Maria Pimentel
cidadania. Não, eu percebo, claro que isto historicamente é ontem. Isto está no nosso... Mas a democracia historicamente
Isabel Moreira
é... Quantos casais interraciais é que conheces? Quantos? Com quantos é que convives?
José Maria Pimentel
Poucos, barra nenhum, mas isso... Pronto? Mas não haver casais... Bom, é um sintoma... Porque estão em
Isabel Moreira
apartaio, porque estão noutro sítio, porque nós não convivemos com as pessoas,
Isabel Moreira
as pessoas não convivem umas com as outras, porque as pessoas estão...
José Maria Pimentel
Eu concordo com isso. Já estão a partir de um apartado social. O que eu estou a dizer é que isso não significa que as pessoas vejam, no caso português, os negros como inferiores, como existia, por exemplo, nos Estados Unidos. Não, está bem, isso
Isabel Moreira
também é diferente. Cada país tem as suas peculiaridades. Claro, ou seja, o que existe é... Eu não quero é desvalorizar, porque... Ah, mas há a pior, eu não posso é desvalorizar o que é o racismo em Portugal e quais são as raízes profundas desse racismo, o que é que é ser afrodescendente em Portugal, o
José Maria Pimentel
que é que foi o luso-tropicalismo
Isabel Moreira
em Portugal, que influência é que isso teve na forma como nós olhamos para os negros e para as negras? Agora tens razão, nós vamos à América é toda uma outra história, não é? Que nós todos assistimos em filmes, em livros, não é? O tipo de racismo que nós temos, que ainda
José Maria Pimentel
está aqui. E aquela racionalização da segregação que estávamos a falar há um bocadinho. Absolutamente. Não, não, não, não há problema nenhum, ficam aqui ao lado, não é? Exato. Eles na universidade deles, nós a nossa. Nós a
Isabel Moreira
nossa, quer dizer, o casamento, o fim da proibição do casamento entre pessoas de, como dizem os papéis, de raças diferentes, é de 1967, não estou a erro, e
José Maria Pimentel
foi uma decisão do Supremo.
Isabel Moreira
E nessa altura as sondagens nontoer 67% dos americanos eram favoráveis a que se mantivesse a preemissão, o que é assustador, não
José Maria Pimentel
é? Sim, e isso foi uma revolução enorme nos Estados Unidos na altura. Eu estou
Isabel Moreira
a falar do casamento, nem estou a falar da coisa da educação.
José Maria Pimentel
Sim, mas acho que é mais ou menos contemporânea. Porque
Isabel Moreira
a educação teve a primeira decisão dos anos 50, só que depois foi interpretada no sentido de dar alguma liberdade aos Estados. Acabaram os Estados por fazer, enfim, continuaram com a segregação, depois até teve aquele episódio no tempo do Robert Kennedy, não é? É, 67. E depois a segunda decisão é de 67, é o Board of Education 2, não é?
José Maria Pimentel
Eu tenho a impressão que isso era no tempo do Lyndon Johnson,
Isabel Moreira
na época em que isso foi tudo aprovado. Mas já havia uma decisão anterior, de 2050, simplesmente não, não, não, foi uma decisão que os Estados, é que os Estados conseguiram dar a volta.
José Maria Pimentel
Sim. Deixa-me voltar à questão do... Para ficares arreliada comigo mais um bocadinho. Não, não, não, não, não. Não estou arreliada a tudo. Estou a brincar, estou a brincar. Ainda por
Isabel Moreira
cima, para os ouvintes saberem, o Zé oferece chocolates. Para eles que querem vir cá. Não sei se as outras pessoas que fazem podcasts oferecem chocolates.
José Maria Pimentel
Sim, também não sei. E um estúdio tão confortável. Mas, olhando, voltando à questão da não sei como é que lhe ia te chamar Feminismo barra igualdade entre sexo ou igualdade entre géneros. Feminismo mesmo. A questão das cotas, por exemplo, há uma razão, apesar das reservas que eu puse há pouco, para eu não ser completamente desfavorável à questão das cotas, que é o facto de... Tem um bocadinho que ver com a versão à mudança, não é bem a versão à mudança, é um bocadinho aquele efeito de... Por exemplo, eu dou sempre o exemplo do cinto de segurança, que é um exemplo um bocado para usar, porque o cinto de segurança é importante. Antigamente não era obrigatório, ninguém usava. De repente ficou obrigatório. Se amanhã deixasse de ser obrigatório, toda a gente continuava a usar. Foi preciso aquele empurrãozinho para as pessoas usarem. Estás a perceber? Ou seja, não basta... Mas eu estou
Isabel Moreira
contra o uso de segurança. Obrigatoria dado a uso de segurança.
José Maria Pimentel
Claro. Eu tendencialmente também seria. Causa
Isabel Moreira
princípio de liberdade negativa.
José Maria Pimentel
Sim, mas é mais complexo do que isso, não é? Porque depois vais parar no hospital, a gente tem que pagar a conta. Acho
Isabel Moreira
que foi aí que começou a derrocada da nossa autonomia individual e do Estado meter-se no meu espaço de liberdade, o que nós chamamos, para as pessoas perceberem, a liberdade negativa é aquele meu espaço de atuação individual sem prejuízo para terceiros e não me venham com a conta do hospital porque eu contribuo para o Serviço Nacional de Saúde porque os meus impostos não são poucos e, portanto, isso valeria para tudo, não é? Valeria para o Estado obrigar-me a fazer exercício físico, para o Estado obrigar-me a ser saudável com o como, como te contei, estive na Argentina no final do ano. As pessoas podem imaginar os níveis de carne vermelha que eu atingi diariamente e portanto deveria ser penalizada fiscalmente por causa disso? Não, não é? Eu faço o que quero, deixo que pague os meus impostos e não prejudico terceiros. Isto para mim é uma premissa fundamental na minha veia de liberdade.
José Maria Pimentel
Libertária? Sim, claro. Atenção, eu estou... É curioso eu estar nesta posição, mas esse é um ponto em que o meu pragmatismo se sobrepõe ao meu libertarianismo, não sei se se diz assim em português. Porque a verdade é que é um facto que tu não estás a fazer mal a ninguém, e existe essa questão da conta do sistema de saúde que eu não achei relevante. Claro, claro. Agora, pragmaticamente, nós, seres humanos, somos de facto imperfeitos. Quer dizer, tu tinhas... Hoje em dia, se tu podias revogar a lei e as pessoas continuavam a usar o assíntio de segurança, as mesmas pessoas que antes não queriam, continuavam a usar o assíntio de segurança. Ou seja, há um ganho social de facto com aquilo. Ah? Eu tenho que reconhecer pragmaticamente que nós às vezes precisamos de um bocadinho de paternalismo. Se
Isabel Moreira
deixares vender carne vermelha há um ganho social?
José Maria Pimentel
Não, mas a questão é, nós estamos a dar um empurrão para... E depois até podemos tirar a mão, que as pessoas continuam a andar. Sim, Mas se deixares
Isabel Moreira
vender carne vermelha há um ganho
José Maria Pimentel
de tempo. Se deixares vender há, mas se voltares a vender as pessoas voltam a comer.
Isabel Moreira
Achas que voltavam? Se nós tivéssemos 10 anos sem comer carne vermelha? Se
José Maria Pimentel
gostarem realmente?
Isabel Moreira
Achas que voltávamos? Tipo, completamente loucos por tofu. 10 anos eu comi tofu, todos os dias. Molhos diferentes. Eu ficava zero com vontade de comer
José Maria Pimentel
cada vez mais carne vermelha. Era o contrário, acho que. Seitã,
Isabel Moreira
tofu, tínhamos malucos, assim, tipo, está de ver o pé desaparecia, Porque toda a gente, tudo vegan.
José Maria Pimentel
As pessoas ficavam cheias de vontade de comer carne vermelha, enquanto de andar sem cinto de segurança ninguém tem muita vontade. Toda a gente reconhece que o cinto de segurança é bom.
Isabel Moreira
É, vai não andar sem cinto de segurança, não é?
José Maria Pimentel
Pois, exato, sim. E também não deves ter aqueles apoios no pescoço, não é? É, vai não é porrada. Eu já não sei o que é que ia dizer, era a propósito da questão das cotas. Bom, o argumento que eu dei para o cotas tu não compraste, portanto estamos vivendo pontos diferentes desta questão, porque essa é uma razão porque eu acho que nós precisamos um bocadinho de cotas, ou seja, precisamos de um empurrãozinho. Agora, o meu ponto é, quando nós exageramos, nós temos... Existe de facto, quer dizer, seja biológico, seja cultural, eu acho que é um reforçado pelo outro, existem comportamentos entre homens e mulheres, tendencialmente, de novo, caso individual é uma matéria completamente diferente, mas tendencialmente isto existe, muito diferente dos homens e mulheres. E isso aliás tem que ver com outra questão interessante que eu também gostava de...
Isabel Moreira
Eu gostava de uma exposição de motivos numa lei a explicar-me isso tudo. E depois para um artigo, uns artigos a explicar porque é que depois tu fazias uma lei diferente para homens e para mulheres, porque existem tendencialmente diferentes mudanças biológicas. Não, não, é que uma lei é para os grandes números, não é? A lei é para a população. Entre os homens e as mulheres e como os homens têm este tipo de comportamento, não é? Pois as mulheres que não se reviam nisso, desculpa lá, mas eu não tenho nada desse tipo de comportamento.
José Maria Pimentel
Não, mas a questão é, quando tu introduzes cotas, tu estás a obrigar uma população grande, onde estas coisas já não são irrelevantes, a reger-se por aquele tipo de cotas. E o que tu tens, por exemplo, nas empresas ou em qualquer tipo de organização é, tu vês os homens mais pressionados para subir. E essa é outra questão, por exemplo, a questão de quando se fala não há dúvida nenhuma...
Isabel Moreira
Os homens mais pressionados para subir... Deixa-me só dizer aqui uma coisa, desculpa lá. É que isto é ignóbil, porque nós estamos a falar de uma coisa que é mínima. É verdade que a lei vai mudar para 40%, não é?
José Maria Pimentel
Achas que 40% é o mínimo?
Isabel Moreira
Nós estamos a falar de uma coisa mínima. Se nós, em bom rigor, não devia haver uma cota mínima para mulheres. O que devia... Quer dizer, eu não... Eu preocupo-me se uma... Eu já me preocupo quando vou a uma conferência e vejo um painel só de homens ou quando abro a televisão e vejo painéis de discussão com pessoas que eu gosto muito, mas quando é só homens, peço imensa desculpa a quem estiver a ouvir isto, eu desligo a televisão porque já não aguento mais. Desde que me lembro de ver televisão com debates políticos, homens, homens, homens, homens, homens. Ou há lá uma mulher ou eu não vejo. Hoje em dia vejo o
José Maria Pimentel
eixo do mal. E perde-se a diversidade.
Isabel Moreira
Acho que se perde a diversidade cognitiva. Hoje em dia vejo o eixo do mal. É uma questão de decência. Eu acho que é uma loucura hoje em dia fazer-se um debate só com homens. E portanto, eu só vejo o eixo do mal. Sim, mas faz proibir debates só com homens. Não é isso, acho que é uma questão de decência, quer dizer, não percebo como é que ainda passa pela cabeça para alguém criar um programa do zero agora ou fazer uma conferência hoje com oito pessoas e não convidar mulheres. Só mostra que uma sociedade de facto é machista e continuas a ver isso. O que nós estamos a fazer é dizer onde é possível haver intervenção, que não é com certeza a criar um programa de televisão, isso não tens intervenção nenhuma, é o consumidor é que pode fazer a sua opção. Eu faço. Eu não vejo... Por exemplo, eu gosto imenso de ouvir as pessoas individuais que entram sem moderação, mas eu não vejo o programa. Como é só homens, não vejo. Olha, paciência, fico sem ver o programa. Mas aqui o Estado pode intervir e o Estado o que é que diz? 40% mínimo têm que ser mulheres. Do meu ponto de vista, em bom rigor, chocar-me-ia, por exemplo, que um conselho de administração de uma empresa pública não tivesse mulheres. Mas se só tivesse mulheres, para mim, devia ser permitido. Porquê? Para equilibrar? Porque não há problema. Não há nenhum problema de desigualdade aí.
José Maria Pimentel
Como assim não há problema de desigualdade? Porque tem que ser uma privilégio
Isabel Moreira
às mulheres. Quer dizer, eu sei que isto é, do ponto de vista jurídico, nunca chegaria lá e o que eu estou a dizer aqui não tem defesa possível. E portanto eu já estou a lutar e estou neste momento no Parlamento a lutar por uma lei a ser aprovada na próxima semana, que é a lei que vai passar para 40%. Portanto, ainda me estão a levantar objeções em que as mulheres tenham 40% de representação no Parlamento nas autarquias locais, nas listas para as europeias e já fizemos para os conselhos de administração, etc. Mas quer dizer, aí 35% não era? 35% se calhar estão a dizer as coisas erradas. Agora estão sem papéis à
José Maria Pimentel
frente. É bom que as pessoas sabem que estamos sem papéis à frente e num domingo. Alguns perto de 50% mas abaixo.
Isabel Moreira
Desculpa, mas quer dizer, nós estamos a viver um... Estamos em 2019, ainda me custa a menção ser de 2019, estamos em 2019 e nós estamos a pedir licença para onde há intervenção pública ser obrigatório ter atenção àquilo que representa metade da população mundial, que é o sexo feminino. Quer dizer, mas está tudo doido, mas quem não percebe isto? Não dar voz a metade... Eu admito que há gente que é misturista. Não dar representatividade a metade da população. Mas para mim...
Isabel Moreira
Somos metade! Somos silenciadas e Somos silenciadas há séculos e
Isabel Moreira
séculos e séculos. E o que eu nem sequer veria problema, é o que eu estou a dizer, eu nem sequer veria problema se fosse ao contrário, assegurar-me uma representatividade mínima dos homens. Eu estou farta de ver... Passei toda a minha vida, e então as mulheres que vieram antes de mim, muito mais, não é? A verem homens a serem ditos por brilhantes, que não eram. E eram os homens que nos governavam, que faziam as leis, que nos davam ordens, que eram, eu estou a dizer nós no sentido de voz coletiva, feminina. Que eram os nossos patrões, que eram quem mandavam, que eram os nossos maridos, que eram quem tinham poder, que eram tudo, tudo. E como os nomes que apareciam, são os nomes que escrevem a história, são os nomes que legislam, são os políticos, são os nossos... São a voz, foram sempre a voz, são necessariamente tidos como pessoas notáveis, quando são conhecidas, quando se tornam conhecidas. Provavelmente, a maior parte delas não tem nada de notável, não é? Simplesmente tornou-se notável porque era o que aparecia, porque a mulher não tinha por onde aparecer. E agora estamos a pedir isto, 40%? E acham que não é uma questão de justiça evidente? A questão do 40% não é um número pequeno, não é? E É um digno constitucional, o Estado tem a obrigação de promover a igualdade efetiva entre homens e mulheres, nomeadamente através de medidas positivas.
José Maria Pimentel
Mas aí estás a promover a igualdade de resultado, não estás a promover a igualdade de condições. Mas isso, no final,
Isabel Moreira
tem inscrição constitucional.
José Maria Pimentel
Mas há uma questão que não é despicienda que é a questão de qual igualdade? Isso é a igualdade de resultados. Não
Isabel Moreira
é só no poder?
José Maria Pimentel
Mas de resultado, ou seja, tu não estás a criar igualdade no acesso.
Isabel Moreira
Mas eu tenho que trabalhar na igualdade em todos os níveis, não é?
José Maria Pimentel
Não necessariamente. Na igualdade salarial,
Isabel Moreira
na igualdade na distribuição da riqueza, na questão da educação para a cidadania, para que as pessoas percebam que as mulheres não são coisas, que até pensam e que são...
José Maria Pimentel
Mas o ideal, se no mundo perfeito tu atuavas no início, não
Isabel Moreira
é? Tem que lutar para que as mulheres sejam donas da sua sexualidade e que pare de haver uma tentativa de controle das mulheres através da sexualidade. E ainda este ano vimos que isso continua a ser uma deriva da onda conservadora, para usar o tipo de um livro de um amigo meu brasileiro, que foi que ela ia ao tribunal constitucional por parte do CDS e deputados do PSD como o portuguesado Fernando Negrão, que basicamente tentaram acabar com a procuração medicamente assistida. Porquê? Não que tivessem horror ou anonimato o dador, porque o anonimato do dador sempre lá esteve, ou seja, sempre, desde que a lei existe, os casais de sexo diferente que recorriam à inseminação oficial sempre viveram bem nas suas consciências com o facto do dador ser anónimo. E o dador é anónimo porquê? Para dar segurança à família, para proteger na altura o pai de facto, não é? E para que haja dadores. A partir do momento em que fizemos a lei em que todas as mulheres, independentemente da tutela de um homem, portanto as lésbicas, as solteiras, as divorciadas, as viúvas, etc. Também podem aceder E portanto há uma lei que efetivamente dá poder às mulheres. Não, afinal isto o anonimato do dador não pode ser e lá foram rebentar com isto tudo. Pronto, e continuou com a tentativa de controle sexual das mulheres. Isto fez-se como? Através de deputados e deputadas foram ao Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional reflete esta visão terrífica, não foi tão longe como eles queriam, mas acabou de facto com o anonimato do Dador. E, portanto, eu luto nessa vertente, luto na questão salarial, luto na questão do emprego, luto na questão da distribuição da riqueza, luto na questão dos estereótipos de género e nas várias vertentes em que temos de pegar numa perspetiva integrada para combater um flagelo, que é a violência doméstica e por aí fora. E também luto ao nível do acesso ao poder. Portanto, a minha visão... Eu não tenho uma visão acantonada do feminismo do género, só me interesso por este ponto. Eu podia ter aqui uma grande conversa sobre a discriminação salarial ou o que é que se passa com as mulheres a nível do mundo do trabalho ou a duplicação do trabalho, ou o trabalho não remunerado, ou como é que vivem a maternidade e como é que conjugam a maternidade com o trabalho. Tudo isso podia ser discutido.
José Maria Pimentel
O que eu discordo, Eu concordo com várias coisas, eu acho que há muito do que tu disseste que é importante fazer, aquilo onde eu tenho mais reservas é na questão de agir sobre o resultado. Qual é a alternativa? Porque o que tu estás a presumir, o problema é, há um pressuposto que é que há vontade igual em desempenhar o poder e a questão é que nós temos muitos indícios que não existe vontade igual. Mas desculpa,
Isabel Moreira
as cotas foram imediatamente preenchidas, então não havia vontade? Tiveram
José Maria Pimentel
que ser, não é?
Isabel Moreira
Tiveram que ser, mas tu achas que eu estou no Parlamento porque existem as cotas ou estou no Parlamento porque existem as cotas e antes das cotas eu não estava lá apesar de ter mérito? Mas há agredações de vontade. Não, mas é que eu não tenho dúvida nenhuma se o parlamento tivesse mil pessoas, se fosse para mil, tinha lá mil pessoas. Eu não tenho dúvida nenhuma que a esmagadora maioria das mulheres que está no Parlamento não estaria no Parlamento se não fosse a lei das cotas e não estaria não porque não quisesse, mas por causa do sexismo. Não, O meu ponto é que é pelas duas coisas. Não, as mulheres não estavam, ponto. Antes de haver cotas, não estavam.
José Maria Pimentel
Mas é por dois motivos. Não,
Isabel Moreira
desculpa. Então Nasce as cotas e nasce a vontade.
José Maria Pimentel
Por exemplo, acho que era o caso do livre que caiu cotas e depois teve dificuldade em preencher. Não acredito. Eu tento sempre respeitar a evidência empírica, ou o que querermos chamar. E é o caso dos países nórdicos, é um caso muito curioso. O caso dos países nórdicos é, primeiro, é um caso dos países mais igualitários do mundo, dos países que se têm tornado cada vez mais igualitários, e com o aumento dessa igualdade, com o aumento de, por exemplo, há uma dimensão sociocultural de quem estuda a questão das diferenças culturais, que é a questão da... Aquilo tem o nome mal conseguido neste sentido, que é feminismo... Feminismo barra masculino, e é uma coisa deste género, e basicamente o feminismo é quando as sociedades têm características de género mais alinhadas e os países nórdicos são muito alinhados, ou seja, são países em que o comportamento entre os homens e mulheres e os estereótipos de comportamento entre homens e mulheres são mais parecidos entre si, comparativamente com outros países, muito comparativamente com Estados Unidos e Rússia, por exemplo, são países em que funciona muito ao contrário, daí o Trump nos Estados Unidos era aquela figura e ia ser eleito. E o que tu tens ali é, primeiro, tens aquela questão das ocupações, ou seja, tens as pessoas com inteira liberdade de escolher, com, obviamente existe uma questão cultural, eu não digo que não, mas tens essa questão cultural, à partir da minimizada e as pessoas continuam a escolherem cada vez mais profissões diferentes e acho que isto é uma espécie de paradoxo das ciências sociais esta conclusão e depois tu tens, por exemplo, nas empresas, eles começaram por fazer uma coisa que era dar o máximo de liberdade às pessoas e dizer, dar o orçamento para a creche, as pessoas tinham um sítio para pôr os miúdos na creche antes, licenças partilhadas e não sei o que. E o que tu vês, o que tu viste ali, era menos mulheres em casa de licença e não mais. Ou seja, dado Com a liberdade de escolha, o que mais mulheres do que menos fariam era ficar em casa com os filhos. Isto é evidência empírica, estás a perceber? Ou seja, eu não vou ao ponto de dizer que não existe estereótipos e que não
Isabel Moreira
existe... Revocavas a lei das
José Maria Pimentel
cotas. Eu sou a favor da lei das cotas por aquele motivo, basicamente por dois motivos, por a questão de nós precisamos de um empurrão, ou seja, eu estou convencido que há aqui um empurrão que é preciso fazer para nós partimos para um steady state onde há mais mulheres do que há hoje em dia, porque senão não vamos lá sozinhos, e porque eu acho que existe um valor em ter diversidade. Por exemplo, falávamos dos programas de televisão. Um programa de televisão com quatro homens, o sentido é que faz aquilo. Tu vais estar em média ali a perder diversidade. Há sentido, porque somos uma
Isabel Moreira
sociedade sexista e as estações de televisões refletem esse sexismo que é. É que nem pensam, por defeito convidam quatro homens. Imagina que eu só falava com homens neste programa, eu só convido. Mas por exemplo, um programa de televisão
Isabel Moreira
de só quatro mulheres
José Maria Pimentel
não
Isabel Moreira
tem problema nenhum. É isso que eu estou a dizer. Não tem problema nenhum. Não tem problema nenhum. Porque as questões não são simétricas. A opressão histórica das mulheres é tão violenta e é tão longa que não é simétrico.
José Maria Pimentel
Desse ponto de vista, sim. Eu tive num programa,
Isabel Moreira
como sabes, só de mulheres. E eu fiquei-me a dizer-lhe, ah, estás a contribuir, então tanto falas da discriminação e vais discriminar. Não, não é simétrico. Não é simétrico porque dar voz pela primeira vez a mulheres, é evidente que eu não posso comparar com isso, com a perpetuação do exclusivo da voz pelos homens. Por isso é que eu não acho que é simétrico.
José Maria Pimentel
Não, sim, não é simétrico. E a questão das cotas,
Isabel Moreira
e eu reafirmo isto, eu não tenho dúvida nenhuma que nós estamos lá, se não fosse as cotas não estávamos lá, mas não estávamos lá não por não termos mérito, mas por causa do sexismo. Não tenho dúvida nenhuma. Eu acho que as mulheres querem estar na política. Não todas, claro que não é todas, porque depois o sexismo multiplica-se em muitas coisas, não
Isabel Moreira
é? Mas há mulheres
Isabel Moreira
que querem estar na política, há mulheres que querem subir nas suas carreiras empresariais ou nas sociedades de advogados, onde quer que seja, há mulheres que querem e que não conseguem por causa do sexismo. Depois podes-me dizer que há estudos que demonstram que em haver deliberadas mulheres há mulheres que querem ser mães e que querem isto e querem... Está bem, mas há muitas mulheres que querem e que não conseguem por causa do sexismo. E deve haver uma política positiva, e aliás a Constituição obriga a que haja, uma política positiva para corrigir isso. E de resto tu vês que é Precisamente nesse tipo de carreira que há maior desigualdade salarial e não nas classes mais baixas. Porquê? Porque, por exemplo, se o salário mínimo está atabulado, está atabulado. E, portanto, não há como.
José Maria Pimentel
O fundo é igual para os dois.
Isabel Moreira
Aí o problema é outro.
José Maria Pimentel
É viver-se com o salário mínimo.
Isabel Moreira
É um problema terrível, que é como é que tu tens tantas pessoas em Portugal a viver de uma forma inconcebível, não é? Como é que ainda tens os números que tens de pobreza? Como é que tens tanta gente a viver com o salário mínimo? Como É que tens pessoas a viverem vidas absolutamente infernais em que o dia-a-dia é sobreviver, não é viver, é acordar de madrugada, é apanhar três transportes para depois apanhar o barco, para depois apanhar mais três transportes, para depois ir fazer limpezas a quatro casas, para depois fazer tudo de volta, para depois ir em dar creche, para depois chegar a casa, para depois limpar a casa, comer aquilo que dá dinheiro para comer e sobreviver. E isto é a vida de milhões de pessoas e quando é nas mulheres é brutal. Mas aí O problema não é a disparidade salarial ou a desigualdade salarial, o problema é que estão nivelados por baixo. Agora, em termos de... Quando há liberdade para fixar salários, quando a carreira sobe, aí é que notas o sexismo. Quando o Estado não tem poder para intervir...
José Maria Pimentel
Mas existe sexismo, o meu ponto é que não existe só sexismo, existe também a própria liberdade das pessoas levá-las a caminhos diferentes. Não
Isabel Moreira
há nada que tu possas pôr em termos simétricos ao sexismo. Tu podes dizer assim, há sexismo, Mas também existe isto e isto.
José Maria Pimentel
Mas adicionado, a realidade não é univarial. Está
Isabel Moreira
bem, com certeza, mas podes dizer assim, há sexismo mas também existe isto, há sexismo mas também existe isto. É a mesma coisa que eu ter uma mesa muito farta, imagina, com pratos de carne, isto e aquilo, com outro, carne, prato de carne, carne, prato de peixe, um arroz gigantesco, uma massa gigantesca, quer dizer assim, vamos, também há aqui um copo de água. Quer dizer, é muito mais evidente a comida, não é, do que o copo de água. Está bem, está ali o copo de água, mas o que é estrondoso ainda é o sexismo. E voltamos àquela nossa questão inicial, que é tão estrondoso que as mulheres estão a unir-se, por exemplo, tanto nos últimos tempos no movimento de enorme empatia a falarem daquilo que sofrem em termos de abusos sexuais e isso para muita gente cria irritação, não é? Cria irritação, são astéricas, são feministas, são isso, quer dizer... Sim, mas isso é uma história de lixo. Não há empatia, não há... Não há empatia e há irritação, que é... Lá vêm elas, porquê que não se calam? E portanto, eu acho que não é qualquer outro fator que possa vir sustentado com o estudo, ou como é que é no país, está na palavra bem, com certeza, mas nada é simétrico ao que é o sexismo. O sexismo para mim é uma coisa tão estruturante e tão violenta na nossa sociedade, que é o fator.
José Maria Pimentel
Eu digo isto às vezes em relação à esquerda, isso até nos pode fazer um aponto para outras questões mais relacionadas com a economia, eu acho que a esquerda é boa e é fundamental nesse
Isabel Moreira
sentido. Ah, que agora não vamos falar da economia?
José Maria Pimentel
Não, então não falamos. Eu já falei com a Marina Mortágua sobre economia e tivemos o programa todo a falar sobre isso, portanto podemos falar mais de outros temas. A esquerda é muito boa no diagnóstico, para mim é menos boa no tratamento. E este para mim é um caso desse, ou seja, claramente tu tens…
Isabel Moreira
Às vezes não somos bons em solucionar o problema, mas,
José Maria Pimentel
por exemplo, nos problemas de direitos
Isabel Moreira
humanos, não temos solucionado o problema.
José Maria Pimentel
Bom, há muitos aí que eu estou no mesmo campo.
Isabel Moreira
Então aí acertámos.
José Maria Pimentel
Este, para mim, não é um exemplo tão simples como outros.
Isabel Moreira
Mas tu olhas para a evolução do Parlamento e as cá cotas e tu não achas que é incrível o que aconteceu em termos parlamentares?
José Maria Pimentel
Para mim, mas atenção, era aquilo que eu dizia há pouco, o Parlamento para mim não é só uma questão de liberdade econômica, se quisermos. O Parlamento deve ser representativo e portanto tu tens aqui duas... Uma coisa é numa empresa, Uma empresa não tem que ser representativa. Nada. O borde de uma empresa pode ter toda a mesma idade. Para mim é igual. Não tem que ter representatividade etária. O Parlamento idealmente
Isabel Moreira
deve ser o mais representativo possível. Mas idade e ter matrimonialidade ao ser homem e mulher não é a mesma coisa.
José Maria Pimentel
Eu sei que não são a mesma coisa, mas têm algo em comum. Ser homem e mulher tem mais do que isto. Eu reconheço isto e que isto está em cima da mesa. Mas nós podemos isolar aquele fator e falar do fator comum. E nesse sentido do fator comum, eu acho que esse é um fator comum que no caso do parlamento justifica a existência de cotas de uma maneira mais densa, de uma maneira mais pesada do que nas empresas. Mas isto é a minha visão pessoal em relação a isto. Agora, o que acontece, para dar a minha perspectiva, ao contrário, eu acho que existe, a nossa sociedade é patriarcal no sentido em que as mulheres historicamente foram prejudicadas no sentido em que tiveram sobre elas uma série de estereótipos que eram menorizantes ao longo da história e mantêm-se muitos deles hoje em dia e portanto não há dúvida nenhuma em relação à disparidade, só para tornar isso bem claro antes do que eu vou dizer. Agora, eu acho que os estereótipos são maus para toda a gente e os homens, por exemplo, têm estereótipos que são, por exemplo, imagina, eu como homem digo-te isto, e tu sabes isso muito bem perfeitamente, quer dizer, como homem tens uma pressão para o sucesso muito maior do que as mulheres têm. Tu és medido pelo teu sucesso. Tu és... A questão dos bens materiais, a questão da riqueza, a questão da ascensão na carreira, essa é uma pressão que existe sobre os homens e é uma pressão que existe socialmente e é feita pelos outros homens e também pelas mulheres no sentido em que a seleção sexual muitas vezes é feita nesse sentido.
Isabel Moreira
Não, desculpa, isso não tem nada a ver com a seleção sexual, não. Os homens fizeram tudo para terem o monopólio disso. É uma questão de poder.
Isabel Moreira
Claro, mas há uns que ganham e outros que perdem.
José Maria Pimentel
Mas não ganham todos. Desculpa, não vou acreditar. Mas é que se vê que não ganham
Isabel Moreira
todos. Não, não, não, não, não, não, não. Não é, ai coitados dos homens, não. Os homens, mais uma vez, não há simetria possível.
José Maria Pimentel
Mas isto não é preto e branco. Eu disse que não era simétrica, atenção.
Isabel Moreira
Não há simetria possível. É o que estavas a dizer,
José Maria Pimentel
as mulheres sofrem
Isabel Moreira
um esmagamento a todos os níveis, desde logo o papel que é dado à mulher pela religião, pelas várias religiões, não é? E portanto o caldo cultural em que estamos e o peso que isso teve e como as mulheres que se destacaram, isso para mim é muito interessante. Não podem ser ordenadas, como padres. As mulheres que se destacaram, de certa forma, ao longo da história, as que se destacaram, de certa forma, foram dessexualizadas, isso é muito interessante.
Isabel Moreira
Foram dessexualizadas, porque senão não podem ser... E mesmo hoje em dia. Não podem
Isabel Moreira
ser veneradas, não podem ser admiradas. E nesse sentido, por exemplo, em termos de indústria pop, a Madonna tem muito interesse, porque sexualizou um équer, não é? E fez o único da coisa.
José Maria Pimentel
Fez um cabra dois em um, não é? Fez a quadradura no círculo disso. Fez o único da coisa. Mas que de facto é uma opressão violentíssima. A
Isabel Moreira
mulher é uma coisa subalternizada a quem se dá ordens, em quem se pisa, a quem se tira a voz, em quem se bate e num limite a quem se tira a vida e a quem se dá ordens do ponto de vista da sua liberdade sexual. Isto são as mulheres, não é? E que não têm poder, ao longo da história não têm poder sobre o seu próprio destino e o seu próprio devir histórico, não é? Em termos económicos de planeamento da sua vida. Depois vens-me dizer, mas os homens, coitados, também têm aqui uma pressão muito grande que é o seu sucesso. Eu admito que reclamar para si o poder todo, a manutenção do poder dá trabalho. Imagino que deve ser sucessante para vocês.
José Maria Pimentel
Deve dar stress. Deve
Isabel Moreira
dar stress. Mas estás a assumir que há os homens e as mulheres que não é assim, não
Isabel Moreira
é assim que funciona a sociedade. Deve ser um stress manter o poder. Outra coisa diferente é eu achar que o machismo é péssimo para todas e para todos. E quantos mais homens... Aliás, há imensas mulheres
José Maria Pimentel
machistas.
Isabel Moreira
O sexismo não tem género. Há mulheres hiper machistas, como sabes, e terríveis. Agora, tu tens homens com... Um dos meus melhores amigos é um feminista incrível, que tem uma desenvoltura intelectual em torno do... E o entusiasmo em volta do feminismo verdadeiramente apaixonante. Uma vez perguntei-lhe como é que ele se tornou tão feminista e ele disse-me, prestei atenção, que achei uma resposta brilhante. E é muito interessante ver quando os homens também reclamam para si a luta contra o machismo porque querem uma sociedade que beneficie da igualdade de género, porque todas e todos nós beneficiamos da igualdade de género. Portanto, o machismo prejudica os homens, evidente que prejudica os homens. Eu não tenho um discurso contra os homens, eu tenho um discurso contra o sexismo. É evidente que quando digo, eu ironizo e digo que deve estar a ser muito difícil para vocês, não é? Estamos aqui num pros e contras. Não, eu não tenho discurso contra os homens, eu tenho discurso contra o sexismo. E contra as pessoas que se põem no lugar do sexismo, sejam homens, sejam mulheres. Agora, Acho que o stress que pode vir daí é todo o stress que vem da reclamação do monopólio do poder. O monopólio do poder está espilhado em todo o lado.
José Maria Pimentel
Mas nem é só a questão do... Primeiro, há uma coisa aí que eu discordo completamente, que é a questão de ver isto como dois grupos, os homens e as mulheres. Os homens estão a manter o poder? Não. Como não? A questão é que tu não tens um
Isabel Moreira
grupo. É os homens e já agora os homens brancos. Brancos,
José Maria Pimentel
claro, mas não há uma conspiração dos homens e homens a dizer bom agora vamos manter o poder, este ano ficas tu, amanhã fico eu. Não, existe muita competição intrassexual, tanto nos homens como nas mulheres, sempre existiu, ou seja, as duas realidades existem. A realidade é mais complexa. Sempre existe, não,
Isabel Moreira
as mulheres só estão no mercado de trabalho a competir
José Maria Pimentel
há pouco tempo. Mas competição não é só no mercado de trabalho. Ah, ok. Estamos a falar de competição social, em tudo o que faz a nossa vida social. E isto como... Mas, quer dizer,
Isabel Moreira
quanto tempo é que uma mulher pode competir com um homem em termos de igualdade? Em casa, desde logo. Por exemplo, em Portugal. As mulheres, até à Revolução, eram praticamente propriedade dos maridos, portanto...
José Maria Pimentel
Sim, tinham que ter autorização. Eu nem sei
Isabel Moreira
o que é isso da... A maneira como o Código Penal distinguia um homem cida, se é homem, se é mulher, por exemplo, o estatuto absolutamente menor das mulheres em caso de separação...
José Maria Pimentel
E nos casos de violação, por exemplo. Em casos
Isabel Moreira
de violação, tudo isso. O que é isso da competição das mulheres e dos homens sempre competiram ao nível social, ao nível económico,
José Maria Pimentel
ao nível... Eu disse intrassexual. Não é intra, intra. Dentro de cada um dos sexos.
Isabel Moreira
Ah, intra. Ok.
José Maria Pimentel
Eu acho que estas coisas são especialmente más para quem não está, quem não se conforma com esses tipos de papéis de género. Ou seja, se tu fores um homem que não seja especialmente competitivo e que não seja calhado para aquilo que na seleção social que se faz no género masculino é privilegiado, tu és vítima daquilo também. Repara, eu não estou a comprar o grau de vitimização,
Isabel Moreira
por isso é que eu soube dizer. Por isso é que a coisa dos estereótipos de género são maus para todos.
José Maria Pimentel
São maus para todos. O que eu digo é, eu acho que este debate se torna interessante é se nós não tivemos uma visão binária e conseguimos ter conversas para lá de dizer que obviamente historicamente e no presente as mulheres são prejudicadas por esse estereótipo. Mas eu
Isabel Moreira
tenho que sempre focar-me nas mulheres, isto é, eu quando faço um discurso identitário e de defesa dos direitos eu não posso… eu há alguns tempos estava numa conversa assim, também animada sobre o assunto e eu vi uma pessoa que me dizia, ai eu gostava muito de que pudéssemos superar as categorias e não falar em mulheres e homens e negros e gays e lésbicas e pronto e lutássemos pelos direitos humanos, os direitos das pessoas. E eu disse, tudo bem, A utopia é essa, não é? A utopia é que a gente deixe de ter que ter categorias e que se cheguemos ao famoso direito à indiferença. Agora, para ter um discurso político, eu tenho que utilizar as palavras. A
José Maria Pimentel
polícia é demasiado complexa para não ter as categorias, isso não é hipótese, não é? Claro, por exemplo,
Isabel Moreira
eu tenho que usar a palavra gay, que aliás é um termo político, não é? A palavra
José Maria Pimentel
homossexual
Isabel Moreira
vem da medicina, o gay
Isabel Moreira
é um termo político. Sim, o gay foi um termo criado pelos gays. Tenho que usar a palavra
Isabel Moreira
lésbica, que aliás é uma palavra que eu aprendi a gostar muito, porque não existia muito no meu vocabulário, era sempre os homossexuais, não é? E os gays, as lésbicas são muito apagadas, como sabes, do debate. Porque as questões LGBT, porque são mulheres. Porque são mulheres, as mulheres são sempre apagadas. E mais uma vez, e repara, os detratores dos direitos dos homossexuais para tentarem cutir o medo em casa de se dar direitos aos homossexuais, falam sempre em gays e, por exemplo, na questão de paternidade falam sempre em casais de homens, nunca falam em mulheres ou na sexualidade feminina. Porque a sexualidade entre duas mulheres é menos assustadora, em termos imagéticos, para um homofóbico, do que a sexualidade entre dois
José Maria Pimentel
homens. Sim, até pode ser apelativa. Está a
Isabel Moreira
saber? E isso, o que também é uma coisa homofóbica de se dizer. Mas é verdade, para o imaginário de um homofóbico, a sexualidade entre duas mulheres é menos repugnante do que a sexualidade entre dois homens. E o fantasma criado para o qual, por exemplo, a Igreja já contribuiu de ligação inadmissível entre a homossexualidade e a pedofilia é entre a homossexualidade masculina. E portanto, o que é que fazem os detractores dos direitos dos homossexuais? Apagam as lésbicas do discurso. Pronto, e também por serem mulheres, claro. E por alguma razão, volta àquela questão, quando foi a progressão medicamente assistida, as pessoas apagaram. Foi a conquista mais difícil, foi a última de todas e ao mesmo tempo foi a silenciada, porque eram mulheres, eram duas coisas ao mesmo tempo, eras a lutar ao mesmo tempo contra o sexismo e contra a homofobia, que era dar poder às mulheres e às mulheres lésbicas, Era uma bomba, não é? Era isso.
José Maria Pimentel
Ok, boa. Então, encerramos este assunto. Não queres falar de economia, pois não? Podemos, o que é que era? Gostava de ter a tua, quer dizer, gostava de saber a tua opinião em relação à economia, digamos que há um, o meu liberalismo económico tem, bem, que é relativamente moderado, digamos assim, mas tem se calhar duas origens. Tem uma origem mais filosófica, mais tipo Milton Friedman, uma versão um bocadinho mais moderada, dos mercados estarem muito associados à liberdade de escolha e tu não tendo mercados, muitas vezes, a alternativa a ter o Estado Central. Mas também há uma visão mais empírica porque a minha personalidade até nem é típica, acho eu, personalidade de alguém com um calibre economicamente, no sentido em que, por exemplo, as pessoas normalmente que eu acho mais interessantes são as pessoas de esquerda, a esquerda tem normalmente uma versão, identifica-se pouco com a figura do empresário ou com a figura do comercial, até organicamente, quer dizer, de uma forma interpessoal, às pessoas ou muito frias ou muito pouco interessantes, muito focadas na questão do enfoque no lucro e na... Do foco naquela ética de trabalho, muito do... Eu trabalho 12 horas por dia, que depois se vê como estando a promover uma espécie de exploração. As pessoas do PS não. Como? As pessoas do PS não. Não? Menos? Acho que uma
Isabel Moreira
das coisas que distingue o PS, por exemplo, do outro tipo de esquerda, é que, e eu, desde logo eu, é evidente que eu não sou uma liberal económica, eu não sou uma liberal em nada, mas... Em
José Maria Pimentel
nada? É assim, liberal em tantas coisas. Não, não, uma liberal não se sente livre do que aquele outro antigo.
Isabel Moreira
Eu... Mas há uma diferença, quer dizer, nós defendemos um determinado papel do Estado na economia, mas ao contrário do outro à esquerda nós aceitamos o mercado. O PS aceita o mercado.
José Maria Pimentel
Sim, é social democrata. É outra coisa,
Isabel Moreira
é uma coisa que o PCP não faz, não é? Nós aceitamos o mercado e sabemos que o mercado é importante e temos é uma visão de regulação do mercado que se calhar o CDS não tem ou que os liberais económicos não têm, mas aceitamos o mercado, portanto não acho que tenhamos essa visão de aversão em relação ao empresário.
José Maria Pimentel
Sim, tens razão, isso é mais das termas que eu... O que eu acho que a esquerda, e mesmo a esquerda social-democrata no sentido do PS, na minha opinião muitas vezes não vê, ou não vê da maneira que eu gostava que visse, é que a desregulação, e não no sentido abstrato, isto depois tem tudo em casos específicos, são casos específicos, mas a desregulação e a promoção do crescimento que se consegue com isso são a prazo bons para aquilo que a esquerda defende. Ou seja, se tu vires os estados com maior liberdade econômica, que tendem a ser os estados com maior desenvolvimento, são estados que a prazo se tornam estados com estados sociais que podem ser maiores ou menores em termos absolutos, mas que aumentam face ao que eram antes. Quase todo mundo isto acontece. Tipo os Estados Unidos? Regulação do mercado laboral? Não, mas o estado social dos Estados Unidos, por isso é que eu estava a dizer, independentemente de ser em termos absolutos, é muito maior do que era há 50 anos. Está bem, mas, para morar Deus, quer dizer, compara com o nosso. Comparado com o nosso é mais pequeno, mas o crescimento económico levou a um aumento do Estado Social lá. Ele não é grande, mas ele aumentou. A questão é
Isabel Moreira
que o Estado Social está dependente de haver crescimento económico, enquanto que o Estado Social para nós é um pilar constitutivo do nosso tipo de Estado. É uma questão constitucional para nós, uma questão de regime a ver o Estado Social. Podemos ter uma visão mais fechada do Estado Social, mais estatizante, ultra estatizante, tipo PCP, uma visão mais protetora do Estado Social e mais, se quiseres, uma visão social-democrata, que é a minha. Eu sou bastante de esquerda nesta matéria e em matéria de direitos laborais, por exemplo. Sou absolutamente contrária à ideia de que subir o salário mínimo prejudica a competitividade ou que flexibilização laboral aumenta a competitividade. Sou completamente contrária a tudo isso e também para uma questão de direitos fundamentais e portanto mesmo que me provassem o contrário Eu não cederia. E para nós o Estado Social, claro que precisa de financiamento, senão ele vai à falência, não é? Pronto. E, portanto, precisamos de crescimento económico. Agora, eu não vejo, por exemplo, que a política de desregulação a que assistimos no período de passo escolho, tem ajudado a um crescimento económico, não
José Maria Pimentel
é? Não me vou meter por aí porque isso me exprouve várias coisas diferentes. Não, mas
Isabel Moreira
por exemplo, o mercado laboral foi evidente, foi uma desregulação fortíssima, fortíssima, e portanto não vejam que é que isso contribuiu, ou a questão do salário mínimo, a recusa em subir o salário mínimo. Até hoje, quando nós avançamos com a proposta de subir o salário mínimo, a resposta imediata de passo escolha é que isso seria péssimo para a competitividade. E nós vemos hoje os resultados, podes contra-argumentar e dizer que é por fatores exteriores os resultados que o maior incentivo tem para apresentar. Com certeza e admito que seja muito por fatores exteriores. Agora, o que não se pode dizer é que a subida do salário mínimo tenha, pois tem em causa os bons resultados que o maior incentivo tem para apresentar. E
José Maria Pimentel
empiricamente não é uma relação direta entre a subida do salário mínimo e o porque, porque é muito mais complexo do que isso.
Isabel Moreira
E há outra coisa para mim que é uma questão de dignidade, que não tem a ver com as curvas e o que me demonstram nos economistas se faz A, se faz B ou se faz B. Eu sento de esquerda. Assim que há... Eu não posso admitir que uma pessoa vive abaixo de um determinado limiar ponto e se me demonstrarem que se mais 500 mil pessoas viverem abaixo desse limiar, Portugal sobe mais, 0 ponto, não sei o que, eu não aceito. Não posso aceitar com uma pessoa
José Maria Pimentel
desesperada. Mas atenção, tem que haver alguma tolerância ao risco, uma sociedade que não tenha tolerância.
Isabel Moreira
Não, lá está, mas há ao mínimo, há ao mínimo de existência condigna, não é? Até derivado do
Isabel Moreira
lado de constituição, mas
Isabel Moreira
é uma informação, mas é o mínimo de existência condigna, é um direito reconhecido, implícito na Constituição, que vem da dignidade da pessoa humana, mas já está reconhecido por exemplo de pertencente a um normal constitucional e, portanto, eu, por exemplo, quando o Governo de Passo Escolho e de Portas, no primeiro Orçamento de Estado, acharam que a forma de cumprir os imperativos da Troika era concentrar o esforço em alguns e cortar o subsídio de Natal e subsídio de Férias, e portanto dois vencimentos a categorias muito fracas, portanto a pensionistas e a funcionários públicos com pensões e reformas muito, muito baixas. Portanto, retirar dois salários ou duas pensões a 600 e tal euros... Isso é
José Maria Pimentel
uma austeridade.
Isabel Moreira
Pronto, mas foi uma opção. Eu quando me movimentei para reunir deputados do Partido Socialista para ir ao Tribunal Constitucional, sendo que conseguimos 17 deputados do Partido Socialista e depois o PCP não avançou logo e fomos com o Bloco de Esquerda. E eu fui uma das pessoas que escreveu esse recurso para o Tribunal Constitucional. Aquilo não era Só uma questão de eu achar que era inconstitucional. Eu achava mesmo que aquilo era inconstitucional. Aquilo para mim era repugnante do ponto de vista político e também ideológico. Porque uma das armas que se usa no discurso político, se estiveres atento, por exemplo, a Assunção Crista se usa muito, é dizer que o PS é muito ideológico ou que a Catarina Martins é muito ideológica e usam o é muito ideológico como se fosse ofensa. Pois é ao contrário, eu tenho horror ao que não é ideológico. Acho que faz falta as pessoas de marcarem-se ideologicamente e dizerem ao que vem e dizerem o que são ideologicamente e acho mesmo que tudo na nossa vida é ideológico. Eu concordo com isso. Até o sítio que escolhemos para viver. Acho que tudo é ideológico.
José Maria Pimentel
Mas também é preciso respeitar a evidência empírica. Pronto, mas o que eu não
Isabel Moreira
acho é que seja ofensa dizer é ideológico. E aquilo, eu não só estava convicta de que aquilo era inadmissível constitucionalmente e portanto era um imperativo respeitar a lei fundamental, ponto, e lá fomos ao tribunal constitucional e ganhámos, mas aquilo repugnava-me do ponto de vista da minha formação, da minha área ideológica, quer dizer, como é que era possível concentrar o esforço naquelas pessoas? Quer dizer, era uma coisa que para mim era... Como é que lhes ocorreu? E depois insistirem no Orçamento de Estado a seguir, obviamente foi só quase repetir o requerimento, mas em vez de ser dois vencimentos era apenas um e ganhámos
José Maria Pimentel
outra vez. Mas isso é uma questão, desculpa interromper-te, mas isso é a questão da austeridade que é uma...
Isabel Moreira
Não, discurso de ideia é profundamente ideológico. Não, não. Tu decidires por onde é que recortas... Não, não, estou a dizer que não é ideológico. Tu decidires onde é que recortas é ideológico.
José Maria Pimentel
Eu digo aqui, isso não tem que ver com a questão do crescimento a que eu estava a apelar e com a questão de maior liberalismo económico. O que eu acho... Não, mas estavam convictos,
Isabel Moreira
eu lembro, eu lembro, eu estava no Parlamento, convictos que a desregulação laboral aumentaria e x, não sei o quê, o crescimento económico.
José Maria Pimentel
Mas isso não era desregulação laboral, isso era cortar salários.
Isabel Moreira
Não, não, mas também é desregulação laboral. Ah,
José Maria Pimentel
mas a desregulação laboral é outra história. Pronto, mas quando
Isabel Moreira
foi a revogação do Código de Trabalho e quando foi a desregulação laboral, havia a convicção profunda de que isso
José Maria Pimentel
levaria ao crescimento económico. Eu não estava a perceber muito por aí porque depois ficamos a discutir esse tema e não saímos daí. Se calhar já lá vamos, mas vou resistir a essa tentação. Eu acho que a esquerda nestas matérias muitas vezes é bem intencionada, mas não necessariamente eficaz. E tu precisas...
Isabel Moreira
Já é a segunda vez que dizes
José Maria Pimentel
isso. Porque acho mesmo isso. Sim, mas na
Isabel Moreira
primeira depois eu pedi-te para concretizar, porque estávamos a falar da matéria de direitos humanos e de direitos fundamentais e afinal concretizamos bem. O quê? Portanto, a primeira vez disseste, acho que a esquerda tem boas intenções, mas às vezes concretiza mal. Às vezes concretiza bem. Outra vez concretiza bem. E eu disse assim, mas por exemplo, a matéria de direitos fundamentais que foi que estivemos a falar até agora e tu disseste, ai sim, porque estamos do
José Maria Pimentel
mesmo lado. Na matéria de aborto, casamento de pessoas mesmo sexo, eutanásia, acho que competiza bem. Adoção? Adoção competiza bem. PMA?
Isabel Moreira
Nunca te esqueças da PMA porque as mulheres são sempre esquecidas.
José Maria Pimentel
Sim, peço desculpa. E a questão do feminismo que estávamos a falar há pouco, para mim é uma questão mais complexa do que isso. A questão do crescimento, o problema é, tu precisas ter, para teres um Estado Social, tu precisas ter crescimento e há outra variável, há variável temporal que é, para as gerações vindoras, tu tens que ter uma economia competitiva a crescer, senão as gerações vindoras não vão ter Estado Social. Mas claro que tem que haver crescimento para haver financiamento do Estado Social. Tem que ser a primeira prioridade. Tipo, a primeira prioridade. Mas claro que tem que haver crescimento. Não podes ter o país que está restrignado desde o ano 2000. Mas
Isabel Moreira
claro que tem que haver crescimento. Pois, claro que tem. Sim. Mas se tivesse a gente a entrevistar o Mário Centeno, ele concordava contigo ou não? No
José Maria Pimentel
papel concordaria, mas se tu fores analisar o discurso político à direita e à esquerda, a palavra crescimento surge mais vezes à direita do que à esquerda, é um facto, é um facto que é uma prioridade maior à direita do que à esquerda. E eu concordo com o enfoque da esquerda nas liberdades positivas, no sentido em que tu tens de ter um Estado Social para assegurar, e o meu modelo não é o americano, quer dizer, basta ver o sistema de saúde deles, que não existe, basta ver isso para não ser preciso dizer mais nada. Agora, preocupa-me muito e preocupa-me seriamente, nós vivemos num país que não cresce, não cresce, quer dizer, que tem uma economia a nível europeu débil, não a nível mundial, obviamente, felizmente, Mas para tu assegurares um Estado Social, quer dizer, estávamos a falar há bocadinho, vou ser pai daqui a pouco tempo, para a minha filha poder viver em Portugal tem que ter um país de que cresça, tem que ter um país...
Isabel Moreira
Mas eu não estou a perceber ao que é que tu farias. Tornarias mais magro o Estado Social, é isso?
José Maria Pimentel
Não, aumentaria o nível de liberdade económica, que está associado a um nível mais ou menos genérico. Não é tanto a questão do Estado Social, mas é mais uma questão de desregulação e a tu permitires coisas. Por exemplo, a Mariana Mortágua falava da uberização da economia, dos ubers e não sei o que. Eu concordo, eu concordo que aquilo tem muitas vantagens e tem muitas coisas feias, digamos assim. Mas é para tu teres desenvolvimento económico tens de ter alguma tolerância com essas coisas feias. É também se não és. Tu tens que ter, se tu tiveres uma versão completa.
Isabel Moreira
Não, eu uso Uber. Como? Eu uso Uber. E
José Maria Pimentel
depois é, pensa em grandes figuras, grandes empresários da história. Pensa no, sei lá, para usar o exemplo dos Estados Unidos, no Taylor ou no Ford ou no Steve Jobs ou não sei o quê. Sim,
Isabel Moreira
mas depois olhas para a nossa elite económica e ficas um bocado desiludido e um
José Maria Pimentel
bocado embarassado. Ficas um bocadinho, mas mesmo a nossa tens casos. O Belmiro, com todos os seus defeitos, eu acho que o Belmiro como personagem é muito interessante a vários níveis, mas eu gostava que Portugal tivesse mais
Isabel Moreira
pessoas como ele. Sim, mas vais ver o nível de queixas das trabalhadoras das cadeias de supermercados e o nível salarial com os lucros que ele recebe e fica... Recebia, claro. Recebia e ficas...
José Maria Pimentel
Eu reconheço que isso é um problema e é um problema que deve ser atacado. Mas eu não quero ficar sem Belmiros, estás a perceber? Eu não quero ficar sem Belmiros pelo caminho. Mas
Isabel Moreira
nem eu. Eu quero é que se uma cadeia como o Pingo Doce tem os lucros que tem, que consigam ter uma consciência social e que percebam que é escandaloso que se continuam a pagar níveis salariais tão baixos.
José Maria Pimentel
Não, isso eu dou de acordo. Aliás, quer dizer, vamos
Isabel Moreira
ver uma coisa. E por isso é que eu não prescindo de uma regulação laboral forte. Isto é uma quadratura do círculo. E por isso é que eu não prescindo de uma regulação laboral forte. Porque o ponto que para mim é mais... Eu tenho a dificuldade, eu não tenho... A minha área não é economia, portanto eu tenho dificuldade de ter um discurso fluído sobre economia contigo. Claro. É a área... Se
José Maria Pimentel
eu estivesse a falar com a Mariana Mortágua,
Isabel Moreira
com certeza ela tem muito mais... Tem uma capacidade para falar de... Tem uma vontade em economia que se calhar que eu tenho em direitos fundamentais ou em direito constitucional. Mas... E em direito constitucional eu agora como já não dou aula... Estou na Assembleia há sete anos, já não estudo com a profundidade que estudava, eu acho que tenho que agora dedicar assim tipo seis horas por semana para ver se me atualizo. Mas há uma parte que para mim é fundamental, que não é a economia, obviamente, mas tem um reflexo na economia, que é aquela a que eu mais me dedico na Assembleia, para além dessas questões que nos estamos a falar, é que mais me perturba quando não posso votar como quero ou porque não está no programa, ou porque as coisas estão de outra forma no programa eleitoral do Partido Socialista, que é a questão laboral. Eu, como aceito o mercado, como sou socialdemocrata ou socialista-democrata, como quiseres, como aceito o mercado, a forma que eu tenho de compensar o mercado com a liberdade que tem e com a possibilidade de potenciar níveis de concentração de riqueza tão obscenas, é uma regulação laboral forte, porque não vejo outra forma.
José Maria Pimentel
Eu sei que não queres entrar nesses específicos, mas a minha visão em relação a isso é que tu podes ter um mercado liberalizado no sentido de facilitares do despedimento e no entanto teres proteção no despedimento, porque tu podes ter as duas coisas. Às vezes tu criares uma dificuldade a uma empresa de despedir pessoas, estás a criar dificuldade. Uma
Isabel Moreira
dificuldade é criar justiça para o trabalhador isto é.
José Maria Pimentel
Mas qual trabalhador? É que há um para
Isabel Moreira
um, é justo? Trabalhador ou trabalhadora, sim. É
Isabel Moreira
antimeritocrático voltar à coisa do Daniel?
Isabel Moreira
Não é isso, É que nós já nem sequer temos o princípio do tratamento mais favorável do trabalhador. Nós estamos a... Neste momento esse princípio já desapareceu do código de trabalho. É como se já participássemos do princípio que são posições simétricas, é patrão a ser trabalhador e não são. E, portanto, como estás numa situação de subordinação, é evidente que o despedimento tem de ter agarrado a si uma série de garantias que apareceram porque o processo histórico de salvajaria laboral demonstrou que elas eram necessárias, não é? Claro. E eu disse não preciso.
José Maria Pimentel
Sim, mas não me apanhas a dizer que a esquerda não é necessária para isso. Pelo contrário, até voltando àquilo que eu dizia no início, a política é feita de verdades parciais e não universais.
Isabel Moreira
Agora, da importância à concertação social, do importância à concertação social que o PCP não d, quer dizer, há diferenças, não é? Eu sou, por exemplo, a favor do... Às esquerdas e esquerdas.
José Maria Pimentel
Eu acho a questão do salário mínimo importante, eu até vejo com bons olhos a questão do... Embora seja muito complexa e vai ser preciso ser muito depurada, a questão do rendimento básico universal, não sei se é esta a formulação, acho que é uma solução de futuro muito interessante para justamente fazer a coadrutora do círculo entre a necessária dignidade das pessoas, quer dizer, e poder ter uma economia competitiva sem pôr essa dignidade em causa, como muitas vezes acontecem em alguns países. E os Estados Unidos é um país, infelizmente, onde isso muitas vezes acontece. Mas, enfim, já vamos com duas horas e tal. É sério? Peço desculpa, é um domingo, não se faz isso. Queres passar o livro?
Isabel Moreira
Sim. Eu podia ter trazido o livro que eu acabo de publicar, que se chama Célula. Então, mas fala dos dois. Não, o Célula, para fazer publicidade, eu acabei de publicar um livro que se chama Célula, eu publico
José Maria Pimentel
prosa. É aquilo que não é bem romance, não
Isabel Moreira
é? Esse é um livro que se passa numa prisão feminina, eu visitei muitas prisões no meu trabalho parlamentar e interessa-me muito a questão do fenómeno concentracionário e claro que a prisão é um ótimo... Capagira, estou a ver. É um ótimo pretexto para tu usar todas as metáforas e falares de muitas questões de discriminação. A partir da prisão falei dos vários muros, os muros que existem naquelas mulheres antes de chegarem à prisão, porque no fundo elas já são de alguma forma prisioneiras antes de chegarem à cela. A questão das discriminações raciais dentro da própria prisão, da despersonalização e portanto é um livro que eu publiquei, quem quiser compra. Mas o livro que eu trouxe, estávamos a falar, pedes sempre um livro que nos influencie. Os livros que mais, eu estava a dizer que os livros que mais me influenciaram foram precisamente os livros que eu li na área de Direito Constitucional e Direitos Fundamentais. E o meu constitucionalista português preferido é o professor Jorge Reis Nuvais e a última, como sabes, a última batalha em que eu estive metida e continuei metida foi a deste tipo, a que as pessoas chamam fraturante, foi a eutanásia e ele tem um livro... Ele está envolvido também, não é? Ele tem um livro que chama Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Direitos Fundamentais, e tem um capítulo absolutamente extraordinário em que ele dá cabo daquela ideia da cultura da morte, que nós fazemos parte, nós que defendemos a IVG ou que defendemos a eutanásia ou que defendemos a possibilidade de técnicas medicamente assistidas para termos filhos, fazemos parte de uma cultura da morte e tem aqui passagens absolutamente brilhantes e há aqui uma altura que ela até lança um desafio às pessoas que dizem que fazem parte da cultura da vida contra pessoas como eu, que faço parte da cultura da morte. Da cultura da
José Maria Pimentel
morte e que dizem
Isabel Moreira
assim, em segundo lugar, é curioso que obrigações morais e jurídicas teria alguém, segundo os próceres da cultura da vida, para não ser considerado cúmplice da conjura da morte, num caso de eventual incêndio num laboratório onde se encontrasse um bebê, mas também uma filera de várias dezenas de embriões in vitro e hipoteticamente só pudesse salvar ou o bebê ou a filera de embriões. Quem deveria merecer a prioridade do salvamento? Na lógica de um empedernido cultor da morte, somos nós, não é? Sem dúvida o bebê. Entre um bebê nascido e uma fileira de embriões in vitro, qualquer pessoa normal reagiria dessa forma, isto é, optaria por salvar o primeiro. para o autodenominado cultor da vida, pelo menos para um que levasse a sério a construção que pretende impor coativamente a toda a sociedade, a prioridade seria o salvamento das dezenas de embriões, independentemente da sua viabilidade ou de estarem destinados a perecer, independentemente da morte do bebê. Da morte do bebê.
José Maria Pimentel
Está muito bom para cá. Isso está relacionado, aliás, com aquela questão do consequencialismo.
Isabel Moreira
E depois continua a brilhante desmontagem da construção canónica que presida esta ideia de nos apelidarem de cultura da morte. Por isso
José Maria Pimentel
é que nessas questões não se pode ter argumentos muito absolutistas. Porque depois... Permite
Isabel Moreira
que ele faça este tipo de desafio que é terrível.
José Maria Pimentel
Isso lembra aquela questão filosófica do utilitarismo consequencialista versus o... Já Não sei qual é o nome da outra corrente, mas que é aquela mais kantiana dos princípios, não é? Porque esse exemplo lembra-me muito o exemplo que é dado com mais, quer dizer, mais livre desta carga política, que é de, imagino, tu estás numa linha de comboio, tens um comboio que está descarrelado, não, que está numa linha e vai matar uma pessoa se tu não mexeres. Perdão, vai matar três pessoas, por exemplo, se tu não fizeres nada. Mas tu tens a hipótese de o desviar para uma linha onde só mata uma. Sim. O que é que tu fazes? Exato. É tramado, não é? Claro, é tramado. Porque Por um lado é menos gente, mas por outro lado estás a tomar uma ação.
Isabel Moreira
Mas esta aqui é terrível porque rebate-lhes
José Maria Pimentel
mesmo. Exatamente, esta é muito boa. Bom, obrigado por teres vindo. Obrigada eu. Gostaram deste episódio? Se encontram o valor no 45°, existem várias formas de contribuir para a continuidade deste projeto. Podem avaliá-lo na aplicação que utilizam, seja ela o iTunes, Spotify, Stitcher ou outra, e podem também partilhá-lo com amigos e comentá-lo nas vossas páginas ou redes sociais. Se acharem mesmo que merece e puderem fazê-lo, podem ainda tornar-se mecenas deste podcast através do Patreon ou do Paypal. Com esse apoio estão a contribuir para a viabilidade deste projeto, que passa a ser também um bocadinho vosso. Para além disso, obtêm em troca vários benefícios como, por exemplo, o acesso ao backstage do podcast e também a possibilidade de sugerir perguntas aos convidados. No fim do dia, já se sabe, são os ouvintes que tornam possível um projeto destes. Ouvintes como Gustavo Pimenta, João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Nelson Teodoro, Paulo Ferreira, Duarte Dória, Gonçalo Martins, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!