#48 [série Orientações Políticas] Mariana Mortágua - Esquerda: uma visão para a economia e...
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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Antes de mais, como terão reparado, na semana passada não lancei
nenhum episódio. Acho que tenho uma desculpa legítima porque foi uma semana
em que tive que me dedicar a algo mais importante do que
o podcast, sem desprimor para o podcast, porque às 13h45 da madrugada
de terça-feira nasceu a minha filha. Esta conversa é com o Mariana
Mortágua que é, como todos sabem, economista e deputada do Bloco de
Esquerda. E foi uma conversa desafiante a vários níveis. Por um lado,
claro, porque a convidada tem um pensamento político inegavelmente sólido e por
isso a convidei para o podcast. Por outro lado, porque a Mariana
é provavelmente o convidado desta série de quem estou mais distante politicamente
no que diz respeito a uma das questões mais importantes em política,
a liberdade económica. Estou bem menos distante noutros aspectos e, por isso,
aliás, ocupámos grande parte do tempo a discutir a questão da economia.
Neste contexto, isto foi talvez, sobretudo na parte inicial, o episódio em
que mais se aproximou de um debate, o que me gerou alguma
hesitação na gestão da conversa. Tentei, não sei se com sucesso, equilibrar
dois pratos da balança. Por um lado, manter-me fiel ao princípio base
deste podcast, que é tentar compreender um determinado tema, e por isso
aprender com cada convidada, e esse princípio, claro, obriga-lhe a dar espaço
ao convidado e, sobretudo, a recebê-lo de mente aberta. Por outro lado,
no entanto, tentei também ser genuíno e assertivo na expressão das minhas
ideias, quando divergentes das da convidada, e dar também o contraditório necessário.
E esse contraditório, quando o tema é política, torna-se mesmo necessário. Porque
como todos sabemos, e aliás fica patente nesta série de episódios, duas
pessoas igualmente inteligentes, informadas e bem intencionadas podem chegar a visões antagónicas
em relação ao mesmo tema. Isto explica-se, claro, pela importância que têm
nesse julgamento os diferentes valores individuais de cada um, mas também pela
própria complexidade dos factos em análise, que em política são os milhares
de aspectos da vida em sociedade e, portanto, de uma complexidade quase
infinita. Durante esta intensa 1 hora e 20 minutos conversámos então sobre
vários assuntos. Comecei por perguntar ao convidado sobre a formação do seu
pensamento político, que começou em ambiente familiar através do pai, Camilo Mortágua,
uma das principais figuras revolucionárias antisselazaristas e a quem aliás regressámos durante
a conversa, pois eu não sabia, mas esteve ligado a um dos
momentos mais conhecidos do PREC. Como já disse, então falámos muito de
economia política, começando numa questão que, para mim, devia ser o elemento
mais prioritário da política económica em Portugal. A procura, a todo custo,
de maior crescimento económico, de forma a libertarmos de uma vez por
todas do fato de andar sempre a discutir a forma de repartir
entre todos um bolo que é de si já demasiado pequeno. Do
meu ponto de vista, a evidência empírica, que acho que deve sempre
valer mais do que aquilo que gostaríamos que fosse a realidade, sugere
claramente que países com mais liberdade económica tendem a ser os mais
desenvolvidos economicamente. A convidada naturalmente tem uma visão diferente, o que deu
uma discussão muito interessante durante a qual abordámos uma série de outros
tópicos, como por exemplo as causas da falta de competitividade da economia
portuguesa, os méritos e os deméritos dos mercados, alguns maus exemplos notórios
que têm vindo nos últimos anos do mundo dos negócios em Portugal,
a crítica da convidada à financiarização da economia nas últimas décadas, a
importância para a convidada de ter grandes empresas nacionais, a, para mim,
importância do empreendedorismo, o papel regulador do Estado, nomeadamente no mercado de
trabalho e ainda aquilo que é convidado a ver como a mercantilização
crescente da sociedade. Fora do âmbito da economia falámos ainda dos problemas
da zona euro e das políticas da austeridade, do conservadorismo social, que
também existe em alguns setores da esquerda, o aparente paradoxo do facto
de a esquerda não conseguir traduzir numa hegemonia eleitoral persistente o predomínio
cultural e intelectual que tipicamente tem e um discurso focado na promoção
dos direitos que devia cativar a maioria. E pronto, escusar-te-será dizer que
foi um episódio muito rico, agora só mesmo ouvindo.
Então vá,
vou começar isto, eu vou te fazer uma... Eu acho que a
maneira mais gira de começar isto é começar por te pedir para
te definires politicamente quase misturando um bocadinho a tua visão com o
caminho que te fez chegar a essa visão. E depois partimos daí.
O que é que tu achas? Eu venho de uma família de
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
esquerda, mas o meu pai não tem uma esquerda teoricamente fundamentada. O
meu pai é muito mais um anarquista circunstancial do que propriamente um
grande estudioso da esquerda mais doutrinária. E entro no Bloco pelos movimentos
sociais e foi nos movimentos sociais que eu fiz a minha aprendizagem
de esquerda. E, portanto, sempre fui por um lado muito mais prático.
O que é o feminismo? Luta antirracista, os direitos humanos, etc. E
foi só quando cheguei ao Bloco, e essa é uma falha da
minha formação inclusiva, provavelmente teórica, mais antiga, ou quando eu era mais
nova, foi só quando cheguei ao Bloco que comecei a ser confrontada
com a variedade de correntes de esquerda teórica, que depois acabei por
ir aprofundando, não só na minha vida política, como enquanto economista. E
portanto, eu nunca me consegui definir com nenhuma etiqueta derivada de…
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
teoria ou nenhuma filosofia de esquerda. Mas, repara, ao dizer isto, eu
não olho com nenhum tipo de crítica a quem se denomina mais
marxista, ou trotskista, ou leninista, ou enfim, seja qual for a corrente
que segue, até porque eu se não, se se acabe por não
conseguir autodenominar-me assim, é porque acho que bebi de todos esses lados.
E tendo bebido de todos esses lados e misturando muito as teorias
políticas, as teorias da organização de partido, com a minha experiência mais
académica e com teorias mais académicas acho que fui bebendo um bocadinho
dessa mescla de diferentes perspetivas sempre num lado muito à esquerda, isso
é evidente.
José Maria Pimentel
Eu te sei, quando fiz essa pergunta eu estava a falar da
pergunta que ia fazer, mas depois de começar a falar, e portanto
ficou, já estamos a gravar, ficou a valer, mas quando estava a
fazer essa pergunta não estava a pedir-te um carimbo, até porque não
acho graça nenhuma, é isso que é caricaturar, a pessoa estava a
perguntar, não é dizer eu sou trotskista, eu sou...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
dizer, eu sou... Se me perguntares, eu sou marxista no sentido em
que acredito em relações capital-trabalho, e em relações de poder entre capital
e trabalho, e acredito em exploração, e acredito numa necessidade de emancipação
e de luta contra uma opressão de uma classe capitalista, eu acredito
em classes. Nesse sentido, poderia dizer que sou marxista. Tenho depois outras
questões mais teóricas com o marxismo, mas, portanto,
José Maria Pimentel
que alguém numa imposição faria, não tenho grande paciência para isso, o
que eu acho... Ou seja, acho que isso acaba por ser muito
menos... Por ser pouco útil para perceber no fundo qual é... Ou
seja, independentemente da história do marxismo, dos regimes a que esteve associado,
o que eu achava interessante discutir contigo, para este caso, ou seja,
para o caso de Portugal, vendo a coisa de fora, quer dizer,
vendo a atividade política que eu conheço e vendo o papel que
partidos como o Bloco têm tido.
Aquilo que eu
acho alguma dificuldade de compreender, eu concordo em muitos aspectos, quer dizer,
como estava a dizer há bocadinho, concordo, a minha posição está muito
na mesma linha em matérias de costumes, por exemplo, e costumes não
é só causas fracionantes, ou seja, tem muito a ver com a
liberdade da pessoa fazer o que quiser, com... Toca, por exemplo, a
questões de género, de forçar uma espécie de uniformização das pessoas e
cada um ser fazer o que... Ser como quiser. Aquilo que eu,
de Uma perspectiva mais macro, aquilo me faz a impressão, olhando para
um país como Portugal, isto não é verdade para outros países, mas
no caso de Portugal, e eu achava interessante ter a tua opinião
em relação a isso, no caso de Portugal, para mim parece-me evidente
que para nós conseguirmos resolver, para nós nos conseguirmos tornar um país
sustentável, e isso até tem que ver com a nossa independência, a
nossa independência está, e eu sou mais ou menos insuspeito de dar
grande prioridade a nossas questões patrióticas ou nacionalistas, mas tem também que
ver com a nossa independência, tens que apostar no crescimento, ou seja,
obviamente que a questão das liberdades positivas é essencial e precisas de
um estado de providência, ou o que lhe queiras chamar, mas um
estado de redistributivo e que permita dar, lá está, não só as
liberdades negativas, que têm muito a ver com as questões de costumes
que eu falava há pouco, mas também as chamadas liberdades positivas, não
é? As pessoas, não só ninguém as impedir de fazer, mas também
terem as condições para fazer o que quiserem, isso tem a ver
com a educação, a saúde e uma série de coisas, mas o
meu modelo mental, o modelo que eu sigo, vê o crescimento a
surgir antes disso. É óbvio que tu vais dizer-me, sim, tu podes
tentar promover as duas coisas, tu podes tentar promover o crescimento e
a cuidado ao mesmo tempo, mas uma tem que alimentar a outra,
ou seja, tu precisas ter uma economia competitiva antes dela se tornar
redistributiva em quase todos os países.
José Maria Pimentel
Mas atenção que eu não estou a dizer que nós devemos ter
desigualdade. O que eu digo é que tu para teres crescimento, os
efeitos do crescimento, ou seja, os efeitos de políticas que promovam o
crescimento, isso nem tem sequer que ver com a questão dos Estados
privados. Tens modelos de crescimento que apostam muito no Estado, como são,
por exemplo, os casos das economias do Sudeste Asiático. Têm, normalmente, efeitos
a prazo, e se tu vires na história, tu tens claramente uma...
As economias hoje em dia que são desenvolvidas, por exemplo, têm praticamente
todas elas Estados grandes. Grandes não no sentido regulador, mas no sentido
do estado de providência, do estado redistributivo. Mas para tu... Quer dizer,
há aquela analogia que é muito simplista, obviamente, para distribuires o bolo,
para teres uma fatia grande para distribuir tens que fazer crescer o
bolo primeiro, e é evidente que isso é verdade. Mas se tu
vires, historicamente, as economias todas que se desenvolveram, vieram a ter estados
maiores. Enquanto que economias que tentaram tornar primeiro o estado maior, muitas
delas não se desenvolveram. É um caso óbvio, é um caso um
bocado caricatural, mas é o caso de Cuba, é um caso fácil
para utilizar nesse sentido. Tu tens, por exemplo, o modelo das economias
do Sudeste Asiático que eu estava a falar, é um bocadinho assim,
é um bocadinho o modelo de desenvolver, focar-se imenso em desenvolver, em
gerar crescimento, E depois temos o caso da China, que está a
custar um bocadinho e vai um bocadinho contra esta tese. Mas tem
o caso, por exemplo, da Coreia do Sul, que foi um caso
de uma economia que apostou imenso no desenvolvimento e depois acabou por
se tornar não só uma democracia, como um Estado com muito mais
direitos, que vieram a seguir a isso. O que eu quero dizer
com isto é, em Portugal, para nós termos, nós andamos sempre, se
não tivermos crescimento, andamos sempre à luta, numa espécie de jogo soma
nula, em tentar redistribuir um bolo que já de si é demasiado
pequeno. E nunca satisfará toda a gente, não é? Imagina, agora fala-se
daquela questão da... Não gosto muito de falar da atualidade, mas fala-se
daquela questão das propinas, por exemplo. Independentemente da questão se devemos ter
propinas gratuitas ou não devemos, claramente nós temos um problema de termos
um bolo demasiado pequeno para poder tomar aquela decisão confortavelmente.
Se o
tivéssemos grande, podíamos estar a discutir na mesma, é melhor diminuir, ter
propinas gratuitas ou isso estraga os incentivos, uma coisa qualquer do género,
Mas podias fazê-lo, como os países nórdicos. Nós aqui temos uma... Parece
que estamos a pôr a carroça à frente dos bois. Eu tenho
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
O Estado Social tem a sua invenção própria e no seu momento
próprio, mas não tem a ver, que não tem a ver nem
pode ser ligado, nessa forma causal como tu ligas, à questão da
economia. E, portanto, As economias para crescer sempre precisaram de Estado. E,
na maior parte dos economistas institucionalistas, o que procuram precisamente é estudar
as relações entre o Estado e política industrial que fizeram as principais
economias crescer. E, portanto, essa relação sempre existiu, é preciso política industrial,
a ideia de que o mercado livre produz resultados eficientes é uma
monumental treta. E, portanto, para já há essa questão, não há nenhuma
evidência empírica de que tu não precisas de um Estado para crescer.
Segunda questão, Um dos principais fatores que faz com que Portugal seja
um país estruturalmente atrasado é a sua pobreza. E portanto, é o
facto de ter baixos salários, baixas qualificações, ser especializado em atividades de
baixo valor acrescentado, de ser um país muito desigual no acesso a
serviços públicos e no rendimento, com níveis de iliteracia brutais para o
século XXI, e, portanto, aquilo que tu dizes que só pode vir
a seguir ao crescimento é, na verdade, o que está a impedir
o crescimento. Uma sociedade, é isso que Keynes mostrou também, quando fez
uma teoria e que revolucionou toda a teoria supply-side, da late-sale, da
economia neoclássica que existia antes dele, que é a ideia revolucionária de
que uma economia para funcionar precisa ter procura. E a procura de
sociedades desiguais é uma procura que não permite crescimento económico.
José Maria Pimentel
Mas, espera, desculpa, é… tu disseste aí uma série de coisas, algumas
das quais eu concordo, mas não é bem nisso que eu estou
a falar. Quer dizer, o Kérin tem a ver com a questão
do ciclo económico, Sem dúvida nenhuma, quer dizer, obviamente que o que
ele provou, independentemente depois, devendo a concluir que aquilo não funciona em
todos os casos, provou claramente que o ciclo económico não se reequilibra
da maneira que os neoclássicos achavam. Isso sem dúvida nenhuma. Mas é
assim, eu estava a falar, quando eu falo de... Eu estou a
falar de Estado Social, que é... Que tem um significado particular, não
estou a dizer... Por isso é que eu digo, por exemplo, há
modelos de desenvolvimento económico que se baseiam num papel do Estado muito
ativo, e por isso, aliás, é que os modelos... Eu não dei
o exemplo das economias do Sudeste Asiático, por acaso, porque elas chatearam
muitos economistas clássicos, que achavam que para haver desenvolvimento económico era basicamente
o único modelo era com mercados livres e com o setor privado
a agir. E essas economias mostraram que não é o único modelo
que existe. E eu nesse aspecto sou muito institucionalista. Aliás, no outro
dia estava, por acaso é capaz de sair depois desta, mas estava
a entrevistar o Ricardo Paz Mamedi, falávamos disso e até um bocadinho
disto que estamos a falar agora. O que eu quero dizer é,
aquilo que eu estou-te a dizer isto, no sentido de como alguém
que, completamente fora do sistema político, e que tenta pensar estas coisas,
olha para a visão normalmente de quem se situa à esquerda no
espectro político. E podia fazer críticas idênticas, não, fazer outras críticas em
quem se está à direita, mas sendo tu de esquerda faz sentido
falarmos
José Maria Pimentel
Não, eu sou eleitor, não é? Políticas diferentes sobre… Claro, claro, não
é isso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é,
eu sou eleitor, eu e outras pessoas, ou seja, estou... Somos todos.
Somos todos, claro, exato, mas só estou dos dois lados. O que
eu quero dizer, estou a olhar para o que os agentes políticos,
quer dizer, quem se candidata a deputados e tudo mais, diz, e
aquilo que eu sinto em relação a isso. E atenção, eu estou,
obviamente, a provocar intelectualmente, mas também estou genuinamente a tentar perceber qual
é a tua visão em relação a isso, porque o que eu
vejo muitas vezes vem da coisa de fora. E eu quase, quando
eu digo isto, eu quase devia ser de esquerda. Eu tenho, por
exemplo, mais amigos de esquerda do que direita, tenho um amigo que
diz que eu sou o socialista da Armário, que não é verdade,
não acho que seja verdade. Mas, agora, aquilo que eu vejo, se
calhar posso estar enviesado, mas aquilo que eu acho que falta muitas
vezes é essa, a visão da esquerda. Ou, atenção, se calhar a
visão, aquilo que é dito pela esquerda, não é necessariamente o que
pensa, e daí eu quero falar contigo sobre isso, é a noção
de que para distribuir é preciso nós crescermos e para crescer... Eu
digo-te que Para
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
mais profunda que isso. Há um debate muito interessante que está a
acontecer hoje. Hoje não, tem acontecido desde o pós-crise que é um
debate sobre estagnação secular. Estagnação secular é um termo fundado por, já
há bastantes anos, por um economista americano e ressurgiu no pós-crise porque
ninguém percebia como é que as economias não estavam a recuperar da
crise, apesar de teres uma política monetária bastante expansionista, e toda a
teoria normal prevê que a coisa já estaria bastante mais equilibrada. E
uma grande parte das explicações que surgem sobre porquê que as economias
não estão a recuperar da crise é por causa das desigualdades. E,
portanto, as desigualdades de rendimento que nós vemos, tendemos a ver apenas
do ponto de vista social, mas não são por nome social, são
por nome económico, porque as desigualdades de rendimento têm a ver com
padrões de poupança e com padrões de consumo e padrões de poupança
e padrões de consumo são essenciais para os ciclos económicos e para
o crescimento económico e, portanto, o que se está hoje a teorizar
e gente que tu não esperarias que
José Maria Pimentel
ponto é onde é que está o que corre do processo. Mas
atenção, o que tu disseste, por exemplo, em relação aos Estados Unidos,
concordo claramente contigo, os Estados Unidos é um país que claramente tem
um problema no sentido oposto, e tem um nível de desigualdade, e
uma estagnação de rendimentos da classe média, e que está a criar
imensos problemas. O que eu quero dizer em Portugal é, por exemplo,
Portugal tem um problema de competitividade, Portugal precisa de crescer, ou
José Maria Pimentel
Não, mas eu não estou a fazer esta pergunta como uma armadilha,
eu digo é, obviamente que não vais dizer adoraria ser exatamente aquele
país. Não, mas qual é o país que serve de modelo? Quer
dizer, qual é o... É um país tipo país nórdico, é um
país tipo, lá está, os países sudeste-asiático, é uma economia como Estados
Unidos? Imagino que não, até porque não é comparável com a economia
britânica. Estás a perceber? Nenhuma
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
super competitivos para termos todo um sustento comercial, mas o sustento comercial
tem um déficit comercial em algum lado. A competitividade implica perdedores e
vencedores. Implica estar sempre a tentar não ser o perdedor. Sendo que
Portugal tem, pela sua história, pelas suas deficiências estruturais, pela sua localização
geográfica, todas as condições para sair perdedor numa Europa em que, por
exemplo, está a Alemanha. Querer olhar para Portugal e achar que Portugal
vai ser competitivo como a Alemanha, é pôr uma criança de 5
anos a correr ao lado de um maratonista e dizer, bom, se
tu não
ultrapassas o maratonista a culpa é tua. Portanto, vamos em primeiro lugar
desmontar um bocadinho esta questão da competitividade porque ela tem estas impossibilidades.
O que não quer dizer que Portugal não se possa tornar um
país mais produtivo, mais capaz, especializado em atividades de maior valor acrescentado,
mais autossuficiente em algumas matérias, menos dependente de algumas importações. Acho que
esse é um esforço que todos temos que fazer. E, a mim,
parece-me que há duas coisas que são essenciais. A primeira é política
industrial, política industrial, que era uma coisa que, enfim, costumava fazer os
países crescerem e industrializar-se até que foi banida do léxico político e
económico. E a segunda é qualificações. E eu tenho cá para mim,
é só uma desconfiança, e acho que não sou a única, que
um dos grandes problemas da produtividade e da falta de competitividade Está
na falta de qualificações dos trabalhadores, certamente, mas está também na falta
de qualificações dos patrões. Há uma classe de patrões, uma classe empresarial,
muito pouco qualificada e muito pouco capaz de fazer esse salto de
transformação. E, por outro lado, quando tu pegas naqueles que foram os
maiores empresários portugueses e para quem toda a gente olhava como os
grandes homens de negócios respeitados e tu vais ver quais foram os
seus grandes negócios e foi a compra de empresas na bolsa, empresas
de construção, o assalto às empresas privatizadas, os negócios com a banca
e, portanto, há muito que se lhe diga neste discurso de como
é que um país pode ser mais competitivo, ou mais produtivo, e
nós tivemos esse discurso durante muito tempo, e deu-se liberdade à economia
para fazer o que ela bem entendia, e a verdade é que
os resultados não foram bons, porque uma economia que faz o que
bem entende vai se focar onde dá mais rendimento. E a construção
dava um grande rendimento na altura. E o imobiliário dava um grande
rendimento. E a especulação bolsista dava um enorme rendimento. Porquê que uma
economia liberal não se deve focar na especulação bolsista, por exemplo? Sim.
Então, eu acho que a política industrial continua a ser muito necessária
para nós conseguirmos esse salto de qualidade.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que não é... Foi, depois desenvolveu-se de formas um bocadinho perversas, porque
depois eles criaram aqueles, a Coreia tem aqueles showballs, que são conglomerados
mistos. O que a Coreia fez foi promover conglomerados mistos privados, tipo
o BES, a família Espírito Santo, que eram, tinham banca e não
banca, que eram protegidos pelo Estado e portanto acabaram por levar a
fenómenos muito endógenos e intrínsecos de capitalismo crónico, cronismo de... Sim, sim,
crónico capitalismo. É, de tradução literal, que acabaram depois vir a ser
culpados mais tarde pela... E de rentismo, que acabaram por vir a
ser culpados mais tarde, tendo sido parte do desenvolvimento astronómico daqueles tigres
asiáticos, depois também foram culpados pela crise asiática que vem mais tarde.
José Maria Pimentel
por exemplo, Portugal teve um problema grave de investimento em setores não
transacionáveis. Eu acho que isto é um facto mais ou menos indisputável,
nem é de esquerda nem é de direita, é um facto mais
ou menos evidente. Tu, países como a Coreia, por exemplo, estou a
falar da Coreia do Sul, por exemplo, Samsung, por exemplo, é uma
empresa que, independentemente, eu nem sei as particularidades da Samsung, nem sei
o quanto é que os gestores ganham, não faço a mesma ideia.
Os casos do
José Maria Pimentel
nessa. Eu acredito, se quiseres, eu acho que eu interesse-me suficientemente por
política para não achar que a ideologia é irrelevante, ou que as
orientações políticas são irrelevantes, senão não estaria a fazer esta série. Mas
no fundo, eu não estaria a... Estava a... Lembrando-me de uma metáfora
que se calhar é um bocado tosca, mas vou arriscá-la. Eu acho
que nestas coisas, para mim, a ideologia política, não sendo irrelevante, é
um bocadinho como a tática no futebol. Eu sou do Porto, mas
ligo cada vez menos a futebol, portanto nem sei se o Porto
joga em 4-3-3 ou 4-4-2. Para o Porto, ou para o Benfica,
ou para qualquer outro clube, não é irrelevante a tática com que
joga. 4-3-3, 4-4-2, 4-2-3-1, não é absolutamente irrelevante. Mas é muito mais
relevante a qualidade dos jogadores, o entrosamento dos jogadores, a qualidade do
treinador, a qualidade da instituição, do clube de futebol, isso é muito
mais importante do que a tática. A tática é relevante, uma discussão
sobre a tática não é irrelevante. Aqui, por isso é que eu
digo, mais do que tu vais crescer com o Estado a intervir
mais ou o Estado a intervir menos, deixando as coisas funcionarem sozinhas
ou não deixando, eu não tenho, por exemplo, a ilusão de achar
que Portugal podia alguma vez funcionar, nem esses países tiveram, daí terem
seguido esse modelo. Portugal não tem dimensão para poder funcionar como funcionam
os Estados Unidos nesse aspecto, como é óbvio. Agora, o que é
facto é, Tu tens impedimentos claros à competitividade e a conseguir formar,
entre outras coisas, empresas desse género. Porque não tem só que ver
com investimentos estrangeiros, mas também tem que ver com inovação local. Tens
problemas no nosso sistema legal, no sistema jurídico, tens problemas da burocracia
do Estado, tens muito aquele efeito do... Não sei quem é que
estava a falar... Ah, era com o Varsílio Mendes da Silva que
estava a falar disso, do efeito... Não sei se isto é em
português, é o efeito Ratshot, que é basicamente quando tu, legislativamente, o
que tende a acontecer é que tu tens um enviasamento para acrescentar
e não para retirar. E isso é normal, faz parte da natureza
humana. E nós estamos a gravar no Parlamento e é normal que
isso aconteça, que haja uma tendência maior para acrescentar do que existe
para retirar. E o vento da coisa de fora, quer dizer, se
eu tivesse que... Quando eu penso em Portugal, quando eu penso politicamente
em Portugal, para mim a grande prioridade devia ser tornar o país
mais competitivo. Depois
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
ter um sistema legal mais ágil. Aliás, eu acho que a conversa...
A burocracia é um problema em Portugal, não estou a dizer que
não é, acho que é. Acho que temos dado passos muito importantes
ao longo dos últimos anos nesse sentido, não só da burocracia das
empresas, mas também, por exemplo, da relação dos cidadãos e dos contribuintes
com a autoridade tributária, acho que tem evoluído e é importante reconhecer
as coisas que acontecem em Portugal. Neste momento nós vamos para fora
de Portugal e há poucos países que tenham esta desmaterialização da relação
com o Estado, acho que tem havido passos muito importantes e que
devem ser reconhecidos, esse esforço tem existido. Mas não me venham dizer
que não há investimento em setores produtivos por causa da burocracia e
do sistema legal. Porque o sistema legal é o mesmo para setores
transacionáveis e não transacionáveis. O dinheiro vai para setores não transacionáveis porque
nos setores não transacionáveis há rendas. E o capitalismo é muito bonito,
mas ele vai atrás do lucro mais fácil. Há rendas. Tu tiveste
um boom das energias renováveis, apesar da burocracia e do sistema fiscal
e de tudo aquilo que os liberais usam para dizer que não
há investimento, porque foram criadas rendas nesse setor. Tu tiveste os fluxos
financeiros a irem para a construção porque havia rendas nesse setor, ou
nas empresas privadas porque, privatizados porque havia rendas nesse setor. O problema
não é um problema unicamente de burocracia. O problema está…
Não,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
unicamente. O problema está é que… Eu também… Há outros problemas, este
argumento talvez seja mais fácil de entender, embora eu não ache que
ele seja sequer o mais importante. Mas o Keynes, na teoria geral,
descrevia um bocadinho esta mudança económica que ele acha que acontece com
o desplotar dos mercados financeiros e a financiarização da economia a partir
dos anos 80.
Sim, sim.
É que o Veblen também fala disso, é um institucionalista americano, que
é, às tantas tens uma economia que deixou de ser gerida pela
produção, ou seja, a caricatura é, antigamente o empresário era um homem
que tinha uma empresa e preocupava-se com o processo de produção e
com a produção a longo prazo, um homem, é predominantemente homem, com
a produção a longo prazo e, portanto, era um investimento de longo
prazo em
que
ele sabia que tinha que investir na empresa porque aquela empresa ia
estar ali no futuro. A partir do desenvolvimento dos mercados financeiros, em
que tu podes transacionar empresas muito rapidamente ou de vender dívida de
empresas, o que faz é que tu quebras a relação que havia
entre a empresa e a produção. E a empresa passa a ser
um meio de ganhar dinheiro, independentemente daquilo que produz, E mesmo muitas
vezes em que ganhar dinheiro é contraditório com a produção. Tu tens
sabotagem das empresas. A PT é um caso de sabotagem. Quem geria
a PT preferiu pôr a PT a dar dividendos aos acionistas do
que investir na PT. Isto são incentivos, que são destruções que a
economia de mercado criou e que não ajudam, talvez mais do que
a burocracia, a criar investimentos no setor produtivo.
José Maria Pimentel
Então, eu tinha aqui tomado uma nota há bocadinho, que era gestores
versus empresários, que foi exatamente ao encontro do que estavas a dizer,
porque Isso é absolutamente verdade, e eu se estivesse a falar com
uma pessoa direta estaria a fazer exatamente essa crítica, no fundo é
quase a crítica simétrica, porque a direita tende a falar pouco disso
também. Há um problema, tu tens um problema desde logo que uma
coisa é o empresário, outra coisa é o gestor, e o caso
da PT foi um exemplo óbvio. E Tivemos vários outros que é
pessoas que estão a gerir uma empresa fazendo coisas que nem para
os donos da empresa são boas. Não estamos sequer a falar dos
trabalhadores. Mas às
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ou seja, o BES precisava de dinheiro, A PT vendeu a Vivo
para poder financiar o BEJ, foi um negócio brutal, isento de impostos,
por uma ordem explícita, ou porque distribuíram dividendos antes da mudança da
lei ou qualquer coisa E depois, como venderam a vivo, entraram no
mercado brasileiro através da OE, através da fusão. Me disse para dizer
que nós já tivemos grandes empresas. Já tivemos grandes empresas da indústria
química. A CUF era um império grande antes de ser nacionalizado e
a Quimigal, que depois se transformou naquelas ordens nacionalizadas da Chemical e
das empresas químicas, nós já estivemos de estaleiros, ou seja, nós tínhamos
algum conhecimento adquirido, alguma capacidade nos setores industriais, mas elas foram desmanteladas,
ou por guerras acionistas, ou porque se pensou que estávamos numa nova
era. Isto da União Europeia, a liberalização financeira, serviços, bancos, finanças, era
tudo um mundo novo, um admirável mundo novo. E acho que acabamos
por olhar muito pouco para as nossas… agora já não podemos voltar
atrás, os taleiros estão destruídos.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, tanto a PT como a CIMPOR eram brutais empresas com uma
capacidade de gerar, pois há com uma diversificação de mercados que lhes
permitiam ser relativamente imunos ao ciclo português. Depois com uma outra vantagem
que é, enquanto eram detidas pelos Estados, Repara que o Estado nunca
impediu a internacionalização destas empresas, nunca pediu que elas se desenvolvessem, com
a garantia que os dividendos ficavam na esfera portuguesa e na esfera
pública. A primeira que elas foram privatizadas, tu começas a ter, para
além de distribuir os dividendos para fora e, portanto, estás a piorar
a tua balança de pagamentos porque essa riqueza não fica no país,
tiveste o assalto às empresas. Portanto, a PT como a Simpor não
foram destruídas por dentro. Elas são destruídas pelos seus acionistas, esses sim,
altamente alavancados e altamente endividados, que compraram estas empresas na euforia da
bolsa. Tens o caso do Manel Fino comprar a Simpor, financiado pelo
BCP, durante a guerra do BCP com a outra construtora, a Teixeira
Eduardo, penso eu, não tenho a certeza, em que os dois estão
numa guerra em lados opostos na luta do BCP e ambes para
controlar a Simpor, portanto o FII endivida-se na caixa e no BCP
para comprar a Simpor, e tens no caso da PT o Salgado
que numa situação
tenebrosa
de endividamento que usa a PT para se financiar. Em ambos os
casos, tanto a CPT, tanto a PT, como a CIMPOR vão ao
charco quando os seus acionistas vão ao charco por causa da crise.
As empresas eram boas. A CIMPOR foi vendida aos brasileiros e a
PT foi vendida aos brasileiros. Sim,
José Maria Pimentel
Claro, sim, por isso é que eu digo, voltando àquilo que eu
estava a dizer há pouco, isto é mais que ver, no último
analise, com as instituições. Claro que o problema das instituições, depois é
como é que tu fomentas as instituições, porque depois também é um
bocadinho intangível, e vivo muito da contingência. Mas, já para voltar a
uma coisa que estávamos a falar há um bocadinho, para encerrar isto
da economia, porque eu queria falar contigo também sobre outros aspectos da
política. Eu concordo com o que estavas a dizer, aliás, no outro
dia estava a ouvir um tipo americano, um economista americano que dizia
qualquer coisa deste género, há... I'm pro market but not pro business.
São coisas diferentes e por isso daí eu dizia que tento concordar
contigo. Uma coisa é... É um clássico. Tu seres a favor das
empresas, outra coisa é seres a favor das empresas, sobretudo empresas com
grande poder de mercado. E para mim claramente essa era a crítica
simétrica que eu faria à direita, que é sim senhor, a pessoa
pode ser muito vocal para defender o aumento de competitividade da economia,
mas não podes deixar de ter noção que existem outros fogos a
acudir que no curto prazo são mais graves. No longo prazo podem
não ser, mas no curto prazo são claramente mais graves de iniquidade,
de empresas a tirar rendas e que nós sabemos quais são, não
é preciso dizer. Agora, a pergunta que eu te faria é... É
DP, já
disse. Ah,
pronto. A pergunta que eu te faria era... Tu reconheces a importância
do mercado? Quer dizer, qual é a tua visão em relação... É
uma pergunta um bocadinho aberta, mas qual é a tua visão em
relação aos mercados?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
era um filósofo moral. Claro. Portanto, para ele... Não havia condições na
altura. Pois, exato. E, portanto, entendi que essa era uma visão que
o crescimento pelo crescimento não é... Que a economia serve para gerar
os recursos necessários à vida das pessoas e portanto não era uma
teoria ascética desse ponto de vista, ou amoral desse ponto de vista.
O problema é que à medida que os anos foram passando, e
obviamente isto é muito longo para estar aqui a desenvolver, elevou-se os
mercados a essa ordem natural das coisas. E às tantas, subjugou-se todas
as esferas da vida e todas as esferas das sociedades e das
instituições à lógica mercantil, à lógica do lucro, à lógica da competição,
à lógica da suposta interação livre entre agentes. Sim, o Daniel falava
disso também. O mundo de trabalho passou a ser um mercado de
trabalho, a relação entre os Estados e os bancos centrais passou a
ser uma relação independente e a relação entre o Estado e os
mercados financeiros passou a ser a relação estrutural de financiamento dos Estados
e criou-se as instituições à luz do mercado como ordem natural. Quando
na verdade não há nenhuma ordem natural. Nós que estamos a fabricar
de acordo... Isto é quase uma matrix. Parece uma teoria da conspiração,
mas não é, não é? A sociedade são as instituições que nós
desenhamos. E nós olhamos... Hoje, se eu disser controlo de capitais, vão
dizer que eu sou uma perigosa, perigosíssima radical de esquerda. Controles de
capitais foi um dos mecanismos que trouxe os 30 anos mais prósperos
do capitalismo, do pós-guerra. Tal como muitos outros mecanismos nós hoje nem
pensamos, Porque... Sim,
José Maria Pimentel
Mas, Mariana, há duas coisas diferentes. E atenção, eu vou dizer isto
agora e se calhar legitima um bocadinho aquilo que eu te criticava
no início, da esquerda falar pouco da competitividade. Isso também é muito
visível na linguagem política, que é, há uma certa noção de eu
não posso abrir mão de nada, tenho que me manter absolutamente quadrado
na defesa de uma determinada macro-oposição e, portanto, não posso sequer admitir
hipóteses de controle de capitais se não já deixo de ser free
market, ou não posso deixar... Ou não posso admitir sequer a possibilidade
de renegociação da dívida, por exemplo, porque senão isso... Quando se tu
falares com pessoas não políticas, a opinião é muito mais heterogênea do
que isso. Eu isto posso dizer de experiência própria.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
facilidade em perceber as vezes coisas que fazem sentido, que são uma
questão de bom senso. Mas é normal quando tens um quadro político
ou ideológico muito forte que acabes por ver as coisas de outra
forma. Mas, isto para responder diretamente à tua pergunta, eu acho que
há um espaço para o mercado, eu acho que há um espaço
para o mercado e acho que há um espaço para a propriedade
privada. O que eu me recuso a aceitar é que a propriedade
privada seja o bem ou o direito que se eleva acima de
todos os outros. Nós tivemos uma discussão na Assembleia da República, por
acaso não é um assunto que eu domino, mas estava a ouvir
a discussão sobre armas. Era uma nova proposta do Governo para limitar
o porto de armas porque ainda existe muitos problemas. Pessoas que são
mortas com os pingardas que se tem em casa. Sim, sim, sim.
É um problema grave. Juteiam-se no café. Juteiam-se no café ou, epá,
violência doméstica e formas de assassinar mulheres, às vezes crianças que apanham
as armas, pronto. E nós defendemos, como é lógico, a maior limitação
possível do porto de arma. O argumento da direita é a propriedade.
As armas são das pessoas. As pessoas têm direito à propriedade das
armas. O que é que nós temos aqui? Temos um caso muito
claro em que o direito à propriedade é colocado acima do direito
à segurança comum. O CDS. O CDS com incursões do PSD. Mas
este foi claramente o argumento usado no debate. Ou seja, a propriedade
das armas. Mas
o argumento não é irrelevante, não é infinito. Ou seja, tu podes...
Eu acho que neste caso... Tens uma licença, não é? Estás a
simples quanto tu dizes, não é? Tens uma licença. Ou seja, se
há uma lei que diz... A lei regulamenta. No fundo, a lei
vai apertar ainda a malha das armas que as pessoas podem ter
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Antes daquela cooperativa ser criada e daquela população ter juntado para ocupar
aquelas terras, as terras não eram trabalhadas, ninguém ganhava, ninguém tinha chaves
e os patrões chamavam as pessoas para trabalhar à jorna, portanto escolhiam
o que eles queriam e pagavam em vinho E, portanto, quando se
fez a ocupação e quando se começou a organizar os trabalhadores, as
primeiras coisas que se teve que fazer foi lidar com o alcoolismo
crónico daquelas pessoas que não tinham refeições, que eram pagas em vinho
e que não tinham sequer terra para cultivar, apesar das terras estarem
completamente abandonadas. Vale a pena ver o documentário, é um documentário muito
elucidativo acerca desse momento. E, portanto, sim, eu tenho uma visão sobre
o trabalho cooperativo e a economia cooperativa, em que acho que há
outras formas de organização da nossa vida e da nossa sociedade que
não apenas a imposição da propriedade privada.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
A questão é lógica, quando estás a discutir, tens uma cooperativa, não
é? Mas ali não há uma imposição, ali há um confronto entre
um grupo de pessoas e um coletivo que está a organizar uma
cooperativa para dividir o trabalho entre todos e dividir os recursos entre
todos e óbvio que isso tem confrontos e tem diferentes opiniões e
tens que convencer. O que vemos ali não é um gajo a
bater no outro ou a chamar a polícia porque não quer entregar
a enxada.
O que tu vês ali é um tipo a tentar convencer o
outro que o melhor para ele e para todos é entregar a
enxada. Porque se ele entregar, todos podem usar de tudo e se
ele a mantiver, ele só pode usar a dele. E não pode
usar o dos outros também. E portanto, ali tão... É por isso
que é um clipe tão bom, porque ele mostra bem duas visões
da organização económica. Mas isso quer dizer que as pessoas não podem
ter as suas empresas, que não possa existir propriedade privada, as pessoas
não podem ter os seus bens, o seu carro, a sua casa.
Bom, calma aí, não é? Acho que isso nunca foi proposto. Agora,
o que se propõe é uma ideia tão radical como nem tudo
tem que ser a lógica do mercado, nem tudo tem que ser
a lógica da propriedade. Há outras formas de organização que acho que
são interessantes.
José Maria Pimentel
mas é assim. Em Portugal tens um papel do Estado, por exemplo,
que entre o papel atual e o papel nulo havia uma distância
enorme.
É verdade,
mas também... Não quer dizer que não exista quem queira isso. Mas
deixa-me fazer-te uma pergunta concreta e com menos carga emocional do que
a questão da Torre Vela. Eu acho que a esquerda tem uma
direita, uma relação difícil com o empreendedorismo, que é curioso. Eu até
partilho um bocadinho dessa ideia, porque irrita um bocadinho o termo, irrita
um bocadinho aquilo que às vezes é construído à volta daquilo, e
aquele, para lei, um bocadinho o vácuo que é construído à volta
disso. Até reconheço, como é muito típico nestas coisas, às vezes houve
coisas em que se avançou rápido mais sem os devidos cuidados e
assim uma retórica um bocado excitada e, por exemplo, até aquele livro
do José Soeiro, Sabe o Erro, sobre o empreendedorismo, que eu acho
que é um trabalho muito útil para perceber aquilo. Dito isto, eu
não tenho a mínima dúvida de que o empreendedorismo, ou o que
quer que lhe queiramos chamar, é bom para o país. E a
exceção que eu tenho É que a esquerda tem uma relação difícil
com o empreendedorismo, ou é mentira?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, é que isto não são caricaturas, porque quando tu de repente
tens uma vaga em que tudo é empreendedorismo, de repente havia aulas
de empreendedorismo para bebés, nas creches, na escola primária. O que o
empreendedorismo faz é quebrar as relações de trabalho. É dizer, se vocês
são todos empresários em nome individual, é o que acontece com a
Uber. É a Uberização da economia. Vocês trabalham para uma grande empresa,
ganham pouquíssimo, estão dependentes de uma grande empresa, pagam uma porcentagem à
grande empresa, mas são trabalhadores em nome individual e a grande empresa
não tem nenhuma responsabilidade para convosco. Portanto, isto é empreendedorismo.
José Maria Pimentel
Então vou fazer uma pergunta mais difícil e depois vamos passar a
outra coisa. Esta é mais difícil porque é concreta. Eu lembro-me de
estar a falar uma vez com um amigo que tinha lançado, ele
agora está na Suíça, tinha lançado uma empresa e ele dizia, e
é um tipo completamente apolítico, ou seja, nem pensa nisso, quer dizer,
não havia ali nenhuma carga ideológica, ele dizia pá, eu tive a
empresa e aquilo foi uma dor de cabeça brutal, porque eu tinha...
A lei laboral era brutalmente rígida, ou seja, eu não tinha... Eu,
dois, duas, uma, ou não tinha pessoas... Mas cá, lá? Cá, cá,
cá. Ou para acheter tinha que... Quer dizer, tinha que me chegar
à frente e depois se aquilo corresse mal, se eu não ficasse
satisfeito, ia ter um problema grande. E eu achei curioso, quer dizer,
não foi muito longe de ser o único caso desses. Este tem
a vantagem para mim, em termos de ser verosímil, por me ter
sido contado em primeira pessoa. E a questão é, há uma maneira
de resolver isto, ou seja, tu podes ter um mercado de trabalho
que seja mais liberalizado no sentido de as empresas terem facilidade de
despedir pessoas quando for caso disso e essas pessoas não deixarem de
ser protegidas quando estão despedidas. Mas o que eu vejo... Chamou-se
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
quero... Eu compreendo perfeitamente, eu sei que muitas vezes parece que não,
mas eu compreendo que uma pequena empresa, as regras afetam de forma
diferente pequenas empresas e grandes empresas. O problema é que nós não
podemos ter leis para pequenas e para grandes empresas E a verdade
é que não podemos, em nome da maior flexibilidade das pequenas empresas,
criar um offshore laboral para as grandes empresas. Porque eu até admito
que em muitas pequenas empresas se paga melhor, Haja uma melhor relação.
Depende, depende das pequenas empresas. Uma coisa são, lá está, uma coisa
são pequenas empresas que surgem agora. Outra coisa são ainda pequenas e
médias empresas do setor industrial, ou têxtil, ou do calçado. Algumas renovaram
e pagam bons salários e têm boas relações laborais. Outras são um
buraco de abuso, de mau salário, de más condições de trabalho, etc.
Mas o que nós não podemos é, em nome da flexibilidade das
pequenas empresas, de estruturar ainda mais as relações de trabalho entre os
trabalhadores e as grandes
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não corre! Porque estas pessoas não fazem pior, ou seja, estas grandes
empresas não fazem pior, não fazem isto, porque a lei não lhes
deixa fazer melhor, elas fazem tão mal quanto a lei lhes permite
ir fazer. Porque é isso que lhes dá mais lucro. Não compreendo.
Esta malta é tão liberal, tão liberal, não estou a falar do
teu caso, mas estou a falar normalmente de contínuas discussões, tão liberais.
Acham sempre que isto é o princípio do egoísmo social e de
quem tem mais lucros e da competitividade, mas depois crêem nas boas
intenções das empresas face à sua relação com os trabalhadores. É lógico,
para uma pequena empresa cuja produtividade depende de um bom ambiente da
empresa, de trabalhadores qualificados, isto não se aplica. Mas para um continente
ou para um Pingo 12, ou para um call center, ou para
uma grande parte das grandes empresas em Portugal, estas leis aplicam-se. São
elas que protegem o trabalho. Mas
José Maria Pimentel
tu não consegues quadrar esse círculo? Tu tens que ter maneira, por
exemplo, o Continente, vou usar, é o exemplo até de São Países,
que é uma empresa muito grande, muito ligada a muita logística, com
muito peso do fator trabalho, portanto com muita gente, mas estará pessoas
com produtividade variável, por exemplo. Mas eu
José Maria Pimentel
Claro, não, atenção, quando se fala em limites de direitos humanos, obviamente
estamos a falar disso. O que eu digo é, para tu teres
uma economia eficiente, Para tu casares a eficiência da economia com liberdades
positivas, tens obviamente que ter um Estado que ampare, ou tens um
Estado que não deixas pessoas aos caídos, como é lógico, mas tens
que manter uma relação laboral que existe baseada em alguém que está
a trabalhar, ou seja, que está a dar o fator de trabalho,
e alguém que está a remunerar o fator trabalho. Quer dizer, essa
relação existe. Aquele exemplo que tu davas há pouco, de dizer em
altura de crise as empresas não podem despedir. O
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Depende, depende, mas que é a ameaça permanente. Mas eu não acho,
aliás, não só não acho que seja assim, como mais uma vez
volto a períodos da história em que as relações laborais foram bastante
mais protegidas e em que houve gloriosos anos 30, houve um reganhar
de poder dos sindicatos, até por oposição na Guerra Fria, por oposição
ao Bloco Soviético, em que esse reganhar de poder, essa ascensão dos
sindicatos, essa capacidade negocial, esse aumento salarial e de regras laborais, conseguiram
proteger e permitir uma economia mais produtiva.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ah, de...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
apesar de que depende da esquerda, depende dos partidos em si, eu
não sou obrigada a concordar com as ideias de todos os partidos
de esquerda e, portanto, há partidos com os quais posso concordar. Mas,
pode, no caso português, quer dizer, foi o Chilese, não é? Não,
mas é que não é bem assim. A esquerda defende o povo.
A esquerda defende um princípio de justiça social e de justiça económica
e tem uma visão do mundo completamente diferente da visão liberal. Há
quem ache que a sociedade ideal é uma sociedade de competição e
que se tiver pobreza terá, e que se tiver desigualdades terá, e
que isso é feito em nome de uma economia de mercado.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
As escolhas que nós fazemos a cada momento, nós escolhemos os programas
com os quais nos identificamos, a mensagem conta, a posição em assuntos
particulares conta, às vezes as coisas não têm a ver com a
nossa posição na economia. Houve vários momentos nesta legislatura em que houve
geometrias muito variáveis. O debate da eutanásia,
por
exemplo, a legalização da cannabis, enfim, autodeterminação de género e, portanto, tudo
isso são matérias que não estão necessariamente ligadas ao sistema produtivo e
económico e que contam. Mas há uma, isto não é nenhuma teoria
da conspiração, há uma dominação ideológica, a ideologia neoliberal domina as sociedades
contemporâneas ocidentais. Domina. E, portanto, quem defende a mensagem dominante está em
vantagem, porque só tem que defender aquilo que as pessoas já conhecem
e aquilo que lhes é dado de todos os lados. Mas eu
não
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, vai...
José Maria Pimentel
A esquerda, por exemplo, uma coisa engraçada, eu acho que tem um
equilíbrio saudável. É que tu tendes a ter o tecido produtivo dominado
por pessoas mais de direita, quer dizer, acho que não é muito,
não tenho claramente dados para isto, mas acho que não é grande
exagércia o que eu disser, mas por exemplo a opinião publicada tende
a estar mais à esquerda, e até vejo isso nas redes sociais,
vejo isso até porque tendem a ter mais intelectuais de esquerda do
que direita, o intelectual de direita é uma raridade, por exemplo. Ai,
José Maria Pimentel
puzzle. Eu lembro-me de ouvir uma coisa quando era miudista, quando era
mais novo e começava a interessar-me por estas matérias. E lembro-me de
ouvir mais do que uma vez pessoas dizerem, amigos meus ou pessoas
conhecidas, dizerem, de esquerda, e dizerem qualquer coisa deste género, que era
um bocadinho inocente, eu admito que a pessoa depois esqueça disso, mas
é a dizer aquela história de dizer, é tão evidente que a
razão está à esquerda, que no fundo quem não vê coisa assim
ou está mal intencionado, ou é burro, ou está mal informado. E
isso era muito comum, e eu acho que a esquerda tem esse
problema, verdadeiramente, estou a dizer isto agora, não para te provocar, mas
porque acho mesmo que esse é eleitoralmente uma coisa que às vezes
funciona mal, que é transmitir uma certa sobrançaria, uma certa... Um certo
direito, às vezes houve-se aquela crítica quase como se fosse um direito
divino a governar.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Eu tenho muita dificuldade em analisar isto assim. Agora, que eu acho...
Porque é que eu acho que isso existe? Tu tens desde os
anos 70 uma... Tu nos anos 70, quando tiveste o Reagan e
a Thatcher, tiveste uma mudança sistémica e estrutural na organização do sistema
capitalista, tiveste o início do neoliberalismo, Foi aí que começou a perda
de poder dos sindicatos, a
estagnação
salarial, a finança, os mercados livres, a economia de mercado, começou nos
anos 70 desta forma. E ao longo destes anos, a esquerda, as
desigualdades salariais, a destruturação do Estado Social, etc, etc. E ao longo
destes anos, a esquerda, a mais variada esquerda, ou seja, a esquerda
mais radical, a socialdemocracia tradicional foi dizendo, isto não vai funcionar, isto
é um sistema de crise, isto é um sistema instável, Isto é
um sistema que não vai dar resposta. Isto não... Quase até parecia-me
um bocado erótico da desgraça. E a verdade é que este sistema
está cheio de buracos. E só que os seus promotores estão tão
viciados nele e tão embranhados nele que não o conseguem ver ou
admitir. Portanto, aquilo que parece a arrogância da esquerda, que tem sempre
razão, é, acho a minha interpretação, pois cada partido terá o PCP
ter a sua arrogância, porque tem a sua idade, a sua história,
a sua história de condicionidade, porque tem… enfim, tem o seu passado.
Por acaso, sim, acho o PCP menos arrogante até. Talvez por esse
passado, talvez por essa… Cada um terá a sua interpretação. Mas muitas
vezes tem a ver com isso mesmo, tem a ver com a
posição de quem acaba por estar muitas vezes a criticar, porque está
no papel de que não está a decidir as políticas, mas está
a criticar as políticas que são feitas, e muitas vezes já agora
com razão, deixe-me dizer-te, porque muitos disparatos foram sendo feitos. Sim, imagino
que é. O que não quer dizer que não possamos estar do
outro lado, ou que não possamos participar naquilo que está a ser
feito. E portanto, acho que é uma explicação possível. De resto, serão
sempre estilos pessoais, que às vezes são caricaturas que são feitas. Muitas
vezes criou-se essa ideia da esquerda um bocado para descredibilizar também e,
portanto,
José Maria Pimentel
enfim. Há outro aspecto que eu acho que causa também essa aparente
puzzle, que isso não seria possível mas da esquerda vão ganhar as
eleições todas, que tem que ver, e nesse eu sou mais solidário,
que tem que ver, isto no caso particular português, como a certa
aversão à mudança. Eu tenho esta teoria, que já não é a
primeira vez que falo dela, sobretudo no caso português, mas acho que
não é só no caso português, a esquerda tende a estabelecer o
debate político, ou seja, a esquerda é que traz a proposta para
a mesa e estabelece aquilo que vai ser discutido em todas as
matérias, seja de economia, seja de costumes, de tudo mais, lá está.
A altura da crise foi um bocadinho uma exceção nesse aspecto. E
há uma certa aversão, Tu vês isso, por exemplo, com matérias de
costumes, é muito visível. E dizem, estão estes gajos outra vez. Agora
querem mudar aquilo.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
as coisas de outra forma. Tu tens a esquerda progressista e tens
os conservadores. Os conservadores querem conservar. É o que fazem, conservam as
coisas. E, portanto, é isso que existe. E, no caso dos costumes,
esta diferença nota-se muito entre os progressistas, quem quer sempre avançar em
mais direitos, em mais liberdades, em novas formas de organização da sociedade,
e quem está muito preso a modelos do passado, à manutenção da
ordem como ela é, da vida como a conhecemos. Mas
José Maria Pimentel
Sim. E tu, enquanto tu, não só pessoa de esquerda, mas enquanto
agente política, tu és sensível a essa, como é que eu ia
dizer, a essa aversão à mudança da parte do eleitor? Ou seja,
a noção de que, independentemente de haver uma série de mudanças sociais
que a pessoa acha que são boas, pode haver constrangimento em termos
de timing. Ou seja, se nós formos demasiado apressados nelas, podemos estar
a...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ah, como é lógico, não é? Quer dizer, a sociedade tem os
seus tempos, tem as suas maiorias, os seus momentos, mudar a sociedade
é isso mesmo, são coisas dinâmicas e as maiorias de hoje não
são as maiorias da manhã. Eu lembro-me quando começou a crise, nós
na altura, desde o início, pá, temos uma denúncia muito forte das
políticas de austeridade e sobre a necessidade de reestruturação da dívida. Caluteiros!
Caluteiros! Não querem pagar a dívida e não querem ajustar as contas
públicas. Passado 10 anos, tu tens os maiores economistas mundiais a dizer,
bom, se calhar uma reestruturação da dívida teria sido uma forma bem
melhor de lidar com a crise e a austeridade se calhar foi
um disparate.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
menos detestado. Acho que por acaso, contrariamente a...
A sério?
Querias uma
opinião pessoal? Então vamos acabar da
melhor maneira. Querias uma opinião pessoal? Não, eu percebi a importância do
Varoufakis e acompanhei o processo grego com muita esperança e muito perto.
Eu fazia parte daquele grupo de ingénuos e disse-o em público e,
portanto, também já fizesse meia-culpa, que achava que as instituições europeias, quando
confrontadas com um governo democrático e soberano e democraticamente legitimado, iriam ceder.
Nunca achei que a chantagem chegasse a estes níveis e eu própria
fiquei chocada com o que se passou. E nunca mais consegui olhar
para a Europa da mesma forma, para as instituições europeias da mesma
forma. Mas, independente desta análise, por acaso nunca achei que o estilo,
que a tática do Varoufakis fosse
José Maria Pimentel
acho um tipo ultra-inteligente, por isso é que Eu sou um bocado
sensível a esses aspectos e sempre gostei de um tipo de outro
inteligente, embora fosse um bocadinho leviano em algumas coisas, mas pode-se dizer
que tu ali tinhas um grande problema. O processo estava todo mal
construído de início e tu tinhas o problema de que, para todos
os efeitos, a Merkel era eleita, e seria eleita, ou viria a
ser eleita se voltasse a candidatar, pelos eleitores alemães. E é um
problema... Porque não é direita nem de esquerda, é um problema da
arquitetura daquilo desde o início. Mas enfim, bom... Vamos terminar e eu
vou te pedir a... Olha, eu ia te fazer uma pergunta no
final, quase que me respondeste, ia te perguntar se tinhas alguma coisa
em que não te sentisse de esquerda. Se calhar eu não sou
grande fã de levar o fax. Pá, pá, pá, pá, calma aí,
calma aí, calma aí. Eu, como te disse, não estou a justificar.
Eu não gosto do estilo de levar o fax, mas é óbvio
que apoiei o
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
governo e a sua... E que pena, eu achei que tu fosse
dizer espera, espera, espera, eu tenho outras coisas em que não me
sinto de esquerda. Não, pá, não, sabes que... Muitas vezes acham que
isto é tudo uma cartilha que a gente engole e... Por isso
é que eu estou... Eu acho que esta pergunta gira nesse aspecto,
porque... E eu acho que É uma forma de estar na vida.
Eu penso assim, esta é a minha estrutura de pensamento, eu aprendi
a olhar o mundo assim. E isso não faz com que eu
concorde sempre com tudo. Mas eu tenho a minha análise, tenho a
minha grelha de análise com que concordo o mundo. Mas
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
E não me lembro de mais nenhum a não ser este. Talvez
seja adequado ao momento em que vivemos. Por acaso, são dois livros
engraçados. Sobre dois antípodas... Não sei
se
eram antípodas... Há um livro chamado As Benevolentes, que é um livro
nada levezinho, nem em tamanho, nem em profundidade. Que é um livro,
para quem já ouviu, é um livro vermelho, assim, grosso e grande,
que é escrito por um francês, Jonathan Littell, e que fala basicamente...
O Livro dos Benevolentes é a história de um soldado e membro
do exército... Das SS, do exército nazi. Sim. E que conta, para
além da história pessoal dele, conta toda a passagem dele ao longo
da Segunda Guerra pelas diferentes frentes do exército nazi. O tipo é
um soldado raso ou um soldado com pouco poder, depois vai para
um campo de concentração planear, é o tipo que planeia como é
que nós minimizamos os recursos que precisamos para matar os judeus, como
é que se mata mais os judeus, é produtividade no fundo, como
é que se mata mais os judeus com menos recursos, dirige um
campo de concentração, está na frente de batalha com os russos e
é um livro pesado, historicamente muito bem fundamentado, muito bem escrito, que
tem uma mensagem por trás que é sobre a banalidade do mal.
Ou seja, como é que tu olhas para aquele homem e até
te relacionas com ele, ou seja, é um homem, é um ser
humano, é uma pessoa com sentimentos que até nem sempre concordou com
aquilo que estava a ser feito mas a verdade é que ele
estava dentro da engrenagem que estava a produzir aquilo, que estava a
matar aquelas pessoas, que estava... Como é que tu consegues criar um
regime de alienação tão grande em que tu banalizas este nível de
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
por ti estás a deixar que se prendam pessoas inocentes ou estás
a deixar que se abuse do poder em nome dessas tais ideias
e elas acabam invariavelmente em regimes absolutistas. E, curiosamente, e para que
não digam que eu não tenho uma visão abrangente da literatura, o
pai deste Jonathan escreveu um livro muito bom que se chama Epigrama
de Staline, que é um livro sobre a loucura do stalinismo e
a perseguição que o stalinismo fez. É um bocadinho oposição, embora com
características muito diferentes, atenção, muito diferentes, não vamos comparar uma coisa com
a outra, mas a oposição que o estalinismo fez a todo o
grupo intelectual livre, bem, para além da oposição que fez a muitas
outras pessoas que não pensavam como ele, que a enviou para campos
de trabalho forçado. E, portanto, é a luta dos intelectuais livres com
o regime de Stalin e com a sua violência. Tu
José Maria Pimentel
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João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Ricardo Santos, Nelson Teodoro, Paulo
Ferreira e Duarte Dória, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos
nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!