#48 [série Orientações Políticas] Mariana Mortágua - Esquerda: uma visão para a economia e...

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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Antes de mais, como terão reparado, na semana passada não lancei nenhum episódio. Acho que tenho uma desculpa legítima porque foi uma semana em que tive que me dedicar a algo mais importante do que o podcast, sem desprimor para o podcast, porque às 13h45 da madrugada de terça-feira nasceu a minha filha. Esta conversa é com o Mariana Mortágua que é, como todos sabem, economista e deputada do Bloco de Esquerda. E foi uma conversa desafiante a vários níveis. Por um lado, claro, porque a convidada tem um pensamento político inegavelmente sólido e por isso a convidei para o podcast. Por outro lado, porque a Mariana é provavelmente o convidado desta série de quem estou mais distante politicamente no que diz respeito a uma das questões mais importantes em política, a liberdade económica. Estou bem menos distante noutros aspectos e, por isso, aliás, ocupámos grande parte do tempo a discutir a questão da economia. Neste contexto, isto foi talvez, sobretudo na parte inicial, o episódio em que mais se aproximou de um debate, o que me gerou alguma hesitação na gestão da conversa. Tentei, não sei se com sucesso, equilibrar dois pratos da balança. Por um lado, manter-me fiel ao princípio base deste podcast, que é tentar compreender um determinado tema, e por isso aprender com cada convidada, e esse princípio, claro, obriga-lhe a dar espaço ao convidado e, sobretudo, a recebê-lo de mente aberta. Por outro lado, no entanto, tentei também ser genuíno e assertivo na expressão das minhas ideias, quando divergentes das da convidada, e dar também o contraditório necessário. E esse contraditório, quando o tema é política, torna-se mesmo necessário. Porque como todos sabemos, e aliás fica patente nesta série de episódios, duas pessoas igualmente inteligentes, informadas e bem intencionadas podem chegar a visões antagónicas em relação ao mesmo tema. Isto explica-se, claro, pela importância que têm nesse julgamento os diferentes valores individuais de cada um, mas também pela própria complexidade dos factos em análise, que em política são os milhares de aspectos da vida em sociedade e, portanto, de uma complexidade quase infinita. Durante esta intensa 1 hora e 20 minutos conversámos então sobre vários assuntos. Comecei por perguntar ao convidado sobre a formação do seu pensamento político, que começou em ambiente familiar através do pai, Camilo Mortágua, uma das principais figuras revolucionárias antisselazaristas e a quem aliás regressámos durante a conversa, pois eu não sabia, mas esteve ligado a um dos momentos mais conhecidos do PREC. Como já disse, então falámos muito de economia política, começando numa questão que, para mim, devia ser o elemento mais prioritário da política económica em Portugal. A procura, a todo custo, de maior crescimento económico, de forma a libertarmos de uma vez por todas do fato de andar sempre a discutir a forma de repartir entre todos um bolo que é de si já demasiado pequeno. Do meu ponto de vista, a evidência empírica, que acho que deve sempre valer mais do que aquilo que gostaríamos que fosse a realidade, sugere claramente que países com mais liberdade económica tendem a ser os mais desenvolvidos economicamente. A convidada naturalmente tem uma visão diferente, o que deu uma discussão muito interessante durante a qual abordámos uma série de outros tópicos, como por exemplo as causas da falta de competitividade da economia portuguesa, os méritos e os deméritos dos mercados, alguns maus exemplos notórios que têm vindo nos últimos anos do mundo dos negócios em Portugal, a crítica da convidada à financiarização da economia nas últimas décadas, a importância para a convidada de ter grandes empresas nacionais, a, para mim, importância do empreendedorismo, o papel regulador do Estado, nomeadamente no mercado de trabalho e ainda aquilo que é convidado a ver como a mercantilização crescente da sociedade. Fora do âmbito da economia falámos ainda dos problemas da zona euro e das políticas da austeridade, do conservadorismo social, que também existe em alguns setores da esquerda, o aparente paradoxo do facto de a esquerda não conseguir traduzir numa hegemonia eleitoral persistente o predomínio cultural e intelectual que tipicamente tem e um discurso focado na promoção dos direitos que devia cativar a maioria. E pronto, escusar-te-será dizer que foi um episódio muito rico, agora só mesmo ouvindo. Então vá, vou começar isto, eu vou te fazer uma... Eu acho que a maneira mais gira de começar isto é começar por te pedir para te definires politicamente quase misturando um bocadinho a tua visão com o caminho que te fez chegar a essa visão. E depois partimos daí. O que é que tu achas? Eu venho de uma família de
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esquerda, mas o meu pai não tem uma esquerda teoricamente fundamentada. O meu pai é muito mais um anarquista circunstancial do que propriamente um grande estudioso da esquerda mais doutrinária. E entro no Bloco pelos movimentos sociais e foi nos movimentos sociais que eu fiz a minha aprendizagem de esquerda. E, portanto, sempre fui por um lado muito mais prático. O que é o feminismo? Luta antirracista, os direitos humanos, etc. E foi só quando cheguei ao Bloco, e essa é uma falha da minha formação inclusiva, provavelmente teórica, mais antiga, ou quando eu era mais nova, foi só quando cheguei ao Bloco que comecei a ser confrontada com a variedade de correntes de esquerda teórica, que depois acabei por ir aprofundando, não só na minha vida política, como enquanto economista. E portanto, eu nunca me consegui definir com nenhuma etiqueta derivada de…
José Maria Pimentel
Estou a perceber, sim. A prática surgiu antes da teoria, de certa forma. De nenhuma
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teoria ou nenhuma filosofia de esquerda. Mas, repara, ao dizer isto, eu não olho com nenhum tipo de crítica a quem se denomina mais marxista, ou trotskista, ou leninista, ou enfim, seja qual for a corrente que segue, até porque eu se não, se se acabe por não conseguir autodenominar-me assim, é porque acho que bebi de todos esses lados. E tendo bebido de todos esses lados e misturando muito as teorias políticas, as teorias da organização de partido, com a minha experiência mais académica e com teorias mais académicas acho que fui bebendo um bocadinho dessa mescla de diferentes perspetivas sempre num lado muito à esquerda, isso é evidente.
José Maria Pimentel
Eu te sei, quando fiz essa pergunta eu estava a falar da pergunta que ia fazer, mas depois de começar a falar, e portanto ficou, já estamos a gravar, ficou a valer, mas quando estava a fazer essa pergunta não estava a pedir-te um carimbo, até porque não acho graça nenhuma, é isso que é caricaturar, a pessoa estava a perguntar, não é dizer eu sou trotskista, eu sou...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, mas há carimbos que são sérios, atenção, quer dizer, quando alguém se define marxista... Certo, certo. Esse não é um carimbo que seja caricaturável, marxismo é uma ideologia tão válida como...
José Maria Pimentel
Mas não se fica por aí, não é? Quando alguém pode começar por dizer, eu sou marxista, mas não vai ficar por aí, vai
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dizer, eu sou... Se me perguntares, eu sou marxista no sentido em que acredito em relações capital-trabalho, e em relações de poder entre capital e trabalho, e acredito em exploração, e acredito numa necessidade de emancipação e de luta contra uma opressão de uma classe capitalista, eu acredito em classes. Nesse sentido, poderia dizer que sou marxista. Tenho depois outras questões mais teóricas com o marxismo, mas, portanto,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
eu acho que não devemos desvalorizar as caixinhas. Sim, em relação a isso do marxismo e a fisa, é tentador fazer aquela conversa de associar marxismo ao comunismo, que era o
José Maria Pimentel
que alguém numa imposição faria, não tenho grande paciência para isso, o que eu acho... Ou seja, acho que isso acaba por ser muito menos... Por ser pouco útil para perceber no fundo qual é... Ou seja, independentemente da história do marxismo, dos regimes a que esteve associado, o que eu achava interessante discutir contigo, para este caso, ou seja, para o caso de Portugal, vendo a coisa de fora, quer dizer, vendo a atividade política que eu conheço e vendo o papel que partidos como o Bloco têm tido. Aquilo que eu acho alguma dificuldade de compreender, eu concordo em muitos aspectos, quer dizer, como estava a dizer há bocadinho, concordo, a minha posição está muito na mesma linha em matérias de costumes, por exemplo, e costumes não é só causas fracionantes, ou seja, tem muito a ver com a liberdade da pessoa fazer o que quiser, com... Toca, por exemplo, a questões de género, de forçar uma espécie de uniformização das pessoas e cada um ser fazer o que... Ser como quiser. Aquilo que eu, de Uma perspectiva mais macro, aquilo me faz a impressão, olhando para um país como Portugal, isto não é verdade para outros países, mas no caso de Portugal, e eu achava interessante ter a tua opinião em relação a isso, no caso de Portugal, para mim parece-me evidente que para nós conseguirmos resolver, para nós nos conseguirmos tornar um país sustentável, e isso até tem que ver com a nossa independência, a nossa independência está, e eu sou mais ou menos insuspeito de dar grande prioridade a nossas questões patrióticas ou nacionalistas, mas tem também que ver com a nossa independência, tens que apostar no crescimento, ou seja, obviamente que a questão das liberdades positivas é essencial e precisas de um estado de providência, ou o que lhe queiras chamar, mas um estado de redistributivo e que permita dar, lá está, não só as liberdades negativas, que têm muito a ver com as questões de costumes que eu falava há pouco, mas também as chamadas liberdades positivas, não é? As pessoas, não só ninguém as impedir de fazer, mas também terem as condições para fazer o que quiserem, isso tem a ver com a educação, a saúde e uma série de coisas, mas o meu modelo mental, o modelo que eu sigo, vê o crescimento a surgir antes disso. É óbvio que tu vais dizer-me, sim, tu podes tentar promover as duas coisas, tu podes tentar promover o crescimento e a cuidado ao mesmo tempo, mas uma tem que alimentar a outra, ou seja, tu precisas ter uma economia competitiva antes dela se tornar redistributiva em quase todos os países.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Minar o crescimento económico e atirar as economias para crises.
José Maria Pimentel
Não, a desigualdade não está. Está.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Como? A desigualdade está. Ou seja, tu tens em mente um liberal e, portanto, tu achas que primeiro vem o crescimento e que o crescimento é proporcionalmente inverso à igualdade e, portanto, para ter crescimento nós podemos sustentar desemprego, ou podemos sustentar baixos salários, ou podemos sustentar uma… podemos abdicar de certos direitos em nome de um crescimento.
José Maria Pimentel
Não, não é isso, não é esse o meu ponto. E depois
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
é curiosamente antagónico e contraditório com a ideia de que tu obtens crescimento com desigualdade, mas quando cresceres vais ser equalitário. Quer dizer, isto é contraditório nos termos. Não, tem a ver com o prazo.
José Maria Pimentel
Basicamente tem a ver com o meu ponto.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não há economia mais doente do que economia desigual. Essa economia não é capaz de crescer e mesmo se crescer, as economias não crescem por crescer, elas crescem para garantir direitos e, portanto, uma economia que se alimenta da desigualdade é uma economia podre, como aliás a história nos mostra.
José Maria Pimentel
Mas atenção que eu não estou a dizer que nós devemos ter desigualdade. O que eu digo é que tu para teres crescimento, os efeitos do crescimento, ou seja, os efeitos de políticas que promovam o crescimento, isso nem tem sequer que ver com a questão dos Estados privados. Tens modelos de crescimento que apostam muito no Estado, como são, por exemplo, os casos das economias do Sudeste Asiático. Têm, normalmente, efeitos a prazo, e se tu vires na história, tu tens claramente uma... As economias hoje em dia que são desenvolvidas, por exemplo, têm praticamente todas elas Estados grandes. Grandes não no sentido regulador, mas no sentido do estado de providência, do estado redistributivo. Mas para tu... Quer dizer, há aquela analogia que é muito simplista, obviamente, para distribuires o bolo, para teres uma fatia grande para distribuir tens que fazer crescer o bolo primeiro, e é evidente que isso é verdade. Mas se tu vires, historicamente, as economias todas que se desenvolveram, vieram a ter estados maiores. Enquanto que economias que tentaram tornar primeiro o estado maior, muitas delas não se desenvolveram. É um caso óbvio, é um caso um bocado caricatural, mas é o caso de Cuba, é um caso fácil para utilizar nesse sentido. Tu tens, por exemplo, o modelo das economias do Sudeste Asiático que eu estava a falar, é um bocadinho assim, é um bocadinho o modelo de desenvolver, focar-se imenso em desenvolver, em gerar crescimento, E depois temos o caso da China, que está a custar um bocadinho e vai um bocadinho contra esta tese. Mas tem o caso, por exemplo, da Coreia do Sul, que foi um caso de uma economia que apostou imenso no desenvolvimento e depois acabou por se tornar não só uma democracia, como um Estado com muito mais direitos, que vieram a seguir a isso. O que eu quero dizer com isto é, em Portugal, para nós termos, nós andamos sempre, se não tivermos crescimento, andamos sempre à luta, numa espécie de jogo soma nula, em tentar redistribuir um bolo que já de si é demasiado pequeno. E nunca satisfará toda a gente, não é? Imagina, agora fala-se daquela questão da... Não gosto muito de falar da atualidade, mas fala-se daquela questão das propinas, por exemplo. Independentemente da questão se devemos ter propinas gratuitas ou não devemos, claramente nós temos um problema de termos um bolo demasiado pequeno para poder tomar aquela decisão confortavelmente. Se o tivéssemos grande, podíamos estar a discutir na mesma, é melhor diminuir, ter propinas gratuitas ou isso estraga os incentivos, uma coisa qualquer do género, Mas podias fazê-lo, como os países nórdicos. Nós aqui temos uma... Parece que estamos a pôr a carroça à frente dos bois. Eu tenho
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
dificuldade em perceber onde é que é chegar, porque... Tenho muita, mesmo muita, para já porque não há nenhuma evidência empírica que sustente essa tese de que os países primeiro cresceram e depois tiveram Estados. O Estado está no princípio de tudo, está inclusive no princípio da moeda, que é aquilo que fazes.
José Maria Pimentel
Mas o Estado Social, como em Tom Humberto,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
O Estado Social tem a sua invenção própria e no seu momento próprio, mas não tem a ver, que não tem a ver nem pode ser ligado, nessa forma causal como tu ligas, à questão da economia. E, portanto, As economias para crescer sempre precisaram de Estado. E, na maior parte dos economistas institucionalistas, o que procuram precisamente é estudar as relações entre o Estado e política industrial que fizeram as principais economias crescer. E, portanto, essa relação sempre existiu, é preciso política industrial, a ideia de que o mercado livre produz resultados eficientes é uma monumental treta. E, portanto, para já há essa questão, não há nenhuma evidência empírica de que tu não precisas de um Estado para crescer. Segunda questão, Um dos principais fatores que faz com que Portugal seja um país estruturalmente atrasado é a sua pobreza. E portanto, é o facto de ter baixos salários, baixas qualificações, ser especializado em atividades de baixo valor acrescentado, de ser um país muito desigual no acesso a serviços públicos e no rendimento, com níveis de iliteracia brutais para o século XXI, e, portanto, aquilo que tu dizes que só pode vir a seguir ao crescimento é, na verdade, o que está a impedir o crescimento. Uma sociedade, é isso que Keynes mostrou também, quando fez uma teoria e que revolucionou toda a teoria supply-side, da late-sale, da economia neoclássica que existia antes dele, que é a ideia revolucionária de que uma economia para funcionar precisa ter procura. E a procura de sociedades desiguais é uma procura que não permite crescimento económico.
José Maria Pimentel
Mas, espera, desculpa, é… tu disseste aí uma série de coisas, algumas das quais eu concordo, mas não é bem nisso que eu estou a falar. Quer dizer, o Kérin tem a ver com a questão do ciclo económico, Sem dúvida nenhuma, quer dizer, obviamente que o que ele provou, independentemente depois, devendo a concluir que aquilo não funciona em todos os casos, provou claramente que o ciclo económico não se reequilibra da maneira que os neoclássicos achavam. Isso sem dúvida nenhuma. Mas é assim, eu estava a falar, quando eu falo de... Eu estou a falar de Estado Social, que é... Que tem um significado particular, não estou a dizer... Por isso é que eu digo, por exemplo, há modelos de desenvolvimento económico que se baseiam num papel do Estado muito ativo, e por isso, aliás, é que os modelos... Eu não dei o exemplo das economias do Sudeste Asiático, por acaso, porque elas chatearam muitos economistas clássicos, que achavam que para haver desenvolvimento económico era basicamente o único modelo era com mercados livres e com o setor privado a agir. E essas economias mostraram que não é o único modelo que existe. E eu nesse aspecto sou muito institucionalista. Aliás, no outro dia estava, por acaso é capaz de sair depois desta, mas estava a entrevistar o Ricardo Paz Mamedi, falávamos disso e até um bocadinho disto que estamos a falar agora. O que eu quero dizer é, aquilo que eu estou-te a dizer isto, no sentido de como alguém que, completamente fora do sistema político, e que tenta pensar estas coisas, olha para a visão normalmente de quem se situa à esquerda no espectro político. E podia fazer críticas idênticas, não, fazer outras críticas em quem se está à direita, mas sendo tu de esquerda faz sentido falarmos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
disto. Mas é que tu não estás fora do espectro político, porque tu estás a olhar a economia como um liberal e portanto estás dentro do espectro
José Maria Pimentel
político. Não, estou fora da política, ninguém está fora do… qualquer pessoa que pense política não está fora do espectro político. Ou seja,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
não há nada que te diferencie de mim ao discutir a economia, simplesmente temos em mente…
José Maria Pimentel
Não, eu sou eleitor, não é? Políticas diferentes sobre… Claro, claro, não é isso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é, eu sou eleitor, eu e outras pessoas, ou seja, estou... Somos todos. Somos todos, claro, exato, mas só estou dos dois lados. O que eu quero dizer, estou a olhar para o que os agentes políticos, quer dizer, quem se candidata a deputados e tudo mais, diz, e aquilo que eu sinto em relação a isso. E atenção, eu estou, obviamente, a provocar intelectualmente, mas também estou genuinamente a tentar perceber qual é a tua visão em relação a isso, porque o que eu vejo muitas vezes vem da coisa de fora. E eu quase, quando eu digo isto, eu quase devia ser de esquerda. Eu tenho, por exemplo, mais amigos de esquerda do que direita, tenho um amigo que diz que eu sou o socialista da Armário, que não é verdade, não acho que seja verdade. Mas, agora, aquilo que eu vejo, se calhar posso estar enviesado, mas aquilo que eu acho que falta muitas vezes é essa, a visão da esquerda. Ou, atenção, se calhar a visão, aquilo que é dito pela esquerda, não é necessariamente o que pensa, e daí eu quero falar contigo sobre isso, é a noção de que para distribuir é preciso nós crescermos e para crescer... Eu digo-te que Para
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
crescer nós precisamos distribuir.
José Maria Pimentel
Precisamos...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É difícil, mas é verdade.
José Maria Pimentel
Eu acho que, obviamente, ninguém deseja uma sociedade desigual. Uma sociedade desigual, isto era uma coisa que eu falava com o Daniel Oliveira, e muita gente direita desconsidera completamente este aspecto, e os Estados Unidos estão claramente a sentir o que é uma sociedade desigual, é uma sociedade doente. Há várias línguas que dizem que tem mais stress, tem uma série de coisas. Sim, sim. Estou-te sem dúvida nenhuma. Doente
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
e mais permeável a crises económicas e problemas económicos, ou seja, repara, há tudo um...
José Maria Pimentel
E politicamente, quer dizer, tens uma série de... Há uma ideia... Uma sociedade desigual, desculpa, uma sociedade desigual faz com que tenda a pôr aqueles que têm o poder económico no domínio político. Não há dúvida em relação a isso. A desigualdade é
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
mais profunda que isso. Há um debate muito interessante que está a acontecer hoje. Hoje não, tem acontecido desde o pós-crise que é um debate sobre estagnação secular. Estagnação secular é um termo fundado por, já há bastantes anos, por um economista americano e ressurgiu no pós-crise porque ninguém percebia como é que as economias não estavam a recuperar da crise, apesar de teres uma política monetária bastante expansionista, e toda a teoria normal prevê que a coisa já estaria bastante mais equilibrada. E uma grande parte das explicações que surgem sobre porquê que as economias não estão a recuperar da crise é por causa das desigualdades. E, portanto, as desigualdades de rendimento que nós vemos, tendemos a ver apenas do ponto de vista social, mas não são por nome social, são por nome económico, porque as desigualdades de rendimento têm a ver com padrões de poupança e com padrões de consumo e padrões de poupança e padrões de consumo são essenciais para os ciclos económicos e para o crescimento económico e, portanto, o que se está hoje a teorizar e gente que tu não esperarias que
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
acontecesse assim,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
economistas neoclássicos nos Estados Unidos, é de que forma é que as desigualdades de rendimento e em particular as desigualdades entre trabalhadores e capital, não tenho outra forma de dizer isto, estão a impedir o crescimento económico. Portanto, Essa relação que tu assumes que é universal, que é primeiro cresces e depois distribuís, ela não tem que ser assim. Na verdade, tu podes pensar a coisa ao contrário, que é se tu tiveres uma sociedade capaz de distribuir a riqueza, ela tem um potencial de crescimento maior do que se o dinheiro estiver concentrado e mal distribuído. E o restante social serve para distribuir.
José Maria Pimentel
Bom, eu não queria nada ter esta conversa em termos absolutos, universais, porque nada é universal. São tendências. Agora, eu concordo com o que tu
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
disseste. Mas porquê que são tendências? Já agora deixa-me provocar-te a ti. O que é que diz a ti que isso é uma tendência? Em que estrela é que isso está
José Maria Pimentel
escrito? A ser, não, o que eu digo é, a ser é uma tendência, não é universal. O mundo é demasiado complexo para a pessoa poder dizer testemunhamente que a relação entre desigualdade e crescimento económico é unívoca, num sentido ou no outro, absolutamente.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Elas autoalimentam-se, como é lógico. Sim, claramente. Atenção, isto é um processo que se autoalimenta. O meu
José Maria Pimentel
ponto é onde é que está o que corre do processo. Mas atenção, o que tu disseste, por exemplo, em relação aos Estados Unidos, concordo claramente contigo, os Estados Unidos é um país que claramente tem um problema no sentido oposto, e tem um nível de desigualdade, e uma estagnação de rendimentos da classe média, e que está a criar imensos problemas. O que eu quero dizer em Portugal é, por exemplo, Portugal tem um problema de competitividade, Portugal precisa de crescer, ou
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
seja, Portugal... Mas a que é que se deve o problema de competitividade português?
José Maria Pimentel
Deve ser uma série de coisas e atenção, eu admito até que haja posições diferentes, e claramente haverá, até porque há várias coisas em relação à origem desse problema de competitividade. A questão é que ele precisa ser resolvido, tu nunca poderás ter um estado social forte. Mas para o resolver vamos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
perceber a que é que ele se deve. Vamos lá
José Maria Pimentel
ter o seu processo. Mas a minha pergunta é, a que é que ele se deve? Ou seja, qual é o teu modelo? O meu modelo é convergir para o país tipo X, obviamente que... Não, não cai
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
nessa armadilha normalmente.
José Maria Pimentel
Não, mas eu não estou a fazer esta pergunta como uma armadilha, eu digo é, obviamente que não vais dizer adoraria ser exatamente aquele país. Não, mas qual é o país que serve de modelo? Quer dizer, qual é o... É um país tipo país nórdico, é um país tipo, lá está, os países sudeste-asiático, é uma economia como Estados Unidos? Imagino que não, até porque não é comparável com a economia britânica. Estás a perceber? Nenhuma
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
economia comparável. Portugal não vai ser um país candinavo, Portugal é um país periférico da Europa. E portanto... Os candinavos também. Um dos candinavos tem, apesar de ter um passado muito diferente, não são periféricos, não como Portugal. Sim. Muitos deles têm petróleo. Sim, a Noruega tem essa sorte. A Noruega tem essa... E portanto têm relações...
José Maria Pimentel
Mas olha que a Noruega, desculpa interromper-te, a Noruega desenvolveu-se antes de descobrir o petróleo.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Sim. Foi a sorte deles, aliás, se fosse ao contrário estava lixado. Mas têm uma boa ajuda dessas reservas. Sim, sim. É sempre... Bom para eles, mau para o ambiente. E para o futuro do planeta. Mas a questão não é essa. Eu acho que nós temos mesmo... A mim impressiona-me sempre muito o modelo da competitividade. Tem muitas falhas. Uma das falhas é que quem a utiliza de forma muito simplista tende a olhar para a Europa e pensar, porque é que nós não somos todos países com um sustento comercial? Aliás, porque é que o mundo inteiro não tem todo um sustento comercial?
José Maria Pimentel
Isso é uma impossibilidade. Vamos ser todos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
super competitivos para termos todo um sustento comercial, mas o sustento comercial tem um déficit comercial em algum lado. A competitividade implica perdedores e vencedores. Implica estar sempre a tentar não ser o perdedor. Sendo que Portugal tem, pela sua história, pelas suas deficiências estruturais, pela sua localização geográfica, todas as condições para sair perdedor numa Europa em que, por exemplo, está a Alemanha. Querer olhar para Portugal e achar que Portugal vai ser competitivo como a Alemanha, é pôr uma criança de 5 anos a correr ao lado de um maratonista e dizer, bom, se tu não ultrapassas o maratonista a culpa é tua. Portanto, vamos em primeiro lugar desmontar um bocadinho esta questão da competitividade porque ela tem estas impossibilidades. O que não quer dizer que Portugal não se possa tornar um país mais produtivo, mais capaz, especializado em atividades de maior valor acrescentado, mais autossuficiente em algumas matérias, menos dependente de algumas importações. Acho que esse é um esforço que todos temos que fazer. E, a mim, parece-me que há duas coisas que são essenciais. A primeira é política industrial, política industrial, que era uma coisa que, enfim, costumava fazer os países crescerem e industrializar-se até que foi banida do léxico político e económico. E a segunda é qualificações. E eu tenho cá para mim, é só uma desconfiança, e acho que não sou a única, que um dos grandes problemas da produtividade e da falta de competitividade Está na falta de qualificações dos trabalhadores, certamente, mas está também na falta de qualificações dos patrões. Há uma classe de patrões, uma classe empresarial, muito pouco qualificada e muito pouco capaz de fazer esse salto de transformação. E, por outro lado, quando tu pegas naqueles que foram os maiores empresários portugueses e para quem toda a gente olhava como os grandes homens de negócios respeitados e tu vais ver quais foram os seus grandes negócios e foi a compra de empresas na bolsa, empresas de construção, o assalto às empresas privatizadas, os negócios com a banca e, portanto, há muito que se lhe diga neste discurso de como é que um país pode ser mais competitivo, ou mais produtivo, e nós tivemos esse discurso durante muito tempo, e deu-se liberdade à economia para fazer o que ela bem entendia, e a verdade é que os resultados não foram bons, porque uma economia que faz o que bem entende vai se focar onde dá mais rendimento. E a construção dava um grande rendimento na altura. E o imobiliário dava um grande rendimento. E a especulação bolsista dava um enorme rendimento. Porquê que uma economia liberal não se deve focar na especulação bolsista, por exemplo? Sim. Então, eu acho que a política industrial continua a ser muito necessária para nós conseguirmos esse salto de qualidade.
José Maria Pimentel
Eu estou a ser só querendo concordar contigo nesse aspecto. Não necessariamente, quer dizer, admito que fôssemos divergir, se calhar, nos específicos, mas claramente sim, voltando ao modelo dos países asiáticos, foi muito nessa base. Ou seja, teve um papel do Estado
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que não é... Foi, depois desenvolveu-se de formas um bocadinho perversas, porque depois eles criaram aqueles, a Coreia tem aqueles showballs, que são conglomerados mistos. O que a Coreia fez foi promover conglomerados mistos privados, tipo o BES, a família Espírito Santo, que eram, tinham banca e não banca, que eram protegidos pelo Estado e portanto acabaram por levar a fenómenos muito endógenos e intrínsecos de capitalismo crónico, cronismo de... Sim, sim, crónico capitalismo. É, de tradução literal, que acabaram depois vir a ser culpados mais tarde pela... E de rentismo, que acabaram por vir a ser culpados mais tarde, tendo sido parte do desenvolvimento astronómico daqueles tigres asiáticos, depois também foram culpados pela crise asiática que vem mais tarde.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Isso é verdade. Eu estou a dizer isto e, em bonda modéstia, tenho que dizer que eu não conheço propriamente em detalhes estes exemplos que estou a dar. É evidente que são casos de sucesso e apesar da crise asiática conjuntural, se tu olhas para 30, 40 anos, tens ali um nível de desenvolvimento que tem poucos paralelos. Sim, foi muito rápido. Não quer dizer que ele tenha 20 seus, que não tenha tido as suas tropeçes.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É muito estudado ainda hoje. Mas o que tens ali,
José Maria Pimentel
por exemplo, Portugal teve um problema grave de investimento em setores não transacionáveis. Eu acho que isto é um facto mais ou menos indisputável, nem é de esquerda nem é de direita, é um facto mais ou menos evidente. Tu, países como a Coreia, por exemplo, estou a falar da Coreia do Sul, por exemplo, Samsung, por exemplo, é uma empresa que, independentemente, eu nem sei as particularidades da Samsung, nem sei o quanto é que os gestores ganham, não faço a mesma ideia. Os casos do
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Japão, por exemplo.
José Maria Pimentel
Como? O Japão. Os casos do Japão, quer dizer, ou seja, são casos de sucesso que claramente catapultaram aqueles países. Mas são casos de sucesso a sério, não é como às vezes nós temos em Portugal aqueles casos de sucesso que são empolados e depois de repente rebentam e aquilo cai para o lado. E a minha visão é a tensa, voltando àquilo que eu estava a dizer há bocadinho. Eu quando digo que sou liberal, isto não é bem verdade. Ou seja, eu digo isso porque não estou para me chatear muito com os detalhes e não tenho problemas com carimbos. Eu sou muito mais institucionalista do que liberal. Sim,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
eu acho que é uma boa perspectiva o institucionalismo. Eu também sou institucionalista, atenção. Entre as minhas várias caixinhas, também estou
José Maria Pimentel
nessa. Eu acredito, se quiseres, eu acho que eu interesse-me suficientemente por política para não achar que a ideologia é irrelevante, ou que as orientações políticas são irrelevantes, senão não estaria a fazer esta série. Mas no fundo, eu não estaria a... Estava a... Lembrando-me de uma metáfora que se calhar é um bocado tosca, mas vou arriscá-la. Eu acho que nestas coisas, para mim, a ideologia política, não sendo irrelevante, é um bocadinho como a tática no futebol. Eu sou do Porto, mas ligo cada vez menos a futebol, portanto nem sei se o Porto joga em 4-3-3 ou 4-4-2. Para o Porto, ou para o Benfica, ou para qualquer outro clube, não é irrelevante a tática com que joga. 4-3-3, 4-4-2, 4-2-3-1, não é absolutamente irrelevante. Mas é muito mais relevante a qualidade dos jogadores, o entrosamento dos jogadores, a qualidade do treinador, a qualidade da instituição, do clube de futebol, isso é muito mais importante do que a tática. A tática é relevante, uma discussão sobre a tática não é irrelevante. Aqui, por isso é que eu digo, mais do que tu vais crescer com o Estado a intervir mais ou o Estado a intervir menos, deixando as coisas funcionarem sozinhas ou não deixando, eu não tenho, por exemplo, a ilusão de achar que Portugal podia alguma vez funcionar, nem esses países tiveram, daí terem seguido esse modelo. Portugal não tem dimensão para poder funcionar como funcionam os Estados Unidos nesse aspecto, como é óbvio. Agora, o que é facto é, Tu tens impedimentos claros à competitividade e a conseguir formar, entre outras coisas, empresas desse género. Porque não tem só que ver com investimentos estrangeiros, mas também tem que ver com inovação local. Tens problemas no nosso sistema legal, no sistema jurídico, tens problemas da burocracia do Estado, tens muito aquele efeito do... Não sei quem é que estava a falar... Ah, era com o Varsílio Mendes da Silva que estava a falar disso, do efeito... Não sei se isto é em português, é o efeito Ratshot, que é basicamente quando tu, legislativamente, o que tende a acontecer é que tu tens um enviasamento para acrescentar e não para retirar. E isso é normal, faz parte da natureza humana. E nós estamos a gravar no Parlamento e é normal que isso aconteça, que haja uma tendência maior para acrescentar do que existe para retirar. E o vento da coisa de fora, quer dizer, se eu tivesse que... Quando eu penso em Portugal, quando eu penso politicamente em Portugal, para mim a grande prioridade devia ser tornar o país mais competitivo. Depois
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
claro que... Mas repara, mas tu achas que para tornar... O problema é, é por isso que eu acho que nós vimos faltar atrás e eu te questionei, o que é que torna o país mais competitivo?
José Maria Pimentel
Eu acabei de falar de várias coisas. A burocracia. Um sistema legal mais ágil, por exemplo, que é destrutivo. E, portanto, podes
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
ter um sistema legal mais ágil. Aliás, eu acho que a conversa... A burocracia é um problema em Portugal, não estou a dizer que não é, acho que é. Acho que temos dado passos muito importantes ao longo dos últimos anos nesse sentido, não só da burocracia das empresas, mas também, por exemplo, da relação dos cidadãos e dos contribuintes com a autoridade tributária, acho que tem evoluído e é importante reconhecer as coisas que acontecem em Portugal. Neste momento nós vamos para fora de Portugal e há poucos países que tenham esta desmaterialização da relação com o Estado, acho que tem havido passos muito importantes e que devem ser reconhecidos, esse esforço tem existido. Mas não me venham dizer que não há investimento em setores produtivos por causa da burocracia e do sistema legal. Porque o sistema legal é o mesmo para setores transacionáveis e não transacionáveis. O dinheiro vai para setores não transacionáveis porque nos setores não transacionáveis há rendas. E o capitalismo é muito bonito, mas ele vai atrás do lucro mais fácil. Há rendas. Tu tiveste um boom das energias renováveis, apesar da burocracia e do sistema fiscal e de tudo aquilo que os liberais usam para dizer que não há investimento, porque foram criadas rendas nesse setor. Tu tiveste os fluxos financeiros a irem para a construção porque havia rendas nesse setor, ou nas empresas privadas porque, privatizados porque havia rendas nesse setor. O problema não é um problema unicamente de burocracia. O problema está… Não,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
claro que não é
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
unicamente. O problema está é que… Eu também… Há outros problemas, este argumento talvez seja mais fácil de entender, embora eu não ache que ele seja sequer o mais importante. Mas o Keynes, na teoria geral, descrevia um bocadinho esta mudança económica que ele acha que acontece com o desplotar dos mercados financeiros e a financiarização da economia a partir dos anos 80. Sim, sim. É que o Veblen também fala disso, é um institucionalista americano, que é, às tantas tens uma economia que deixou de ser gerida pela produção, ou seja, a caricatura é, antigamente o empresário era um homem que tinha uma empresa e preocupava-se com o processo de produção e com a produção a longo prazo, um homem, é predominantemente homem, com a produção a longo prazo e, portanto, era um investimento de longo prazo em que ele sabia que tinha que investir na empresa porque aquela empresa ia estar ali no futuro. A partir do desenvolvimento dos mercados financeiros, em que tu podes transacionar empresas muito rapidamente ou de vender dívida de empresas, o que faz é que tu quebras a relação que havia entre a empresa e a produção. E a empresa passa a ser um meio de ganhar dinheiro, independentemente daquilo que produz, E mesmo muitas vezes em que ganhar dinheiro é contraditório com a produção. Tu tens sabotagem das empresas. A PT é um caso de sabotagem. Quem geria a PT preferiu pôr a PT a dar dividendos aos acionistas do que investir na PT. Isto são incentivos, que são destruções que a economia de mercado criou e que não ajudam, talvez mais do que a burocracia, a criar investimentos no setor produtivo.
José Maria Pimentel
Então, eu tinha aqui tomado uma nota há bocadinho, que era gestores versus empresários, que foi exatamente ao encontro do que estavas a dizer, porque Isso é absolutamente verdade, e eu se estivesse a falar com uma pessoa direta estaria a fazer exatamente essa crítica, no fundo é quase a crítica simétrica, porque a direita tende a falar pouco disso também. Há um problema, tu tens um problema desde logo que uma coisa é o empresário, outra coisa é o gestor, e o caso da PT foi um exemplo óbvio. E Tivemos vários outros que é pessoas que estão a gerir uma empresa fazendo coisas que nem para os donos da empresa são boas. Não estamos sequer a falar dos trabalhadores. Mas às
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
vezes são boas para os donos. Muitas vezes os stores gerem empresas... São boas para ele
José Maria Pimentel
próprio. Não, são boas para os donos. No curto prazo, não são boas. Se não estás sustentabilizando a empresa, não são boas para os donos.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Porquê que a BlackRock ou Goldman Sachs quer o CTT? Quer a garantia que o CTT presta um bom serviço à população portuguesa e que se mantenha uma empresa lucrativa nos próximos 30 anos. Estão-se a marimbar para isso. Querem sacar o mais que conseguirem em dividendos e querem vender enquanto ainda for possível vender com lucro. É isto que querem. Mas isso é outra coisa. Os enormes hedge funds que são donos da maior parte... A teoria do mercado livre é uma teoria de dispersão de propriedade. Mas tu hoje vais ver quem é que são... Há ali uma reportagem muito engraçada sobre isso há uns tempos. Quem é que são os donos da Bolsa de Nova Iorque, da Bolsa Francesa, da Bolsa do Reino Unido, que são tudo hedge funds, que são detidos por hedge funds, que são detidos por hedge funds. E depois tens 3 ou 4 fundos que são donos de 70% das bolsas do mundo. Pá, uma concentração de riqueza e de produção. Esta gente está-se a marimbar no portfólio de investimento deles. Os nossos CTT são uma migalha. E, portanto, não há forma de... Onde este radicalismo da liberalização e a teoria do mercado nos levou. Foi uma total incompetência e desfuncionalidade no próprio funcionamento do sistema capitalista.
José Maria Pimentel
Sim, mas eu concordo com isso. Sim,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
acho que é inegável.
José Maria Pimentel
Não, quer dizer, provavelmente não... Quer dizer, se destrinçássemos isso, teríamos posições diferentes, mas eu claramente, quer dizer, a nível internacional parece-me evidente e qualquer pessoa... O meu princípio, voltando à história da tática, é que tu segues a evidência antes de seguires aquilo que te parece melhor.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É uma discussão injusta porque não percebe nada de futebol. É uma discussão injusta porque não percebe. Às vezes, às vezes, tu te programas e fica pardo. Eu acho que a analogia é fácil de perceber
José Maria Pimentel
de qualquer forma. Mas... E atenção, Portugal tem um problema grande nesse aspecto. Que é, às vezes há uma tentação para importar as coisas de subtão e sem critério.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Isso é pensar se elas se adaptam à nossa economia,
José Maria Pimentel
se fazem a sentido. Exatamente, e aquilo lá está. E é preciso perceber uma coisa, e por isso a direita tem um problema nesse aspecto em Portugal. E a série de coisas com várias empresas com dimensão, outra coisa é uma economia pequena. Mas
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
já pensou, já fomos uma... Hoje estava a falar com uma jornalista que é amiga minha e estávamos a falar um bocadinho sobre isso, a destruição da economia portuguesa. Mas já pensaste o que era a CIMPOR? A CIMPOR era uma das quatro maiores multinacionais de cimento do mundo. Nós tínhamos uma das quatro maiores cimenteiras do mundo. A PT era uma das maiores empresas de telecomunicações do mundo com a sua atividade.
José Maria Pimentel
Por causa da Oi?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Muito antes da Oi. Aliás, a Oi é que destruiu um bocado aquilo, mas mesmo antes da WEG, a operadora, a Vivo, que a PT tinha no Brasil, fazia com que fosse uma das maiores operadoras brasileiras.
José Maria Pimentel
Sim, pois a Vivo foi a que deu origem à WEG.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, a Vivo foi vendida a seguir à OPA.
José Maria Pimentel
Ah, e compraram a WEG.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ou seja, o BES precisava de dinheiro, A PT vendeu a Vivo para poder financiar o BEJ, foi um negócio brutal, isento de impostos, por uma ordem explícita, ou porque distribuíram dividendos antes da mudança da lei ou qualquer coisa E depois, como venderam a vivo, entraram no mercado brasileiro através da OE, através da fusão. Me disse para dizer que nós já tivemos grandes empresas. Já tivemos grandes empresas da indústria química. A CUF era um império grande antes de ser nacionalizado e a Quimigal, que depois se transformou naquelas ordens nacionalizadas da Chemical e das empresas químicas, nós já estivemos de estaleiros, ou seja, nós tínhamos algum conhecimento adquirido, alguma capacidade nos setores industriais, mas elas foram desmanteladas, ou por guerras acionistas, ou porque se pensou que estávamos numa nova era. Isto da União Europeia, a liberalização financeira, serviços, bancos, finanças, era tudo um mundo novo, um admirável mundo novo. E acho que acabamos por olhar muito pouco para as nossas… agora já não podemos voltar atrás, os taleiros estão destruídos.
José Maria Pimentel
Sim, e esses exemplos, o exemplo de Simpore, o PTR também eram exemplos muito alavancados, não no sentido financeiro, mas no sentido do ciclo, ou seja, a dimensão real pós-crise, veio-se a perceber que era apesar de tudo bastante diferente.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, tanto a PT como a CIMPOR eram brutais empresas com uma capacidade de gerar, pois há com uma diversificação de mercados que lhes permitiam ser relativamente imunos ao ciclo português. Depois com uma outra vantagem que é, enquanto eram detidas pelos Estados, Repara que o Estado nunca impediu a internacionalização destas empresas, nunca pediu que elas se desenvolvessem, com a garantia que os dividendos ficavam na esfera portuguesa e na esfera pública. A primeira que elas foram privatizadas, tu começas a ter, para além de distribuir os dividendos para fora e, portanto, estás a piorar a tua balança de pagamentos porque essa riqueza não fica no país, tiveste o assalto às empresas. Portanto, a PT como a Simpor não foram destruídas por dentro. Elas são destruídas pelos seus acionistas, esses sim, altamente alavancados e altamente endividados, que compraram estas empresas na euforia da bolsa. Tens o caso do Manel Fino comprar a Simpor, financiado pelo BCP, durante a guerra do BCP com a outra construtora, a Teixeira Eduardo, penso eu, não tenho a certeza, em que os dois estão numa guerra em lados opostos na luta do BCP e ambes para controlar a Simpor, portanto o FII endivida-se na caixa e no BCP para comprar a Simpor, e tens no caso da PT o Salgado que numa situação tenebrosa de endividamento que usa a PT para se financiar. Em ambos os casos, tanto a CPT, tanto a PT, como a CIMPOR vão ao charco quando os seus acionistas vão ao charco por causa da crise. As empresas eram boas. A CIMPOR foi vendida aos brasileiros e a PT foi vendida aos brasileiros. Sim,
José Maria Pimentel
sim, exato. Então espera aí, deixa-me voltar a... Desculpa,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
mas é que eu entusiasmo-me a falar de...
José Maria Pimentel
Não, não, tranquilo, a ideia é essa. Dos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
negócios da economia portuguesa. A convidada és
José Maria Pimentel
tu, não sou eu, eu sou o anfitrião.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não consigo me imaginar a pena desta destruição da economia portuguesa. Hoje quem são as grandes empresas portuguesas?
José Maria Pimentel
Claro, sim, por isso é que eu digo, voltando àquilo que eu estava a dizer há pouco, isto é mais que ver, no último analise, com as instituições. Claro que o problema das instituições, depois é como é que tu fomentas as instituições, porque depois também é um bocadinho intangível, e vivo muito da contingência. Mas, já para voltar a uma coisa que estávamos a falar há um bocadinho, para encerrar isto da economia, porque eu queria falar contigo também sobre outros aspectos da política. Eu concordo com o que estavas a dizer, aliás, no outro dia estava a ouvir um tipo americano, um economista americano que dizia qualquer coisa deste género, há... I'm pro market but not pro business. São coisas diferentes e por isso daí eu dizia que tento concordar contigo. Uma coisa é... É um clássico. Tu seres a favor das empresas, outra coisa é seres a favor das empresas, sobretudo empresas com grande poder de mercado. E para mim claramente essa era a crítica simétrica que eu faria à direita, que é sim senhor, a pessoa pode ser muito vocal para defender o aumento de competitividade da economia, mas não podes deixar de ter noção que existem outros fogos a acudir que no curto prazo são mais graves. No longo prazo podem não ser, mas no curto prazo são claramente mais graves de iniquidade, de empresas a tirar rendas e que nós sabemos quais são, não é preciso dizer. Agora, a pergunta que eu te faria é... É DP, já disse. Ah, pronto. A pergunta que eu te faria era... Tu reconheces a importância do mercado? Quer dizer, qual é a tua visão em relação... É uma pergunta um bocadinho aberta, mas qual é a tua visão em relação aos mercados?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É uma pergunta mesmo muito... Aberta.
José Maria Pimentel
Pois posso concretizar-se, filha. O que é que
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
eu acho sobre os mercados? Acho que os mercados são uma construção
José Maria Pimentel
social. Certo. E dependem das instituições, voltamos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
atrás. Os mercados são uma instituição. Uma construção social que foi elevada ao longo de vários anos de teoria e desenvolvimento ideológico e teórico, económico e filosófico a uma ordem natural. Como se fosse uma ordem natural a qual todos os aspectos da vida se devem subjugar. E lentamente, ou seja, tu vais ver economistas clássicos E para os economistas clássicos o mercado não era tudo, era uma parte da vida, uma parte da organização da economia e muitas vezes quando escreviam sobre mercados, sobretudo mercados perfeitos, que não existiam na altura da Adam Smith ainda, escreviam de um ponto de vista de abstração, quase como se tu quisesse derivar um modelo abstrato de uma realidade altamente imperfeita.
José Maria Pimentel
Vou dizer uma coisa que ajuda ao que está a dar argumentar, o Adam Smith
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
era um filósofo moral. Claro. Portanto, para ele... Não havia condições na altura. Pois, exato. E, portanto, entendi que essa era uma visão que o crescimento pelo crescimento não é... Que a economia serve para gerar os recursos necessários à vida das pessoas e portanto não era uma teoria ascética desse ponto de vista, ou amoral desse ponto de vista. O problema é que à medida que os anos foram passando, e obviamente isto é muito longo para estar aqui a desenvolver, elevou-se os mercados a essa ordem natural das coisas. E às tantas, subjugou-se todas as esferas da vida e todas as esferas das sociedades e das instituições à lógica mercantil, à lógica do lucro, à lógica da competição, à lógica da suposta interação livre entre agentes. Sim, o Daniel falava disso também. O mundo de trabalho passou a ser um mercado de trabalho, a relação entre os Estados e os bancos centrais passou a ser uma relação independente e a relação entre o Estado e os mercados financeiros passou a ser a relação estrutural de financiamento dos Estados e criou-se as instituições à luz do mercado como ordem natural. Quando na verdade não há nenhuma ordem natural. Nós que estamos a fabricar de acordo... Isto é quase uma matrix. Parece uma teoria da conspiração, mas não é, não é? A sociedade são as instituições que nós desenhamos. E nós olhamos... Hoje, se eu disser controlo de capitais, vão dizer que eu sou uma perigosa, perigosíssima radical de esquerda. Controles de capitais foi um dos mecanismos que trouxe os 30 anos mais prósperos do capitalismo, do pós-guerra. Tal como muitos outros mecanismos nós hoje nem pensamos, Porque... Sim,
José Maria Pimentel
a história é muito mais complexa. Sim, em Portugal há uma certa tendência para fazer... Ah, porque
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
ganhou, quer dizer, ganhou momentaneamente, a história é muito longa, mas a ideologia dominante neoliberal de mercados invadiu culturalmente e politicamente a nossa vida de uma forma aterradora. É muito difícil travar.
José Maria Pimentel
Mas, Mariana, há duas coisas diferentes. E atenção, eu vou dizer isto agora e se calhar legitima um bocadinho aquilo que eu te criticava no início, da esquerda falar pouco da competitividade. Isso também é muito visível na linguagem política, que é, há uma certa noção de eu não posso abrir mão de nada, tenho que me manter absolutamente quadrado na defesa de uma determinada macro-oposição e, portanto, não posso sequer admitir hipóteses de controle de capitais se não já deixo de ser free market, ou não posso deixar... Ou não posso admitir sequer a possibilidade de renegociação da dívida, por exemplo, porque senão isso... Quando se tu falares com pessoas não políticas, a opinião é muito mais heterogênea do que isso. Eu isto posso dizer de experiência própria.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ah, claro, claro. Muito mais
José Maria Pimentel
heterogênea, não é isso? Porque as vezes tem mais
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
facilidade em perceber as vezes coisas que fazem sentido, que são uma questão de bom senso. Mas é normal quando tens um quadro político ou ideológico muito forte que acabes por ver as coisas de outra forma. Mas, isto para responder diretamente à tua pergunta, eu acho que há um espaço para o mercado, eu acho que há um espaço para o mercado e acho que há um espaço para a propriedade privada. O que eu me recuso a aceitar é que a propriedade privada seja o bem ou o direito que se eleva acima de todos os outros. Nós tivemos uma discussão na Assembleia da República, por acaso não é um assunto que eu domino, mas estava a ouvir a discussão sobre armas. Era uma nova proposta do Governo para limitar o porto de armas porque ainda existe muitos problemas. Pessoas que são mortas com os pingardas que se tem em casa. Sim, sim, sim. É um problema grave. Juteiam-se no café. Juteiam-se no café ou, epá, violência doméstica e formas de assassinar mulheres, às vezes crianças que apanham as armas, pronto. E nós defendemos, como é lógico, a maior limitação possível do porto de arma. O argumento da direita é a propriedade. As armas são das pessoas. As pessoas têm direito à propriedade das armas. O que é que nós temos aqui? Temos um caso muito claro em que o direito à propriedade é colocado acima do direito à segurança comum. O CDS. O CDS com incursões do PSD. Mas este foi claramente o argumento usado no debate. Ou seja, a propriedade das armas. Mas o argumento não é irrelevante, não é infinito. Ou seja, tu podes... Eu acho que neste caso... Tens uma licença, não é? Estás a simples quanto tu dizes, não é? Tens uma licença. Ou seja, se há uma lei que diz... A lei regulamenta. No fundo, a lei vai apertar ainda a malha das armas que as pessoas podem ter
José Maria Pimentel
ou não. Então, se
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
tu fazes isso, percebes que há um problema de segurança pública, quer dizer, é um bem maior aqui. E usar o argumento de ah, mas esta arma é minha, e é um item que eu estimo muito. Pelo
José Maria Pimentel
menos podes matar alguém com ele, se não tiveres... Pronto,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
rest my case.
José Maria Pimentel
Mas por exemplo, o outro Análogo a esse, que eu já não concordaria, não sei se tu conheces aquele vídeo. Isso está no Youtube, é um vídeo da altura do Prec, em que há... Fica um bocadinho caricatural, mas é um tipo que está no Alentejo, naquela altura das cooperativas, e diz Oh senhora, então esta enxada agora...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Sabes que esse vídeo... Não é no Alentejo, é perto de Torres Novas.
José Maria Pimentel
Ok, então é para cima. Não, Torres Novas é... É para cima,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
é Ribatejo. Ribatejo.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
A propriedade chamava-se Torre Bela. Ah, assim, e até...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Foi lá que os meus pais se conheceram. É sério? Sim. Porque o meu pai fazia parte da LUAR, que foi uma das organizações, ou a organização, que organizou e dinamizou a ocupação dessa propriedade. E a minha mãe conheceu o meu pai lá. E, portanto, cresci com a história da Enxada.
José Maria Pimentel
Sim. Então, é uma pergunta ingrata, porque é uma pergunta quase emocional. Mas saindo da história da Enxada...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Antes daquela cooperativa ser criada e daquela população ter juntado para ocupar aquelas terras, as terras não eram trabalhadas, ninguém ganhava, ninguém tinha chaves e os patrões chamavam as pessoas para trabalhar à jorna, portanto escolhiam o que eles queriam e pagavam em vinho E, portanto, quando se fez a ocupação e quando se começou a organizar os trabalhadores, as primeiras coisas que se teve que fazer foi lidar com o alcoolismo crónico daquelas pessoas que não tinham refeições, que eram pagas em vinho e que não tinham sequer terra para cultivar, apesar das terras estarem completamente abandonadas. Vale a pena ver o documentário, é um documentário muito elucidativo acerca desse momento. E, portanto, sim, eu tenho uma visão sobre o trabalho cooperativo e a economia cooperativa, em que acho que há outras formas de organização da nossa vida e da nossa sociedade que não apenas a imposição da propriedade privada.
José Maria Pimentel
Ali o problema era a imposição da coletiva, não é? Eu admito, Mariana, eu admito Perfeitamente que aquilo seja um clipe descontextualizado.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
A questão é lógica, quando estás a discutir, tens uma cooperativa, não é? Mas ali não há uma imposição, ali há um confronto entre um grupo de pessoas e um coletivo que está a organizar uma cooperativa para dividir o trabalho entre todos e dividir os recursos entre todos e óbvio que isso tem confrontos e tem diferentes opiniões e tens que convencer. O que vemos ali não é um gajo a bater no outro ou a chamar a polícia porque não quer entregar a enxada. O que tu vês ali é um tipo a tentar convencer o outro que o melhor para ele e para todos é entregar a enxada. Porque se ele entregar, todos podem usar de tudo e se ele a mantiver, ele só pode usar a dele. E não pode usar o dos outros também. E portanto, ali tão... É por isso que é um clipe tão bom, porque ele mostra bem duas visões da organização económica. Mas isso quer dizer que as pessoas não podem ter as suas empresas, que não possa existir propriedade privada, as pessoas não podem ter os seus bens, o seu carro, a sua casa. Bom, calma aí, não é? Acho que isso nunca foi proposto. Agora, o que se propõe é uma ideia tão radical como nem tudo tem que ser a lógica do mercado, nem tudo tem que ser a lógica da propriedade. Há outras formas de organização que acho que são interessantes.
José Maria Pimentel
Sim, mas também não há, ninguém está nesse extremo, nem nesse,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
nem no outro. Habituaram a chamar a esquerda de radical. Sim. Eu acho que a ideia estão há mais radicais à direita, só que estão tão banalizadas que já ninguém se apercebe do radicalismo que elas encerram. Sim,
José Maria Pimentel
mas é assim. Em Portugal tens um papel do Estado, por exemplo, que entre o papel atual e o papel nulo havia uma distância enorme. É verdade, mas também... Não quer dizer que não exista quem queira isso. Mas deixa-me fazer-te uma pergunta concreta e com menos carga emocional do que a questão da Torre Vela. Eu acho que a esquerda tem uma direita, uma relação difícil com o empreendedorismo, que é curioso. Eu até partilho um bocadinho dessa ideia, porque irrita um bocadinho o termo, irrita um bocadinho aquilo que às vezes é construído à volta daquilo, e aquele, para lei, um bocadinho o vácuo que é construído à volta disso. Até reconheço, como é muito típico nestas coisas, às vezes houve coisas em que se avançou rápido mais sem os devidos cuidados e assim uma retórica um bocado excitada e, por exemplo, até aquele livro do José Soeiro, Sabe o Erro, sobre o empreendedorismo, que eu acho que é um trabalho muito útil para perceber aquilo. Dito isto, eu não tenho a mínima dúvida de que o empreendedorismo, ou o que quer que lhe queiramos chamar, é bom para o país. E a exceção que eu tenho É que a esquerda tem uma relação difícil com o empreendedorismo, ou é mentira?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não há nenhum problema com a relação… ou seja, sempre houve empreendedorismo no mundo e sempre haverá. O nosso problema foi quando se elevou o empreendedorismo à nova religião E o que é que isso quer dizer ideologicamente? E não é por acaso que o empreendedorismo surge num período de maior preponderância das teorias neoliberais, quisemos assim dizer, e num período de maior desemprego e de maior falta de perspectiva
José Maria Pimentel
sobre emprego. Mas essa segunda não é necessariamente má, não é? Ou seja… Eu acho
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que é má quando as pessoas não têm emprego. O empreendedorismo surge com… O problema do empreendedorismo não é que as pessoas criem o seu próprio negócio. Nós não temos nada… Eu não tenho nada com o que as pessoas criem o seu próprio negócio. Atenção! Absolutamente nada! O problema do empreendedorismo é que diz às pessoas que não têm um emprego por conta de outrem que é uma forma perfeitamente legítima de trabalhar que não têm emprego porque não são capazes de constituir o seu
José Maria Pimentel
próprio negócio. Mas isso são as caricaturas.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, é que isto não são caricaturas, porque quando tu de repente tens uma vaga em que tudo é empreendedorismo, de repente havia aulas de empreendedorismo para bebés, nas creches, na escola primária. O que o empreendedorismo faz é quebrar as relações de trabalho. É dizer, se vocês são todos empresários em nome individual, é o que acontece com a Uber. É a Uberização da economia. Vocês trabalham para uma grande empresa, ganham pouquíssimo, estão dependentes de uma grande empresa, pagam uma porcentagem à grande empresa, mas são trabalhadores em nome individual e a grande empresa não tem nenhuma responsabilidade para convosco. Portanto, isto é empreendedorismo.
José Maria Pimentel
Você chama-se a isso empreendedorismo?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Claro, mas é tudo a mesma dinâmica, é tudo a mesma lógica. O empreendedorismo é a destruturação das relações laborais e a individualização do
José Maria Pimentel
trabalho. Então chamamos-lhe inovação, se quiseres.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não é inovação, é empreendedorismo.
José Maria Pimentel
Não, não, mas falo eu disso.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Falo de alguém lançar uma empresa... Ah, mas muito bem! Eu a favor! Acho que deve haver apoio às pequenas e... Às micro, pequenas e médias empresas e quanto mais tecnológicas melhor e quanto mais viradas para mercados de nicho melhor, totalmente a favor. Agora, no que eu não suporto é a ideologia do empreendedorismo.
José Maria Pimentel
Então vou fazer uma pergunta mais difícil e depois vamos passar a outra coisa. Esta é mais difícil porque é concreta. Eu lembro-me de estar a falar uma vez com um amigo que tinha lançado, ele agora está na Suíça, tinha lançado uma empresa e ele dizia, e é um tipo completamente apolítico, ou seja, nem pensa nisso, quer dizer, não havia ali nenhuma carga ideológica, ele dizia pá, eu tive a empresa e aquilo foi uma dor de cabeça brutal, porque eu tinha... A lei laboral era brutalmente rígida, ou seja, eu não tinha... Eu, dois, duas, uma, ou não tinha pessoas... Mas cá, lá? Cá, cá, cá. Ou para acheter tinha que... Quer dizer, tinha que me chegar à frente e depois se aquilo corresse mal, se eu não ficasse satisfeito, ia ter um problema grande. E eu achei curioso, quer dizer, não foi muito longe de ser o único caso desses. Este tem a vantagem para mim, em termos de ser verosímil, por me ter sido contado em primeira pessoa. E a questão é, há uma maneira de resolver isto, ou seja, tu podes ter um mercado de trabalho que seja mais liberalizado no sentido de as empresas terem facilidade de despedir pessoas quando for caso disso e essas pessoas não deixarem de ser protegidas quando estão despedidas. Mas o que eu vejo... Chamou-se
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
flexi-segurança. Diz? Chama-se flexi-segurança? Foi isso que precarizou o mercado, o mundo de trabalho em perto das relações laborais em Portugal.
José Maria Pimentel
Mas isso nunca foi... Flexi-segurança é uma treta.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Porque só se cumpre a primeira parte do flexi E a segurança ninguém a ver. Mas porquê que ninguém a ver? Porque tu dizes que não podemos pensar em Estado Social antes de haver crescimento económico. Não, não, atenção. Nós já temos Estado Social. Mas
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
é que o nosso Estado Social não chega. Sim, mas é igual. Aqui tem que ver com quem é que paga a conta. No fundo, ou seja, se tu forças uma
José Maria Pimentel
empresa... No fundo o que ele se queixava era eu, das duas uma, ou ficava inerte, ou se avançava, corria um grande risco de depois ficar com o menino nas mãos, no fundo era o que ele dizia. E era alguém que tinha sentido isso na pele, era alguém que tinha passado noites a dormir mal por causa disso.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Eu também conheço muitos trabalhadores que passaram noites a dormir mal porque foram divididos.
José Maria Pimentel
Mas o papel do Estado não é casar as duas dimensões?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
O papel do Estado é criar condições para as empresas funcionarem, mas é proteger o elemento mais fraco numa relação laboral que é o trabalhador. Mas não é só
José Maria Pimentel
isso, Eu não concordo que seja só isso. Ou seja, claramente, atenção, claramente numa relação laboral o trabalhador, o trabalhador, sobretudo numa empresa grande, é o elemento mais fraco. Não há dúvida
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
de nenhuma maneira. É lógico que as regras que estão
José Maria Pimentel
feitas... Mas teres que ter eficiência também, percebes? O que eu
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
quero... Eu compreendo perfeitamente, eu sei que muitas vezes parece que não, mas eu compreendo que uma pequena empresa, as regras afetam de forma diferente pequenas empresas e grandes empresas. O problema é que nós não podemos ter leis para pequenas e para grandes empresas E a verdade é que não podemos, em nome da maior flexibilidade das pequenas empresas, criar um offshore laboral para as grandes empresas. Porque eu até admito que em muitas pequenas empresas se paga melhor, Haja uma melhor relação. Depende, depende das pequenas empresas. Uma coisa são, lá está, uma coisa são pequenas empresas que surgem agora. Outra coisa são ainda pequenas e médias empresas do setor industrial, ou têxtil, ou do calçado. Algumas renovaram e pagam bons salários e têm boas relações laborais. Outras são um buraco de abuso, de mau salário, de más condições de trabalho, etc. Mas o que nós não podemos é, em nome da flexibilidade das pequenas empresas, de estruturar ainda mais as relações de trabalho entre os trabalhadores e as grandes
José Maria Pimentel
empresas.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Em que se despedem pessoas para contratar pessoas mais baratas, em que...
José Maria Pimentel
Isso é a lei das consequências não intencionais, não é? É que depois a coisa corre pior. Não, mas é que não corre!
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não corre! Porque estas pessoas não fazem pior, ou seja, estas grandes empresas não fazem pior, não fazem isto, porque a lei não lhes deixa fazer melhor, elas fazem tão mal quanto a lei lhes permite ir fazer. Porque é isso que lhes dá mais lucro. Não compreendo. Esta malta é tão liberal, tão liberal, não estou a falar do teu caso, mas estou a falar normalmente de contínuas discussões, tão liberais. Acham sempre que isto é o princípio do egoísmo social e de quem tem mais lucros e da competitividade, mas depois crêem nas boas intenções das empresas face à sua relação com os trabalhadores. É lógico, para uma pequena empresa cuja produtividade depende de um bom ambiente da empresa, de trabalhadores qualificados, isto não se aplica. Mas para um continente ou para um Pingo 12, ou para um call center, ou para uma grande parte das grandes empresas em Portugal, estas leis aplicam-se. São elas que protegem o trabalho. Mas
José Maria Pimentel
tu não consegues quadrar esse círculo? Tu tens que ter maneira, por exemplo, o Continente, vou usar, é o exemplo até de São Países, que é uma empresa muito grande, muito ligada a muita logística, com muito peso do fator trabalho, portanto com muita gente, mas estará pessoas com produtividade variável, por exemplo. Mas eu
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
não acho que se deva despedir uma pessoa porque a produtividade é variável, eu não vejo o trabalho apenas como... Eu não vejo as pessoas apenas como trabalhadoras e não vejo as pessoas como peças acéfalas numa engrenagem. E, portanto, acho que o trabalho é uma relação importantíssima na vida das pessoas, é um garante de estabilidade pessoal e macroeconómica. Porque, por exemplo, uma das razões para tu deveres ter dificuldade em despedir, nomeadamente em período de crise, é porque se todas as empresas começam a despedir em período de crise, isso só vai aumentar a crise. Se as empresas despedirem menos...
José Maria Pimentel
Mas elas não têm culpa, não é? Ou seja, a empresa não tem culpa. Não estou a dizer que tenham. Está bem, mas se tu simplesmente proibires a empresa a despedir... Não, não estou a dizer proibir.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Estou a falar de um problema teórico, que é, se tu facilitas os despedimentos em altura de crise, isso agrava a crise, é pró-cíclico. Se tu tens uma lei laboral que protege mais o despedimento, tu contens o efeito pró-cíclico. Para além de que...
José Maria Pimentel
Mas, Mariana, eu percebo isso, mas aí a empresa o que vai fazer é... Eu não vou contratar mais gente porque se de repente há uma crise não consigo despedir essas pessoas. Estás a perceber? Mas... A empresa não tem culpa disso.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não estou a dizer que isso é... Repara...
José Maria Pimentel
As pessoas é horrível, quer dizer, não há dúvida nenhuma disso, mas...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Repara, Ninguém está a dizer que a empresa é culpa disso. O que se está a dizer é que há dois lados de uma relação. Há um lado que tem muito mais força que o outro e que o trabalho não é, apesar de se chamar mercado, uma mercadoria que tu compras e vendes e alugas e dispensas a uma relação social, a uma função social do trabalho. Mas
José Maria Pimentel
tu vais pôr o Estado a sobrepor-te? Essa relação social tem que existir, não é? Claro, o Estado tem que sobrepor.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
O Estado está aqui para balizar relações sociais e para proteger relações sociais.
José Maria Pimentel
Mas o Estado está para amparar. Não está para amparar. Para amparar as consequências.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, não, isso é o Estado minimalista. Não acho muito minimalista. O Estado que nós nunca tivemos, ainda bem. Ou seja, o Estado está para regular, o Estado está para proteger, está para impedir abusos, está para definir o que é que são relações laborais. É isso que faz qualquer Estado. Mesmo um Estado que diga que não há limites, que não existia selvagem e escravidão, o Estado está lá.
José Maria Pimentel
Claro, não, atenção, quando se fala em limites de direitos humanos, obviamente estamos a falar disso. O que eu digo é, para tu teres uma economia eficiente, Para tu casares a eficiência da economia com liberdades positivas, tens obviamente que ter um Estado que ampare, ou tens um Estado que não deixas pessoas aos caídos, como é lógico, mas tens que manter uma relação laboral que existe baseada em alguém que está a trabalhar, ou seja, que está a dar o fator de trabalho, e alguém que está a remunerar o fator trabalho. Quer dizer, essa relação existe. Aquele exemplo que tu davas há pouco, de dizer em altura de crise as empresas não podem despedir. O
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que tu vais fazer com isso? As empresas não podem despedir. Se as empresas despedirem menos à altura de crise, a economia melhora e a crise para as empresas é menor. Sim,
José Maria Pimentel
mas o que acontece é, o problema é, lá está, voltamos àquela questão das consequências não previstas ou não intencionais, não é que se tu fazes isso, depois as empresas próximas chegam-se atrás e não contratam.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Depende, depende, mas que é a ameaça permanente. Mas eu não acho, aliás, não só não acho que seja assim, como mais uma vez volto a períodos da história em que as relações laborais foram bastante mais protegidas e em que houve gloriosos anos 30, houve um reganhar de poder dos sindicatos, até por oposição na Guerra Fria, por oposição ao Bloco Soviético, em que esse reganhar de poder, essa ascensão dos sindicatos, essa capacidade negocial, esse aumento salarial e de regras laborais, conseguiram proteger e permitir uma economia mais produtiva.
José Maria Pimentel
Essa é a tese que eu tenho, não é só a minha, que o pior que aconteceu ao capitalismo foi a queda do bloco soviético. Não, porque era o
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
concorrente que obrigava... A precariedade e o medo permanente da instabilidade não tornam ninguém mais produtivo, não
José Maria Pimentel
é? Só destruturam a vida. Por isso é que eu falava do amparo, não
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
é? Mas é que eu não quero amparo, eu quero trabalho. O que eu quero dizer com
José Maria Pimentel
isto é, Mariana, o meu ponto é este, eu admito que... Quer dizer, é um ponto um bocadinho idílico em certo sentido, mas eu acredito nele pelo menos parcialmente, é que voltando àquela analogia da tática, é mais importante... A lei já
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
permite-te pedir, de acordo com vários critérios possíveis, o que a lei não te permite é criar um offshoring, tu despedes a tua vontade. E bem! E a
José Maria Pimentel
lei, admissivamente, não será a mesma da altura que esta história dizia respeito. A história que eu estava a contar.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ah, de...
José Maria Pimentel
Sim, isto teria passado há 10 anos, eu admito até que ela é um
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
bocadinho... Mas eu acho que o que mudou foi mal, entretanto. Pô, não, sim! Acho que a realidade de antes era melhor. Certo, certo.
José Maria Pimentel
Eu sei que sim, eu estou a dizer isso.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Mas há mecanismos que te permitem despedir, caso a empresa tenha um trabalhão financeiro, caso haja a extinção do posto de trabalho, caso haja justa causa, ou seja, tem que haver regras, tem que haver regras, porque não estás de facto a comprar clips.
José Maria Pimentel
Chega de economia. Acho que quem nos está a ouvir já está farto de ouvir falar de economia. Queria perguntar-te umas coisas de aspectos um bocadinho mais gerais, mais políticos da esquerda. Se calhar uma provocação. E que aliás está relacionado com isto. Se a esquerda defende o povo, não é? Defende os trabalhadores, defende no fundo a maioria das pessoas, porquê é que a esquerda não ganha sempre eleições?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Essa é uma pergunta muito inocente. Como? É uma pergunta muito inocente.
José Maria Pimentel
Não é? Quer dizer, é uma... É propositadamente uma pergunta ingênua. Atenção, eu acho que desmontar este puzzle não é desinteressante.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Há uma... Porque tu podes me dar várias respostas. Tu
José Maria Pimentel
podes me dar uma resposta conspirativa, quase, dizer que a esquerda não ganha porque a capital controla não sei o quê, ou então podes dizer, olha, há um problema de passar as mensagens, há um problema de as sociedades tendem a reequilibrar-se e oscilar entre um e outro. Não há nenhuma teoria conspirativa,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
apesar de que depende da esquerda, depende dos partidos em si, eu não sou obrigada a concordar com as ideias de todos os partidos de esquerda e, portanto, há partidos com os quais posso concordar. Mas, pode, no caso português, quer dizer, foi o Chilese, não é? Não, mas é que não é bem assim. A esquerda defende o povo. A esquerda defende um princípio de justiça social e de justiça económica e tem uma visão do mundo completamente diferente da visão liberal. Há quem ache que a sociedade ideal é uma sociedade de competição e que se tiver pobreza terá, e que se tiver desigualdades terá, e que isso é feito em nome de uma economia de mercado.
José Maria Pimentel
Mas em Portugal, um país tão desigual e se as pessoas não… E nos
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Estados Unidos, que é um país ainda mais desigual. E nos Estados Unidos em que as pessoas não têm saúde… Mas é diferente. Morrem à porta dos hospitais… Bem, a pergunta
José Maria Pimentel
é… podia fazer-la para alguém americano, atenção. Morrem à porta
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
dos hospitais e ainda assim tratam o pequeno sistema, a pequena aproximação à saúde como um comunismo
José Maria Pimentel
incrível. Mas é uma matéria muito diferente. Olha a história do empreendedorismo, por exemplo, o empreendedorismo nos Estados Unidos é quase mais de esquerda, por exemplo.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
As escolhas que nós fazemos a cada momento, nós escolhemos os programas com os quais nos identificamos, a mensagem conta, a posição em assuntos particulares conta, às vezes as coisas não têm a ver com a nossa posição na economia. Houve vários momentos nesta legislatura em que houve geometrias muito variáveis. O debate da eutanásia, por exemplo, a legalização da cannabis, enfim, autodeterminação de género e, portanto, tudo isso são matérias que não estão necessariamente ligadas ao sistema produtivo e económico e que contam. Mas há uma, isto não é nenhuma teoria da conspiração, há uma dominação ideológica, a ideologia neoliberal domina as sociedades contemporâneas ocidentais. Domina. E, portanto, quem defende a mensagem dominante está em vantagem, porque só tem que defender aquilo que as pessoas já conhecem e aquilo que lhes é dado de todos os lados. Mas eu não
José Maria Pimentel
acho que seja a mensagem dominante, o fracasso.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Oh rapaz, tu vives numa economia de mercado capitalista. Ah,
José Maria Pimentel
bom, quer dizer, Portugal...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Claro que é a mensagem dominante. Não, Portugal,
José Maria Pimentel
se comparares com os Estados Unidos, é muito pouco capitalista. Se comparares com Cuba, é muito capitalista.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, vai...
José Maria Pimentel
Quer dizer, não é comunista, certo? Sim,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
se comparar dignamente.
José Maria Pimentel
As estruturas... Mas estávamos a falar das ideias, atenção.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Mas é que as ideias não são só aquilo que tu pões num programa eleitoral, as ideias são tudo, não é? Ideologia é tudo.
José Maria Pimentel
A esquerda, por exemplo, uma coisa engraçada, eu acho que tem um equilíbrio saudável. É que tu tendes a ter o tecido produtivo dominado por pessoas mais de direita, quer dizer, acho que não é muito, não tenho claramente dados para isto, mas acho que não é grande exagércia o que eu disser, mas por exemplo a opinião publicada tende a estar mais à esquerda, e até vejo isso nas redes sociais, vejo isso até porque tendem a ter mais intelectuais de esquerda do que direita, o intelectual de direita é uma raridade, por exemplo. Ai,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
não sei nem o que vais buscar essa ideia.
José Maria Pimentel
Quando morreu o Vascar Samoura, por exemplo, eu lembro de ver uma reportagem que falavam
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
disso. Olha, acho que para os comentários te levia. Então, eu vou-te perguntar uma coisa. Porquê que tu achas que, Passados 4 anos de mais brutal austeridade, a austeridade essa que é uma idiotice do ponto de vista económico, que só se usaria para destruir, a austeridade venceu do ponto de vista ideológico. Achas que venceu? Como assim? Porque é que achas que o PSD foi o partido mais votado e o CDS nas eleições? Foi o partido mais votado, mas não o que teve... Aliança, aliança. Sim. PSD e CDS.
José Maria Pimentel
Porquê? Naquelas eleições? Mas vê agora os votos que têm.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, não, pára. Claro. Então dá-me a tua explicação porquê é que eles tiveram aquela votação naquele momento e agora têm esta.
José Maria Pimentel
Eu detesto esse tipo de achismos porque a pessoa não tem dados nenhumes para dizer isso. A minha interpretação tem um bocado que ver com uma espécie de recompensa por terem feito a chamada saída limpa. O que é que isso quer dizer?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Mas porque é que foram recompensados? O que eles fizeram foi destruir o país.
José Maria Pimentel
Foi destruir... Atenção, podia ter sido muito pior. Ou seja, depende do que... Tu achas que a alternativa... Qual era a tua alternativa? Atenção que eu concordo com parte da tua alternativa, ou em relação às políticas de austeridade.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não, não, eu não estou a dizer nada. Há um lado
José Maria Pimentel
daquilo meio, primeiro, há um enorme problema democrático ali. O que eu estou a dizer é, como é que tu convences
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
uma Europa em um país que a austeridade é a melhor solução. Imagina a carga brutal de ideologia que nos foi injetada pelas veias adentro, dizer que a culpa é vossa, vieram-se uma das possibilidades, é preciso sacrifícios, agora vamos ter que sofrer, vamos ter que penar. Nada disto...
José Maria Pimentel
Mas tu tens... Oh Marina, calma alguma coisa. Tens um problema de financiamento nos mercados internacionais. Claro! Independentemente da origem disso, mas tu tinhas... E não há nenhuma razão... Mas tu tinhas o
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que devia ser do euro, não é? E não há nenhuma razão para isso justificar uma saída da austeridade.
José Maria Pimentel
Não, isso... Ou seja, uma coisa é o método para resolver o problema. Agora, existia um problema, ele foi resolvido por um método e tudo irmiás e eu, atenção, concordo parcialmente contigo. Havia um método muito melhor. Só estou a
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
perguntar uma coisa. Como é que a União Europeia e o Governo Português convenceram os povos europeus que a austeridade era a saída da crise?
José Maria Pimentel
Não convenceram todos. Certamente. Não convenceram todos.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Mas convenceram. Convenceram com uma carga ideológica brutal. Brutal. Tu todos os dias tinhas na televisão comentadores, para quem acha que não há comentadores de direita, ideólogos de direita a enfiar para a veia das pessoas toda a narrativa da austeridade, das causas da crise, do Estado que vivemos a ter a ir para fora, da irresponsabilidade de não sei o quê. As causas são muito mais estruturais que essas e quando a Europa ia ter uma crise mais rápida ou mais cedo era óbvio.
José Maria Pimentel
Mas a austeridade e mercados livres são coisas diferentes. Estão correlacionadas, quem as defende, mas não são a mesma coisa, não é? Sei lá, o Medina Carreiro, por exemplo, que passava a vida na televisão a insurgir-se contra os gastos do Estado. Não era propriamente um liberal... Não,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
por curiosidade, quando foi Ministro das Finanças, teve a sua boa dose de gastos, mas
José Maria Pimentel
isso... Foi Ministro do PS, sabe ou não foi? Ou do...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não sei se do PS ou do Bloco Central. Eu acho que foi do Bloco Central, não tenho certeza.
José Maria Pimentel
Mas era da área do PS, pelo menos originalmente? Não
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
estou segura.
José Maria Pimentel
Eu também não tenho certeza. Mas pronto, não era de todo um multilinear, as duas coisas não estão relacionadas. Mas desculpa, nós entretanto desviámos...amos sair da economia. Não, íamos sair da economia e íamos falar da questão da esquerda. Eu
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
acho que isso é um
José Maria Pimentel
puzzle. Eu lembro-me de ouvir uma coisa quando era miudista, quando era mais novo e começava a interessar-me por estas matérias. E lembro-me de ouvir mais do que uma vez pessoas dizerem, amigos meus ou pessoas conhecidas, dizerem, de esquerda, e dizerem qualquer coisa deste género, que era um bocadinho inocente, eu admito que a pessoa depois esqueça disso, mas é a dizer aquela história de dizer, é tão evidente que a razão está à esquerda, que no fundo quem não vê coisa assim ou está mal intencionado, ou é burro, ou está mal informado. E isso era muito comum, e eu acho que a esquerda tem esse problema, verdadeiramente, estou a dizer isto agora, não para te provocar, mas porque acho mesmo que esse é eleitoralmente uma coisa que às vezes funciona mal, que é transmitir uma certa sobrançaria, uma certa... Um certo direito, às vezes houve-se aquela crítica quase como se fosse um direito divino a governar.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não é bem porque quem se comportou com esse direito divino, aliás nós em Portugal temos dois partidos que acham que têm o direito divino a governar, com incursões por um terceiro. Portanto, eu não acho que esteja a questão do direito divino a governar.
José Maria Pimentel
Quer dizer, esta é a minha opinião naturalmente, mas eu acho que transmite um bocadinho...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Eu tenho muita dificuldade em analisar isto assim. Agora, que eu acho... Porque é que eu acho que isso existe? Tu tens desde os anos 70 uma... Tu nos anos 70, quando tiveste o Reagan e a Thatcher, tiveste uma mudança sistémica e estrutural na organização do sistema capitalista, tiveste o início do neoliberalismo, Foi aí que começou a perda de poder dos sindicatos, a estagnação salarial, a finança, os mercados livres, a economia de mercado, começou nos anos 70 desta forma. E ao longo destes anos, a esquerda, as desigualdades salariais, a destruturação do Estado Social, etc, etc. E ao longo destes anos, a esquerda, a mais variada esquerda, ou seja, a esquerda mais radical, a socialdemocracia tradicional foi dizendo, isto não vai funcionar, isto é um sistema de crise, isto é um sistema instável, Isto é um sistema que não vai dar resposta. Isto não... Quase até parecia-me um bocado erótico da desgraça. E a verdade é que este sistema está cheio de buracos. E só que os seus promotores estão tão viciados nele e tão embranhados nele que não o conseguem ver ou admitir. Portanto, aquilo que parece a arrogância da esquerda, que tem sempre razão, é, acho a minha interpretação, pois cada partido terá o PCP ter a sua arrogância, porque tem a sua idade, a sua história, a sua história de condicionidade, porque tem… enfim, tem o seu passado. Por acaso, sim, acho o PCP menos arrogante até. Talvez por esse passado, talvez por essa… Cada um terá a sua interpretação. Mas muitas vezes tem a ver com isso mesmo, tem a ver com a posição de quem acaba por estar muitas vezes a criticar, porque está no papel de que não está a decidir as políticas, mas está a criticar as políticas que são feitas, e muitas vezes já agora com razão, deixe-me dizer-te, porque muitos disparatos foram sendo feitos. Sim, imagino que é. O que não quer dizer que não possamos estar do outro lado, ou que não possamos participar naquilo que está a ser feito. E portanto, acho que é uma explicação possível. De resto, serão sempre estilos pessoais, que às vezes são caricaturas que são feitas. Muitas vezes criou-se essa ideia da esquerda um bocado para descredibilizar também e, portanto,
José Maria Pimentel
enfim. Há outro aspecto que eu acho que causa também essa aparente puzzle, que isso não seria possível mas da esquerda vão ganhar as eleições todas, que tem que ver, e nesse eu sou mais solidário, que tem que ver, isto no caso particular português, como a certa aversão à mudança. Eu tenho esta teoria, que já não é a primeira vez que falo dela, sobretudo no caso português, mas acho que não é só no caso português, a esquerda tende a estabelecer o debate político, ou seja, a esquerda é que traz a proposta para a mesa e estabelece aquilo que vai ser discutido em todas as matérias, seja de economia, seja de costumes, de tudo mais, lá está. A altura da crise foi um bocadinho uma exceção nesse aspecto. E há uma certa aversão, Tu vês isso, por exemplo, com matérias de costumes, é muito visível. E dizem, estão estes gajos outra vez. Agora querem mudar aquilo.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Em termos de costumes, por exemplo, o bloco de esquerda faz isso. Não é a esquerda.
José Maria Pimentel
E a esquerda do PC não. O
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
PC, por exemplo, vai falar com o CDS.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Portanto, todas as generalizações acabam muitas vezes por... Neste caso... Sim, mas quem traz vem da esquerda para todos os efeitos. Eu não estou a dizer que é toda a esquerda,
José Maria Pimentel
estou a dizer que vem de lá. Não vem da... Porque... Isto não é uma crítica, Mariana. Isto é um... Não, porque é sério. Tu a identificas um sintoma. Vamos colocar
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
as coisas de outra forma. Tu tens a esquerda progressista e tens os conservadores. Os conservadores querem conservar. É o que fazem, conservam as coisas. E, portanto, é isso que existe. E, no caso dos costumes, esta diferença nota-se muito entre os progressistas, quem quer sempre avançar em mais direitos, em mais liberdades, em novas formas de organização da sociedade, e quem está muito preso a modelos do passado, à manutenção da ordem como ela é, da vida como a conhecemos. Mas
José Maria Pimentel
como é que tu vês esse conservadorismo do PC, por exemplo?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
O PCP é um partido conservador.
José Maria Pimentel
Conservador por ter um modelo que, quer dizer, dependendo de onde quer que o queremos situar, situava no século XIX ou no meio do século
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
XX. Não tem a ver com século XIX ou século XX, e muito menos, se pode estender essa análise a todos os aspectos de política que o PCP propõe. Mas no campo, por exemplo, das liberdades individuais, O PCP é um partido conservador. Nunca verás o PCP... Aliás, ainda hoje... Não posso dizer hoje porque isto vai passar a outro dia qualquer, mas ainda
José Maria Pimentel
hoje... Um certo dia...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Um certo dia, uma vez, há muito, muito, muito tempo, no Parlamento, votou-se a legalização da canábis para consumo e tu tens o PCP a fazer um discurso que difere muito pouco do discurso do CDS. E o mesmo se repetiu na eutanásia. E o mesmo se repetiu em muitos casos com... E foi preciso muito tempo para conseguir que o PCP mudasse a posição do alimento ao casamento, entre pessoas mesmo-sexo, à adoção.
José Maria Pimentel
Sim, sim, foi um bocado a contra gosto, sim.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Sempre resistiu muito a
José Maria Pimentel
essa mudança social. Ou seja, tu vês isso como fazendo parte de uma mundividência que…
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Eu não consigo fazer essa análise, falha minha. Acho que reflete um conservadorismo na forma como o PCP vê a sociedade. Acho que isso é factual.
José Maria Pimentel
Sim. Não é, claro que sim.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Mas não vou muito mais longe na minha análise.
José Maria Pimentel
Sim. E tu, enquanto tu, não só pessoa de esquerda, mas enquanto agente política, tu és sensível a essa, como é que eu ia dizer, a essa aversão à mudança da parte do eleitor? Ou seja, a noção de que, independentemente de haver uma série de mudanças sociais que a pessoa acha que são boas, pode haver constrangimento em termos de timing. Ou seja, se nós formos demasiado apressados nelas, podemos estar a...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Ah, como é lógico, não é? Quer dizer, a sociedade tem os seus tempos, tem as suas maiorias, os seus momentos, mudar a sociedade é isso mesmo, são coisas dinâmicas e as maiorias de hoje não são as maiorias da manhã. Eu lembro-me quando começou a crise, nós na altura, desde o início, pá, temos uma denúncia muito forte das políticas de austeridade e sobre a necessidade de reestruturação da dívida. Caluteiros! Caluteiros! Não querem pagar a dívida e não querem ajustar as contas públicas. Passado 10 anos, tu tens os maiores economistas mundiais a dizer, bom, se calhar uma reestruturação da dívida teria sido uma forma bem melhor de lidar com a crise e a austeridade se calhar foi um disparate.
José Maria Pimentel
Estavas a falar do quê? Do Krugman?
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Com oito pernas. Não só o Krugman, o Stiglitz, Tu tens tipos como o Bernanke e o Larry Summers a dizer isto é um programa de procura de austeridade, foi um disparate. Claro, e
José Maria Pimentel
fora da... Era aquilo que eu te disse há bocadinho, fora da... Aliás, acho que esta conversa, se puder servir para alguma coisa, Eu acho que era útil que servisse para isso para quem nos ouve, porque uma coisa é a política, a política tem esse defeito de um lado e do outro, e eu adoraria que Portugal fosse diferente, mas reconheço que é difícil e não há uma parte que seja mais do que a outra, tende a ser muito linear. Tu achas que
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É só em Portugal que a política se faz. Não, não é, não, atenção, não estou a dizer que é. A política está sempre por muito refém de imediatismos e de bipolarização. E de
José Maria Pimentel
manter uma espécie de coerência, não é? Tem um tempo da tênis limitado, não pode estar provavelmente a fazer…
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
E muitas vezes só passam aquilo que querem passar e a tua mensagem sempre passa na totalidade. Por exemplo, tu tens um debate em qualquer lado em que expões os teus argumentos e dizes é pá, nisto acho bem, nisto acho mal, aqui disse muito bem, aqui não sei o quê, aqui estou próximo, aqui estou longe. O jornalista que edita esse debate provavelmente vai tirar uma frase de um e uma frase de outro então todos abateram-se os outros. Mas o debate se calhar não foi bem assim, se calhar foi um bocadinho mais construtivo. Até porque
José Maria Pimentel
os tremos, neste sentido das declarações, chamam mais a atenção.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Claro, e portanto também se cria uma ideia de sensacionalismo e de permanente conflito. Às vezes existe muita cooperação também, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, claro. E neste caso da crise e tudo o que rodeou a crise, não quer dizer que as pessoas tivessem necessariamente razão no que diziam, mas A heterogeneidade de posições fora da política era muito maior do que dentro. Tinha uma série de economistas a ter visões que pelo menos não eram iguais.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Começou a ser. Começou a ser, mas em Portugal houve uma grande legitimação.
José Maria Pimentel
E o Krugman é um economista de esquerda nos Estados Unidos. Para Portugal eu tenho um bocado de dificuldade de o qualificar como economista de esquerda.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Não é um economista de esquerda.
José Maria Pimentel
Para os Estados Unidos é. Para os Estados Unidos é. Ele tem um livro chamado Constance Over Liberal. Portanto, é um economista de esquerda. Liberal no sentido americano. Mas
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
percebes? É que está tudo muito tropado. Mas
José Maria Pimentel
não acho que seja. Mas
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
não tem só a ver com o facto de ser economista de esquerda ou não. Repara, os economistas dos Estados Unidos não compreendem a ideia da austeridade. Acham que é uma automutilação desnecessária. E acho que quase todos os economistas, tanto de direita como de esquerda, provavelmente vão dizer isto. Que história é essa? A austeridade é um produto local da União Europeia e do FMI, que adora impô-la a tantos países quanto
José Maria Pimentel
pode. Sim, e É preciso dizer também que havia ali um problema político independentemente do problema económico, como se viu na Grécia. Ou seja, a Grécia... Eu acho que
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
havia um problema político, foi o Banco Central Europeu que chantageou a Grécia e um governo democraticamente eleito.
José Maria Pimentel
Claro, mas não é económico. Mas vocês acham que há um problema político maior que a democracia? Epá, o que é que é isso? Não, não, mas é isso que eu quero dizer. Ou seja, independentemente da questão económica, se devia ou não ter austeridade,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
tinhas ali um problema político a resolver. E a Grécia
José Maria Pimentel
tentou ir contra ele e não conseguiu. E a meu ver até é muito mal tratado.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Vivemos de uma grande democracia.
José Maria Pimentel
Eu gosto muito do Varoufakis, que era um tipo que era mais ou
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
menos detestado. Acho que por acaso, contrariamente a... A sério? Querias uma opinião pessoal? Então vamos acabar da melhor maneira. Querias uma opinião pessoal? Não, eu percebi a importância do Varoufakis e acompanhei o processo grego com muita esperança e muito perto. Eu fazia parte daquele grupo de ingénuos e disse-o em público e, portanto, também já fizesse meia-culpa, que achava que as instituições europeias, quando confrontadas com um governo democrático e soberano e democraticamente legitimado, iriam ceder. Nunca achei que a chantagem chegasse a estes níveis e eu própria fiquei chocada com o que se passou. E nunca mais consegui olhar para a Europa da mesma forma, para as instituições europeias da mesma forma. Mas, independente desta análise, por acaso nunca achei que o estilo, que a tática do Varoufakis fosse
José Maria Pimentel
a melhor. Ah, é a tática? Sim, sim.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Nunca foi uma figura... Ou seja, percebo a sua importância política naquele momento, estou um pouco de discórdia das ideias dele, vibrei com a coisa, mas sou muito crítica da figura. Eu
José Maria Pimentel
acho um tipo ultra-inteligente, por isso é que Eu sou um bocado sensível a esses aspectos e sempre gostei de um tipo de outro inteligente, embora fosse um bocadinho leviano em algumas coisas, mas pode-se dizer que tu ali tinhas um grande problema. O processo estava todo mal construído de início e tu tinhas o problema de que, para todos os efeitos, a Merkel era eleita, e seria eleita, ou viria a ser eleita se voltasse a candidatar, pelos eleitores alemães. E é um problema... Porque não é direita nem de esquerda, é um problema da arquitetura daquilo desde o início. Mas enfim, bom... Vamos terminar e eu vou te pedir a... Olha, eu ia te fazer uma pergunta no final, quase que me respondeste, ia te perguntar se tinhas alguma coisa em que não te sentisse de esquerda. Se calhar eu não sou grande fã de levar o fax. Pá, pá, pá, pá, calma aí, calma aí, calma aí. Eu, como te disse, não estou a justificar. Eu não gosto do estilo de levar o fax, mas é óbvio que apoiei o
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
governo e a sua... E que pena, eu achei que tu fosse dizer espera, espera, espera, eu tenho outras coisas em que não me sinto de esquerda. Não, pá, não, sabes que... Muitas vezes acham que isto é tudo uma cartilha que a gente engole e... Por isso é que eu estou... Eu acho que esta pergunta gira nesse aspecto, porque... E eu acho que É uma forma de estar na vida. Eu penso assim, esta é a minha estrutura de pensamento, eu aprendi a olhar o mundo assim. E isso não faz com que eu concorde sempre com tudo. Mas eu tenho a minha análise, tenho a minha grelha de análise com que concordo o mundo. Mas
José Maria Pimentel
há alguma coisa nessa grelha que não intercete completamente a...
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
É muito difícil dizer-te...
José Maria Pimentel
É difícil dizer-te de repente, depois de dizer-te outras coisas.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Porque não quer dizer que em casos concretos não posso concordar mais com uma postura ou com outra postura, ou não tente compreender o outro lado, e não tente ver e ouvir e compreender os diferentes lados da balança, mas eu tenho... A minha grelha é muito bem definida e portanto eu não tenho as respostas à partida, mas a minha grelha é sempre a mesma. Portanto é provável que eu chegue a conclusões com base na minha grelha de análise, que vão ser relativamente enquadradas naquilo que irias dominar de esquerda. Mas, pito, não tenho uma cartilha na minha mesa de cabeceira que o meu partido me entregou, que eu leito às manhãs com as posições que tomo. É a minha forma de ver o mundo.
José Maria Pimentel
Até por isso é mais difícil responder a alguém de esquerda. Há aquela frase, não sei se conhece, costuma-se dizer que a direita procura convertidos e a esquerda procura heréticos. Não sei se conheces essa frase.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
E não me lembro de mais nenhum a não ser este. Talvez seja adequado ao momento em que vivemos. Por acaso, são dois livros engraçados. Sobre dois antípodas... Não sei se eram antípodas... Há um livro chamado As Benevolentes, que é um livro nada levezinho, nem em tamanho, nem em profundidade. Que é um livro, para quem já ouviu, é um livro vermelho, assim, grosso e grande, que é escrito por um francês, Jonathan Littell, e que fala basicamente... O Livro dos Benevolentes é a história de um soldado e membro do exército... Das SS, do exército nazi. Sim. E que conta, para além da história pessoal dele, conta toda a passagem dele ao longo da Segunda Guerra pelas diferentes frentes do exército nazi. O tipo é um soldado raso ou um soldado com pouco poder, depois vai para um campo de concentração planear, é o tipo que planeia como é que nós minimizamos os recursos que precisamos para matar os judeus, como é que se mata mais os judeus, é produtividade no fundo, como é que se mata mais os judeus com menos recursos, dirige um campo de concentração, está na frente de batalha com os russos e é um livro pesado, historicamente muito bem fundamentado, muito bem escrito, que tem uma mensagem por trás que é sobre a banalidade do mal. Ou seja, como é que tu olhas para aquele homem e até te relacionas com ele, ou seja, é um homem, é um ser humano, é uma pessoa com sentimentos que até nem sempre concordou com aquilo que estava a ser feito mas a verdade é que ele estava dentro da engrenagem que estava a produzir aquilo, que estava a matar aquelas pessoas, que estava... Como é que tu consegues criar um regime de alienação tão grande em que tu banalizas este nível de
José Maria Pimentel
Sim, sim. É só uma peça na engrenagem.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
De maldade, ou seja, como é que tu aprendes a olhar para isto como se nada fosse, como se fosse... E eu acho que nós temos que estar muito atentos, porque na sociedade torna-se muito fácil perder o pé e muitas vezes achamos tudo bem mas são os ciganos ou são os não sei o quê, ou é com os pretos, ou é com os imigrantes, ou é com aqueles árabes que não estão tão terroristas. Até
José Maria Pimentel
porque é uma explicação simples. E quando tu dás
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por ti estás a deixar que se prendam pessoas inocentes ou estás a deixar que se abuse do poder em nome dessas tais ideias e elas acabam invariavelmente em regimes absolutistas. E, curiosamente, e para que não digam que eu não tenho uma visão abrangente da literatura, o pai deste Jonathan escreveu um livro muito bom que se chama Epigrama de Staline, que é um livro sobre a loucura do stalinismo e a perseguição que o stalinismo fez. É um bocadinho oposição, embora com características muito diferentes, atenção, muito diferentes, não vamos comparar uma coisa com a outra, mas a oposição que o estalinismo fez a todo o grupo intelectual livre, bem, para além da oposição que fez a muitas outras pessoas que não pensavam como ele, que a enviou para campos de trabalho forçado. E, portanto, é a luta dos intelectuais livres com o regime de Stalin e com a sua violência. Tu
José Maria Pimentel
achas que é comparável pelas consequências ou pelos requintes de malvadez que o... Não,
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
porque eu acho que nós não... Nenhum regime é comparável. E se nós os quisermos comparar, estamos a abdicar de um conjunto de análises...
José Maria Pimentel
De doenças. Não, mas percebo que o que estavas a dizer que não era comparável no sentido de ser menos mau.
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
Estavas a dizer no sentido de ser diferente, certo. Eu
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
não quero comparar. Não é comparável porque eu acho que nós não podemos comparar o que é mau e o que é pior entre um genocídio em massa de judeus homossexuais e pessoas com deficiência e um regime de total supressão da liberdade e de censura e de envio de pessoas para campos de concentração.
José Maria Pimentel
Sim, para os gulagues, não é? Sim, sim. Por
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
razões de liberdade política E, portanto, são os dois muito maus. Não quero ser chamada a compará-los porque
José Maria Pimentel
estão sendo comparáveis. Porque parece que o que estavas a dizer que um era menos mal do que o outro. Estás a dizer
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
que são diferentes. Não, o que eu queria evitar é precisamente isso. O que eu queria evitar é que fosse visto como um contraponto do outro. Como se o Stalinismo fosse o nazismo da Rússia. Pá, acho que os países não têm histórias comparáveis, não é possível e não quero e não quis fazer essa comparação. Tive medo que parecesse uma comparação, por isso é que disse não,
José Maria Pimentel
só comparar. Certo, certo, certo. Está bom. Olha, Obrigado por teres vindo. Nada, obrigado eu. Espero que tenhas gostado. Sim. Desta troca de ideias. Obrigada
[série Orientações Políticas] Mariana Mortágua
pela oportunidade.
José Maria Pimentel
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