#39 Luís Meneses do Vale - "Como é que a filosofia política e do direito nos ajuda a analisar...
Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar
José Maria Pimentel
Bem-vindos. O convidado deste episódio é Luís Menezes do Val, docente na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Há algum tempo queria trazer
um tema na área do direito ao podcast, sobretudo porque, como o
convidado diz a certo ponto, o pensamento no direito, fora daquela aplicação
prática com que, querendo ou não, lidamos todos os dias, acaba por
ser pouco conhecido fora das salas de aula. O Luís foi-me recomendado,
por mais do que uma pessoa, como o interlocutor ideal para falar
sobre filosofia política e do direito, uma área não só de ensino
como também de investigação sua. E não defraudou, como vão perceber. Na
verdade, a filosofia do direito e mais especificamente o tema da justiça
foi apenas o mote da conversa que rapidamente nos levou para outros
temas à boleia da erudição extraordinária do convidado. E erudição e não
cultura ou conhecimento, por exemplo, é a mesma palavra indicada, como já
vão perceber. O modo, como disse, era a filosofia política e do
direito. E dentro desta, é incontornável o livro Uma Teoria da justiça
de John Rawls, a obra mais importante do século XX nesta área
da filosofia que foi publicada em 1971. Vale a pena resumir aqui
a essência do livro, visto que acabamos por rapidamente saltar para as
suas implicações. O grande golpe de asa que Rawls traz ao debate
sobre a justiça social é, como todas aquelas grandes ideias, daquelas coisas
que parecem depois de ouvidas quase óbvias. O desafio que Rawls nos
lança é que desenhemos uma sociedade justa com base num simples artifício
que nos propõe e é que chama véu da ignorância. Especificamente o
que o autor sugere é que imaginemos um cenário em que temos
de decidir a sociedade ideal para virmos a fazer parte, partindo de
um ponto de partida em que a nossa situação nessa sociedade nos
está tapada por esse véu da ignorância. E por isso não sabemos
qual será a nossa posição social, a que classe vamos pertencer, que
gostos teremos, personalidade, que talento teremos ou mesmo qual a moral que
vamos ter. Rawls pergunta então ao eleitor que princípios de justiça escolheria
definir nesta sociedade em que, recorde-se, não sabem que posição inicial vai
calhar. A conclusão para Rawls é simples, é que uma pessoa racional
irá inevitavelmente achar necessário que essa sociedade tenha regras segundo as quais
ninguém seja favorecido ou desfavorecido com base na sua situação inicial, uma
vez que nenhum de nós quereria correr o risco de sofrer consequências
negativas por ter azar na posição social ou no talento, por exemplo,
que lhe calham. Esta obra foi verdadeiramente revolucionária, porque mudou o âmbito
do debate sobre como construir uma sociedade justa e tornou-se daí em
diante o ponto de partida inevitável para todas as conversas sobre justiça.
A argumentação que Rawls faz está na confluência de duas correntes culturais
distintas, a do utilitarismo, de Jeremy Bentham e de Stuart Mill, por
exemplo, por um lado, e as teorias do contrato social, de Rousseau
e de Kant, por outro. Sendo que Rawls critica explicitamente a primeira,
ou seja, o utilitarismo, embora não recuse a sua metodologia. Houve essencialmente
duas respostas críticas à teoria de Rawls. Falámos, ampassando de uma delas,
o comunitarismo, que critica aquilo que vê como individualismo implícito na teoria
de Rawls e enfatiza que qualquer um de nós nasce numa determinada
comunidade e é indestrinçável desse grupo em que nasce. Uma das figuras
dessa corrente do comunitarismo é justamente Michael Sandel, de quem falamos também
na conversa a propósito da cadeira da Universidade de Harvard sobre justiça,
na qual são abordados muitos destes temas. Os vídeos das aulas desta
cadeira estão disponíveis no YouTube, onde tem milhões de visualizações e recomendo
altamente vê-los. E já sabem, para apoiar o podcast desde apenas 2
dólares, ou seja, menos de 2 euros, basta ir a patreon.com.br. Pode
encontrar na descrição deste episódio o link para este site, juntamente com
as pessoas, eventos e livros de que fomos falando ao longo da
conversa. Até à próxima! Pronto, eu tinha desafiado, como estava a dizer
há bocadinho, acho que ainda houve, tinha desafiado para falar de filosofia
do direito e filosofia política, que é uma área que eu acho
muito interessante e é uma área sobre a qual estou a trabalhar,
quer dizer, não estar na fundação do direito e na fundação da
organização política, até da organização económica da sociedade, eu acho uma área
da filosofia muito interessante, eu tenho uma relação um bocado ambivalente com
a filosofia porque me começa a desinteressar quando a filosofia se torna
muito meta, ou seja, quando começa a estar mais do que a
um grau de diferença da realidade. Este não é um caso desses,
este é um caso que está claramente a um grau de diferença
da realidade, quando não menos do que isso, ou seja, tu estás
a lidar com temas que dizem respeito à concepção
que
nós temos de quais devem ser as liberdades económicas, por exemplo, aquilo
que tu aludias à pouco da liberdade do trade-off, após a uma
reflexão económica, liberdade versus segurança, ou aquilo que é a liberdade de
eu querer fazer com a liberdade dos outros poderem fazer outra coisa,
qualquer, aquela história das liberdades positivas e negativas e depois tem que
ver com uma série de outras coisas, tem que ver com em
qualquer caso daqueles de, qualquer caso judicial desses que andam nas notícias,
subjacente estão muitas questões destas que estão na filosofia do direito. O
que é que é justo, é justa, o que é que é
justo decidir em relação àquele caso, aquela pessoa está a ser tratada
de forma justa, não está a ser tratada de forma justa. E
a última análise, depois disso é que é interessante, aliás, se calhar
até é a grande questão que existe nesta área atualmente, é que
a última análise nós confrontamos não só... Ou por outra, aquilo que
é justo é indistrinçável da noção de bem, Que é variável de
pessoa para pessoa, não é? Aliás, o John Rawls, até podemos começar
por ele, tu falavas há bocadinho mas acho que ainda é off,
que tem um modelo que eu acho fascinante, quando apanhei-o a primeira
vez achei aquilo... Quer dizer, como
Luís Meneses do Vale
a certeza melhor do que eu para quem está a ouvir. É
que de facto o exercício do Rawls, que nesse aspecto é claramente
uma preocupação kantiana, é sedutor, seja qual for a área, porque é
no fundo um esforço de universalização do pensamento. O que nós estávamos
aqui a dizer tem, apesar de tudo, acho eu que cala fundo
nas pessoas, porque há um lado de reflexo de Hartman, também no
século XX, dizia isso, de o pensamento ser um dobrar-se sobre si
mesmo. E essa descoberta tem um pouco que ver com o facto
de que o grau de apreensão por socialização primária e secundária do
mundo à nossa volta é tremendo e desenvolve-se em planos de consciência
também muito diferenciados. De maneira que não é descabido, eu sou um
tipo muito marlopontiano, não é descabido que nós digamos que o nosso
corpo sabe muito mais do que nós somos capazes de alcançar. E
que há aqui uma relação quiesmática, simbiótica com o mundo à nossa
volta. E que pensar não é, em grande medida, senão esse esforço
de refletir, de nos voltarmos sobre nós mesmos, sobre as coisas. O
que depois tem um lado doente e a tal metadescursividade e metareflexividade
é isso levado a exagero. Exato. Há um grande jurista, Augusto Averrado,
que dizia uma coisa com muita graça, é que as disciplinas obcecadas
com a metodologia estão doentes, normalmente. Porque estão, no fundo, têm qualquer
problema de identidade, estão permanentemente num umbilismo tremendo a tentar descobrir quem
são e o que são. Ora, a má fama, num certo sentido,
da filosofia, para muitas pessoas vem de uma corrente que até surgiu
para disciplinar o caráter nebuloso, especulativo da filosofia continental, que é a
tradição analítica anglo-saxónica. E o Rawls inscreve-se nessa linha. E a tradição
analítica, de facto, traz ao pensamento filosófico a clareza de um raciocínio
de pergaminhos lógicos, com procedimentos pelo menos lógicos, ou então que quando
apela a bases empíricas ou de verificabilidade empírica é também muito transparente
nos limites e nas possibilidades dessa invocação, quando a tradição continental tem
uma outra base realmente. E o que o Rawls faz, em alguma
medida, é isso mesmo nos outros ensaios, nos mais filosóficos, é uma
pessoa com uma preparação, quem lida depois fora das questões de filosofia
política com os outros opúsculos dele, apercebe-se que realmente não é por
acaso que a obra, apesar de tudo, tem aquela qualidade, concordes ou
não, o que ele faz é uma tradução, com algumas reduções de
complexidade, mas uma tradução do pensamento kantiano, de determinação de um conjunto
de transcendentais, que ele destranscendentaliza, mas que erguem pressupostos básicos para a
definição de uma perspectiva partilhável por quem quer que seja. E nessa
medida ele vai identificar muito na tradição, na própria tradição da chamada
moralidade, a moralität em alemão, por oposição à ética substantiva, quais são
os princípios procedimentais, digamos assim, da justiça, enquanto que o bem, esse
seria uma construção cultural e, portanto, no sentido também da doutrina das
virtudes kantiana, não teria como deficiência filosófica essa dimensão não crítico-reflexiva que
está associada. Agora, chamaste a atenção aí para uma coisa que era,
a meu ver, fundamental. É que, e aqui já entramos num território
de maior polémica, O Paul Ricoeur foi dos autores que fez um
esforço, foi um homem toda a vida de sínteses e fez um
esforço por mostrar o que me parece uma evidência, é que esse
esforço de imparcialização da perspectiva é sempre local, é sempre situado e,
portanto, a crítica a que o Rawls nunca se fortará é de
que ele não consegue formar uma view from nowhere, como diz o
Thomas Nigel, que é... É a questão do bem, não é? E
é justamente isso. É que Os pressupostos que depois subtilmente entram na
perspetiva dele, por exemplo, a suposição de um homem razoável. Este homem,
que apesar de tudo não conhece o seu lugar na sociedade, tem
de ser um homem capaz de perceber o bem, capaz de discernir
o correto do incorreto. Ou seja, não é afinal de contas uma
pura tabua rasa, é um ente
José Maria Pimentel
com certos conteúdos.
É que
Tu já avançaste dois quilómetros e não explicámos qual era o princípio
dele, aquela questão do véu da ignorância que é o que está
sobre o 68. O que ele dizia era, o que ele propunha,
no fundo dizia assim, o que ele propunha era a pessoa imaginar
o que é que aconteceria se um conjunto de pessoas, uma espécie
de assembleia constituinte, uma coisa assim do género, de pessoas fora da
sociedade. Eu acho que ele... Eu tenho ideia que ele até dava
o exemplo do Mayflower, não é? Daquele barco dos pilgrim, dos imigrantes
aí para os Estados Unidos. Ou seja, a pessoa está fora de
uma sociedade, a sociedade não existe e tem que definir quais serão
as regras sobre as quais aquela ou sobre as quais aquela sociedade
será construída tendo em conta que não sabe onde é que vai
parar naquela sociedade, não sabe se será rico, se será pobre, em
que tipo de família é que vai, a cor da pele, quer
dizer, tudo mais e aliás ele tem até mais do que isso
porque ele propõe que a pessoa não saiba sequer qual é o
carro de inteligência que vai ter, que é uma coisa muito difícil,
pois é que tudo isto é muito difícil de compatibilizar e até
mais do que isso, e isto está relacionado com o ponto que
estavas a fazer, a pessoa não sabe a maneira como vai pensar
isto é ultra difícil, Isto é levar a coisa muito longe. Não
é simplesmente eu imaginar-me colocado à sorte numa cidade e não saber
se vou sair numa família rica ou numa família pobre. Não, eu
não sei se vou sair conservador ou progressista, se vou sair tímido
ou austrocratista. E o que é interessante
Luís Meneses do Vale
acho é que, tal como acontece, fazendo uma declaração de interesses, eu
sou mais... Não sei se é que isto faz algum sentido, não
é? Mas a pessoa às vezes arranja estas bengalas. Eu sou mais
hegeliano do que kantiano. Mas do Hegel que lê o Kant e
que reconhece que o Kant não basta, mas que há um momento
kantiano no pensamento que é incontornável. E esse momento kantiano está no
Holze, que é esse exercício de controlo crítico, reflexivo das nossas perspetivas
de partida, das nossas pré-compreensões, é muito salutar. Pois é. Nós dizermos
até que ponto é que se a perspectiva do homem mau, como
diria o Kant, será que esta perspectiva podia ser aceite por outra
pessoa? Esse exercício é muito saudável mesmo quando não funciona em absoluto.
E a ideia do Rawls era, pura e simplesmente, determinar condições de
equidade nesta perspectiva e de lealdade na vida social, que é, como
é que eu sou capaz de determinar um conjunto de princípios que
qualquer ente com lealdade e em situação de equidade subscreveria. E há
um lado curioso porque este cantismo é contratualista por causa disso, mas
vale a pena fazer esse exercício. É que um dos grandes debates
da modernidade, também muito simplificado na complexidade, sempre teve que ver com
isto, que é a relação do indivíduo com a comunidade. Isso é
transversal, quer à filosofia do direito, quer à filosofia política. E se
nós formos a ver o Ferdinand Tönnies, que escreveu uma tese, que
depois, claro, também os seus epígonos fizeram dela o que quiseram, ele
foi associado ao nazismo e tudo, ele próprio teve de escrever uma
vez um texto a dizer que não o associassem, que ele era
um homem progressista, porque ele fez a matécia sobre sociedade e comunidade,
onde de maneira um pouco esquemática, como em todos os raciocínios binários,
dizia bem, nasce-se na comunidade, a sociedade cria-se, constitui-se. E a verdade
é que isso acabou por ir ao encontro de um conjunto de
representações que se impuseram na modernidade. O pensamento contratualista, de base já
nominalista, voluntarista, filtrada pelo protestantismo, tem essa marca muito importante que é
aos sujeitos individuais e à Deus. E o mundo organiza-se de acordo
com a vontade divina e com a vontade dos indivíduos. Não há
que pressupor estruturas, conteúdos, instituições, referências culturais transcendentes ao indivíduo. O indivíduo
é que estabelece as suas próprias regras. À parte disso, tem as
relações com Deus. Isto vem à propósito de quê? É que o
exemplo do Mayflower mostra porque é que há um oceano separado do
continente da América. É que no Mayflower assinou-se, de facto, uma convenção.
Essa mitologia de criar uma sociedade do zero, definir as regras com
que os indivíduos iam criar a sociedade, tem uma sustentação empírica, porque,
de facto, os peregrinos fizeram isso entre eles. Eles chegaram... E uma
das origens dessa concepção deles é porque eles reliam o Antigo Testamento
como uma aliança, como um contrato com Deus. E assim como havia
um contrato com Deus, eles deviam celebrar um contrato entre eles, estabelecendo
as regras segundo as quais se iam reger. E isto é curioso,
porque nos debates internacionais, eu às vezes digo, isto é uma blague
quase, mas eu digo, é por isso que os iguelianos são perigosos
na Europa e muito produtivos nos Estados Unidos da América. E com
os kantianos acontece o contrário, os kantianos na Europa são muito interessantes,
nos Estados Unidos dão libertários muitas vezes perigosos. Porquê? Porque lá a
pressuposição natural da comunidade e das responsabilidades pela inserção comunitária não exerce
o contrapeso que nós temos cá. Cá, em contrapartida, há que vigiar
sempre, parece-me a mim, os apelos à comunidade. Porque o Volk, o
povo, nós vimos que tanto deu para, antes da União Alemã ser
o Wiesn-Das Volk, dos protestantes em Leipzig contra a República Democrática Alemã,
como tem servido nos últimos dias para os racistas virem dizer outra
vez Wir sind das Volke, nós é que somos o povo, portanto
não queremos que hajam imigrantes. É uma categoria, isso é interessante até
para discutir, mas mostra bem que o Rawls... Eu costumo dizer que
o Rawls é um epitáfio, porque o Rawls assinala o fim
dos
anos gloriosos do pós-guerra. Ele escreve a obra ao longo de muito
tempo, mas no momento em que escreve é quando depois vai estalar
a crise da estagoflação,
Luís Meneses do Vale
não é? Sim, ele depois... Sim, e depois no fim da vida
ele foi derrabatendo, porque depois havia além dos elementos a justiça internacional,
que era um problema, a relação com a política, do ponto de
vista até epistemológico, o lugar da moral e da política, não é?
Mas foi muito importante, tendo em conta aqui a nossa discussão hoje,
até por esse aspecto que é trazer outra vez para o centro
da discussão a filosofia política e a filosofia jurídica. Porque de facto
o Carl Engels dizia com alguma graça que as pessoas em casa
têm livros de história, seja qual for a sua área de vocação,
não é? Tem livros de filosofia.
José Maria Pimentel
mas é engraçado que estás a falar disso porque era exatamente por
isso que eu já queria ter trazido direito ao podcast e ficava
sempre na dúvida sobre por onde. Trazer por onde. E eu acho
que esta é a via certa porque isto claramente é algo que
é relevante para toda a gente. Aliás, o curso de árvore que
nós estávamos a falar há bocadinho, do Sandell, que tem... Eu acho
imensa piada aquilo. Não sei como é que é para um académico
desta área. Não sei se acha aquilo de menos. Eu acho que
aquilo está muito bem feito e acho que... Aquilo é dificílimo de
fazer. Aquilo é muito dificílimo de fazer. Ele fala com uma mestria
suave, sobretudo nas últimas aulas, porque ele lança temas ultra polémicos e
consegue gerir aquilo muito bem. E... Aquilo é giro, porque é feito
com miúdos, com pessoas que estão no primeiro ano, salvo erro da
faculada ou pouco mais do que isso. E, claramente, a maneira como
ele consegue expor aquilo faz com que aquilo se torne relevante para
todas aquelas pessoas. Ele traz uma série de casos reais, muitos casos
contemporâneos, por exemplo, que são altamente relevantes para aquilo. Quer dizer, por
exemplo, todos os temas que hoje em dia são discutidos como a
multiculturalidade, por exemplo, as burcas em França, por exemplo, a identidade de
género, a igualdade de género, por exemplo. Tudo isto tem na sua
base, inegavelmente, questões de filosofia dos direitos. E há ali um lado
que,
Luís Meneses do Vale
exercício de reflexão tem esse lado que eu acho fascinante que é
justamente o de progressiva qualificação. Eu uso muita expressão, embora eu não
tenha créditos nenhums, porque em certas disciplinas que nós ensinamos insiste-se muito
nisso, embora a minha visão seja porventura mais progressista, mais marcada pela
teoria crítica, propriamente dita, que a reflexão nestas disciplinas normativas é sempre
crítico-reconstrutiva. Ou seja, nós estamos sempre já a trabalhar em ação ou
em debate, em discussão sobre os temas. E o exercício que fazemos
nunca é de uma transcensão completa. É sempre um esforço de autotranscensão
na discussão com os outros. Superarmo-nos e, portanto, nessa medida eu acredito,
de facto, nas virtudes que tem a dialética, o efeito que tem
a contraposição de argumentos, embora nunca seja fechada, não seja completa, não
seja no sentido hegeliano a descoberta no final do sistema explicativo. Isso
não, mas eu acredito é na produtividade do exercício. Porque realmente acontece-nos
frequentes vezes, quando estamos a dar aulas, a própria enunciação ou a
reação do público não entende, que nos força
a um
suplemento, leva-nos a nós a descobrirmos. Olha, afinal de contas, isto aqui
é que está bem. Nunca tinha dito isto assim. E de facto,
encontrei aqui uma formulação que de facto acho que resulta. Ou o
contrário. Quantas vezes, e isso é uma sensação extremamente desagradável, quantas vezes
a pessoa está a dar à aula e de repente lhe cai
por completo o ânimo, porque se dá conta de que o que
está a dizer não faz sentido. E começa a perder força, a
meio a dizer isto não pode ser assim, eu tenho de rever
isto.
Luís Meneses do Vale
pensar nisto outra vez, porque isto de facto não resolve. Mas no
caso da filosofia, já agora só um apontamento, a primeira conferência que
eu dei, isto é só um apontamento, a primeira conferência que eu
dei, por coincidência, mas foi sobre filosofia de direito. Há muitos anos,
eu tinha começado no primeiro ano em que dei aulas e convidaram-me
para eu intervir na Faculdade de Letras com um homónimo, que depois
eu vim a ler, cujas obras eu tenho ainda acompanhado, doutor Luís
António Belino, porque é um estudioso do Marlowe Ponti sobre todas as
questões da fenomenologia do corpo, tem uns textos notáveis, eu acho aquela
vertente interessantíssima, e fomos lá discutir e a minha intervenção era sobre
uma velha querela entre a filosofia do direito dos filósofos e a
filosofia do direito dos juristas. Porque a filosofia do direito, como outras
disciplinas, a história de direito, tem um lugar bastante incerto no seio
do próprio sílabo jurídico. E com razão, porque em rigor os juristas
nunca são verdadeiros filósofos do direito. E no meu caso, que sou
de constitucional, que cruza ali a filosofia política com a filosofia de
direito, eu digo, eu interessa-me aqui esta interseção, mas é realmente um
território de uma enorme instabilidade.
Luís Meneses do Vale
Porque apesar de tudo, a filosofia nos... Eu não quero me meter
demasiado em sear à alheia, mas, inevitavelmente, a filosofia também tem, como
é evidente, durante muito tempo tinha, transmitia aquela ideia clássica, aristotélica, de
que se preocupava com os princípios primeiros, as causas últimas das questões.
E, portanto, quando se refletia filosoficamente sobre o direito, o que se
fazia era transportar todo um conjunto de referências canónicas, o estudo do
conceito, da justificação, das finalidades, das condições de validade, de existência, para
aquele domínio em particular. E nessa medida o filósofo do direito não
era diferente do filósofo da arte, do filósofo da religião, que aplicava,
basicamente discutia, ontologia do direito, que é o ser, gnosiologia do direito,
que é
Luís Meneses do Vale
preparação basilar que os alunos recebem, teve uma transformação muito grande, porque
a influência do existencialismo, do raciovitalismo, do orto-GHC imprimiu uma outra conotação.
A ideia da filosofia cada vez mais como esse o amor ao
saber, muito menos o sufismo, o domínio do saber. Isso tem as
suas perversidades, é, se pode ter, mas de facto cultiva nos alunos
a ideia da filosofia sobretudo como uma indagação filosófica. E esse aspecto,
curiosamente, vem muito ao encontro do que nós, como juristas, tentamos transmitir
aos alunos, que é nada de pertenciosismos, nós não temos ganga para
poder mobilizar os conhecimentos da filosofia para o direito. Agora, uma coisa
é certa, é que questões como as jurídicas são, ou no domínio
do direito, questões filosóficas são incontornáveis.
Luís Meneses do Vale
Quando nós discutimos a autoridade, quando discutimos a obrigatoriedade de obediência a
normas, a pergunta básica, porquê, é incontornável. Porquê? Porquê que eu devo
obediência? De onde advenha a legitimidade? Qual é o fundamento? Para que
é que isto serve? E depois, claro, uma coisa o Canto dizia
que era indefinível o direito. O que é isto? O que é
isto de direito? Agora, há um lado que é interessante e chamava-vos
a atenção para isso, é que a especialização do direito, como em
muitas outras áreas, é que foi responsável também por este apartamento e
os juristas estão envolvidos, estão implicados nisso, porque o afastamento do leigo
deve-se sobretudo também ao prestígio que depois isso confere ao especialista. Porque
se nós fizermos um recuarmos no tempo, o direito era a língua
franca da organização social e política. É inconcebível compreender as estruturas da
Igreja e da sociedade durante a Idade Média sem perceber o que
era o direito na época. Hoje realmente ninguém tem os livros da
direito porque de que é que adianta e nem os juristas gostam
Que as pessoas lhes apareçam e a dizer que já viram no
Código Penal que é assim ou que é essa. Nesse aspecto é
um lado interessante também a discutir. É o efeito que teve a
modernidade e a codificação na perceção global do direito.
José Maria Pimentel
Exatamente. E nem sempre nos contam o que se passou para trás.
E nos direitos, como noutras áreas, acontece isso. Quer dizer, tu tens
o leigo, tem o Código Civil, tem o Código Penal, tem a
Constituição, mas não tem acesso ao debate que lhe está subjacente. Tem-no
muitas vezes quando temas, determinados temas, vêm à baila, como justiça económica,
temas fraturantes, por exemplo. Temas como o aborto, por exemplo, só não
se interessam por causa disso, porque de repente... E esse tema é
discutido lá, por exemplo, tem muita piada discutido nas aulas do Sandelo,
de repente tu tens que fazer aquilo que está na base da
filosofia do direito, neste sentido, neste sentido não meta, que é discutir
liberdades conflituantes, por exemplo, Discutir direitos que colidem uns com os outros.
Discutir noções de bem, por exemplo. Outra discussão com imensa piada que
ele faz, que para mim é capaz de ser a melhor aula,
é quando ele fala...
Isso era
em 2008, portanto isso já tem para aí 10 anos. E ele
fala do... Depois de trazer este tema do amor, traz o tema
do casamento do gay, o casamento entre pessoas mesmo-sexo e tem muita
piada porque o que ele mostra ali e vai ao encontro de
uma coisa que eu já tinha pensado, que é sempre bom para
o ego o que ele mostra ali é que a tua opinião
em relação àquele tema não é independente da tua noção de bem.
Ou seja, tu podes usar os argumentos que quiseres, o argumento que
eu partilho e que me lembro de utilizar na altura, que é
a questão de... Quer dizer, ao contrário do aborto, que eu acho
uma questão muito mais difícil, ali não há uma questão de... De...
De uma liberdade a tentar contra a outra. É um facto.
José Maria Pimentel
Não há, mas há visões. Ou seja, porquê é que a maior
parte das pessoas seria... Será a partida contra o casamento polígamo, por
exemplo. Ou o casamento, para usar um exemplo mais absurdo, contigo próprio.
Ou o casamento com animais. Quer dizer, e por daqui em diante,
não é? Eu arrisco dizer que ambos seremos contra isso. E a
partida, se o casamento polígamo for consensual. Casamento com animais depois já
é mais difícil. Contigo próprio, isso era, com certeza consensual, pode ter
alguma patologia por trás. Mas é quase certeza consensual. Qual é o
problema? O problema é que há uma noção de bem, há uma
noção de o que é que está certo e o que é
que não está certo, que é independente disto, não é?
Luís Meneses do Vale
E Há um lado que, longe de mim querer defender os juristas,
eu costumo, até para efeitos de esclarecimento, também eu costumo convocar, enquanto
é este aspecto, uma questão numa salvaguarda, outra vez o Rádoro, que
tem uma passagem que eu costumo adapto, digamos assim, do alemão, em
que ele diz uma coisa muito bonita que é o jurista é
alguém que tem de ter simultaneamente fortes convicções, porque um relativista não
consegue tomar posição. Claro. E a verdade é que há um lado
na filosofia de que falávamos, a filosofia meta e crítica, que é
muito atrativo, mas também muito cómodo, é que o crítico no sentido
kantiano muitas vezes se insapora em negatividade. A identificação dos pressupostos mínimos,
a definição de limites, quando muito do direito da política se faz
de positividade, de produção e, portanto, precisa de fundamentos, de regulativos e
não da tarefa meramente fiscalizadora, vígil, da filosofia crítica que vem apontar
as falhas, os defeitos de princípio, de fim, de meio, etc. Ora,
o Radburg dizia, um jurista tem que ter fortes convicções, mas tem
que ter ao mesmo tempo a noção da enorme fragilidade moral dessas
convicções. E esse é o grande dilema de quem tem num domínio
como o jurídico, tal como no político, de julgar, de tomar posição.
Porquê? Porque se... Talvez a maior dificuldade do público em geral para
perceber mais a tarefa do jurista até do que do, no caso,
constitucionalista, do legislador, é que como é que ele concilia a indagação
pelos princípios últimos com a urgência de decidir. É que a incompreensão
que muitas vezes o pensamento crítico tem em relação ao direito é
uma desafeição adogmática. A incapacidade de compreender que nós precisamos de pressupostos
dogmáticos, porque nós quando nos dirigimos ao tribunal não queremos que o
tribunal debata, queremos que o tribunal decide. E a verdade é que
o que perguntamos ao tribunal não assenta numa verdade última. É uma
discussão infindável. Porque o que ali está em jogo somos nós, e
como nós vamos sendo, vamos devindo, aqueles temas também vão evoluindo. Eu
digo muitas vezes aos alunos, no limite, nós nunca poderíamos julgar alguém
e condená-lo à morte, Porque o equilíbrio entre a vida e a
liberdade não tem resolução possível. Se não houvesse uma interrupção, que é
dogmática, em vocação de uma autoridade mais próxima, relativamente reconhecida, em nome
da comunidade, etc., nós nunca mais resolvemos esta questão. E, portanto, a
dificuldade de direito é conjugar estes dois mundos. Saber que está ligado
a exigências últimas, mas ao mesmo tempo que tem solicitações muito pragmáticas.
E daí que
Seja
normalmente mal visto do lado da pragmática e do lado das exigências
últimas, porque fazemos condescendências que não devíamos fazer e ao mesmo tempo,
no ponto de vista pragmático, parecemos às vezes enredados em questões altamente
complexas, Quando o que se nos pede é que decidamos. E a
pessoa diz, está bem decidir, mas isso não é assim... Uma coisa
tão simples como a justiça fiscal. Bem, eu tenho visões muito progressistas
sobre justiça fiscal. Como constitucionalista, acho que boa parte das questões que
hoje em dia se põem em termos de corrupção, até das suas
implicações no populismo, etc., se resolvem não com o direito penal, mas
com boas arquiteturas constitucionais e de direito público. As que sejam capazes
de estimular culturas mais saudáveis, incompatibilidades, etc. Porque acho que o direito
penal não vai desmantelar redes de corrupção nenhuma por causa das garantias
que tem. Mas a tendência é para quê? Aumentar o direito penal.
Exigitar quase que a população, no sentido de controlar por via penal
a corrupção. Ao ponto de que nós quase chegamos ao contrassenso de
crer penas mais elevadas por um indivíduo que praticou um crime econômico
do que uma pessoa que praticou um crime contra a vida. O
quê? E depois porquê que isto não resulta? Porque justamente esta construção
dogmática, quando encarada microscopicamente, pode fazer todo o sentido, mas implica o
desabar de um sistema, porque o sistema penal está construído com base
na dignidade dos diferentes valores que são lesados, os bens que estão
em causa. Portanto, por muito grave que seja o crime econômico, o
direito penal está a julgar pessoas e a lesão que uma pessoa
pratica, um bem econômico, não pode ser considerada mais grave do que
a lesão que é praticada contra a vida, mesmo que o crime
econômico tenha muitas consequências
José Maria Pimentel
na vida das pessoas. Mas isso é... Por acaso é engraçado levantares
isso, porque esse é um tema aplicado... Exatamente disto. És o exemplo
de
uma situação em que isto se aplica. Eu tendo a concordar com
essa visão, mas acho que é útil dar aqui o contraditório de
pessoas que diriam, mais consequencialistas, que diriam que um crime económico, alguém
que tenha... Vou tentar evitar usar nomes, acho que é tão fácil,
mas pronto. Uma série de nomes que todos nós conhecemos, que lesaram
pessoas, sem número de pessoas e muitas vezes destroem vidas, podem ter
um efeito muito maior do que um tipo que é salto ou
mato. Com agravante e depois há um agravante por cima disto, que
é a questão dos crimes económicos serem muitas vezes perpetrados por pessoas
que estão muito mais acima na escala socioeconómica face às pessoas que
praticam os outros. E, dito isto, eu apesar destas condicionantes, tendo a
concordar contigo, mas reconheço
Luís Meneses do Vale
que elas existem. E eu estou a dizê-lo, escolhido propositadamente, porque conhece
as coisas que eu escrevo, acho que são em suspeito de estar
a... Eu também acho que nós temos de dar qualquer coisa em
troca. E
há hoje em dia, uma das áreas justamente que eu exploro é
que um território que eu considero um território muito vazio do ponto
de vista da densidade normativa. Porque nós temos, mantemos, e é compreensível
porquê, Mas mantemos uma mentalidade também muito dicotómica na discussão entre o
direito e a política. As coisas ou são direito e são da
regedoria dos tribunais, ou então entram na esfera da política e isso
significa uma espécie de livre conduto, de discricionariedade. Ora, a verdade é
que tem de haver aqui, na passagem de uma para a outra,
uma série de passadeiras, não é? Tem de haver aqui uma forma
de mitigar esta transição tão abrupta e a verdade é que boa
parte do direito público e do direito constitucional, se nós lhe reconstituirmos
a genealogia de uma maneira relativamente alternativa ao que normalmente se ensina,
permite fazê-lo, porque há uma zona de exigências normativas cuja efetivação eu
estou cada vez mais convencido que não deve pertencer aos tribunais, mas
que todavia é devida. E Eu acho que, uma das coisas que
eu defendo na minha tese e tal, é que aqui as pessoas
há uma espécie de grande expectativa social que não tem para onde
ser canalizada. E isso viu-se durante a crise, não é por acaso
que foi bater à porta do Tribunal Constitucional e à porta dos
tribunais. Isso não é fortuito porque os tribunais, face a outras grandes
instâncias políticas, têm uma diferença, é que não podem recusar-se a abrir
a porta, enquanto o Parlamento pode e o Executivo também. Os tribunais,
se lhe apresentam uma petição, têm de decidir. É obrigado a pronunciar-se.
E por isso é que é procurado. Só que é verdade que
o direito que se realiza nos tribunais, sendo o núcleo mais irredutível
da juridicidade, não esgota toda a normatividade que tem relevo no plano,
por exemplo, constitucional e do direito público. E por isso é que
eu acho que há uma tendência natural para conferir protagonismo aos tribunais
de contas, a conselhos econômicos. Isto já existiu no passado. É necessidade
ocupar aqui um espaço entre a pura liberdade de discussão política e
um sancionamento que se faz nos moldes do processo civil e do
processo penal. Isto à escala internacional tem sido sondado por alguns autores,
mas ainda é muito débil. Por exemplo, autores que dizem que nós
temos de começar a conceber que o que se passa no terceiro
mundo é responsabilidade nossa, por omissão. Porque aquilo não acontece por acaso.
Os países que se estão a desertificar e tudo, aquilo tem uma
explicação. E é sabido. Os povos todos que estão a subir para
lá, à África, estão a fugir à desertificação, porque está a nascer
um grande deserto no centro. E esse deserto foi criado por nós,
com a monocultura que lá implantamos e da qual temos vivido na
Europa. E é fácil rastrear isto, não há nenhuma efabulação, nem nenhuma
má consciência colonialista. Basta ir ver o último encontro de comércio entre
a União Europeia e a África. Nós damos dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro
e o déficit continua desequilibrado a nosso favor porque eles... Tudo o
que produzem é para nós. E há autores a tentarem justamente forjar
uma categoria que é muito difícil e que os juristas são muito
antipáticos. Não pode ser tudo a responsabilidade civil e penal, mas tem
de haver aqui um espaço de responsabilidade, por conta de uma juridinária.
O que é que
Luís Meneses do Vale
sei, eu acho que vai ter de ser uma responsabilidade pensada a
partir dos direitos humanos, do direito constitucional, de estruturas administrativas, nós pensarmos,
por exemplo, uma coisa como esta. A corrupção. Como é que a
corrupção é combatida? É prevendo tipos legais para o corruptor e para
o corrupto. Não é. Não é porque isso é tentar combater num
plano microscópico um fenómeno que é sistémico. Só que o direito não
sabe intervir sistemicamente porque o direito sabe intervir sobre problemas concretos entre
sujeitos concretos. Pois é, mas é que se nós estudarmos o que
é o direito público, o que é o direito constitucional, a origem
deles não é essa. Nós costumamos ensinar direito, evulgo que o público
tem 200 anos, nasceu com o IALINEC, a partir... Mas tem um
passado, que era o direito da organização política, o direito das estruturas,
dos órgãos, das competências, das atribuições numa determinada sociedade com poder. Um
direito, por exemplo, como é o que estruturou a Igreja Católica durante
séculos. E recuperar isso significa voltar a revalorizar uma coisa que durante
muito tempo nós achamos que era secundário, justamente as regras de organização,
as regras de funcionamento. Em muitos setores da sociedade essas regras são
as mais responsáveis por criar culturas sádias de relacionamento entre as estruturas
públicas, das estruturas públicas com o mercado, das estruturas públicas com a
sociedade, etc. Só que são muitas vezes invisíveis, porque o que interessa
é o direito substantivo, é os direitos e os devezes das pessoas
que estão garantidos. Não só. Estou convencido que há aí um espaço.
Porquê? Porque alguma coisa vai ter de ser feita sem dramatizar o
populismo o que está a viver, sobretudo, desta massa de expectativas que
não estão a ser satisfeitas pelas instituições tradicionais. E é facílimo fazer
a terraplanagem completa dessas instituições ou então tentar organizar um espaço entre
elas. Porque alguns dos fenómenos de adaptação, digamos, pragmática, o muddling through,
que os anglo-saxónicos gostam muito, esse improviso, eu não sei se nos
levam no bom caminho. Eu dou um exemplo simples. A tendência que
justamente os tribunais e órgãos para-jurisdicionais têm adquirido de aumentar o seu
poder. O Tribunal de Contas tem hoje em dia uma... Reconhecendo eu
que aquele setor da sociedade, por causa dos problemas da corrupção, precisa
de controle, devo confessar que há neste momento uma descompensação. Fala-se tanto
em que se as pessoas só querem mudar o Serviço Nacional de
Saúde na Constituição, quando está lá tão bem como está. A mim
preocupa-me mais que o Tribunal de Contas tenha evoluído de um controle
de legalidade para o que é progressivamente um controle de mérito da
atuação dos executivos. E a pergunta é, se calhar nós vamos precisar
de instâncias de controle de mérito. Mas então têm de ser bem
legitimadas.
Luís Meneses do Vale
Outras. E eu não estou aqui à presença, não tenho solução nenhuma,
mas digo que o desafio hoje em dia, ao meu ver, onde
é colocado é neste plano, que é nós interrogarmos-nos ao nível da
grande arquitetura constitucional como é que conseguimos revitalizar as democracias, porque estamos
de facto numa fase de transição para processos de transmissão. O Bauman
dizia nos últimos escritos, uma formulação um pouco simplista, mas que tem,
apesar de tudo, tem impacto, que é há muito poder, mas pouca
política. Há muito poder e muito difuso. E a política, apesar de
tudo, estava sujeita a certos canais de atuação e deixa-o de estar.
E o que nós vemos hoje é uma confusão permanente e até
no populismo uma penetração dos meios tradicionais de política por este poder
difuso, que é um contínuum de poder, dos meios de comunicação, de
meios informais, etc, que não estão sujeitos aos mesmos filtros, às mesmas
cadeias de responsabilização, etc. E não têm instituições, quer dizer, no fundo...
Não
José Maria Pimentel
têm instituições. No fundo, o que tu tens é uma... As instituições
que, no fundo, sustentam os casos mais desenvolvidos, à falta de melhor
palavra, foram-se desenvolvendo ao longo da história, e algumas por enxerto, como...
Ou por importação, como... E em Portugal há alguns casos desses, outras
por geração espontânea. Neste caso, pelo menos A maneira como eu olho
para isto é que tu tens... Tiveste, é certo, uma evolução muito
rápida e hoje em dia tens coisas como redes sociais, por exemplo,
que criaram uma disrupção grande e criaram essa evolução muito rápida e
não existem instituições que lhes deem o respaldo necessário, não é? Para
isso, para... E o que é engraçado nisso é que, por exemplo,
falavas do tribunal de Contras, tu estás muito mais dentro disto do
que eu, mas os modelos variam do país para país e modelos
diferentes funcionam bem em países diferentes. Por exemplo, o modelo alemão está
muito dependente do tribunal constitucional. O tribunal constitucional alemão
Luís Meneses do Vale
Porque curiosamente na área da filosofia do direito há uma mudança geracional
na atitude relativamente ao Tribunal Constitucional. Não só por causa do conservadorismo
na maneira como vê a Europa,
mas
por causa da adesão a uma coisa que os alemães têm muito
nós já não damos assim o Staat der Reste Alemão. Lá está
o EGLE, o direito do Estado Alemão. O Estado como uma entidade
prévia à própria constituição, que é uma coisa que nós não ensinamos
assim, nem todos os alemães ensinam, a ideia de que o Estado
que temos é constituído pela constituição que temos numa realidade mitológica. O
Estado, quando muito, somos nós e conformamos-nos estadualmente de uma maneira ou
de outra constitucionalmente. Isso é que é a grande virtude das... Por
oposição, por sua vez, aos anglo-saxónicos, que têm um pouco a ideia
de constituição, são só regras de jogo mínimas, que é um pouco
lírico, porque esquece que essas regras são para jogar o jogo que
está a ser jogado. Claro. Não é um jogo abstrato. Portanto, todas
as constituições têm sempre um projeto. E está-se a notar, há uma
diferença geracional, porque houve uma polémica no início do século em torno
da filosofia do direito e que nascia numa crítica aos não positivistas,
quer no Tribunal Constitucional, quer no Supremo Tribunal. E houve um autor
alemão, o Bernd Rüders, que se tornou uma eminência e que criticou
o Tribunal, porque o Tribunal, em vez de fazer Auslegung, a interpretação,
que a letra é ler para fora, fazia Einlegung, metia dentro da
Constituição tudo o que lhe apetecia. Porque tem muita latitude, por exemplo.
Pois tem, para o bem e para o mal. E há Uma
geração mais nova que, curiosamente, numa pátria que era, se reclamava, antipositivista,
que aderiu ao positivismo. E eu até, ainda aqui há pouco tempo,
a falar com colegas meus que estiveram na Alemanha, há pouco tempo,
daqueles que estiveram, disseram que O que sentiram nos colegas é que
há de facto um ambiente diferente. Isso é curioso. Porque só por
um motivo é que, longe de mim, estar aqui é com catastrofismos,
mas é que foi a conciliação de duas perceções antagónicas do direito,
o positivismo justamente e um certo irracionalismo, que fez o terceiro reche.
Foi o facto das estruturas se terem tornado eminentemente neutrais, positivistas, mas
depois insufladas no conteúdo por uma compreensão irracionalista do direito. Mas
Luís Meneses do Vale
parte positivista é esta, a ideia muito kantiana de que cada um
tem de cumprir a sua função. No julgamento em Nuremberg o mais
perturbador, seja dos funcionários administrativos até ao juiz, é que todos dizem
que estavam a cumprir a lei. E o próprio Eichmann, aquelas coisas
de dizer arrepende-se de alguma coisa de ter desobedecido a um professor
uma vez na escola. E quando lhe diziam, bem, mas e o
que fez? Estes papéis que assinou? Diz ele, era a minha função.
E os senhores estão a julgar-me em nome de quê? De um
direito que não existia. Estão a aplicar retroativamente o direito humanitário, que
não estava em vigor na Alemanha quando eu atuei. Portanto, é preciso
ver que ali um... Aquele período histórico, nós deborçámos muito sobre ele,
Não é que esteja ali o cadinho de toda a reflexão, mas
os pais, sobretudo da filosofia jurídico-política, assim em conjunto os pais do
direito constitucional contemporâneo, são sobretudo os homens que pensaram durante a República
de Weimar. Assim como o Nazar, aqueles loucos anos 20 na Alemanha
foram de facto prodigiosos e na literatura e tudo. Também no direito
fala-se muito de uma method and straight, que é um grande debate
metodológico em torno da Constituição e os grandes posicionamentos ficaram ali marcados.
Grandes juristas de todas as partes. Talvez o mais impressionante pela capacidade
intelectual seja justamente o que veio a ser Presidente da Associação de
Juristas Nazis, o Carl Schmitt, que é de facto impressionante de lê-lo,
é um homem... Só que foi ele que depois veio sustentar essa
ideia de um Führer-príncipe, o princípio do Führer. A vontade do Führer
é fonte de direito. E eu às vezes digo, isto é uma
caricatura muito grande, mas que o que permitiu a penetração de uma
loucura dessas foi o facto de a Alemanha ser o país que
era, que tinha as estruturas a funcionarem e tinha aquela disposição, o
Bauman também diz isso num livro sobre a modernidade e o Holocausto,
a disposição kantiana da sua administração, não é Aquela coisa de fazer
o de cumprir o dever. É uma caricatura do que nós invocámos
no Sul, mas nós não tínhamos organização para ter um campo de
concentração.
Luís Meneses do Vale
mas no caso da Alemanha, temos os exemplos célibres, pessoas condenarem, denunciarem
os próprios filhos. Os próprios filhos? Os próprios filhos. E, portanto, isto
é uma coisa. E o Bauman, eu acho que, como sempre nestas…
quando se é assim demasiado político corre-se o risco de… mas transmite
uma imagem que eu acho que é impressiva quando ele diz que
há aqui um duplo problema, que é este deontologismo kantiano, a ética
da consciência aplicada à lei.
A lei
é para obedecer porque é lei, não é? Eu não tenho de
discutir se a lei está bem ou está mal. Cria falta de
compaixão, de piedade, que é uma relação direta com o destinatário e
ao mesmo tempo falta de reflexão moral, que é fácil transformar as
pessoas em autómatos. Isto é uma exurtação interessante até para os dias
de hoje, porque não há dúvida que há muitos esquemas de pensamento
que visam justamente desonerar as pessoas de pensar. Não é por mal,
é uma cadeia de... E porquê? Porque cada elo da cadeia pensar
por si É um fator, por exemplo, de enorme ineficiência. Claro. Pois
é, mas é que também é um fator de enorme controle e
complexidade. E venho um pouco ao encontro que nós, acho que em
OFF ainda estávamos a conversar, que é o valor que nós reconhecemos,
e é que os meus colegas que são mais, ainda mais da
teoria crítica que eu caimo em cima, mas o valor das mediações.
Nós não nos podemos, acho eu, nos dias de hoje, deixar seduzir
pela supressão das mediações. As mediações são os outros, os outros Às
vezes oferecem-nos mediações positivas, outras vezes mediações negativas. Mas nós não temos
até o direito. Olha para essas mediações de uma maneira que tenha
um lado saudável. Aqui em Coimbra, por exemplo, há um fundo conservador
em algumas das coisas, mas há um lado que eu acho que
tem uma... É passível de uma leitura muito progressista, que é a
despatologização do conflito. A ideia de que o conflito humano não existe
como uma coisa dramática. O conflito humano existe porque as pessoas são
diferentes. Eu achei que a culpa é do indivíduo carro à frente,
ele acha que a culpa é minha de lhe ter batido. Não
somos más pessoas, somos diferentes. Temos os nossos interesses, o que é
igualmente
legítimo, eu
não quero pagar, ele também não quer pagar. E é bom ter
esse lado não patológico. Perceber que há esse lado... Os problemas são...
Eliminar os problemas é uma coisa que é difícil às vezes fazer
ver aos alunos quanto mais... Eliminar os problemas não é um objetivo
de direito. Os problemas só desapareciam se nós deixássemos de ser humanos.
O crime, o Dr. Figueiredo Dias ensinava isso muitas vezes, não é
o objetivo do direito penal acabar com o crime, porque a única
maneira de acabar com o crime é acabar com a
Luís Meneses do Vale
Isto é uma coisa absolutamente banal, mas é uma coisa em que
é preciso insistir, porque eu estou a chamar isto à colação, porque
agora é uma das coisinhas que tenho pensado, até porque é um
tema que se presta também a todo o tipo de... Passo pela
beísmo de lugares comuns, de babuzeiras, que é a história de como
é que nós, por exemplo, no direito lidamos com o populismo. Em
particular no direito político, direito constitucional. O que é que se pode
fazer? Dialogar. Porque não é fácil, até porque há muitos populismos, quer
dizer, de repente também se pôs aquela chancela. A primeira coisa, eu
nos últimos anos estive a ler e tal, a primeira coisa é
que de facto nós usamos como
José Maria Pimentel
Eu tenho essa visão. Aliás, eu acho que um exercício, por exemplo,
que seria ultra interessante fazer, muito difícil de fazer, era fazer esse
exercício em relação ao nazismo, por exemplo, que é exatamente baseado nessa
lógica, que é qualquer... No fundo, qualquer movimento que agrega muita gente
tem lá qualquer coisa... Há lá qualquer coisa de válido. Eu digo,
o nazismo é um exemplo extremo, mas, e isso é um bocado
polémico, mas é evidente que aquilo não surgiu por acaso. Ou seja,
é evidente que ignorar aquilo não era a resposta certa. E hoje
em dia tu vês isso em relação a um monte de problemas
de... E no fundo o que crias é, acabas por criar uma,
uma... Da parte de quem estás a chamar aos outros populistas, quiseres
ou o que for, não é? Ou qualquer que seja o epítodo,
é uma espécie de saneamento, não é? Não queres entrar em contato
com eles, não é? No fundo eles são totalmente cápitos. O que
não faz sentido, Também não podes cair no relativismo oposto. Claro. Sim,
sim, sim. E por isso é que essa mediação é difícil. Não
podes cair no relativismo oposto e dizer não, no
Luís Meneses do Vale
de qual é a interlocução. Quer dizer, qual é a aproximação que
se faz a isto. Porque justamente a demonização, o que significa é
a legitimação imediata porque os movimentos antissistema vivem justamente da constação permanente
desse seu estatuto de marginalidade. De maneira que se a primeira coisa
que nós fazemos é marginalizá-los, nem sequer há debate possível com estes
indivíduos. De resto, onde nós temos visto isto, os Estados Unidos podem
ter muitos defeitos, mas há uma coisa em que às vezes tem
uma vantagem, é que antecipam os problemas, vivem os problemas alguns anos
antes. E de maneira que nós devemos olhar para isto que aconteceu
nos Estados Unidos, quer dizer, sobretudo isto até a incredulidade com que
a elite encara a eleição. Ainda agora a Marta Nussbaum escreveu um
livro, Monarquia do Medo, Monarquia Fear, e aquilo é interessante porque a
Marta Nussbaum é uma bela cabeça, mas eles não sabem o que
hão de fazer. Aquilo é um livro. Confesso que li assim um
bocado a correr. Mas relê-se o livro e diz, e então, Em
que é que ficamos? A elite americana não sabe o que há
de fazer neste momento. Sem
sair, não cumprir,
não exato. Há ali um beco sem sair. E quem diz isso
diz os próprios meios de comunicação social. É uma derrota estrondosa para
uma certa consciência reflexiva dos Estados Unidos da América, o que aconteceu?
Defraudando as espectativas. Basta ver quem esteve a acompanhar aquilo durante a
noite, que não se trata de uma descoberta dos últimos dias, foi
das últimas horas. Quando começou a noite eleitoral, estava toda a gente
a ver como é que ia ser ou não a declaração de
vitória de Hillary Clinton. E depois aquilo começa a mudar de repente,
o que significa que há aqui desde logo um problema de facto
grave de desconhecimento da vida das populações. Há aqui um problema até
da construção das representações coletivas pelos meios de comunicação, etc. Há
José Maria Pimentel
uma coisa, eu acho que o Trump fez uma coisa curiosa. Ele
fez uma espécie de unbundling, não sei como é que isto diz
em português, de separar uma coisa que normalmente estava agregada e que
não tinha que estar agregada, que é a capacidade de ter um
discurso que transmita autoridade, autoridade no sentido de domínio, quer dizer, de
alguém que podemos seguir, e um discurso sofisticado. E isso, por exemplo,
nos Estados Unidos, isso foi... Nos Estados Unidos e não só, aliás,
em Portugal não é exatamente o mesmo. Isso foi decaindo, por exemplo,
hoje em dia se ouvires um discurso do Roosevelt, por exemplo, a
maneira como ele falava, até o sotaque que ele era tudo, aquele
até tem um nome específico, o sotaque que ele usava, era uma
maneira de falar muito mais barroca, muito mais cuidada, e o próprio
discurso, e o discurso em Portugal continua a ser assim, é um
discurso muito cuidado, muito...
Luís Meneses do Vale
E há um lado que, assim como explicam os ímpetos das vanguardas,
o apreço pela guerra, etc., também pode justificar que em certas circunstâncias,
que é o que aliás alguns dos grandes especialistas, o Ian Werner
Muller, diz muito isso, não é por haver só desigualdade que surge
populismo, mas tem de haver como condição necessária. E quando de repente
as pessoas começam a fazer experiências, sobretudo uma coisa que eu acho
que é muito significativa para os mais novos, é de impotência existencial.
As vidas deles não têm horizonte e, sobretudo, não têm agência, não
servem para nada. O que eles fazem não constrói, não produz, não
tem, como disse o Gil, não tem inscrição nenhuma. E Isso é
um elemento de atração para os grandes atos espelhafatosos, por exemplo. E
não é por acaso que quando a gente vai ver o terrorismo
islâmico, sobretudo na França, etc., aquilo é claramente a busca de um
sentido. São uns pobres desgraçados das periferias urbanas, desintegrados no geral ou
semi-integrados, nem são os mais pobres, que o que é que fazem?
De repente oferecem-lhes um significado existencial completo, um fato integral, não é?
Justificação para a vida, uma comunidade, um sentido, poder, capacidade de ação,
reconhecimento, etc. Isto é tentador. Não é mesmo que o preço a
pagar seja o que nós sabemos, mas é tentador. E há aqui
qualquer falha e eu acho que nessas coisas, pois aí entra de
facto uma perspectiva política, eu acho que a Europa, sobretudo, os Estados
Unidos já tinham esse problema desde sempre, mas a Europa, sobretudo, é
responsável porque a partir de certa altura, até por concorrência, quer com
os Estados Unidos, quer com a China, começou a fazer meia culpa
relativamente às estruturas do estado de bem-estar que tinha criado. Não percebendo
uma coisa que o Tony já te diz, mas numa formulação muito
bela, que o Dr. Canotilho gosta muito de usar, que é A
banalidade do bem. Por
Luís Meneses do Vale
É que nós não nos damos conta de que quando falamos com
colegas da América do Sul, ou americanos, a grande vantagem e que
parece que demoraria séculos a recuperar, porque é realmente uma exceção histórica.
A grande vantagem em relação a ele são as instituições da classe
média. Isto é muito interessante, eu até uso isto por razões várias,
pela maneira como apresenta, e é normal, tem um cunho de esquerda
institucional, Mas eu digo isso muitas vezes até contra algumas esquerdas radicais,
sou isso antoitado, que é basta ver como estas instituições tiveram o
sortilégio de transformar o próprio discurso da esquerda, que era claramente contra
a pequena burguesia. Ora, a pequena burguesia é a classe média. Hoje
em dia os partidos de esquerda são todos a favor da classe
média, quando há 30 anos achavam que o Estado Social era uma
coisa horrível. Era a gestão do capitalismo. Hoje é considerado uma passagem...
Mesmo o Corbyn, que é mais radical, acha que é uma passagem
incontornável para qualquer sociedade mais igualitária. E nós
vemos isso.
Vemos quando comparamos com os brasileiros. O que eles acham incompreensível é
que eu vá ao centro de saúde e esteja à minha frente
o presente do Supremo Tribunal de Justiça. Eles acham isso uma conquista
civilizacional que não é a ambição deles para os próximos 200 anos.
E nós arriscámonos a desvalorizar isso. E, de facto, nos últimos 20
anos, houve Quer cá, quer nos Estados Unidos, e nos Estados Unidos
nota-se mais, porque era uma classe média, sem o mesmo apoio das
infraestruturas. Os Estados Unidos têm um déficit infraestrutural muito grande e têm
um modelo de desenvolvimento que está mais em risco do que o
europeu. O modelo dos subúrbios não é sustentável num mundo pós-petróleo, em
que todas as pessoas em casa têm...
Claro.
E nem gera sociabilidades saudáveis, não é? Pessoas viverem todas em casas
iguais, enquanto que as cidades são a não sei quantos quilómetros e
não são habitadas. Nós, na Europa, estávamos a tempo de corrigir algumas
coisas, mas a verdade é que a pressão econômica foi forte e
nós... Houve aqui um período de muito grande hesitação em que achamos
que isto que tínhamos era um obstáculo ao desenvolvimento. E agora estamos
a ver o que é uma evidência, não é? É que a
partir de um certo ponto nem temos condições de estabilidade, quanto mais
de desenvolvimento económico, seja o que
Luís Meneses do Vale
a burocracia. Eu, de facto, nesse aspecto, digo muitas vezes. Não, não.
Eu sou um institucionalista. Um da esquerda absolutamente institucionalista. Que é. Em
vez de fazer... Porque depois há um lado interessante deste fim de
semana, fim de semana passado, discutia isso numa conferência aqui na faculdade
com o Dr. Avelaz Nunes e com o Dr. Xavier de Bastos,
que estavam a falar, a discutir os dois, e dizia bem, Realmente
desaparecido a União Soviética, a dialética não se pôde manter nos mesmos
termos. Exato. Mas houve aqui um simulacro de dialética, porque toda a
polução que é mais normativa, mais reguladora, mais conformadora, própria da esquerda,
deslocou-se para onde? Da macroestrutura, onde não consegue fazer nada, onde foi
derrotada em toda a linha por incapacidade própria, até por uma razão
muito simples, isto pode parecer uma piada, mas porque Os intelectuais de
esquerda foram todos estudar Sociologia em vez de estudar Economia. Exatamente. Durante
duas gerações andaram a estudar Sociologia de maneira que... Qual é a
oposição que eles fazem ao sistema? É uma oposição micro, tipicamente Foucaultiana,
Luís Meneses do Vale
mas insuficiente. E que tem, por exemplo, na Europa, a sua expressão
caricatural, que é a obsessão regulatória, micro-regulatória dos comportamentos. Em vez de
discutirem qual há de ser a macroestrutura econômica da União Europeia, não,
andam a discutir as regras de trânsito e regras de congelamento dos
produtos. Sim, senhor, tudo muito interessante, mas eu e uma vez com
uma colega minha fizemos uma investigação sobre uma coisa. Por causa da
azai, aquelas que... Às vezes, ainda bem que nas faculdades não se
pode fazer isso. Estávamos à procura do porquê que era isto de
não se poder ter rissóis nas... Porque a azai faz muita falta.
Se as pessoas soubessem como a falta de higiene que nós temos
não havia tanta coisa. Mas, realmente aquilo parecia um pouco exagerado. E
não é que nós descobrimos que só há duas empresas que produzem
os frigoríficos capazes de manter as coisas a uma certa temperatura e
que são as duas alemãs. E a pessoa diz assim realmente,
Luís Meneses do Vale
Claro, há grupos de interesse, mas ao menos na América são transparentes,
porque há imenso lobbying na União Europeia, não é? E a tendência,
no entanto, o que eu digo é a tendência porque, como nessas
coisas eu sou um bocado do estruturalismo marxista, ou do catolicismo, não
é? Ambos são explicações católicas de ordenação social global, não me interessa
às pessoas em concreto, mas há forças que se geram e que,
ao serviço das quais nós sem querer atuamos anonimamente. E a verdade
é que o debate, por exemplo, europeu, isso é se mesmo o
Dr. Vital Moreira, etc. O debate europeu transformou-se num debate entre uns
indivíduos que supostamente querem liberalizar e uns que querem regular. Isso é
muito pouco. Até porque isso pode não significar nada. Eu que lido
com regras, o que é que é liberalizar e regular? Depende. Há
regras que criam imensa liberdade, há liberdades que criam imensas opressões. A
expressão em si não significa nada, mas é que há essa necessidade
dialética. Controlar o mercado é, à maneira do ordinalismo alemão, criar umas
regras para ele funcionar bem. Está bem, mas a questão é discutirmos
se deve funcionar em toda a parte, que mercado, que é outra
das coisas onde eu acho que há um déficit de pensamento jurídico
ou político, é a maneira como se fala do mercado, como se
houvesse o mercado. Não há o mercado. Ou o capitalismo. Não, não
há o capitalismo. Aliás, as célebres obras, as variedades do capitalismo, etc.
Isso é um lado... Ora, o lado sedutor de quando se faz
aqui a ligação entre filosofia de direito e filosofia política é que
além das questões que podem parecer mais especulativas, imediatamente elas entram em
contato com a necessidade de dar uma resposta. Pois claro, essas respostas
têm tendência natural à medida que se densificam para ganhar uma crosta
dogmática, Isso é inevitável, não é? Mas faz parte.
José Maria Pimentel
Sim, sim, claro. Aliás, tu estavas a falar há pouco de uma
coisa engraçada, e eu depois queria ir lá e acabámos por nos
perder, que era a questão do Trump e do populismo à volta
disso. E eu acho que isso é uma boa demonstração daquela visão
comunitarista. Sim, sim, sim. Em relação àquilo que isto... Para nos levar
de volta àquilo que nós estávamos a falar há pouco, do Rawls
e da visão de justiça e da questão do bem. E o
que ali muitas vezes está subjacente são noções de bem ou noções
do que deve ser divergente e os Estados Unidos, por exemplo, os
Estados Unidos têm a vantagem e a desvantagem de ser um país
muito grande e muito diverso. Tem as vantagens porque, como estavas a
dizer, estas coisas emergem lá muitas vezes antes do tempo, mas depois
tem... E tem a vantagem também de ter muita diversidade e, portanto,
permitir, no fundo, originar muitas questões diferentes até civilizacionais. Depois tem o
problema de... É tão diverso que às vezes é difícil... Como é
que eu ia dizer? É difícil ter... Referências comuns, quase. Referências comuns,
exatamente. Ou seja, é difícil teres o referencial comum que permita tu
discutires as coisas com algum grau de profundidade. E eu acho que
em Portugal nós temos isso, apesar de tudo. Em Portugal nós conseguimos
ter esse referencial comum para discutir os temas. Uma espécie de
José Maria Pimentel
E muitas vezes parece que elas não estão lá. Muitas vezes há
debates acesos onde parece que essas posições não estão, mas estão e
são essenciais. E essa noção partilhada de bem, que é partilhada, por
exemplo, em questões da moral, é partilhada em grande medida entre pessoas
crentes e pessoas ateias, por exemplo, porque há um referencial comum. Agora
nos Estados Unidos, por exemplo, há um... Esse referencial comum existe muito
pouco. A mola de pessoas que apoia o Trump, por exemplo, é
muito diferente das pessoas que apoiavam ele. E é muito diferente dentro
de si
Luís Meneses do Vale
próprio, não é? E é assim que eles, no fundo, o máximo
de racionalização que eles têm atingido hoje em dia passa por isso.
Eles já perceberam que nós ouvimos isso repetidamente, mas Eu digo isto
também contra mim, nem sempre alcançamos a profundidade do que estão a
dizer quando falam na polarização. É que, de facto, há um abismo.
Estou a viver.
Que é um abismo, uma absoluta incompatibilidade que está a cavar um
fosso que tem nexos sociológicos e culturais. Basta ver isto. Eles de
facto odeiam-se. A elite americana odeia aquelas pessoas que andam atrás do
Trump, que por sua vez odeiam os apoiantes daquelas elites. Isso viu-se
na campanha. É dizer, eu nesse aspecto acuso as críticas, as impugnações,
mas eu subscrevo inteiramente o que o Mark Lyle, entretanto, publicou em
livro, ele já defendia aquilo há muito tempo, por causa da política
da identidade. O somatório de políticas identitárias que a Hillary Clinton tentou
fazer não é suficiente para vencer umas eleições. E mostra bem o
esgotamento de uma certa maneira da esquerda conceber as suas causas. Desde
logo por uma razão muito simples e essa é uma coisa que
eu às vezes discuto com os meus alunos, é que há uma
transformação clara na formação das pessoas. A complexidade do mundo criou enormes
obstáculos à formação política. Porque a formação política assenta num pressuposto que
não é difícil de garantir, que é ter uma visão integral da
sociedade. Exato. Não é fácil? Não é fácil. Porquê? Porque para ter
uma visão integral uma pessoa tem de fazer ponderações. Eu digo, eu
sou de esquerda, digo, obviamente que não quero o mesmo investimento no
exército e prefiro que ter saúde e educação. Mas mesmo dentro da
esquerda, há colegas que gostam, acham que a segurança social é mais
importante por causa de certas pré-compreensões. Eu digo, está bem, mas para
mim é a educação e a saúde, que é para ter instituições
universais, etc. E, parecendo que não, aí é que nós notamos que,
de facto, há... Este é um ponto crítico, quer dizer, a meu
Luís Meneses do Vale
aproximação. Hoje em dia o que se nota é uma adesão muito
maior a causas e que têm uma tonalidade ética, o que desde
logo cria uma dificuldade muito grande no debate, porque a política muitas
vezes não é senão. Eu digo aos alunos daquelas estribilhas o que
é ideologia é uma perspetiva parcial de referentes axiológicos. São valores, mais
ou menos comuns, toda a gente é a favor da igualdade, mas
interpretados parcialmente, com uma certa orientação. Mas apesar de tudo há esse
fundo axiológico em que nós mais ou menos nos revemos e o
que eu noto nas gerações que chegam às faculdades é que eles
não têm perspectiva política. E uma pessoa que adere a causas éticas
rapidamente se fundamentaliza. Porque lhe faltam justamente as outras referências que obriguem
à suposação das perspetivas que têm sobre o mar. Um exemplo típico,
os animais. Eu sei que isto é muito mal quisto hoje dizê-lo,
mas eu não compreendo que haja um partido dos animais. Na ciência
política, nos anos 80, até aos anos 80, 90, o partido dos
animais era um grupo de interesse, perfeitamente legítimo. Defendia os interesses de
uma determinada setor da sociedade, de um bem, nunca seria um partido.
Porque o problema é qual é a perspectiva da defesa dos animais
para a saúde,
Luís Meneses do Vale
Que tem a que ver com a sua ideologia de fundo, a
sua compreensão de fundo do que deve ser a sociedade. É a
defesa dos animais em todos os setores da sociedade, isso é um
grupo de interesse,
não é um
partido. E não é nenhuma diminuição, porque eu até acho que o
trabalho que tem feito o deputado, pessoalmente, o trabalho que tem feito
é um trabalho meritório. O problema é, o Pedro Mechia, aqui há
tempos, dizia com alguma graça uma coisa que, por vias travessas, acho
que exprime ainda muito melhor do que consigo. Dizia ele, é que
estão a dizer coisas muito razoáveis e imediatamente descambam. O maior problema
da atualidade é o leite. E
a
pessoa ri-se, dizia. O leite é o maior problema da atualidade. O
problema
Luís Meneses do Vale
não é a classe do... Mas as pessoas, mesmo sem terem a
identificação de classe dos anos 30, sabem bem diferenciar o estatuto económico
a que pertencem. E a prova disso é que boa parte das
opções existenciais que fazem, para o bem e para o mal, tem
que ver com a inveja social relativamente aos mais ricos e com
o desdém pelos mais pobres. E de resto nisso, a grande revolução,
ao meu ver, do Pickety, como de outros autores, do Judd, etc.,
foi chamar a atenção para a excecionalidade histórica do pós-guerra. Nunca aconteceu
isto, que foi nós acharmos natural, acharmos devido, criar instituições que são
comuns. E isto é absolutamente revolucionário para a nossa geração, em que
as pessoas andavam todas na escola pública. Eu às vezes faço este
exercício com os alunos. Se eu andar na escola com o filho
do cigano e com o filho do banqueiro, é muito difícil os
meus pais dizerem ah os ciganos, o rendimento mínimo garantido. Porque
eles
podem ter muitos defeitos, mas o filho deles até joga a bola
com o meu. E o mesmo para o rico. Se eu disser
os banqueiros, banqueiro? O meu filho até vai ousar-nos do filho dele.
Ele é mais rico de facto, mas há um ponto de contacto.
Onde eu acho que isto se quebra é quando nós começamos a
sul-americanizar as sociedades europeias e americana ainda mais. Quando se começa a
gerar aquela dinâmica de escolas privadas, hospitais privados, condomínios fechados, não por
si, Plude, é que se nós sondarmos o que está no fundo
disso, e basta falar no nosso meio social, se nós sondarmos é
uma traição de classe. A classe média, por exemplo, viveu a crise
com uma angústia tremenda. Como é que havia de salvar os filhos?
E salvar os filhos era descontaminá-los o mais possível de quem os
pudesse puxar para baixo. E tentar fazer todo o esforço naquela momento
para concentrar todos os recursos em guindar os filhos a um nível
de emancipação. Só que isto de facto, esta traição dos clérigos, não
é? Acaba por cair sobre a classe média. Porque, na equação atual,
ou há uma grande revolução económica, ou as classes médias não sobrevivem
na Europa sem os suplementos do salário que são os serviços públicos.
Luís Meneses do Vale
aqui. Eu vou sugerir um livro, sem ser nada de direito, porque
foi um livro sugerido por um professor com quem trabalhei há muitos
anos, o Dr. Bronze, e que me sugeriu, e eu nunca tinha
lido, que era o do Herman Brock, A Morte de Virgílio, porque
foi um livro que eu comecei a ler nas férias, eu estou
sempre a ler várias coisas ao mesmo tempo, e esse É um
livro que tem de ser lido... Tem de ser mastigado. É... Pô,
sem denunciar demasiado. Aquilo são as últimas 18 horas do Virgílio. Chegado
a Brindisi. E... Começou por ser um pequeno conto que ele escreveu
e que até leu na rádio. O Broca é um personagem também
muito interessante. Esteve preso por causa do nazismo e depois foi o
James Joyce e outros que moveram instâncias para o conseguir libertar. Ele
era um indivíduo que foi engenheiro, trabalhou na fábrica de textas por
obrigação paternal.
A certa
altura mandou tudo às Ortigas, o casamento e tudo, e foi estudar
Matemática, Psicologia e não sei o que para a faculdade. E escreveu
um livro que eu acho que também é emblemático, que é uma
trilogia que se chama Os Sonâmbulos, que é um ótimo retrato de
um certo espírito antes da Segunda Guerra Mundial. O sonambulismo que então
se instalou. E depois, a morte de Virgílio é uma daquelas grandes
obras, como aquela geração foi capaz de fazer uma coisa realmente... Costuma
ser equiparada e bem. É ao nível da montanha mágica e do
homem sem qualidades. É uma grande reflexão. Tem-se a experiência, ao ler,
de que de facto já... Eu não sei se é possível escrever
romance assim. Mesmo o grande revolucionário que foi o Foster Wallace, que
tentou fazer isso para uma geração diferente e com... Não é... É
muito difícil. E os outros, nem chegam aos pés, tentam escrever o
romance realista. Aquilo é de facto uma coisa notável, de síntese de
pensamento, aquelas frases, aquelas elaborações que são quase formulaicas, sem nenhum esforço
de criar aforismos. É uma coisa notável.
Luís Meneses do Vale
é que é fácil num país como os Estados Unidos, que são
os extremos, eu não quero substituir, como eu insisti bem, que prefira
a sociedade classe média do que a sociedade de extremos. Certo. Mas,
hoje, bolsas de excelência em mercados maiores têm muito mais capacidade. Porque
se é verdade que os Estados Unidos atravessam um período de enorme
crise, uma das coisas que lhes vale é contra a cultura que
têm, que é igualmente notável. Pode não lhes valer de nada. E
por isso é que eu não estou disposto a abdicar da sociedade
ocidental, da sociedade europeia. Mas eu acho que apesar de tudo houve
aqui uma mudança. O que eu mais retirei da crise econômica e
financeira foi a destruição de um mito, se calhar que eu tinha
na minha cabeça, que era que ainda havia alguns herdeiros dos Budenbruch
alemães, ou seja, daquela elite que no Sul não há, porque nunca
houve burguesia, burguesia orgulhosa da sua classe. Os burgueses portugueses toda a
vida quiseram ter um título mais rapidamente possível e serem nobres. Os
portugueses e os espanhóis e os italianos, etc. Mas a burguesia orgulhosa
de si e protestantemente responsável. E o que eu acho que foi
destruidor é que a crise económica e financeira mostrou que essa elite
económica e industrial já é uma minoria relativamente à grande especulação e
ao capital. É uma geração diferente e que realmente é mais o
alto assalariado dos gestores que tem poder do que essas famílias que
tinham apesar de tudo uma estrutura de... Como eu digo isto era
um pouco mitificado. Pois. Mas que na Alemanha, a Alemanha tem algumas
contradições e a Alemanha é muito corporativa e ainda tem em algumas
regiões esse apego tradicional à sua marca, à velha fábrica, etc. E
isso realmente era uma estrutura que apesar de tudo tornava o capitalismo
europeu vivível. Não sei, hoje em dia o que aconteceu, com outro
aspecto por arrasto, é que é dramático ver a situação da Inglaterra.
A Inglaterra, então desligando-se da Europa, arrisca-se a ser um país de
caricatura. Um interposto financeiro do Wall Street e depois um conjunto de
lugares comuns folclóricos.