#39 Luís Meneses do Vale - "Como é que a filosofia política e do direito nos ajuda a analisar...

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José Maria Pimentel
Bem-vindos. O convidado deste episódio é Luís Menezes do Val, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Há algum tempo queria trazer um tema na área do direito ao podcast, sobretudo porque, como o convidado diz a certo ponto, o pensamento no direito, fora daquela aplicação prática com que, querendo ou não, lidamos todos os dias, acaba por ser pouco conhecido fora das salas de aula. O Luís foi-me recomendado, por mais do que uma pessoa, como o interlocutor ideal para falar sobre filosofia política e do direito, uma área não só de ensino como também de investigação sua. E não defraudou, como vão perceber. Na verdade, a filosofia do direito e mais especificamente o tema da justiça foi apenas o mote da conversa que rapidamente nos levou para outros temas à boleia da erudição extraordinária do convidado. E erudição e não cultura ou conhecimento, por exemplo, é a mesma palavra indicada, como já vão perceber. O modo, como disse, era a filosofia política e do direito. E dentro desta, é incontornável o livro Uma Teoria da justiça de John Rawls, a obra mais importante do século XX nesta área da filosofia que foi publicada em 1971. Vale a pena resumir aqui a essência do livro, visto que acabamos por rapidamente saltar para as suas implicações. O grande golpe de asa que Rawls traz ao debate sobre a justiça social é, como todas aquelas grandes ideias, daquelas coisas que parecem depois de ouvidas quase óbvias. O desafio que Rawls nos lança é que desenhemos uma sociedade justa com base num simples artifício que nos propõe e é que chama véu da ignorância. Especificamente o que o autor sugere é que imaginemos um cenário em que temos de decidir a sociedade ideal para virmos a fazer parte, partindo de um ponto de partida em que a nossa situação nessa sociedade nos está tapada por esse véu da ignorância. E por isso não sabemos qual será a nossa posição social, a que classe vamos pertencer, que gostos teremos, personalidade, que talento teremos ou mesmo qual a moral que vamos ter. Rawls pergunta então ao eleitor que princípios de justiça escolheria definir nesta sociedade em que, recorde-se, não sabem que posição inicial vai calhar. A conclusão para Rawls é simples, é que uma pessoa racional irá inevitavelmente achar necessário que essa sociedade tenha regras segundo as quais ninguém seja favorecido ou desfavorecido com base na sua situação inicial, uma vez que nenhum de nós quereria correr o risco de sofrer consequências negativas por ter azar na posição social ou no talento, por exemplo, que lhe calham. Esta obra foi verdadeiramente revolucionária, porque mudou o âmbito do debate sobre como construir uma sociedade justa e tornou-se daí em diante o ponto de partida inevitável para todas as conversas sobre justiça. A argumentação que Rawls faz está na confluência de duas correntes culturais distintas, a do utilitarismo, de Jeremy Bentham e de Stuart Mill, por exemplo, por um lado, e as teorias do contrato social, de Rousseau e de Kant, por outro. Sendo que Rawls critica explicitamente a primeira, ou seja, o utilitarismo, embora não recuse a sua metodologia. Houve essencialmente duas respostas críticas à teoria de Rawls. Falámos, ampassando de uma delas, o comunitarismo, que critica aquilo que vê como individualismo implícito na teoria de Rawls e enfatiza que qualquer um de nós nasce numa determinada comunidade e é indestrinçável desse grupo em que nasce. Uma das figuras dessa corrente do comunitarismo é justamente Michael Sandel, de quem falamos também na conversa a propósito da cadeira da Universidade de Harvard sobre justiça, na qual são abordados muitos destes temas. Os vídeos das aulas desta cadeira estão disponíveis no YouTube, onde tem milhões de visualizações e recomendo altamente vê-los. E já sabem, para apoiar o podcast desde apenas 2 dólares, ou seja, menos de 2 euros, basta ir a patreon.com.br. Pode encontrar na descrição deste episódio o link para este site, juntamente com as pessoas, eventos e livros de que fomos falando ao longo da conversa. Até à próxima! Pronto, eu tinha desafiado, como estava a dizer há bocadinho, acho que ainda houve, tinha desafiado para falar de filosofia do direito e filosofia política, que é uma área que eu acho muito interessante e é uma área sobre a qual estou a trabalhar, quer dizer, não estar na fundação do direito e na fundação da organização política, até da organização económica da sociedade, eu acho uma área da filosofia muito interessante, eu tenho uma relação um bocado ambivalente com a filosofia porque me começa a desinteressar quando a filosofia se torna muito meta, ou seja, quando começa a estar mais do que a um grau de diferença da realidade. Este não é um caso desses, este é um caso que está claramente a um grau de diferença da realidade, quando não menos do que isso, ou seja, tu estás a lidar com temas que dizem respeito à concepção que nós temos de quais devem ser as liberdades económicas, por exemplo, aquilo que tu aludias à pouco da liberdade do trade-off, após a uma reflexão económica, liberdade versus segurança, ou aquilo que é a liberdade de eu querer fazer com a liberdade dos outros poderem fazer outra coisa, qualquer, aquela história das liberdades positivas e negativas e depois tem que ver com uma série de outras coisas, tem que ver com em qualquer caso daqueles de, qualquer caso judicial desses que andam nas notícias, subjacente estão muitas questões destas que estão na filosofia do direito. O que é que é justo, é justa, o que é que é justo decidir em relação àquele caso, aquela pessoa está a ser tratada de forma justa, não está a ser tratada de forma justa. E a última análise, depois disso é que é interessante, aliás, se calhar até é a grande questão que existe nesta área atualmente, é que a última análise nós confrontamos não só... Ou por outra, aquilo que é justo é indistrinçável da noção de bem, Que é variável de pessoa para pessoa, não é? Aliás, o John Rawls, até podemos começar por ele, tu falavas há bocadinho mas acho que ainda é off, que tem um modelo que eu acho fascinante, quando apanhei-o a primeira vez achei aquilo... Quer dizer, como
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todas as boas ideias, parece ultra simples de ser explicado, não é? Parece uma coisa completamente evidente. Há um lado quase platónico no saber, que é essa ideia de que nós temos a percepção
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de que só estamos a recordar-nos de qualquer coisa que já sabíamos, de facto. É uma descoberta, no sentido literal, descobrir uma coisa que estava velada em nós. Pois
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é, é engraçado, por acaso, não espanta que o Potom tivesse essa visão. Ele não só, não era uma visão partilhada na altura, porque realmente parece. Isto para dizer, hoje em dia parece-nos uma coisa um bocado esdrúxula, essa ideia de que o conhecimento era só desencobrir aquilo que já lá estava. No fundo, como é que ele chamava? As ideias puras? Sim, as
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ideias puras e fazer anamnese.
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Exatamente. Mas na verdade parece um bocadinho isso. E pronto, e a teoria do Ross, para passarmos à tese dele, eu até acho mais interessante, o ponto de partida que ele sugere, acho mais interessante até do que depois as linhas de ação que ele sugere, às coisas mais discutíveis. Mas o ponto de partida que ele sugere é aquela questão do véu da ignorância, que é no fundo tu estás para... Aliás, até é mais fácil eu explicar, acho que tu que vais explicar
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a certeza melhor do que eu para quem está a ouvir. É que de facto o exercício do Rawls, que nesse aspecto é claramente uma preocupação kantiana, é sedutor, seja qual for a área, porque é no fundo um esforço de universalização do pensamento. O que nós estávamos aqui a dizer tem, apesar de tudo, acho eu que cala fundo nas pessoas, porque há um lado de reflexo de Hartman, também no século XX, dizia isso, de o pensamento ser um dobrar-se sobre si mesmo. E essa descoberta tem um pouco que ver com o facto de que o grau de apreensão por socialização primária e secundária do mundo à nossa volta é tremendo e desenvolve-se em planos de consciência também muito diferenciados. De maneira que não é descabido, eu sou um tipo muito marlopontiano, não é descabido que nós digamos que o nosso corpo sabe muito mais do que nós somos capazes de alcançar. E que há aqui uma relação quiesmática, simbiótica com o mundo à nossa volta. E que pensar não é, em grande medida, senão esse esforço de refletir, de nos voltarmos sobre nós mesmos, sobre as coisas. O que depois tem um lado doente e a tal metadescursividade e metareflexividade é isso levado a exagero. Exato. Há um grande jurista, Augusto Averrado, que dizia uma coisa com muita graça, é que as disciplinas obcecadas com a metodologia estão doentes, normalmente. Porque estão, no fundo, têm qualquer problema de identidade, estão permanentemente num umbilismo tremendo a tentar descobrir quem são e o que são. Ora, a má fama, num certo sentido, da filosofia, para muitas pessoas vem de uma corrente que até surgiu para disciplinar o caráter nebuloso, especulativo da filosofia continental, que é a tradição analítica anglo-saxónica. E o Rawls inscreve-se nessa linha. E a tradição analítica, de facto, traz ao pensamento filosófico a clareza de um raciocínio de pergaminhos lógicos, com procedimentos pelo menos lógicos, ou então que quando apela a bases empíricas ou de verificabilidade empírica é também muito transparente nos limites e nas possibilidades dessa invocação, quando a tradição continental tem uma outra base realmente. E o que o Rawls faz, em alguma medida, é isso mesmo nos outros ensaios, nos mais filosóficos, é uma pessoa com uma preparação, quem lida depois fora das questões de filosofia política com os outros opúsculos dele, apercebe-se que realmente não é por acaso que a obra, apesar de tudo, tem aquela qualidade, concordes ou não, o que ele faz é uma tradução, com algumas reduções de complexidade, mas uma tradução do pensamento kantiano, de determinação de um conjunto de transcendentais, que ele destranscendentaliza, mas que erguem pressupostos básicos para a definição de uma perspectiva partilhável por quem quer que seja. E nessa medida ele vai identificar muito na tradição, na própria tradição da chamada moralidade, a moralität em alemão, por oposição à ética substantiva, quais são os princípios procedimentais, digamos assim, da justiça, enquanto que o bem, esse seria uma construção cultural e, portanto, no sentido também da doutrina das virtudes kantiana, não teria como deficiência filosófica essa dimensão não crítico-reflexiva que está associada. Agora, chamaste a atenção aí para uma coisa que era, a meu ver, fundamental. É que, e aqui já entramos num território de maior polémica, O Paul Ricoeur foi dos autores que fez um esforço, foi um homem toda a vida de sínteses e fez um esforço por mostrar o que me parece uma evidência, é que esse esforço de imparcialização da perspectiva é sempre local, é sempre situado e, portanto, a crítica a que o Rawls nunca se fortará é de que ele não consegue formar uma view from nowhere, como diz o Thomas Nigel, que é... É a questão do bem, não é? E é justamente isso. É que Os pressupostos que depois subtilmente entram na perspetiva dele, por exemplo, a suposição de um homem razoável. Este homem, que apesar de tudo não conhece o seu lugar na sociedade, tem de ser um homem capaz de perceber o bem, capaz de discernir o correto do incorreto. Ou seja, não é afinal de contas uma pura tabua rasa, é um ente
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com certos conteúdos. É que Tu já avançaste dois quilómetros e não explicámos qual era o princípio dele, aquela questão do véu da ignorância que é o que está sobre o 68. O que ele dizia era, o que ele propunha, no fundo dizia assim, o que ele propunha era a pessoa imaginar o que é que aconteceria se um conjunto de pessoas, uma espécie de assembleia constituinte, uma coisa assim do género, de pessoas fora da sociedade. Eu acho que ele... Eu tenho ideia que ele até dava o exemplo do Mayflower, não é? Daquele barco dos pilgrim, dos imigrantes aí para os Estados Unidos. Ou seja, a pessoa está fora de uma sociedade, a sociedade não existe e tem que definir quais serão as regras sobre as quais aquela ou sobre as quais aquela sociedade será construída tendo em conta que não sabe onde é que vai parar naquela sociedade, não sabe se será rico, se será pobre, em que tipo de família é que vai, a cor da pele, quer dizer, tudo mais e aliás ele tem até mais do que isso porque ele propõe que a pessoa não saiba sequer qual é o carro de inteligência que vai ter, que é uma coisa muito difícil, pois é que tudo isto é muito difícil de compatibilizar e até mais do que isso, e isto está relacionado com o ponto que estavas a fazer, a pessoa não sabe a maneira como vai pensar isto é ultra difícil, Isto é levar a coisa muito longe. Não é simplesmente eu imaginar-me colocado à sorte numa cidade e não saber se vou sair numa família rica ou numa família pobre. Não, eu não sei se vou sair conservador ou progressista, se vou sair tímido ou austrocratista. E o que é interessante
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é que esse esvaziamento, esse exaurimento do sujeito que se está a pressupor, e essa é uma das críticas feitas pelos comunitaristas, mesmo os progressistas, o Sandell, o Taylor, etc. Nós não temos bem a certeza se isso ainda é uma pessoa. Exato. É que esse sente já não é, de certo, uma pessoa, no sentido com que nós somos capazes de a compreender. Ou
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seja, a pessoa é indestrinçável dessa maneira de ser e dessa noção do bem. O que eu
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acho é que, tal como acontece, fazendo uma declaração de interesses, eu sou mais... Não sei se é que isto faz algum sentido, não é? Mas a pessoa às vezes arranja estas bengalas. Eu sou mais hegeliano do que kantiano. Mas do Hegel que lê o Kant e que reconhece que o Kant não basta, mas que há um momento kantiano no pensamento que é incontornável. E esse momento kantiano está no Holze, que é esse exercício de controlo crítico, reflexivo das nossas perspetivas de partida, das nossas pré-compreensões, é muito salutar. Pois é. Nós dizermos até que ponto é que se a perspectiva do homem mau, como diria o Kant, será que esta perspectiva podia ser aceite por outra pessoa? Esse exercício é muito saudável mesmo quando não funciona em absoluto. E a ideia do Rawls era, pura e simplesmente, determinar condições de equidade nesta perspectiva e de lealdade na vida social, que é, como é que eu sou capaz de determinar um conjunto de princípios que qualquer ente com lealdade e em situação de equidade subscreveria. E há um lado curioso porque este cantismo é contratualista por causa disso, mas vale a pena fazer esse exercício. É que um dos grandes debates da modernidade, também muito simplificado na complexidade, sempre teve que ver com isto, que é a relação do indivíduo com a comunidade. Isso é transversal, quer à filosofia do direito, quer à filosofia política. E se nós formos a ver o Ferdinand Tönnies, que escreveu uma tese, que depois, claro, também os seus epígonos fizeram dela o que quiseram, ele foi associado ao nazismo e tudo, ele próprio teve de escrever uma vez um texto a dizer que não o associassem, que ele era um homem progressista, porque ele fez a matécia sobre sociedade e comunidade, onde de maneira um pouco esquemática, como em todos os raciocínios binários, dizia bem, nasce-se na comunidade, a sociedade cria-se, constitui-se. E a verdade é que isso acabou por ir ao encontro de um conjunto de representações que se impuseram na modernidade. O pensamento contratualista, de base já nominalista, voluntarista, filtrada pelo protestantismo, tem essa marca muito importante que é aos sujeitos individuais e à Deus. E o mundo organiza-se de acordo com a vontade divina e com a vontade dos indivíduos. Não há que pressupor estruturas, conteúdos, instituições, referências culturais transcendentes ao indivíduo. O indivíduo é que estabelece as suas próprias regras. À parte disso, tem as relações com Deus. Isto vem à propósito de quê? É que o exemplo do Mayflower mostra porque é que há um oceano separado do continente da América. É que no Mayflower assinou-se, de facto, uma convenção. Essa mitologia de criar uma sociedade do zero, definir as regras com que os indivíduos iam criar a sociedade, tem uma sustentação empírica, porque, de facto, os peregrinos fizeram isso entre eles. Eles chegaram... E uma das origens dessa concepção deles é porque eles reliam o Antigo Testamento como uma aliança, como um contrato com Deus. E assim como havia um contrato com Deus, eles deviam celebrar um contrato entre eles, estabelecendo as regras segundo as quais se iam reger. E isto é curioso, porque nos debates internacionais, eu às vezes digo, isto é uma blague quase, mas eu digo, é por isso que os iguelianos são perigosos na Europa e muito produtivos nos Estados Unidos da América. E com os kantianos acontece o contrário, os kantianos na Europa são muito interessantes, nos Estados Unidos dão libertários muitas vezes perigosos. Porquê? Porque lá a pressuposição natural da comunidade e das responsabilidades pela inserção comunitária não exerce o contrapeso que nós temos cá. Cá, em contrapartida, há que vigiar sempre, parece-me a mim, os apelos à comunidade. Porque o Volk, o povo, nós vimos que tanto deu para, antes da União Alemã ser o Wiesn-Das Volk, dos protestantes em Leipzig contra a República Democrática Alemã, como tem servido nos últimos dias para os racistas virem dizer outra vez Wir sind das Volke, nós é que somos o povo, portanto não queremos que hajam imigrantes. É uma categoria, isso é interessante até para discutir, mas mostra bem que o Rawls... Eu costumo dizer que o Rawls é um epitáfio, porque o Rawls assinala o fim dos anos gloriosos do pós-guerra. Ele escreve a obra ao longo de muito tempo, mas no momento em que escreve é quando depois vai estalar a crise da estagoflação,
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do petróleo, etc.
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E se vai no fundo desmantelar. Quando se diz ele não é muito radical. Não, não, de facto aquilo é uma obra com todas as características de uma espécie de grande consenso. E por isso é que teve o peso que teve e se transformou num referente para todo o debate. Quer sequer, quer não, os debates ulteriores são sempre debates pós-raulianos.
José Maria Pimentel
Ele tentou fazer uma espécie de síntese no fundo,
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não é? Sim, ele depois... Sim, e depois no fim da vida ele foi derrabatendo, porque depois havia além dos elementos a justiça internacional, que era um problema, a relação com a política, do ponto de vista até epistemológico, o lugar da moral e da política, não é? Mas foi muito importante, tendo em conta aqui a nossa discussão hoje, até por esse aspecto que é trazer outra vez para o centro da discussão a filosofia política e a filosofia jurídica. Porque de facto o Carl Engels dizia com alguma graça que as pessoas em casa têm livros de história, seja qual for a sua área de vocação, não é? Tem livros de filosofia.
José Maria Pimentel
Fazer o olhar para o perfil. Faz tanto.
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Mas livros de direito não têm. O direito nesse aspecto é uma disciplina ali a meio caminho entre... Pois,
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mas é engraçado que estás a falar disso porque era exatamente por isso que eu já queria ter trazido direito ao podcast e ficava sempre na dúvida sobre por onde. Trazer por onde. E eu acho que esta é a via certa porque isto claramente é algo que é relevante para toda a gente. Aliás, o curso de árvore que nós estávamos a falar há bocadinho, do Sandell, que tem... Eu acho imensa piada aquilo. Não sei como é que é para um académico desta área. Não sei se acha aquilo de menos. Eu acho que aquilo está muito bem feito e acho que... Aquilo é dificílimo de fazer. Aquilo é muito dificílimo de fazer. Ele fala com uma mestria suave, sobretudo nas últimas aulas, porque ele lança temas ultra polémicos e consegue gerir aquilo muito bem. E... Aquilo é giro, porque é feito com miúdos, com pessoas que estão no primeiro ano, salvo erro da faculada ou pouco mais do que isso. E, claramente, a maneira como ele consegue expor aquilo faz com que aquilo se torne relevante para todas aquelas pessoas. Ele traz uma série de casos reais, muitos casos contemporâneos, por exemplo, que são altamente relevantes para aquilo. Quer dizer, por exemplo, todos os temas que hoje em dia são discutidos como a multiculturalidade, por exemplo, as burcas em França, por exemplo, a identidade de género, a igualdade de género, por exemplo. Tudo isto tem na sua base, inegavelmente, questões de filosofia dos direitos. E há ali um lado que,
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eu falo isso contra mim porque depois a pessoa também vai fazendo essa experiência, que há às vezes a pretensão de encontrar uma espécie de ponto comum, de mínimo denominador comum entre o professor e o auditório. Um conjunto de condições mínimas de inteligibilidade e de comunicação recíproca antes de se avançar para a discussão de certos temas. E às vezes isso é um erro, porque essa aproximação, a melhor maneira de a fazer, muitas vezes, é no caminho. E o que eu acho interessante no caso do Sandell, como de outros, é que há um lado claramente meioutico naquilo. Embora também seja de sublinhar para os alunos, uma coisa é que naquele modelo normalmente os alunos estão bem preparados quando frequentam as aulas.
José Maria Pimentel
Exatamente. E notam-se.
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Não vão às aulas passivamente à espera que aconteça qualquer coisa. E estão com vontade de participar. Eles estão... Eles têm os mínimos para uma interlocução produtiva até para cada um deles. E isso vê-se. Obviamente não há comparação possível, mas há simetria natural entre o mestre e os discípulos, mas aquilo funciona porque repercute no auditório. E, realmente, a certa altura, aquilo gera uma energia própria de debate entre o próprio auditório e o professor, etc. E aí a dificuldade está justamente na condução e isso é que é magistral. Como é que se consegue conduzir e orientar aquela energia, aquela dinâmica que é desencadeada.
José Maria Pimentel
Ele faz uma coisa que eu acho que, pelo menos para mim, passava despercebido no início e depois tu começas a perceber que é quase um trabalho de mágico, que é, ele põe as pessoas a falar e depois seleciona aquilo que vai ao encontro dos pontos que ele quer levantar e quase que reconfigura aquilo de modo a ficar exatamente no ponto que ele quer tratar e parece dar a ilusão de... Que aquilo foi o
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contributo... De que aquilo foi o contributo da audiência, quando na prática foi o em certo sentido, mas em grande medida... Mas isso é justamente, quando eu há pouco falava, o
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exercício de reflexão tem esse lado que eu acho fascinante que é justamente o de progressiva qualificação. Eu uso muita expressão, embora eu não tenha créditos nenhums, porque em certas disciplinas que nós ensinamos insiste-se muito nisso, embora a minha visão seja porventura mais progressista, mais marcada pela teoria crítica, propriamente dita, que a reflexão nestas disciplinas normativas é sempre crítico-reconstrutiva. Ou seja, nós estamos sempre já a trabalhar em ação ou em debate, em discussão sobre os temas. E o exercício que fazemos nunca é de uma transcensão completa. É sempre um esforço de autotranscensão na discussão com os outros. Superarmo-nos e, portanto, nessa medida eu acredito, de facto, nas virtudes que tem a dialética, o efeito que tem a contraposição de argumentos, embora nunca seja fechada, não seja completa, não seja no sentido hegeliano a descoberta no final do sistema explicativo. Isso não, mas eu acredito é na produtividade do exercício. Porque realmente acontece-nos frequentes vezes, quando estamos a dar aulas, a própria enunciação ou a reação do público não entende, que nos força a um suplemento, leva-nos a nós a descobrirmos. Olha, afinal de contas, isto aqui é que está bem. Nunca tinha dito isto assim. E de facto, encontrei aqui uma formulação que de facto acho que resulta. Ou o contrário. Quantas vezes, e isso é uma sensação extremamente desagradável, quantas vezes a pessoa está a dar à aula e de repente lhe cai por completo o ânimo, porque se dá conta de que o que está a dizer não faz sentido. E começa a perder força, a meio a dizer isto não pode ser assim, eu tenho de rever isto.
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Sim, tem que pensar nisto outra vez. Tenho de
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pensar nisto outra vez, porque isto de facto não resolve. Mas no caso da filosofia, já agora só um apontamento, a primeira conferência que eu dei, isto é só um apontamento, a primeira conferência que eu dei, por coincidência, mas foi sobre filosofia de direito. Há muitos anos, eu tinha começado no primeiro ano em que dei aulas e convidaram-me para eu intervir na Faculdade de Letras com um homónimo, que depois eu vim a ler, cujas obras eu tenho ainda acompanhado, doutor Luís António Belino, porque é um estudioso do Marlowe Ponti sobre todas as questões da fenomenologia do corpo, tem uns textos notáveis, eu acho aquela vertente interessantíssima, e fomos lá discutir e a minha intervenção era sobre uma velha querela entre a filosofia do direito dos filósofos e a filosofia do direito dos juristas. Porque a filosofia do direito, como outras disciplinas, a história de direito, tem um lugar bastante incerto no seio do próprio sílabo jurídico. E com razão, porque em rigor os juristas nunca são verdadeiros filósofos do direito. E no meu caso, que sou de constitucional, que cruza ali a filosofia política com a filosofia de direito, eu digo, eu interessa-me aqui esta interseção, mas é realmente um território de uma enorme instabilidade.
José Maria Pimentel
Mas para ver se estamos a pensar a mesma coisa, porquê é que dizes que os juristas não são...
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Porque apesar de tudo, a filosofia nos... Eu não quero me meter demasiado em sear à alheia, mas, inevitavelmente, a filosofia também tem, como é evidente, durante muito tempo tinha, transmitia aquela ideia clássica, aristotélica, de que se preocupava com os princípios primeiros, as causas últimas das questões. E, portanto, quando se refletia filosoficamente sobre o direito, o que se fazia era transportar todo um conjunto de referências canónicas, o estudo do conceito, da justificação, das finalidades, das condições de validade, de existência, para aquele domínio em particular. E nessa medida o filósofo do direito não era diferente do filósofo da arte, do filósofo da religião, que aplicava, basicamente discutia, ontologia do direito, que é o ser, gnosiologia do direito, que é
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o conhecer. Bom, mas aí estamos naquele método que eu falava há pouco, não é? Aí é quando me perdem. E o que acontece é que a filosofia também, mesmo na
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preparação basilar que os alunos recebem, teve uma transformação muito grande, porque a influência do existencialismo, do raciovitalismo, do orto-GHC imprimiu uma outra conotação. A ideia da filosofia cada vez mais como esse o amor ao saber, muito menos o sufismo, o domínio do saber. Isso tem as suas perversidades, é, se pode ter, mas de facto cultiva nos alunos a ideia da filosofia sobretudo como uma indagação filosófica. E esse aspecto, curiosamente, vem muito ao encontro do que nós, como juristas, tentamos transmitir aos alunos, que é nada de pertenciosismos, nós não temos ganga para poder mobilizar os conhecimentos da filosofia para o direito. Agora, uma coisa é certa, é que questões como as jurídicas são, ou no domínio do direito, questões filosóficas são incontornáveis.
José Maria Pimentel
Sim, estão na base, não é? Estão na base. Porque
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Quando nós discutimos a autoridade, quando discutimos a obrigatoriedade de obediência a normas, a pergunta básica, porquê, é incontornável. Porquê? Porquê que eu devo obediência? De onde advenha a legitimidade? Qual é o fundamento? Para que é que isto serve? E depois, claro, uma coisa o Canto dizia que era indefinível o direito. O que é isto? O que é isto de direito? Agora, há um lado que é interessante e chamava-vos a atenção para isso, é que a especialização do direito, como em muitas outras áreas, é que foi responsável também por este apartamento e os juristas estão envolvidos, estão implicados nisso, porque o afastamento do leigo deve-se sobretudo também ao prestígio que depois isso confere ao especialista. Porque se nós fizermos um recuarmos no tempo, o direito era a língua franca da organização social e política. É inconcebível compreender as estruturas da Igreja e da sociedade durante a Idade Média sem perceber o que era o direito na época. Hoje realmente ninguém tem os livros da direito porque de que é que adianta e nem os juristas gostam Que as pessoas lhes apareçam e a dizer que já viram no Código Penal que é assim ou que é essa. Nesse aspecto é um lado interessante também a discutir. É o efeito que teve a modernidade e a codificação na perceção global do direito.
José Maria Pimentel
E o que acontece é aquilo que me parece que acontece, e não acontece só com isso, em certo sentido, a inevitável é que aconteça, é que tu chegas, é como se nós chegássemos, todos nós nascemos a meio do filme, em certo sentido, não é? Culturalmente nascemos a meio do filme.
Luís Meneses do Vale
Kurt Vonnegut diz isso. Não adianta fazerem perguntas que nós ainda agora aqui chegamos.
José Maria Pimentel
Exatamente. E nem sempre nos contam o que se passou para trás. E nos direitos, como noutras áreas, acontece isso. Quer dizer, tu tens o leigo, tem o Código Civil, tem o Código Penal, tem a Constituição, mas não tem acesso ao debate que lhe está subjacente. Tem-no muitas vezes quando temas, determinados temas, vêm à baila, como justiça económica, temas fraturantes, por exemplo. Temas como o aborto, por exemplo, só não se interessam por causa disso, porque de repente... E esse tema é discutido lá, por exemplo, tem muita piada discutido nas aulas do Sandelo, de repente tu tens que fazer aquilo que está na base da filosofia do direito, neste sentido, neste sentido não meta, que é discutir liberdades conflituantes, por exemplo, Discutir direitos que colidem uns com os outros. Discutir noções de bem, por exemplo. Outra discussão com imensa piada que ele faz, que para mim é capaz de ser a melhor aula, é quando ele fala... Isso era em 2008, portanto isso já tem para aí 10 anos. E ele fala do... Depois de trazer este tema do amor, traz o tema do casamento do gay, o casamento entre pessoas mesmo-sexo e tem muita piada porque o que ele mostra ali e vai ao encontro de uma coisa que eu já tinha pensado, que é sempre bom para o ego o que ele mostra ali é que a tua opinião em relação àquele tema não é independente da tua noção de bem. Ou seja, tu podes usar os argumentos que quiseres, o argumento que eu partilho e que me lembro de utilizar na altura, que é a questão de... Quer dizer, ao contrário do aborto, que eu acho uma questão muito mais difícil, ali não há uma questão de... De... De uma liberdade a tentar contra a outra. É um facto.
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Não há dois bens em jogo.
José Maria Pimentel
Não há, mas há visões. Ou seja, porquê é que a maior parte das pessoas seria... Será a partida contra o casamento polígamo, por exemplo. Ou o casamento, para usar um exemplo mais absurdo, contigo próprio. Ou o casamento com animais. Quer dizer, e por daqui em diante, não é? Eu arrisco dizer que ambos seremos contra isso. E a partida, se o casamento polígamo for consensual. Casamento com animais depois já é mais difícil. Contigo próprio, isso era, com certeza consensual, pode ter alguma patologia por trás. Mas é quase certeza consensual. Qual é o problema? O problema é que há uma noção de bem, há uma noção de o que é que está certo e o que é que não está certo, que é independente disto, não é?
Luís Meneses do Vale
E Há um lado que, longe de mim querer defender os juristas, eu costumo, até para efeitos de esclarecimento, também eu costumo convocar, enquanto é este aspecto, uma questão numa salvaguarda, outra vez o Rádoro, que tem uma passagem que eu costumo adapto, digamos assim, do alemão, em que ele diz uma coisa muito bonita que é o jurista é alguém que tem de ter simultaneamente fortes convicções, porque um relativista não consegue tomar posição. Claro. E a verdade é que há um lado na filosofia de que falávamos, a filosofia meta e crítica, que é muito atrativo, mas também muito cómodo, é que o crítico no sentido kantiano muitas vezes se insapora em negatividade. A identificação dos pressupostos mínimos, a definição de limites, quando muito do direito da política se faz de positividade, de produção e, portanto, precisa de fundamentos, de regulativos e não da tarefa meramente fiscalizadora, vígil, da filosofia crítica que vem apontar as falhas, os defeitos de princípio, de fim, de meio, etc. Ora, o Radburg dizia, um jurista tem que ter fortes convicções, mas tem que ter ao mesmo tempo a noção da enorme fragilidade moral dessas convicções. E esse é o grande dilema de quem tem num domínio como o jurídico, tal como no político, de julgar, de tomar posição. Porquê? Porque se... Talvez a maior dificuldade do público em geral para perceber mais a tarefa do jurista até do que do, no caso, constitucionalista, do legislador, é que como é que ele concilia a indagação pelos princípios últimos com a urgência de decidir. É que a incompreensão que muitas vezes o pensamento crítico tem em relação ao direito é uma desafeição adogmática. A incapacidade de compreender que nós precisamos de pressupostos dogmáticos, porque nós quando nos dirigimos ao tribunal não queremos que o tribunal debata, queremos que o tribunal decide. E a verdade é que o que perguntamos ao tribunal não assenta numa verdade última. É uma discussão infindável. Porque o que ali está em jogo somos nós, e como nós vamos sendo, vamos devindo, aqueles temas também vão evoluindo. Eu digo muitas vezes aos alunos, no limite, nós nunca poderíamos julgar alguém e condená-lo à morte, Porque o equilíbrio entre a vida e a liberdade não tem resolução possível. Se não houvesse uma interrupção, que é dogmática, em vocação de uma autoridade mais próxima, relativamente reconhecida, em nome da comunidade, etc., nós nunca mais resolvemos esta questão. E, portanto, a dificuldade de direito é conjugar estes dois mundos. Saber que está ligado a exigências últimas, mas ao mesmo tempo que tem solicitações muito pragmáticas. E daí que Seja normalmente mal visto do lado da pragmática e do lado das exigências últimas, porque fazemos condescendências que não devíamos fazer e ao mesmo tempo, no ponto de vista pragmático, parecemos às vezes enredados em questões altamente complexas, Quando o que se nos pede é que decidamos. E a pessoa diz, está bem decidir, mas isso não é assim... Uma coisa tão simples como a justiça fiscal. Bem, eu tenho visões muito progressistas sobre justiça fiscal. Como constitucionalista, acho que boa parte das questões que hoje em dia se põem em termos de corrupção, até das suas implicações no populismo, etc., se resolvem não com o direito penal, mas com boas arquiteturas constitucionais e de direito público. As que sejam capazes de estimular culturas mais saudáveis, incompatibilidades, etc. Porque acho que o direito penal não vai desmantelar redes de corrupção nenhuma por causa das garantias que tem. Mas a tendência é para quê? Aumentar o direito penal. Exigitar quase que a população, no sentido de controlar por via penal a corrupção. Ao ponto de que nós quase chegamos ao contrassenso de crer penas mais elevadas por um indivíduo que praticou um crime econômico do que uma pessoa que praticou um crime contra a vida. O quê? E depois porquê que isto não resulta? Porque justamente esta construção dogmática, quando encarada microscopicamente, pode fazer todo o sentido, mas implica o desabar de um sistema, porque o sistema penal está construído com base na dignidade dos diferentes valores que são lesados, os bens que estão em causa. Portanto, por muito grave que seja o crime econômico, o direito penal está a julgar pessoas e a lesão que uma pessoa pratica, um bem econômico, não pode ser considerada mais grave do que a lesão que é praticada contra a vida, mesmo que o crime econômico tenha muitas consequências
José Maria Pimentel
na vida das pessoas. Mas isso é... Por acaso é engraçado levantares isso, porque esse é um tema aplicado... Exatamente disto. És o exemplo de uma situação em que isto se aplica. Eu tendo a concordar com essa visão, mas acho que é útil dar aqui o contraditório de pessoas que diriam, mais consequencialistas, que diriam que um crime económico, alguém que tenha... Vou tentar evitar usar nomes, acho que é tão fácil, mas pronto. Uma série de nomes que todos nós conhecemos, que lesaram pessoas, sem número de pessoas e muitas vezes destroem vidas, podem ter um efeito muito maior do que um tipo que é salto ou mato. Com agravante e depois há um agravante por cima disto, que é a questão dos crimes económicos serem muitas vezes perpetrados por pessoas que estão muito mais acima na escala socioeconómica face às pessoas que praticam os outros. E, dito isto, eu apesar destas condicionantes, tendo a concordar contigo, mas reconheço
Luís Meneses do Vale
que elas existem. E eu estou a dizê-lo, escolhido propositadamente, porque conhece as coisas que eu escrevo, acho que são em suspeito de estar a... Eu também acho que nós temos de dar qualquer coisa em troca. E há hoje em dia, uma das áreas justamente que eu exploro é que um território que eu considero um território muito vazio do ponto de vista da densidade normativa. Porque nós temos, mantemos, e é compreensível porquê, Mas mantemos uma mentalidade também muito dicotómica na discussão entre o direito e a política. As coisas ou são direito e são da regedoria dos tribunais, ou então entram na esfera da política e isso significa uma espécie de livre conduto, de discricionariedade. Ora, a verdade é que tem de haver aqui, na passagem de uma para a outra, uma série de passadeiras, não é? Tem de haver aqui uma forma de mitigar esta transição tão abrupta e a verdade é que boa parte do direito público e do direito constitucional, se nós lhe reconstituirmos a genealogia de uma maneira relativamente alternativa ao que normalmente se ensina, permite fazê-lo, porque há uma zona de exigências normativas cuja efetivação eu estou cada vez mais convencido que não deve pertencer aos tribunais, mas que todavia é devida. E Eu acho que, uma das coisas que eu defendo na minha tese e tal, é que aqui as pessoas há uma espécie de grande expectativa social que não tem para onde ser canalizada. E isso viu-se durante a crise, não é por acaso que foi bater à porta do Tribunal Constitucional e à porta dos tribunais. Isso não é fortuito porque os tribunais, face a outras grandes instâncias políticas, têm uma diferença, é que não podem recusar-se a abrir a porta, enquanto o Parlamento pode e o Executivo também. Os tribunais, se lhe apresentam uma petição, têm de decidir. É obrigado a pronunciar-se. E por isso é que é procurado. Só que é verdade que o direito que se realiza nos tribunais, sendo o núcleo mais irredutível da juridicidade, não esgota toda a normatividade que tem relevo no plano, por exemplo, constitucional e do direito público. E por isso é que eu acho que há uma tendência natural para conferir protagonismo aos tribunais de contas, a conselhos econômicos. Isto já existiu no passado. É necessidade ocupar aqui um espaço entre a pura liberdade de discussão política e um sancionamento que se faz nos moldes do processo civil e do processo penal. Isto à escala internacional tem sido sondado por alguns autores, mas ainda é muito débil. Por exemplo, autores que dizem que nós temos de começar a conceber que o que se passa no terceiro mundo é responsabilidade nossa, por omissão. Porque aquilo não acontece por acaso. Os países que se estão a desertificar e tudo, aquilo tem uma explicação. E é sabido. Os povos todos que estão a subir para lá, à África, estão a fugir à desertificação, porque está a nascer um grande deserto no centro. E esse deserto foi criado por nós, com a monocultura que lá implantamos e da qual temos vivido na Europa. E é fácil rastrear isto, não há nenhuma efabulação, nem nenhuma má consciência colonialista. Basta ir ver o último encontro de comércio entre a União Europeia e a África. Nós damos dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro e o déficit continua desequilibrado a nosso favor porque eles... Tudo o que produzem é para nós. E há autores a tentarem justamente forjar uma categoria que é muito difícil e que os juristas são muito antipáticos. Não pode ser tudo a responsabilidade civil e penal, mas tem de haver aqui um espaço de responsabilidade, por conta de uma juridinária. O que é que
José Maria Pimentel
chamarias a essa responsabilidade? Não
Luís Meneses do Vale
sei, eu acho que vai ter de ser uma responsabilidade pensada a partir dos direitos humanos, do direito constitucional, de estruturas administrativas, nós pensarmos, por exemplo, uma coisa como esta. A corrupção. Como é que a corrupção é combatida? É prevendo tipos legais para o corruptor e para o corrupto. Não é. Não é porque isso é tentar combater num plano microscópico um fenómeno que é sistémico. Só que o direito não sabe intervir sistemicamente porque o direito sabe intervir sobre problemas concretos entre sujeitos concretos. Pois é, mas é que se nós estudarmos o que é o direito público, o que é o direito constitucional, a origem deles não é essa. Nós costumamos ensinar direito, evulgo que o público tem 200 anos, nasceu com o IALINEC, a partir... Mas tem um passado, que era o direito da organização política, o direito das estruturas, dos órgãos, das competências, das atribuições numa determinada sociedade com poder. Um direito, por exemplo, como é o que estruturou a Igreja Católica durante séculos. E recuperar isso significa voltar a revalorizar uma coisa que durante muito tempo nós achamos que era secundário, justamente as regras de organização, as regras de funcionamento. Em muitos setores da sociedade essas regras são as mais responsáveis por criar culturas sádias de relacionamento entre as estruturas públicas, das estruturas públicas com o mercado, das estruturas públicas com a sociedade, etc. Só que são muitas vezes invisíveis, porque o que interessa é o direito substantivo, é os direitos e os devezes das pessoas que estão garantidos. Não só. Estou convencido que há aí um espaço. Porquê? Porque alguma coisa vai ter de ser feita sem dramatizar o populismo o que está a viver, sobretudo, desta massa de expectativas que não estão a ser satisfeitas pelas instituições tradicionais. E é facílimo fazer a terraplanagem completa dessas instituições ou então tentar organizar um espaço entre elas. Porque alguns dos fenómenos de adaptação, digamos, pragmática, o muddling through, que os anglo-saxónicos gostam muito, esse improviso, eu não sei se nos levam no bom caminho. Eu dou um exemplo simples. A tendência que justamente os tribunais e órgãos para-jurisdicionais têm adquirido de aumentar o seu poder. O Tribunal de Contas tem hoje em dia uma... Reconhecendo eu que aquele setor da sociedade, por causa dos problemas da corrupção, precisa de controle, devo confessar que há neste momento uma descompensação. Fala-se tanto em que se as pessoas só querem mudar o Serviço Nacional de Saúde na Constituição, quando está lá tão bem como está. A mim preocupa-me mais que o Tribunal de Contas tenha evoluído de um controle de legalidade para o que é progressivamente um controle de mérito da atuação dos executivos. E a pergunta é, se calhar nós vamos precisar de instâncias de controle de mérito. Mas então têm de ser bem legitimadas.
José Maria Pimentel
Ou seja, outras.
Luís Meneses do Vale
Outras. E eu não estou aqui à presença, não tenho solução nenhuma, mas digo que o desafio hoje em dia, ao meu ver, onde é colocado é neste plano, que é nós interrogarmos-nos ao nível da grande arquitetura constitucional como é que conseguimos revitalizar as democracias, porque estamos de facto numa fase de transição para processos de transmissão. O Bauman dizia nos últimos escritos, uma formulação um pouco simplista, mas que tem, apesar de tudo, tem impacto, que é há muito poder, mas pouca política. Há muito poder e muito difuso. E a política, apesar de tudo, estava sujeita a certos canais de atuação e deixa-o de estar. E o que nós vemos hoje é uma confusão permanente e até no populismo uma penetração dos meios tradicionais de política por este poder difuso, que é um contínuum de poder, dos meios de comunicação, de meios informais, etc, que não estão sujeitos aos mesmos filtros, às mesmas cadeias de responsabilização, etc. E não têm instituições, quer dizer, no fundo... Não
José Maria Pimentel
têm instituições. No fundo, o que tu tens é uma... As instituições que, no fundo, sustentam os casos mais desenvolvidos, à falta de melhor palavra, foram-se desenvolvendo ao longo da história, e algumas por enxerto, como... Ou por importação, como... E em Portugal há alguns casos desses, outras por geração espontânea. Neste caso, pelo menos A maneira como eu olho para isto é que tu tens... Tiveste, é certo, uma evolução muito rápida e hoje em dia tens coisas como redes sociais, por exemplo, que criaram uma disrupção grande e criaram essa evolução muito rápida e não existem instituições que lhes deem o respaldo necessário, não é? Para isso, para... E o que é engraçado nisso é que, por exemplo, falavas do tribunal de Contras, tu estás muito mais dentro disto do que eu, mas os modelos variam do país para país e modelos diferentes funcionam bem em países diferentes. Por exemplo, o modelo alemão está muito dependente do tribunal constitucional. O tribunal constitucional alemão
Luís Meneses do Vale
é... Tem um peso gigantesco. Autoridades, autoridades.
José Maria Pimentel
Exatamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, tens o…
Luís Meneses do Vale
Embora agora haja problemas também por causa da sucessão no Tribunal
Luís Meneses do Vale
Constitucional. Porquê?
Luís Meneses do Vale
Porque curiosamente na área da filosofia do direito há uma mudança geracional na atitude relativamente ao Tribunal Constitucional. Não só por causa do conservadorismo na maneira como vê a Europa, mas por causa da adesão a uma coisa que os alemães têm muito nós já não damos assim o Staat der Reste Alemão. Lá está o EGLE, o direito do Estado Alemão. O Estado como uma entidade prévia à própria constituição, que é uma coisa que nós não ensinamos assim, nem todos os alemães ensinam, a ideia de que o Estado que temos é constituído pela constituição que temos numa realidade mitológica. O Estado, quando muito, somos nós e conformamos-nos estadualmente de uma maneira ou de outra constitucionalmente. Isso é que é a grande virtude das... Por oposição, por sua vez, aos anglo-saxónicos, que têm um pouco a ideia de constituição, são só regras de jogo mínimas, que é um pouco lírico, porque esquece que essas regras são para jogar o jogo que está a ser jogado. Claro. Não é um jogo abstrato. Portanto, todas as constituições têm sempre um projeto. E está-se a notar, há uma diferença geracional, porque houve uma polémica no início do século em torno da filosofia do direito e que nascia numa crítica aos não positivistas, quer no Tribunal Constitucional, quer no Supremo Tribunal. E houve um autor alemão, o Bernd Rüders, que se tornou uma eminência e que criticou o Tribunal, porque o Tribunal, em vez de fazer Auslegung, a interpretação, que a letra é ler para fora, fazia Einlegung, metia dentro da Constituição tudo o que lhe apetecia. Porque tem muita latitude, por exemplo. Pois tem, para o bem e para o mal. E há Uma geração mais nova que, curiosamente, numa pátria que era, se reclamava, antipositivista, que aderiu ao positivismo. E eu até, ainda aqui há pouco tempo, a falar com colegas meus que estiveram na Alemanha, há pouco tempo, daqueles que estiveram, disseram que O que sentiram nos colegas é que há de facto um ambiente diferente. Isso é curioso. Porque só por um motivo é que, longe de mim, estar aqui é com catastrofismos, mas é que foi a conciliação de duas perceções antagónicas do direito, o positivismo justamente e um certo irracionalismo, que fez o terceiro reche. Foi o facto das estruturas se terem tornado eminentemente neutrais, positivistas, mas depois insufladas no conteúdo por uma compreensão irracionalista do direito. Mas
José Maria Pimentel
qual é, eu essa segunda parte compreendo, mas qual era a parte positivista? A
Luís Meneses do Vale
parte positivista é esta, a ideia muito kantiana de que cada um tem de cumprir a sua função. No julgamento em Nuremberg o mais perturbador, seja dos funcionários administrativos até ao juiz, é que todos dizem que estavam a cumprir a lei. E o próprio Eichmann, aquelas coisas de dizer arrepende-se de alguma coisa de ter desobedecido a um professor uma vez na escola. E quando lhe diziam, bem, mas e o que fez? Estes papéis que assinou? Diz ele, era a minha função. E os senhores estão a julgar-me em nome de quê? De um direito que não existia. Estão a aplicar retroativamente o direito humanitário, que não estava em vigor na Alemanha quando eu atuei. Portanto, é preciso ver que ali um... Aquele período histórico, nós deborçámos muito sobre ele, Não é que esteja ali o cadinho de toda a reflexão, mas os pais, sobretudo da filosofia jurídico-política, assim em conjunto os pais do direito constitucional contemporâneo, são sobretudo os homens que pensaram durante a República de Weimar. Assim como o Nazar, aqueles loucos anos 20 na Alemanha foram de facto prodigiosos e na literatura e tudo. Também no direito fala-se muito de uma method and straight, que é um grande debate metodológico em torno da Constituição e os grandes posicionamentos ficaram ali marcados. Grandes juristas de todas as partes. Talvez o mais impressionante pela capacidade intelectual seja justamente o que veio a ser Presidente da Associação de Juristas Nazis, o Carl Schmitt, que é de facto impressionante de lê-lo, é um homem... Só que foi ele que depois veio sustentar essa ideia de um Führer-príncipe, o princípio do Führer. A vontade do Führer é fonte de direito. E eu às vezes digo, isto é uma caricatura muito grande, mas que o que permitiu a penetração de uma loucura dessas foi o facto de a Alemanha ser o país que era, que tinha as estruturas a funcionarem e tinha aquela disposição, o Bauman também diz isso num livro sobre a modernidade e o Holocausto, a disposição kantiana da sua administração, não é Aquela coisa de fazer o de cumprir o dever. É uma caricatura do que nós invocámos no Sul, mas nós não tínhamos organização para ter um campo de concentração.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Não éramos capazes. Corrupção
Luís Meneses do Vale
destruía-nos um campo de concentração. Quando se visita Auschwitz, o que se vê é que não é um campo de torturas, é uma fábrica. Sim, completamente. É uma fábrica de... Onde é aplicada a racionalidade burocrática moderna do Max
José Maria Pimentel
Weber. Sim, parte do motivo porque a nossa ditadura era mais suave, parte era uma... Uma... Uma dividência ela própria mais suave, mas parte era inépcia. Ou seja, parte tinha que ver com essa... Os
Luís Meneses do Vale
espanhóis dizem muito isso, mesmo em Espanha, onde quer dizer, também caricaturando um pouco, o país é muito mais dado aos extremos. A verdade é que era um país que o franquismo contemporizava com uma legislação fortemente agressiva que se sabia generalizadamente incumprida. Quer dizer, estava lá de referência para quando fosse necessário invocá-la. Mas ninguém vivia ao abrigo
José Maria Pimentel
daquela legislação
Luís Meneses do Vale
impossível. Que tal como cá? Que tal como cá? Quer dizer,
Luís Meneses do Vale
mas no caso da Alemanha, temos os exemplos célibres, pessoas condenarem, denunciarem os próprios filhos. Os próprios filhos? Os próprios filhos. E, portanto, isto é uma coisa. E o Bauman, eu acho que, como sempre nestas… quando se é assim demasiado político corre-se o risco de… mas transmite uma imagem que eu acho que é impressiva quando ele diz que há aqui um duplo problema, que é este deontologismo kantiano, a ética da consciência aplicada à lei. A lei é para obedecer porque é lei, não é? Eu não tenho de discutir se a lei está bem ou está mal. Cria falta de compaixão, de piedade, que é uma relação direta com o destinatário e ao mesmo tempo falta de reflexão moral, que é fácil transformar as pessoas em autómatos. Isto é uma exurtação interessante até para os dias de hoje, porque não há dúvida que há muitos esquemas de pensamento que visam justamente desonerar as pessoas de pensar. Não é por mal, é uma cadeia de... E porquê? Porque cada elo da cadeia pensar por si É um fator, por exemplo, de enorme ineficiência. Claro. Pois é, mas é que também é um fator de enorme controle e complexidade. E venho um pouco ao encontro que nós, acho que em OFF ainda estávamos a conversar, que é o valor que nós reconhecemos, e é que os meus colegas que são mais, ainda mais da teoria crítica que eu caimo em cima, mas o valor das mediações. Nós não nos podemos, acho eu, nos dias de hoje, deixar seduzir pela supressão das mediações. As mediações são os outros, os outros Às vezes oferecem-nos mediações positivas, outras vezes mediações negativas. Mas nós não temos até o direito. Olha para essas mediações de uma maneira que tenha um lado saudável. Aqui em Coimbra, por exemplo, há um fundo conservador em algumas das coisas, mas há um lado que eu acho que tem uma... É passível de uma leitura muito progressista, que é a despatologização do conflito. A ideia de que o conflito humano não existe como uma coisa dramática. O conflito humano existe porque as pessoas são diferentes. Eu achei que a culpa é do indivíduo carro à frente, ele acha que a culpa é minha de lhe ter batido. Não somos más pessoas, somos diferentes. Temos os nossos interesses, o que é igualmente legítimo, eu não quero pagar, ele também não quer pagar. E é bom ter esse lado não patológico. Perceber que há esse lado... Os problemas são... Eliminar os problemas é uma coisa que é difícil às vezes fazer ver aos alunos quanto mais... Eliminar os problemas não é um objetivo de direito. Os problemas só desapareciam se nós deixássemos de ser humanos. O crime, o Dr. Figueiredo Dias ensinava isso muitas vezes, não é o objetivo do direito penal acabar com o crime, porque a única maneira de acabar com o crime é acabar com a
José Maria Pimentel
liberdade. Exatamente.
Luís Meneses do Vale
Isto é uma coisa absolutamente banal, mas é uma coisa em que é preciso insistir, porque eu estou a chamar isto à colação, porque agora é uma das coisinhas que tenho pensado, até porque é um tema que se presta também a todo o tipo de... Passo pela beísmo de lugares comuns, de babuzeiras, que é a história de como é que nós, por exemplo, no direito lidamos com o populismo. Em particular no direito político, direito constitucional. O que é que se pode fazer? Dialogar. Porque não é fácil, até porque há muitos populismos, quer dizer, de repente também se pôs aquela chancela. A primeira coisa, eu nos últimos anos estive a ler e tal, a primeira coisa é que de facto nós usamos como
José Maria Pimentel
denominada labelidade
Luís Meneses do Vale
a expressão populismo. E portanto começa logo por aí por ter algumas reservas quanto ao emprego da... Até porque arriscámonos a não perceber que todo o disparate que possa surgir sobre esse label há de ter algum fundo minimamente razoável, porque as pessoas não são loucas. Isso, isso,
Luís Meneses do Vale
exatamente. E seja do Brexit, seja...
Luís Meneses do Vale
Quer dizer, a pior coisa que pode haver é uma demonização a priori com essa chancela logo estigmatizante.
José Maria Pimentel
Eu tenho essa visão. Aliás, eu acho que um exercício, por exemplo, que seria ultra interessante fazer, muito difícil de fazer, era fazer esse exercício em relação ao nazismo, por exemplo, que é exatamente baseado nessa lógica, que é qualquer... No fundo, qualquer movimento que agrega muita gente tem lá qualquer coisa... Há lá qualquer coisa de válido. Eu digo, o nazismo é um exemplo extremo, mas, e isso é um bocado polémico, mas é evidente que aquilo não surgiu por acaso. Ou seja, é evidente que ignorar aquilo não era a resposta certa. E hoje em dia tu vês isso em relação a um monte de problemas de... E no fundo o que crias é, acabas por criar uma, uma... Da parte de quem estás a chamar aos outros populistas, quiseres ou o que for, não é? Ou qualquer que seja o epítodo, é uma espécie de saneamento, não é? Não queres entrar em contato com eles, não é? No fundo eles são totalmente cápitos. O que não faz sentido, Também não podes cair no relativismo oposto. Claro. Sim, sim, sim. E por isso é que essa mediação é difícil. Não podes cair no relativismo oposto e dizer não, no
Luís Meneses do Vale
limite não há certo e errado. O problema é logo ali a definição
Luís Meneses do Vale
de qual é a interlocução. Quer dizer, qual é a aproximação que se faz a isto. Porque justamente a demonização, o que significa é a legitimação imediata porque os movimentos antissistema vivem justamente da constação permanente desse seu estatuto de marginalidade. De maneira que se a primeira coisa que nós fazemos é marginalizá-los, nem sequer há debate possível com estes indivíduos. De resto, onde nós temos visto isto, os Estados Unidos podem ter muitos defeitos, mas há uma coisa em que às vezes tem uma vantagem, é que antecipam os problemas, vivem os problemas alguns anos antes. E de maneira que nós devemos olhar para isto que aconteceu nos Estados Unidos, quer dizer, sobretudo isto até a incredulidade com que a elite encara a eleição. Ainda agora a Marta Nussbaum escreveu um livro, Monarquia do Medo, Monarquia Fear, e aquilo é interessante porque a Marta Nussbaum é uma bela cabeça, mas eles não sabem o que hão de fazer. Aquilo é um livro. Confesso que li assim um bocado a correr. Mas relê-se o livro e diz, e então, Em que é que ficamos? A elite americana não sabe o que há de fazer neste momento. Sem sair, não cumprir, não exato. Há ali um beco sem sair. E quem diz isso diz os próprios meios de comunicação social. É uma derrota estrondosa para uma certa consciência reflexiva dos Estados Unidos da América, o que aconteceu? Defraudando as espectativas. Basta ver quem esteve a acompanhar aquilo durante a noite, que não se trata de uma descoberta dos últimos dias, foi das últimas horas. Quando começou a noite eleitoral, estava toda a gente a ver como é que ia ser ou não a declaração de vitória de Hillary Clinton. E depois aquilo começa a mudar de repente, o que significa que há aqui desde logo um problema de facto grave de desconhecimento da vida das populações. Há aqui um problema até da construção das representações coletivas pelos meios de comunicação, etc. Há
José Maria Pimentel
uma coisa, eu acho que o Trump fez uma coisa curiosa. Ele fez uma espécie de unbundling, não sei como é que isto diz em português, de separar uma coisa que normalmente estava agregada e que não tinha que estar agregada, que é a capacidade de ter um discurso que transmita autoridade, autoridade no sentido de domínio, quer dizer, de alguém que podemos seguir, e um discurso sofisticado. E isso, por exemplo, nos Estados Unidos, isso foi... Nos Estados Unidos e não só, aliás, em Portugal não é exatamente o mesmo. Isso foi decaindo, por exemplo, hoje em dia se ouvires um discurso do Roosevelt, por exemplo, a maneira como ele falava, até o sotaque que ele era tudo, aquele até tem um nome específico, o sotaque que ele usava, era uma maneira de falar muito mais barroca, muito mais cuidada, e o próprio discurso, e o discurso em Portugal continua a ser assim, é um discurso muito cuidado, muito...
Luís Meneses do Vale
Elaborado, sim. Muito elaborado, quer
José Maria Pimentel
dizer, com cuidado. E o que o Trump faz é a sun bundling das duas coisas e ele mantém, assegura a parte da autoridade, que ele indiscutivelmente consegue transmitir, mas retira-lhe essa parte de sofisticação e ao retirar essa parte de subestigação de repente está ao nível da população em geral e de repente atrai
Luís Meneses do Vale
imensa gente com isso. Sim, mas eu incluo num sentido muito amplo, eu incluo nas várias camadas de mediação todos esses elementos. O discurso, etc. São mediações que nós vamos construindo e o que é sedutor é justamente cortar a direito. Porque a mediação, eu tenho um pouco essa ideia, a mediação cria um cansaço, uma espécie de saturação cultural. O Jorge Steiner tem um livro, no Castelo do Barba Azul, que tem uma explicação um bocadinho causalista para a Segunda Guerra Mundial, mas que tem um fundo de verdade que é o tédio. É que a verdade é que o tédio burguês também tem o seu contrapolo num certo tédio de classe média alta. Acho que
José Maria Pimentel
vemos isso um bocadinho hoje em dia.
Luís Meneses do Vale
E há um lado que, assim como explicam os ímpetos das vanguardas, o apreço pela guerra, etc., também pode justificar que em certas circunstâncias, que é o que aliás alguns dos grandes especialistas, o Ian Werner Muller, diz muito isso, não é por haver só desigualdade que surge populismo, mas tem de haver como condição necessária. E quando de repente as pessoas começam a fazer experiências, sobretudo uma coisa que eu acho que é muito significativa para os mais novos, é de impotência existencial. As vidas deles não têm horizonte e, sobretudo, não têm agência, não servem para nada. O que eles fazem não constrói, não produz, não tem, como disse o Gil, não tem inscrição nenhuma. E Isso é um elemento de atração para os grandes atos espelhafatosos, por exemplo. E não é por acaso que quando a gente vai ver o terrorismo islâmico, sobretudo na França, etc., aquilo é claramente a busca de um sentido. São uns pobres desgraçados das periferias urbanas, desintegrados no geral ou semi-integrados, nem são os mais pobres, que o que é que fazem? De repente oferecem-lhes um significado existencial completo, um fato integral, não é? Justificação para a vida, uma comunidade, um sentido, poder, capacidade de ação, reconhecimento, etc. Isto é tentador. Não é mesmo que o preço a pagar seja o que nós sabemos, mas é tentador. E há aqui qualquer falha e eu acho que nessas coisas, pois aí entra de facto uma perspectiva política, eu acho que a Europa, sobretudo, os Estados Unidos já tinham esse problema desde sempre, mas a Europa, sobretudo, é responsável porque a partir de certa altura, até por concorrência, quer com os Estados Unidos, quer com a China, começou a fazer meia culpa relativamente às estruturas do estado de bem-estar que tinha criado. Não percebendo uma coisa que o Tony já te diz, mas numa formulação muito bela, que o Dr. Canotilho gosta muito de usar, que é A banalidade do bem. Por
José Maria Pimentel
contraponto à banalidade do mal. A banalidade do mal.
Luís Meneses do Vale
É que nós não nos damos conta de que quando falamos com colegas da América do Sul, ou americanos, a grande vantagem e que parece que demoraria séculos a recuperar, porque é realmente uma exceção histórica. A grande vantagem em relação a ele são as instituições da classe média. Isto é muito interessante, eu até uso isto por razões várias, pela maneira como apresenta, e é normal, tem um cunho de esquerda institucional, Mas eu digo isso muitas vezes até contra algumas esquerdas radicais, sou isso antoitado, que é basta ver como estas instituições tiveram o sortilégio de transformar o próprio discurso da esquerda, que era claramente contra a pequena burguesia. Ora, a pequena burguesia é a classe média. Hoje em dia os partidos de esquerda são todos a favor da classe média, quando há 30 anos achavam que o Estado Social era uma coisa horrível. Era a gestão do capitalismo. Hoje é considerado uma passagem... Mesmo o Corbyn, que é mais radical, acha que é uma passagem incontornável para qualquer sociedade mais igualitária. E nós vemos isso. Vemos quando comparamos com os brasileiros. O que eles acham incompreensível é que eu vá ao centro de saúde e esteja à minha frente o presente do Supremo Tribunal de Justiça. Eles acham isso uma conquista civilizacional que não é a ambição deles para os próximos 200 anos. E nós arriscámonos a desvalorizar isso. E, de facto, nos últimos 20 anos, houve Quer cá, quer nos Estados Unidos, e nos Estados Unidos nota-se mais, porque era uma classe média, sem o mesmo apoio das infraestruturas. Os Estados Unidos têm um déficit infraestrutural muito grande e têm um modelo de desenvolvimento que está mais em risco do que o europeu. O modelo dos subúrbios não é sustentável num mundo pós-petróleo, em que todas as pessoas em casa têm... Claro. E nem gera sociabilidades saudáveis, não é? Pessoas viverem todas em casas iguais, enquanto que as cidades são a não sei quantos quilómetros e não são habitadas. Nós, na Europa, estávamos a tempo de corrigir algumas coisas, mas a verdade é que a pressão econômica foi forte e nós... Houve aqui um período de muito grande hesitação em que achamos que isto que tínhamos era um obstáculo ao desenvolvimento. E agora estamos a ver o que é uma evidência, não é? É que a partir de um certo ponto nem temos condições de estabilidade, quanto mais de desenvolvimento económico, seja o que
José Maria Pimentel
for. Mas o que... Não percebo o que estás a dizer, embora para mim haja aí duas coisas diferentes. Eu já gosto de fazer um apontamento rápido. Essa questão da esquerda ou da esquerda mais radical atualmente, abraçar o Estado Social, é uma coisa que tem imensa piada e que o António Araújo, que foi convidado do primeiro episódio, fala no livro dele. Isto está para fazer uma referência. Eu gosto de fazer isso entre episódios, porque ele fala exatamente isso. Era a demonização. Eram os maiores críticos. A administração,
Luís Meneses do Vale
a burocracia. Eu, de facto, nesse aspecto, digo muitas vezes. Não, não. Eu sou um institucionalista. Um da esquerda absolutamente institucionalista. Que é. Em vez de fazer... Porque depois há um lado interessante deste fim de semana, fim de semana passado, discutia isso numa conferência aqui na faculdade com o Dr. Avelaz Nunes e com o Dr. Xavier de Bastos, que estavam a falar, a discutir os dois, e dizia bem, Realmente desaparecido a União Soviética, a dialética não se pôde manter nos mesmos termos. Exato. Mas houve aqui um simulacro de dialética, porque toda a polução que é mais normativa, mais reguladora, mais conformadora, própria da esquerda, deslocou-se para onde? Da macroestrutura, onde não consegue fazer nada, onde foi derrotada em toda a linha por incapacidade própria, até por uma razão muito simples, isto pode parecer uma piada, mas porque Os intelectuais de esquerda foram todos estudar Sociologia em vez de estudar Economia. Exatamente. Durante duas gerações andaram a estudar Sociologia de maneira que... Qual é a oposição que eles fazem ao sistema? É uma oposição micro, tipicamente Foucaultiana,
José Maria Pimentel
que é muito importante, que é muito importante, muito importante,
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mas insuficiente. E que tem, por exemplo, na Europa, a sua expressão caricatural, que é a obsessão regulatória, micro-regulatória dos comportamentos. Em vez de discutirem qual há de ser a macroestrutura econômica da União Europeia, não, andam a discutir as regras de trânsito e regras de congelamento dos produtos. Sim, senhor, tudo muito interessante, mas eu e uma vez com uma colega minha fizemos uma investigação sobre uma coisa. Por causa da azai, aquelas que... Às vezes, ainda bem que nas faculdades não se pode fazer isso. Estávamos à procura do porquê que era isto de não se poder ter rissóis nas... Porque a azai faz muita falta. Se as pessoas soubessem como a falta de higiene que nós temos não havia tanta coisa. Mas, realmente aquilo parecia um pouco exagerado. E não é que nós descobrimos que só há duas empresas que produzem os frigoríficos capazes de manter as coisas a uma certa temperatura e que são as duas alemãs. E a pessoa diz assim realmente,
José Maria Pimentel
quando se puxa por este fio...
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Claro, há grupos de interesse, mas ao menos na América são transparentes, porque há imenso lobbying na União Europeia, não é? E a tendência, no entanto, o que eu digo é a tendência porque, como nessas coisas eu sou um bocado do estruturalismo marxista, ou do catolicismo, não é? Ambos são explicações católicas de ordenação social global, não me interessa às pessoas em concreto, mas há forças que se geram e que, ao serviço das quais nós sem querer atuamos anonimamente. E a verdade é que o debate, por exemplo, europeu, isso é se mesmo o Dr. Vital Moreira, etc. O debate europeu transformou-se num debate entre uns indivíduos que supostamente querem liberalizar e uns que querem regular. Isso é muito pouco. Até porque isso pode não significar nada. Eu que lido com regras, o que é que é liberalizar e regular? Depende. Há regras que criam imensa liberdade, há liberdades que criam imensas opressões. A expressão em si não significa nada, mas é que há essa necessidade dialética. Controlar o mercado é, à maneira do ordinalismo alemão, criar umas regras para ele funcionar bem. Está bem, mas a questão é discutirmos se deve funcionar em toda a parte, que mercado, que é outra das coisas onde eu acho que há um déficit de pensamento jurídico ou político, é a maneira como se fala do mercado, como se houvesse o mercado. Não há o mercado. Ou o capitalismo. Não, não há o capitalismo. Aliás, as célebres obras, as variedades do capitalismo, etc. Isso é um lado... Ora, o lado sedutor de quando se faz aqui a ligação entre filosofia de direito e filosofia política é que além das questões que podem parecer mais especulativas, imediatamente elas entram em contato com a necessidade de dar uma resposta. Pois claro, essas respostas têm tendência natural à medida que se densificam para ganhar uma crosta dogmática, Isso é inevitável, não é? Mas faz parte.
José Maria Pimentel
Sim, sim, claro. Aliás, tu estavas a falar há pouco de uma coisa engraçada, e eu depois queria ir lá e acabámos por nos perder, que era a questão do Trump e do populismo à volta disso. E eu acho que isso é uma boa demonstração daquela visão comunitarista. Sim, sim, sim. Em relação àquilo que isto... Para nos levar de volta àquilo que nós estávamos a falar há pouco, do Rawls e da visão de justiça e da questão do bem. E o que ali muitas vezes está subjacente são noções de bem ou noções do que deve ser divergente e os Estados Unidos, por exemplo, os Estados Unidos têm a vantagem e a desvantagem de ser um país muito grande e muito diverso. Tem as vantagens porque, como estavas a dizer, estas coisas emergem lá muitas vezes antes do tempo, mas depois tem... E tem a vantagem também de ter muita diversidade e, portanto, permitir, no fundo, originar muitas questões diferentes até civilizacionais. Depois tem o problema de... É tão diverso que às vezes é difícil... Como é que eu ia dizer? É difícil ter... Referências comuns, quase. Referências comuns, exatamente. Ou seja, é difícil teres o referencial comum que permita tu discutires as coisas com algum grau de profundidade. E eu acho que em Portugal nós temos isso, apesar de tudo. Em Portugal nós conseguimos ter esse referencial comum para discutir os temas. Uma espécie de
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posições por defeito que
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nós estabilizamos como sendo minimas, as tais que nós vemos que são civilizacionais, etc.
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E muitas vezes parece que elas não estão lá. Muitas vezes há debates acesos onde parece que essas posições não estão, mas estão e são essenciais. E essa noção partilhada de bem, que é partilhada, por exemplo, em questões da moral, é partilhada em grande medida entre pessoas crentes e pessoas ateias, por exemplo, porque há um referencial comum. Agora nos Estados Unidos, por exemplo, há um... Esse referencial comum existe muito pouco. A mola de pessoas que apoia o Trump, por exemplo, é muito diferente das pessoas que apoiavam ele. E é muito diferente dentro de si
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próprio, não é? E é assim que eles, no fundo, o máximo de racionalização que eles têm atingido hoje em dia passa por isso. Eles já perceberam que nós ouvimos isso repetidamente, mas Eu digo isto também contra mim, nem sempre alcançamos a profundidade do que estão a dizer quando falam na polarização. É que, de facto, há um abismo. Estou a viver. Que é um abismo, uma absoluta incompatibilidade que está a cavar um fosso que tem nexos sociológicos e culturais. Basta ver isto. Eles de facto odeiam-se. A elite americana odeia aquelas pessoas que andam atrás do Trump, que por sua vez odeiam os apoiantes daquelas elites. Isso viu-se na campanha. É dizer, eu nesse aspecto acuso as críticas, as impugnações, mas eu subscrevo inteiramente o que o Mark Lyle, entretanto, publicou em livro, ele já defendia aquilo há muito tempo, por causa da política da identidade. O somatório de políticas identitárias que a Hillary Clinton tentou fazer não é suficiente para vencer umas eleições. E mostra bem o esgotamento de uma certa maneira da esquerda conceber as suas causas. Desde logo por uma razão muito simples e essa é uma coisa que eu às vezes discuto com os meus alunos, é que há uma transformação clara na formação das pessoas. A complexidade do mundo criou enormes obstáculos à formação política. Porque a formação política assenta num pressuposto que não é difícil de garantir, que é ter uma visão integral da sociedade. Exato. Não é fácil? Não é fácil. Porquê? Porque para ter uma visão integral uma pessoa tem de fazer ponderações. Eu digo, eu sou de esquerda, digo, obviamente que não quero o mesmo investimento no exército e prefiro que ter saúde e educação. Mas mesmo dentro da esquerda, há colegas que gostam, acham que a segurança social é mais importante por causa de certas pré-compreensões. Eu digo, está bem, mas para mim é a educação e a saúde, que é para ter instituições universais, etc. E, parecendo que não, aí é que nós notamos que, de facto, há... Este é um ponto crítico, quer dizer, a meu
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ver. Para isso acontecer, para esse diálogo acontecer, parecendo que não, é preciso haver esse referencial comum. Para nós podermos estar a discutir quanto é que vai ser gasto em segurança social, temos que estar de acordo implicitamente sobre uma série de coisas que estão por trás. E o que agora acontece é que no fundo há comunidades diferentes que têm uma visão, uma dividência diferente. E portanto não é possível haver um debate desse género, o debate voltou às bases quase. A própria
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aproximação. Hoje em dia o que se nota é uma adesão muito maior a causas e que têm uma tonalidade ética, o que desde logo cria uma dificuldade muito grande no debate, porque a política muitas vezes não é senão. Eu digo aos alunos daquelas estribilhas o que é ideologia é uma perspetiva parcial de referentes axiológicos. São valores, mais ou menos comuns, toda a gente é a favor da igualdade, mas interpretados parcialmente, com uma certa orientação. Mas apesar de tudo há esse fundo axiológico em que nós mais ou menos nos revemos e o que eu noto nas gerações que chegam às faculdades é que eles não têm perspectiva política. E uma pessoa que adere a causas éticas rapidamente se fundamentaliza. Porque lhe faltam justamente as outras referências que obriguem à suposação das perspetivas que têm sobre o mar. Um exemplo típico, os animais. Eu sei que isto é muito mal quisto hoje dizê-lo, mas eu não compreendo que haja um partido dos animais. Na ciência política, nos anos 80, até aos anos 80, 90, o partido dos animais era um grupo de interesse, perfeitamente legítimo. Defendia os interesses de uma determinada setor da sociedade, de um bem, nunca seria um partido. Porque o problema é qual é a perspectiva da defesa dos animais para a saúde,
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para a educação. Claro, é uma causa, não é?
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Que tem a que ver com a sua ideologia de fundo, a sua compreensão de fundo do que deve ser a sociedade. É a defesa dos animais em todos os setores da sociedade, isso é um grupo de interesse, não é um partido. E não é nenhuma diminuição, porque eu até acho que o trabalho que tem feito o deputado, pessoalmente, o trabalho que tem feito é um trabalho meritório. O problema é, o Pedro Mechia, aqui há tempos, dizia com alguma graça uma coisa que, por vias travessas, acho que exprime ainda muito melhor do que consigo. Dizia ele, é que estão a dizer coisas muito razoáveis e imediatamente descambam. O maior problema da atualidade é o leite. E a pessoa ri-se, dizia. O leite é o maior problema da atualidade. O problema
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é que tudo tem que estar dentro daquela... Quer dizer, a pessoa a certa
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altura... E isto acontece. Isso nota-se hoje nos mais novos. Eles têm causas. E o problema é que nos Estados Unidos viu-se que aquelas comunidades formadas a partir da ideia de uma identidade que para mim é muito discutível. Claro que os colegas de esquerda dizem, e a classe também não é um grupo. Pois é, mas é que a classe é dos grupos mais originais que surgiu ao longo da história. E além do mais, também é muito maleável,
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porque a classe hoje
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não é a classe do... Mas as pessoas, mesmo sem terem a identificação de classe dos anos 30, sabem bem diferenciar o estatuto económico a que pertencem. E a prova disso é que boa parte das opções existenciais que fazem, para o bem e para o mal, tem que ver com a inveja social relativamente aos mais ricos e com o desdém pelos mais pobres. E de resto nisso, a grande revolução, ao meu ver, do Pickety, como de outros autores, do Judd, etc., foi chamar a atenção para a excecionalidade histórica do pós-guerra. Nunca aconteceu isto, que foi nós acharmos natural, acharmos devido, criar instituições que são comuns. E isto é absolutamente revolucionário para a nossa geração, em que as pessoas andavam todas na escola pública. Eu às vezes faço este exercício com os alunos. Se eu andar na escola com o filho do cigano e com o filho do banqueiro, é muito difícil os meus pais dizerem ah os ciganos, o rendimento mínimo garantido. Porque eles podem ter muitos defeitos, mas o filho deles até joga a bola com o meu. E o mesmo para o rico. Se eu disser os banqueiros, banqueiro? O meu filho até vai ousar-nos do filho dele. Ele é mais rico de facto, mas há um ponto de contacto. Onde eu acho que isto se quebra é quando nós começamos a sul-americanizar as sociedades europeias e americana ainda mais. Quando se começa a gerar aquela dinâmica de escolas privadas, hospitais privados, condomínios fechados, não por si, Plude, é que se nós sondarmos o que está no fundo disso, e basta falar no nosso meio social, se nós sondarmos é uma traição de classe. A classe média, por exemplo, viveu a crise com uma angústia tremenda. Como é que havia de salvar os filhos? E salvar os filhos era descontaminá-los o mais possível de quem os pudesse puxar para baixo. E tentar fazer todo o esforço naquela momento para concentrar todos os recursos em guindar os filhos a um nível de emancipação. Só que isto de facto, esta traição dos clérigos, não é? Acaba por cair sobre a classe média. Porque, na equação atual, ou há uma grande revolução económica, ou as classes médias não sobrevivem na Europa sem os suplementos do salário que são os serviços públicos.
José Maria Pimentel
E uma coisa que está mais ou menos provada é que as sociedades tendem para a diferenciação e há processos súbitos de realinhamento, mas que normalmente só acontecem de maneiras indesejáveis, ou por guerras,
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ou por revoluções, ou por... Há uma tese agora aí daquele do... Como é que ele se chama? Do Scheidel, não é? Que é... Que se chama mesmo o The Great Leveler.
José Maria Pimentel
Exatamente, sim, sim. O Grande Nivelador.
Luís Meneses do Vale
E... Eu não me lembro do nome dele, e outro é ali o livro.
José Maria Pimentel
Mas é disso que eu estou a falar também, não estou a lembrar do nome, mas é desse
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livro. É, que é uma coisa de facto... É triste, mas faz todo sentido. Há ali uma continuidade entre o warfare e o welfare. De resto, quem conhece... Eu gosto... Estudo, sobretudo... Estudei, sobretudo, por causa do NHS inglês, quando se vai estudar os governos do Atlee, logo a seguir a... O argumento deles é muito simples. Se nós temos capacidade para criar solidariedade social para fazer submarinos, também temos solidariedade para fazer hospitais. E
José Maria Pimentel
depois há um lado social disso, por exemplo, o esforço de guerra, por exemplo, faz isso que tu estavas a falar da escola.
Luís Meneses do Vale
Claro, estar na trincheira.
José Maria Pimentel
Então, todos juntos. Tem que ir todos. Estar na trincheira, quer dizer. Mesmo o Reino Unido que mantinha uma hierarquização mesmo... Não sei se a Segunda Guerra não tinha, mas pelo menos na Primeira tinha. Havia determinadas pessoas que só iam para determinados cargos. Mas mesmo isso, mesmo aí acontecia isso. Bom, nós nunca mais saímos daqui. Pois é. Portanto vou ter que atalhar
Luís Meneses do Vale
isto. Com muito gosto. Eu a fugir aos temas,
José Maria Pimentel
não é isto. O que é grande isto. Estás vergonha, Não se faz. Olha, lembras-te do livro? Ah, pois é, até era preciso. Se tu lembrares, senão ficamos por
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aqui. Eu vou sugerir um livro, sem ser nada de direito, porque foi um livro sugerido por um professor com quem trabalhei há muitos anos, o Dr. Bronze, e que me sugeriu, e eu nunca tinha lido, que era o do Herman Brock, A Morte de Virgílio, porque foi um livro que eu comecei a ler nas férias, eu estou sempre a ler várias coisas ao mesmo tempo, e esse É um livro que tem de ser lido... Tem de ser mastigado. É... Pô, sem denunciar demasiado. Aquilo são as últimas 18 horas do Virgílio. Chegado a Brindisi. E... Começou por ser um pequeno conto que ele escreveu e que até leu na rádio. O Broca é um personagem também muito interessante. Esteve preso por causa do nazismo e depois foi o James Joyce e outros que moveram instâncias para o conseguir libertar. Ele era um indivíduo que foi engenheiro, trabalhou na fábrica de textas por obrigação paternal. A certa altura mandou tudo às Ortigas, o casamento e tudo, e foi estudar Matemática, Psicologia e não sei o que para a faculdade. E escreveu um livro que eu acho que também é emblemático, que é uma trilogia que se chama Os Sonâmbulos, que é um ótimo retrato de um certo espírito antes da Segunda Guerra Mundial. O sonambulismo que então se instalou. E depois, a morte de Virgílio é uma daquelas grandes obras, como aquela geração foi capaz de fazer uma coisa realmente... Costuma ser equiparada e bem. É ao nível da montanha mágica e do homem sem qualidades. É uma grande reflexão. Tem-se a experiência, ao ler, de que de facto já... Eu não sei se é possível escrever romance assim. Mesmo o grande revolucionário que foi o Foster Wallace, que tentou fazer isso para uma geração diferente e com... Não é... É muito difícil. E os outros, nem chegam aos pés, tentam escrever o romance realista. Aquilo é de facto uma coisa notável, de síntese de pensamento, aquelas frases, aquelas elaborações que são quase formulaicas, sem nenhum esforço de criar aforismos. É uma coisa notável.
Luís Meneses do Vale
Eu acho que tem a ver com ter a disponibilidade de tempo, de vida, que... Temos de nos obrigar, acho eu, a essa disrupção temporal. Eu acho
José Maria Pimentel
que é preciso quem o faça. E se calhar hoje em dia não temos quem o faça. Pois. Não temos... Ou seja, como sociedade não temos...
Luís Meneses do Vale
Também É um papel das universidades.
José Maria Pimentel
Exato, sim, devia ser um papel das universidades.
Luís Meneses do Vale
A maneira portuguesa, se fosse eu que mandasse, se fosse eu que mandasse, era menos aulas e os alunos terem tempo para ler. Para pensar. Uma
José Maria Pimentel
vez eu via na praia... Isto com três... Como é que era? Com três ou quatro... A frase é qual é a coisa deste género? Isto com
Luís Meneses do Vale
3 ou 4 pessoas que a teoria resolvesse. Era assim alguma coisa deste género. Também é um tema que nós não falámos e que é muito importante na filosofia que é
Luís Meneses do Vale
a responsabilidade das elites.
José Maria Pimentel
Sim. Pois, bom... Sim. Agora estás-me a tentar porque isso era o tema... A responsabilidade
Luís Meneses do Vale
das elites e o que é que é isso da elite, que é um problema também mal
José Maria Pimentel
resolvido. Mas eu acho que, pois, eu cada vez mais acho que nós temos mais problema de falta dessa massa crítica de classe média do que propriamente das elites, ou seja, ou uma coisa é indistrinçável da outra, quase a galinha e o... Em
Luís Meneses do Vale
Portugal eu acho que temos um problema de elites. Noutros... Mas eu achava isso antes, por acaso. Tendem atenção o universo. Tendem atenção o universo. É muito pequeno, é preciso ver, nós somos muito... Eu costumo dar este exemplo só numa coisa ilustrativa. Basta ver as edições de livros em Portugal. Se as pessoas olharem quantos exemplares têm uma edição de um livro da Sofia de Melo Braina. Os editores não arriscam mais de 1500, 2000?
José Maria Pimentel
Claro, mas tu achas que noutros países quem é que os lê? E o que acontece
Luís Meneses do Vale
é que é fácil num país como os Estados Unidos, que são os extremos, eu não quero substituir, como eu insisti bem, que prefira a sociedade classe média do que a sociedade de extremos. Certo. Mas, hoje, bolsas de excelência em mercados maiores têm muito mais capacidade. Porque se é verdade que os Estados Unidos atravessam um período de enorme crise, uma das coisas que lhes vale é contra a cultura que têm, que é igualmente notável. Pode não lhes valer de nada. E por isso é que eu não estou disposto a abdicar da sociedade ocidental, da sociedade europeia. Mas eu acho que apesar de tudo houve aqui uma mudança. O que eu mais retirei da crise econômica e financeira foi a destruição de um mito, se calhar que eu tinha na minha cabeça, que era que ainda havia alguns herdeiros dos Budenbruch alemães, ou seja, daquela elite que no Sul não há, porque nunca houve burguesia, burguesia orgulhosa da sua classe. Os burgueses portugueses toda a vida quiseram ter um título mais rapidamente possível e serem nobres. Os portugueses e os espanhóis e os italianos, etc. Mas a burguesia orgulhosa de si e protestantemente responsável. E o que eu acho que foi destruidor é que a crise económica e financeira mostrou que essa elite económica e industrial já é uma minoria relativamente à grande especulação e ao capital. É uma geração diferente e que realmente é mais o alto assalariado dos gestores que tem poder do que essas famílias que tinham apesar de tudo uma estrutura de... Como eu digo isto era um pouco mitificado. Pois. Mas que na Alemanha, a Alemanha tem algumas contradições e a Alemanha é muito corporativa e ainda tem em algumas regiões esse apego tradicional à sua marca, à velha fábrica, etc. E isso realmente era uma estrutura que apesar de tudo tornava o capitalismo europeu vivível. Não sei, hoje em dia o que aconteceu, com outro aspecto por arrasto, é que é dramático ver a situação da Inglaterra. A Inglaterra, então desligando-se da Europa, arrisca-se a ser um país de caricatura. Um interposto financeiro do Wall Street e depois um conjunto de lugares comuns folclóricos.
José Maria Pimentel
A Inglaterra é um caso desses extremos. Essa contracultura também existe lá. Exatamente.
Luís Meneses do Vale
Mas a Inglaterra a mim custa-me porque acho que de facto há ali um fenómeno de palpuração, de palpuramento cultural tremendo, aceleradíssimo. E isso vê-se, vê-se até na literatura e tudo. Que é uma...
José Maria Pimentel
Não sei se eu não vinha atrás. Acho que é... Sim, sim, sim,
Luís Meneses do Vale
sim. Eu confesso, por exemplo, uma das coisas que mais me impressionam negativamente foi aquela abertura dos Jogos Olímpicos em Londres. Porquê? Porque achei aquilo de um atavismo. A recuperação daquelas coisas... Eu recordo-me que estava a ver em casa e o meu pai dizia meu Deus, e isto outra vez? Os Beatles e não sei o que mais. E que a certa altura aquilo é um pouco a farsa hegeliana. Quer dizer, aquilo soava, uma coisa já...
José Maria Pimentel
Descadente, sim.
Luís Meneses do Vale
Descadente no mau sentido. E os ingleses estão habituados à auto-derrisão, não é? Portanto, até suportam essas coisas. Mas realmente eu acho que aquilo foi um embate. E uma das coisas preocupantes é ver o Corbyn, que tem muitos defeitos, é um homem que eu acho que precisa de uma geração a seguir a ele, porque ele está muito marcado pela biografia que teve. É um homem que ele próprio é de outro tempo, mas é preciso protagonistas novos na política inglesa porque é uma coisa confrangedora. E são outros que estão completamente encurralados pelo eleitorado. Eu acho que se fossem entrevistar os vários deputados do Parlamento, eles eram todos neste momento a favor de parar o Brexit só que o
José Maria Pimentel
que é que eles vão fazer? Sim, sim, só que não podem dizer
Luís Meneses do Vale
Secustrados no próprio Parlamento é uma situação... Ainda
José Maria Pimentel
por cima a gente tem um sistema diferente do nosso Pois Tem uma União Nominal Bom, Luís, tenho esperado ver coisas interessantes senão nunca mais saímos daqui Não finge Olha,
Luís Meneses do Vale
obrigado Tu tens de deixar de ser bom ouvinte, tens de
Luís Meneses do Vale
me disciplinar.
José Maria Pimentel
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