#38 Raquel Vaz Pinto - “O que podemos esperar para a China no futuro: abertura política ou...

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Bem vindos ao 45°. Desta vez conversa sobre a China. O modo para este episódio era a política externa chinesa, mas na verdade acabámos por falar de muito mais do que isso. A política externa chinesa é provavelmente dos temas mais interessantes das relações internacionais atualmente. Durante as primeiras décadas de desenvolvimento, a China tinha uma política externa muito discreta, mas tem se tornado cada vez mais conspicua nas últimas décadas e sobretudo nesta última década de pós-crise financeira, de tal forma que a rivalidade entre China e Estados Unidos é provavelmente o grande tema das relações internacionais para as próximas décadas. Ainda há umas semanas, por exemplo, a revista The Economist, que eles aliás chamam Jornal, fazia capa precisamente com esse tema. A convidada deste episódio é então Raquel Vaz Pinto, uma das maiores especialistas em Portugal em política externa e estratégia da China. Sendo que este não é o único tema sobre o qual desenvolve investigação, debruça-se também sobre, por exemplo, a política externa dos Estados Unidos, o papel da religião nas relações internacionais e até futebol, sendo uma acérrima adepta benficuista. Raquel Vaz Pinta é investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e foi entre 2012 e 2016 Presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política. Esta conversa foi, sem querer enviazar demasiado as vossas expectativas, uma das melhores conversas que já gravei para o podcast. A Raquel não só sabe muito sobre o tema como o que neste formato é tão ou mais importante mostrou-se logo desde o início muito à vontade com o formato peculiar deste programa, que é meio conversa, meio entrevista, às vezes é pesado, mas é sempre informal. E isto para não falar da enorme paciência que teve para aturar as minhas perguntas incessantes durante mais de hora e meia. E pronto, espero que gostem deste episódio e já sabem, para apoiar o podcast desde apenas 2 dólares, ou seja, menos de 2 euros, basta ir a patreon.com.br por extenso. Podem encontrar na descrição deste episódio o link para este site, juntamente com as pessoas, eventos e livros que fomos falando ao longo da conversa. Até à próxima! Então vá, Raquel, bem-vindo ao podcast. Vamos falar da China. Por acaso é engraçado, estava a pensar nisto, O tema relações internacionais, no sentido lá, até é um dos temas que me interessam mais e, no entanto, é a primeira vez no podcast que estou a falar com alguém que é especificamente dessa área. Embora tenha falado várias vezes sobre o tema, lembro-me do episódio com o José Milhados, por exemplo, sobre a Rússia, que na prática... Com a sua
Raquel Vaz Pinto
barba que faz inveja ao Rasputin, não é? Exatamente! Então,
José Maria Pimentel
passámos parte do tempo a falar, obviamente, da Rússia, nesse contexto das relações internacionais. E dentro das relações internacionais, o tema China, que interessa, sob vários pontos de vista, mas também desse, é porventura o tema mais interessante no século XXI. A grande questão é a ascensão da China. Me interessa-me especialmente porque eu vivi lá durante quase um ano, então tive uma experiência de... Como nós estamos ainda há um minuto a falar, aquilo é um continente. São sempre experiências parcelares, mas é giro a pessoa ter um contacto direto com o que se passa lá e mesmo depois de ter estado lá eu continuo com a sensação, não sei se partilhas, de que para um ocidental da China é um bocado uma caixa negra, a pessoa tem muita dificuldade em perceber o que se passa lá. Por exemplo, no campo das relações internacionais a pessoa sabe relativamente bem aquilo que se passa no Ocidente, onde muitas vezes as discussões são feitas à porta aberta e fazemos a mínima ideia do que eles pensam lá. Mas enfim, vou te passar a bola a propósito da questão de Tiananmen, que estávamos a falar há bocadinhos, sobre o qual tens um livro escrito, e que é um tema interessante a vários níveis, é interessante porque toca na questão dos direitos humanos e é também interessante porque é uma espécie de... A maneira como eu olho para isso é que é uma espécie de exceção, é um bocadinho quase a exceção que contraria a regra, ou a exceção que confirma a regra na ascensão da China e na convergência da China, na emergência da China, porque aquilo acontece numa altura em que a China já está a fazer este caminho que nós hoje em dia elogiamos, mas no início tem aquilo que depois não dá em nada, não é? É um caso incrível, quer dizer, há um aparente protesto que é completamente, quer dizer, contrariado pela força, depois não dá em nada. Esmagado mesmo. Como? Esmagado mesmo. Esmagado, sim, sim, claro. Mas Até há aquela imagem daquela... Acho que era uma rapariga. Uma estátua de liberdade. Não, não, digo, aquela pessoa que se põe à frente de um...
Raquel Vaz Pinto
Sim, que ainda hoje não se sabe de todo quem é. É uma imagem, é uma fotografia quase icónica, não é? Porque é um homem com os
José Maria Pimentel
sacos do supermercado à
Raquel Vaz Pinto
frente dos tanques, não é? E nós ainda hoje não sabemos de todo a identidade daquela pessoa, mas que no fundo simboliza muito a diferença, a escala, o desfazamento entre o que é o indivíduo e aquele tanque que obviamente personifica, simboliza o Estado Chinês na sua faceta mais opressora. Mas eu acho que o que é interessante em relação... De facto a China é um país fascinante e como todos os países grandes, É um país que tem várias chinas, várias perspectivas, é extremamente difícil, é claro, e podemos dizer o mesmo em relação aos outros países, é difícil nós termos uma imagem única do que são os Estados Unidos, que são para nós muito mais próximos, não é? E depois eu acho que tem muito a ver com a forma como nós entramos num tema ou começamos a preocupar-nos ou a pensarmos em algum tema. E eu acho que o que é o Texas não tem nada a ver com o que é Nova Iorque ou outro estado. E por exemplo, o mesmo podemos dizer em relação à Rússia ou mesmo em relação àndia. Portanto, a China tem isso. E depois, eu acho que tem muito a ver com a forma como nós entramos num tema ou começamos a preocupar-nos ou a pensar num tema. Nós hoje discutimos, sobretudo, a China nesta perspectiva da China investidor, ou seja, neste momento Portugal é dos países mais importantes do ponto de vista do investimento chinês quando olhamos para a Europa e isso obviamente traz a China para as nossas conversas do dia a dia, não é? Cada vez que acendemos uma luz, não é? Nós estamos a contribuir para a China, pronto, entre outras coisas. Mas, para mim, eu quando comecei a pensar na China foi obviamente o ano de 89, ou seja, e foi sobretudo o contraste Exato. Entre aquilo que aconteceu, o tal esmagamento, o tal, o destruçar de toda aquela gente que se reuniu na praça de Tiananmen e nas ruas adjacentes e em outras cidades chinesas e depois o contraste com o 9 de novembro que para nós europeus é o dia, não é? O ano em que o muro de Berlim caiu. E esse contraste entre o falhanço barra sucesso de um protesto e uma manifestação pôs-me muito a pensar naquele país. Portanto, eu acho que para a minha geração a nossa primeira imagem da China, aqueles que não viviam lá ou que não estavam em Macau ou que não tinham uma outra imagem, foi esta imagem de uma China violadora dos direitos humanos, a China ditadura. Mas ao mesmo tempo, e depois claro que nós vamos crescendo, vamos evoluindo, vamos vendo as coisas de outra forma, esse segundo aspecto que tu falas é importantíssimo, porque em 89, nós nunca nos podemos esquecer que a China já leva em matéria de abertura e de alguma reforma económica. Portanto, havia muito mais naquela China do que apenas, com umas grandes aspas, aquele rótulo de comunista. Ou seja, há um lado pragmático, um lado comercial, um lado de sobrevivência e, sobretudo, um outro aspecto que a mim me parece muito importante e eu partilho perfeitamente dessa tua sensação de que quanto mais conhecemos às vezes mais temos a noção de que tudo isto é muito complexo e tem muitas dimensões, de uma história absolutamente extraordinária. Não é? Eu faço sempre questão de destacar...
José Maria Pimentel
Posso só dizer uma coisa em relação a isso? Desculpa, não queira estar a interromper, mas a história, eu quando... Sobretudo quando fui para lá, talvez tenha começado um bocadinho antes, mas foi aí que tive a grande percepção disso, lembro-me de ficar quase escandalizado com o pouco que nós aprendemos sobre a história da China na escola quando somos miúdos. É escandaloso, quer dizer, nós temos, há essencialmente duas grandes civilizações, quer dizer, o Europeu que tem o apogeu em Roma na Idade Antiga e que tem o paralelo na China e depois existe nandia, obviamente existe na Mesoamérica, mas a civilização chinesa é absolutamente comparável ao Império Romano. Não tem mais nem menos, tem menos numas coisas e mais noutras, e nós não sabemos nada daquilo, é incrível. Temos uma vaga ideia de que existia um tipo chamado Confúcio, não é? É, sem dúvida. É quase escandaloso.
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que, aliás, um contraste interessante, ou não é bem um contraste, mas é exatamente nesse sentido que estás a falar, que é o Império da China é fundado em 221 a.C. E desde então há toda uma história extraordinária, difícil, complexa, não é de toda uma história linear, nem por sombras, ou seja, há imensos momentos de desunião, de revolta. Há duas dinastias estrangeiras, a dinastia mongol do Kublai Khan, que tanto impressionou o nosso, entre aspas, Marco Polo, e a última, que é a dinastia dos Qing, a dinastia dos Manchus, que mais uma vez é outra das imagens com que nós ficamos, não é?
José Maria Pimentel
Aquela ideia...
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, aquela ideia do chinês com a trancinha é uma ideia de um chinês, mas é um chinês Manchu, não é um chinês Han, aliás. O século XIX é um século com muitas rebeliões e extraordinárias revoltas e muitas vezes a revolta dos Han, ou seja, daqueles que são etnicamente chineses, ou pelo menos são a maioria da China, a China depois tem cerca de 8% de minorias, mas são 8% de 1.4 bilhões de pessoas, não é? Portanto, dizemos 92% de Han, mas depois quando pensamos na população total, afinal é bastante gente, era justamente cortar a trança. Ou seja, cortar essa trança no sentido da revolta contra esta imposição manchú. Ao mesmo tempo, por exemplo, os manchus tentaram que os chineses abolirem uma prática que aos olhos manchus era horrenda, que era aquela prática das mulheres em faxarem os pés para os pés ficarem muito pequenos e completamente deformados, que provocavam dores horrorosos. Portanto, há ali também esse elemento de alguma fusão ou de tentativa de fusão com as várias culturas, mas eu lembro sempre isto, que é talvez as duas grandes figuras que nós, até porque tem também esse feedback no Ocidente, são Confúcio e Sun Tzu. Ambas viveram antes da fundação do Império da China. E isso dá-nos desde logo a noção clara que estamos a falar de um país ou de um território que obviamente teve muitas imagens, muitas perspetivas ao longo de uma história milenar. E esse aspecto que estavas a destacar, que eu acho que é extraordinário, ia de encontro ao livro que eu ia recomendar.
José Maria Pimentel
Mas podes recomendar já. Posso
Raquel Vaz Pinto
recomendar já, que é um livro que se chama As Rotas da Seda, da Silk Road, e eu li na versão inglesa, na versão original, mas há uma tradução em português, do Peter Frankopan. É dos melhores livros que eu li nos últimos anos. E o que é que ele faz? Ele faz a Rota da Seda desde todo o seu início. E a Rota da Seda verdadeiramente torna-se a tal Rota da Seda, quando os romanos conseguem fazer toda aquela ligação, atravessando todos aqueles territórios, que era realmente uma grande aventura, no ano de 116 a.C. E conseguem fazer essa conexão com quem? Com os chineses.
José Maria Pimentel
Mas espera lá, isso é engraçado, porque isso vai contra uma coisa que eu tinha lido no livro de história da China, engraçado, que se calhar não é verdade, que um dos puzzles históricos, digamos assim, é o facto de duas grandes civilizações mais ou menos coexistentes, a Roma antiga e o Império Chinês, parte do início do Império Chinês, terem coexistido cronologicamente, mas nunca se terem cruzado. E o que havia era... Há documentos chineses que têm uma referência que se interpreta como sendo romano, já não sei qual era o nome que eles davam, praticamente. E em Roma também havia uma ideia, lá está, do país que exportava a seda. Sim, sim. Mas não havia qualquer contacto cultural, mas isso parece ir um bocadinho contra isso. Não, no
Raquel Vaz Pinto
fundo, a grande ideia do livro, e o livro faz isso, é explicar como todo este eixo euroasiático, se quiseres, como agora está mais na
José Maria Pimentel
moda,
Raquel Vaz Pinto
não é novo e, portanto, é de facto interessante como produtos chineses, ideias chinesas, fizeram essa viagem através das caravanas na tal rota da seda e tinham um impacto no Império Romano.
José Maria Pimentel
Só que era indireto, não é? Indireto isto é. Indireto no sentido em que passava por vários intermediários.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. A tal rota da seda no sentido em que, e repara como, mais uma vez, e para nós vermos como... Eu, aliás, quando comecei a estudar este país, não é? A questão da história era de facto um aspecto que transformava muito todas estas perspectivas. E eu lembro-me muitas vezes pensar como é que um país, não é? Aguentou duas décadas de Mao Zedong, duas décadas de utopia totalitária com o grande... Eu acho que talvez os dois melhores símbolos, mas símbolos é aqui uma palavra que tem que ter algum cuidado, São o grande salto em frente e a grande fome, que causou hoje, nós hoje temos estimativas mais ou menos conservadoras que dizem que essa grande fome causou pelo menos 45 milhões de mortos. Ou seja, é uma brutalidade. E se nós pensámos quantas pessoas morreram direto ou indiretamente na Segunda Guerra Mundial, o número esmaga, não é? E depois, claro, a Revolução Cultural. E eu muitas vezes pensava no início, sobretudo por causa também da própria questão dos direitos humanos, como é que foi possível, Ou seja, se aquilo era a regra ou se aquilo era a exceção. E agora quanto mais se estuda este país, quanto mais o vou conhecendo, mais me impressiona que é justamente a resistência, ou agora outra palavra que está na moda, que eu ainda não percebi se é uma tradução ou não, que é a resiliência de um povo e de uma elite que aguentou tudo até Mao Zedong. Eu acho que essa resistência, essa resiliência é absolutamente extraordinária, porque o século XX para a população chinesa é uma tragédia até 1978-79, com a ascensão de Ang Shoping.
José Maria Pimentel
Uma dúvida que eu tenho em relação a isso é justamente a relação às elites chinesas. Pronto à conclusão que eu tinha chegado em relação a isso era que, pelo contrário, tinha havido uma espécie de varrimento das elites porque, em primeiro lugar, bem, a primeira grande parte das elites vai com o Chen Kaicheng, vai para Taiwan, e depois, durante o comunismo, tudo que eram elites que tivessem sobrado eram quase postas de parte e há quase uma emergência daquelas pessoas que tinham juntado ao Partido Comunista e que vêm com Mao Zedong. Ou seja, eu tinha exatamente a ideia contrária, de que aqueles que estão na elite agora chinesa não têm nada a ver com a elite do final do Império.
Raquel Vaz Pinto
Não, isso está de certa forma certo, mas há sempre elites, não é?
José Maria Pimentel
Ah, ok, estou a perceber. Ou seja, a ideia
Raquel Vaz Pinto
é, nós hoje quando olhamos para a elite do Partido Comunista da China, e porque há sempre uma elite, nós temos que olhar para eles como mandarins. O meu ponto é este,
José Maria Pimentel
ou seja, temos que olhar
Raquel Vaz Pinto
para eles como uma elite que, depois de Mao Zedong, tem orgulho nessa história, que vai buscar todas essas várias narrativas e repara como toda esta ambição da China no mundo vai repescar uma ideia que é aquela ideia da rota de seda. Ou seja, esta ideia de que ao contrário do que se possa pensar, a China ao longo dos séculos esteve presente, esteve interativa e outro aspecto importante, que eu acho também é um dos grandes méritos deste livro do Peter Frankopan, que é mostrar como, se nós pensarmos bem na história do mundo, os anos de domínio do Ocidente são uma exceção
José Maria Pimentel
à realidade. Exato, sim, sim.
Raquel Vaz Pinto
Ou seja, o mundo esteve muito mais euroasiático do que propriamente centrado, sobretudo na Europa e depois com a ascensão dos Estados Unidos, ocidental. E isso também nos faz agora pensar porque é que com estes Estados Unidos, que nós não percebemos muito bem qual é que é a sua política externa e a sua relação com o mundo, nós temos estes outros polos que têm uma história absolutamente extraordinária nos ombros. Ou seja, muitas vezes, no fundo, a China, e aliás há um livro também muito bom do Gideon Rahman, que ele escreve, é um dos dos polonistas do Financial Times, que é o Easternization, e ele começa o livro com uma coisa muito simples, mas que eu acho que é muito boa para nós percebermos, no fundo, ele começa por contrastar aquilo a que ele chama a visão linear da história dos Estados Unidos, não é? Ou seja, um país desde que foi formado, claro, com um século XIX complicado, que tem uma guerra civil tremenda, mas que desde então esteve sempre no auge e ainda não desceu. Ao contrário da China, que tem uma visão cíclica da sua história, ou seja, já esteve no topo, já esteve muito mal, aliás os chineses fazem sempre questão de nos lembrar, agora cada vez menos porque estão muito mais assertivos de que houve de facto um século, meados séculos a 9 até ao final da Segunda Guerra Mundial, um século de humilhação ocidental inipónica, que é sempre um aspecto que é bom adicionar, mas esta ideia de que houve um período mau e que agora a China regressa. A China não é uma potência emergente, a China, pelo contrário, é um país que regressa àquilo que é o seu lugar por natureza, que é ser, não digo o centro do mundo, eu acho que a China não tem essa ambição, mas regressa a um lugar que é por direito próprio, entre aspas, normal para si, não é? E eu acho que essa é uma perspectiva interessante. Nós, muitas vezes, nós também temos essa perspectiva. Nós europeus tínhamos uma história longuíssima,
José Maria Pimentel
não é? É verdade, mas eu acho que o nosso raciocínio é muito mais parecido com o americano nesse sentido da linearidade. Eu já ouvi várias vezes essa referência, no fundo esta comparação entre o linearidade, ou o que quer queiramos chamar, e esse pensamento mais circular, mais cíclico dos chineses e eu acho que é quase impossível no ocidente apreciar como é que isso funciona na prática, mas há um exemplo engraçado de como isso é, como isso funciona, que é, por exemplo, na historiografia deles. Eles têm muita dificuldade em reconstituir a história porque aquilo era tudo contado. Eles não tinham provavelmente uma tradição historiográfica e, portanto, os relatores, quer dizer, quem contava a história de cada dinastia contava sempre para encaixar numa coisa, num molde pré-definido cíclico em que havia. É um bocado aquela analogia das empresas, que é um que constrói e outro que mantém e outro que desbarata. E a história deles é toda... O início, sobretudo, é tudo contado assim, porque depois não consegue ir atrás. Um historiador contemporâneo tem muita dificuldade em perceber se aquilo aconteceu de facto assim ou se o relator daquele período da história está simplesmente a fazer aquilo, entrar num molde pré-definido de circularidade, de emergência muito bom e depois queda e depois por aí sucessivamente. E eles se calhar olham para este período deles se calhar de uma maneira parecida com essa, não é? Que no fundo tiveram o avalio, um declínio sobretudo na última dinastia com maus imperadores e depois eles têm que encaixar o mau no lado bom. Exatamente, e essa é
Raquel Vaz Pinto
sempre uma tarefa difícil, mas eu acho que Deng Xiaoping arrumou isso muito bem, que é Mao Zedong deve ser sempre recordado como o homem que libertou a China e que permitiu à China reerguer-se e fundar a República Popular da China. E depois a partir daí é que
José Maria Pimentel
as coisas começaram a ocorrer menos bem. Sim, é um bocado como nós fazemos, quer dizer, passo a comparação com o Alfonso Henriques. Nós, quando falamos do Alfonso Henriques, não estamos a... Isso tornou-se particularmente ridículo naquele programa dos grandes portugueses. Nós não estamos a analisá-lo como uma pessoa contemporânea, o tempo é boa conta porque ele fundou Portugal e a história acaba aí, não vamos ver o período de vida dele a ver
Raquel Vaz Pinto
se... E aí faz sentido,
José Maria Pimentel
a questão é, nesse caso faz sentido porque foi no século XII, com o Mao Zedong faz menos sentido, mas é provavelmente o exercício que eles tentam fazer, a dizer, digo eu, estou a especular, mas ele teve o grande mérito de fazer o país e a partir daí acabou, e a revolução cultural e o grande salto em frente. O que é interessante
Raquel Vaz Pinto
é, nunca questionando esse ponto, há cada vez mais o regresso da história, o regresso dessa China imperial. Aliás, basta olhar para Xi Jinping. Xi Jinping é um imperador, não é nada mais nem nada menos.
José Maria Pimentel
Sim, eu queria falar sobre isso também porque é muito diferente dos líderes anteriores, não
Raquel Vaz Pinto
é? Não, não, não, exatamente. Lá está a elite.
José Maria Pimentel
Sim, mas isso, peraí, eu já agora queria perguntar uma coisa em relação à elite, não sei se alguma vez já apanhaste alguma coisa relacionada com isso, voltando àquele ponto que eu estava a fazer antes. Porque eu achei isso muito interessante quando lá estava, sendo que só a parte disso é o efeito de lá ter vivido, outra parte é, às vezes, a pessoa quando está nos sítios, o mero facto de lá estar e pensar sobre o assunto leva-nos a conclusões que podíamos ter tirado perfeitamente cá, ou seja, não tem necessariamente a ver com inputs que tenha recolhido pela experiência lá. Mas uma coisa que... Uma sensação que eu fico ao olhar, sobretudo para a história recente da China, era exatamente aquilo que Eu falava há pouco de eles terem tido quase uma iluminação, uma descontinuidade nas elites, que é uma coisa que não se nota bem. Portugal e toda a Europa do Sul é um caso paradigmático, exatamente do oposto. Se nós fizermos um exercício de recuar séculos, vemos que há uma continuidade drástica nas elites, que de resto tem um grande problema de mobilidade social. Mas a antídice disso, ou seja, a eliminação de elites, também pode ter problemas. E na China, a situação com que eu fico é que todas as pessoas, todos os membros da elite atual, não trazem consigo nenhuma tradição, nenhum capital de práticas da China Imperial. Portanto, há uma série de... Toda a nobreza da China Imperial foi completamente cortada. Parte terá ido com o Cheng Kai-shek, imagino, parte terá sido completamente deposta. Portanto, há essa espécie de descontinuidade que culturalmente não sei que impacto terá. Porque, por um lado, eles parecem ter um modelo muito confucionista, mas por outro lado, a sensação que eu tenho é que isto são pessoas que emergiram muito recentemente. Não trazem a tradição da China antiga e, portanto, há uma continuidade do país, há uma continuidade cultural no sentido lato, mas há de haver ali por baixo diferenças grandes. Não sei se estou a explicar bem, não.
Raquel Vaz Pinto
Não, estou a perceber lindamente. Claro que grande parte da elite, ou pelo menos aquela que sobreviveu, foi com Chiang Kai-shek para a ilha de Taiwan. E, aliás, Chiang Kai-shek fez mais. Chiang Kai-shek fez algo que nós todos... Enfim, Chiang Kai-shek era um ditador com todas as letras, portanto também nesse aspecto não há aqui muito a avançar, mas fez uma coisa que foi muito importante, que foi ter levado grande parte desses tesouros dessa China imperial do ponto de vista da arte e levou-os para Taipei, onde aliás estão num museu fabuloso. Sempre que alguém me pergunta por onde é que deve começar a visitar a China, eu recomendo Taipei e recomendo este museu, que é o Museu do Palácio Nacional, em que no fundo tudo o que é China até 49 está lá. E portanto esse aspecto da cultura é importante. Agora, também é verdade, seja dita, que muita dessa elite, essa elite dos anos 30 e dos anos 40, também não era, como dizer, uma elite que já estava assim de muito boa
José Maria Pimentel
saúde.
Raquel Vaz Pinto
E com imensa corrupção, que aliás é uma das características, sobretudo nos anos finais de Chiang Kai-shek. Mas, ao mesmo tempo, ainda encontra esse aspecto que estavas a destacar. Eu acho que, quando hoje em dia eu olho e conheço estas pessoas e tudo isto, eu tenho a imagem exatamente oposta. É de que aqueles dois anos de Mao Zedong foram uma exceção, foram esse corte, mas é um corte que dura pouco. Porque há de facto esta geração e este Xi Jinping que está no poder, eu acho que é um excelente exemplo, o conhecimento que ele tem dos clássicos chineses, a forma como ele gosta muito de estar sempre a citar pensadores anteriores, que de comunista têm zero, não é? E sobretudo esta noção clara de que voltamos a estar em cima. E voltamos a estar em cima com muitos aspectos importantes, claro, e por isso é que eu à bocado dizia que eu quando olho para esta elite, eu vejo... Olho para eles como mandarins com uma roupa diferente, com um fato diferente, mas mandarins à mesma. E aliás, é interessante perceber que quando acontece o grande salto em frente, que era no fundo para resumir, Mao Zedong queria fazer a revolução industrial, que como todos nós sabemos foi uma coisa muito rápida, não é? E queria fazer a revolução industrial na China em poucos anos. E aquilo, claro, foi um falhanço total, levou à tal grande fome. E quando aquilo termina, percebe-se claramente que entre várias coisas Mao não percebe nada da economia. E não percebe, aliás, muito mais coisas. E isso foi interessante porque provocou na tal elite comunista, se quiser, ou na elite maoísta, para sermos absolutamente corretos, provocou um choque. E é esse choque que vai levar à revolução cultural, no qual está inserido o nosso Deng Xiaoping, porque Deng Xiaoping é uma das grandes vítimas das purgas, ou seja, no fundo, a elite começa a revoltar-se contra o próprio Mao Zedong. E, aliás, a grande vítima da revolução cultural são os quadros do Partido Comunista da China, ou seja, no fundo Mao queria livrar-se e por isso é que ele faz aquele apelo aos jovens, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Vai diretamente aos jovens,
Raquel Vaz Pinto
aos tais guardas vermelhos, não é? Porque justamente a elite do partido o que queria era deixar de ter um líder vitalício com caprichos. E eu acho que esse é outro dos aspectos importantes, que acho que é um conceito importante para nós percebermos esta China, que é um conceito muito trabalhado por vários autores, David Schambach, será talvez aquele que melhor se destaca, que é esta ideia do partido-Estado. Ou seja, eu não consigo perceber a China de hoje se não perceber que o partido é mais importante que o Estado ou... Ou seja, há três lugares fundamentais na
José Maria Pimentel
China. Exato.
Raquel Vaz Pinto
Secretário-Geral do Partido Comunista, Presidente da China e, no fundo, o Presidente da Comissão dos Assuntos Militares. Neste momento, Xi Jinping detém os três. Dos três, aquele que verdadeiramente me interessa é saber quem é o secretário-geral do partido. E aqui o partido, no fundo, tem ainda uma coisa de comunista. Eu acho que tem sobretudo de leninista. Esta ideia de ser o partido a vanguarda que vai liderar esta redistribuição do crescimento económico para todas as áreas na China. E eu acho que esse é um aspecto importantíssimo, ou seja, há de facto aqui uma noção muito clara por parte destas elites do partido que mais uma vez nós temos que pensar e voltar a 79. Quer dizer, Deng Xiaoping, ao contrário de Mao Zedong, que só saiu da China, peia duas vezes a União Soviética, que eu acho que não se classifica propriamente como viagens interessantes, em que Xi Jinping faz parte daquela gente que nos anos 20 fez aquela viagem absolutamente épica, em condições que nós nem conseguimos imaginar, e que foi para a Europa trabalhar. E, aliás, é justamente em França que ele conhece Zhou Enlai e que adere ao Partido Comunista. E nessa viagem épica que no fundo lhe deu a tal mundo e visão. Ou seja, ele percebeu claramente como é que no fundo o resto do mundo funcionava. Isso depois foi importantíssimo para esses anos e eu até gostaria de destacar uma conversa, uma reunião que ele tem com o então líder de Singapura, ali com a Niu, que recebe no fundo uma tentativa de contato por parte de Deng Xiaoping e fica um bocado meio em pânico, meio perplexo, não é? O que é que ele quer, no fundo? E, no fundo, Deng Xiaoping disse-lhe de forma clara, ouça, eu passei aqui em Singapura nos anos 20, isto era um bando, não é? Ele não diz assim.
José Maria Pimentel
Certo, certo.
Raquel Vaz Pinto
E agora, Singapura é esta cidade-estado absolutamente extraordinária. E eu quero perceber como é que você fez isto. E é muito interessante, ou seja, nós vermos a tal abertura, o pragmatismo. Sim. Aliás, era uma das alcunhas do Deng
José Maria Pimentel
Xiaoping, era alcunista. Era a história do gato, não é? Exatamente.
Raquel Vaz Pinto
Porque depois ele, ao mesmo tempo, tinha que ter muito cuidado com a tal fação no próprio partido que ainda via mal com aquela referência e por isso é que ele usa aquele aforismo não interessa se o gato é preto ou branco desde que apanhe os ratos e nós tocamos e dizemos não interessa se a economia é capitalista ou socialista, o que ela tem é que funcionar. E é
José Maria Pimentel
essa
Raquel Vaz Pinto
capacidade de ir mais além, de pensar para além do que era uma espécie de uma camisa de forças ideológica, que a China não tinha, que permitiu à China ser capaz de em 1989 já ter 10 anos de avanço, quando o muro do Barlim caiu. Então eu acho que esse, ou seja, eu acho que esse momento que nós falávamos há bocado é muito revelador, aliás um jornalista que escreve muito bem sobre a China, Richard McGregor, a faceta centralizadora e ao mesmo tempo esta faceta pragmática. A China tem conseguido ter o melhor dos dois mundos, pelo menos até agora. Sim,
José Maria Pimentel
e eles conseguem, o que é incrível no Massacre de Tiananmen é que eles conseguem passar uma provação dessas, ultrapassá-la e, quer dizer, neste momento passaram quase 30 anos e é um episódio que se ele não tivesse tido tanta repercussão no Ocidente e se não tivesse sido o único, praticamente, nós não falávamos daquilo porque aquilo foi... Se fizesse um livro sobre a ascensão da China, aquilo do ponto de vista económico-político é quase uma nota de rodapé. Eu não quero dizer com isto, claro que o lado humanitário
Raquel Vaz Pinto
é muito mais importante. Não, de todo, é uma tragédia
José Maria Pimentel
humana horrível. Agora, desse ponto de vista, aquela monotona de rodapé, porque é uma coisa que passa, não tem impacto nenhum.
Raquel Vaz Pinto
E isso é justamente uma das acusações dos chineses, que dizem de forma clara. Bom, primeiro, eu acho que essa China não estava preparada para o poder dos mídia. E, portanto, ficaram perplexos com estas reações. Ou seja, e porquê que estava lá todo aquele aparato mediático? Porque em maio ia ter lugar a grande cimeira entre Gorbachev e os líderes chineses que, no fundo, fazia aquela re- ou normalização. Eu acho que as relações entre a União Soviética e a China nunca foram normais. Aliás, a relação nós hoje sabemos, na altura não se sabia como é evidente, mas a relação entre Mao Zedong e Stalin era péssima, mas péssima, péssima. E no fundo esta ida de Gorbachev a Beijing era, no fundo, voltar a normalizar as relações e era ele que ia à China e portanto... Mas como em Abril morre um líder de morte natural, que é a coisa que eu digo sempre aos meus alunos, porque há sempre esta coisa da conspiração...
José Maria Pimentel
Mas a China era um bocadinho mais branda do que a União Soviética, apesar de tudo nessas purgas. Nessas purgas depende! A União Soviética normalmente limpava o sebo, faço a expressão, não é?
Raquel Vaz Pinto
Eu honestamente estamos a discutir a escala dos horrores. Eu não vejo grande diferença entre Staline e Mao Zedong. Eu acho que talvez os chineses... Os chineses... Não, não posso dizer os chineses. Mao Zedong talvez tivesse uma maior preocupação com aquilo a que nós chamaríamos de forma direta ao assunto, a lavagem cerebral. Ou seja, o reformar, o obrigar, o quebrar o indivíduo. Stalin provavelmente fuzilaria imediatamente, sem grandes preocupações. Esse é um aspecto que não deve ser de todo descontextualizado, mas a partir de Deng Xiaoping essas purgas são feitas, ou seja, As purgas internas, ou seja, os dissidentes dentro do próprio partido não têm o mesmo destino que acontecem com Mao Zedong. Mas, por outro lado, a máquina repressiva continuou e continuou de forma... Aliás, nós vemos isso... Uma das figuras mais fascinantes, e basta ler aquilo que ele escreveu e que obviamente lhe mereceu o Prémio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, em 2010, e é um nome que nós devíamos todos saber de cor, porque de facto foi alguém que foi julgado, que foi preso, que não pôde receber o Prémio Nobel da Paz, ficou lá a cadeirinha vazia, que eu acho que é simbolicamente importante e que morreu na cadeia, não é? Portanto, e alguém que escrevia de forma direta as questões entre, enquanto nós formos uma ditadura, este país não vai poder evoluir, não vai poder andar para a frente, no fundo. E, portanto, a máquina de repressão, a China é uma ditadura absolutamente sofisticada e ao contrário de outras ditaduras, sei lá, como o turco-ministão, há um processo interno de, se quiseres, de uma certa meritocracia neste sentido. Ou seja, um líder, para chegar a líder, passa por uma série de testes internos, seja governar províncias muito complicadas, com aspas, como diria Beijing, sei lá, Tibet, Xinjiang, não é? Que são geralmente sítios de, por razões óbvias, aliás de direitos humanos gravíssimos, de violações de direitos humanos gravíssimos, são duas províncias que os Han gostam muito de ter muito controlado, mas por outro lado, ou depois passarem por províncias mais ricas, onde também há mais potencial de corrupção. Portanto, há aqui uma espécie de uma...
José Maria Pimentel
Sim, um tiro fino que eles vão fazendo. Exatamente.
Raquel Vaz Pinto
Há uma espécie de um caminho. Há uns que vão falhando os testes e depois, claro, as redes, as networks, como nós diríamos que vamos montando, também são muito importantes. É totalmente diferente. Aliás, eu acho que basta atravessar a fronteira para a Coreia do Norte. Para a ditadura chinesa é impensável que haja uma ditadura hereditária, que é aquela coisa absolutamente entre o sinistro e o estranho, que é aquela dinastia Kim na Coreia do Norte. Na
José Maria Pimentel
Coreia do Norte. Mas esse é um dos pontos engraçados que eu gostava de falar, essa questão da especificidade da ditadura chinesa. Só para ter relação àquilo que eu ia dizer há bocadinho... Sim, se
Raquel Vaz Pinto
eu não te deixei falar...
José Maria Pimentel
Eu às vezes tenho a tentação de interromper demais, mas Se os chineses fossem como os soviéticos, o Deng Xiaoping nunca tinha chegado a líder porque tinha sido logo morto.
Raquel Vaz Pinto
Está feito, está feito. Essa, exatamente. Mas essa é exatamente uma das imagens que eu gostava de deixar aqui, que é Uma China tem um Deng Xiaoping porque essa China precisava de Deng Xiaoping, completamente ao contrário da União Soviética, que ossificou. Se nós pensarmos que nos anos 70, ou pelo menos na parte final dos anos 70, Os chineses começam com Deng Xiaoping e os soviéticos ainda têm Brezhnev, e depois ainda vão ter ali Andropov, Chernenko e depois finalmente lá vem o Gorbachev, que tentou reformar, o que não era de todo
José Maria Pimentel
reformável.
Raquel Vaz Pinto
Mas é interessante porque mesmo em relação para a liderança chinesa 89 a 91 foram anos horrorosos, não é? E voltando àquela questão do poder mediático, ou seja, Todos aqueles jornalistas estavam na Praça de Teanamento para cobrir essa cimeira extraordinária. E como o Hu Yao Bang, que era um líder, foi um dos primeiros delfins escolhidos por Deng Xiaoping, mas depois ele tinha uma perspectiva de que as reformas tinham que ser muito mais abrangentes e muito mais rápidas e, portanto, houve ali algum desconforto e ele no fundo é colocado numa prateleira adorada, que é outra grande diferença. Deng Xiaoping, se fosse Mao Zedong, tínhamos arranjado aqui um assassino ou coisa assim, ele é colocado. Mas era um líder extraordinariamente popular e, portanto, quando ele morre em meados de abril, os estudantes e muita gente começam-se a reunir na praça para, no fundo, pedir ao Estado, ao partido, que façam umas exéquias, furmes, como ele merece. Como ele merece e aquilo depois vai ganhando aquela vaga e depois vai avançando. E, claro, a liderança chinesa passa a maior das vergonhas porque não pode todo fazer nada de grande pompa em circunstância, porque a praça está tudo tomada, há gente por todo lado e, portanto, tudo aquilo é muito estranho assim, e os jornalistas, claro que percebem que muito mais interessante do que o aperto de mão é, obviamente, aquilo que está a acontecer na praça. Para a China foi um acordar violento, para a China não, lá está, para a liderança chinesa, para o poder da imagem. E como tu dizias, Ibem, uma das acusações da liderança, a primeira tentação foi negar. Era impossível negar aquilo, não é? E depois foi a diferença entre... E quando nós começámos a reaproximação com outros Estados Unidos em 71, 72, estávamos no meio da revolução cultural e vocês não disseram nada. Agora em 89 acontece, como eles chamam, este incidente. Sim. E há este escândalo todo, porque não perceberam de todo, não foram capazes de compreender o impacto. A razão que tu diz é Exatamente essa, porque nós não percebíamos o que é que acontecia na China, não tínhamos informação e, sobretudo, nessa altura, muito poucas pessoas falavam sequer chinês, não é? E, portanto, nesse aspecto, a informação era extraordinariamente difícil. 89 foi visto na televisão. Aliás, já não me lembro qual é o autor, eu penso que é o Harry Harding, que no fundo diz 3 quartos da população americana ou daqueles que vêem televisão, já não me recordo os números, viu aquilo. A partir do momento em que isso acontece, há obviamente uma opinião pública norte-americana que de repente acorda para esta China autoritária, completamente em contraste com a visita histórica que Deng Xiaoping faz no final de 78, que há aquela fotografia fabulosa de Deng Xiaoping que fez uma turné pelos Estados Unidos, um case study de sucesso, e há uma fotografia absolutamente deliciosa, mas que hoje nenhum presidente da China faria aquela fotografia, lá está, com um chapéu gigante
José Maria Pimentel
no rodeio. No rodeio, um
Raquel Vaz Pinto
chapéu gigante de texano, de cowboy, vá lá. Hoje em dia é inimaginável pensarmos que Xi Jinping faria aquilo, nem pensar. Portanto, há esta China, que é uma China diferente daquela a que estávamos habituados a pensar, a minha geração que tem aquele impacto com esta questão dos direitos humanos E, portanto, e do outro lado da Guerra Fria, embora a relação da China com a União Soviética tenha sido uma relação extremamente complicada. E também, no fundo, este ponto de que, mesmo hoje em dia, e essa era outra ideia que eu também gostava de deixar, que é esta ideia do império centrífugo, ou seja, que é de um professor, Jai Ho Chung, no fundo a ideia dele é esta, de que ao longo da tal imensa história da China, há esta ideia de, desta China, destas províncias, destas pessoas que se afastam do centro. E a história da China pode ser contada como a tentativa do centro de controlar todas estas regiões, estas pessoas que, de forma passiva, dissimulada ou ativa, vai fazendo a sua vida sem se preocupar muito com ou tentando não contestar o centro, mas
José Maria Pimentel
mantendo a sua vida. Isso é muito engraçado porque isso nota-se muito bem na China hoje em dia, aquela questão de o centro, isto é, o Estado Central, preocupa-se, o partido, o governo, preocupa-se em controlar determinadas coisas que são fundamentais e depois está-se um bocadinho nas cintas para as outras. E quando digo outras é, por exemplo, regras de trânsito. Um chinês típico infringe uma série de regras de trânsito.
Raquel Vaz Pinto
Uma vez apanhei o susto da minha vida em Tianjin, quando ia com uma amiga minha, estávamos numa conferência, quando chegamos a uma rotunda, o condutor do táxi olhou para a rotunda, viu que aquela parte toda à direita estava cheia de gente e fez a rotunda para a esquerda. E eu estava lá atrás com a minha amiga e disse assim, saímos já aqui ou continuamos? Ela olhou para mim, não, não, continuamos, o hotel é já ali, pronto. É um de muitos exemplos. Por acaso
José Maria Pimentel
eu não tenho várias, não tenho nenhum tão bom como esse. Não, mas isso é típico, eles fazem e isso lembra-me um bocadinho, em sério sentido, de Coisas de Vida e Assistência, Portugal. Eu acho a cultura chinesa, ou, por outro lado, eu acho Portugal dos países europeus com uma cultura mais parecida com a cultura chinesa em vários aspectos. Um deles esse, nessa espécie de muitas regras, mas para serem pouco cumpridas, sobretudo neste tipo de coisas, neste tipo de coisas mais comezinhas. Depois o facto da sociedade ser relativamente coletivista, a sociedade chinesa é muito coletivista, o papel da família, da comunidade e a portuguesa à escala europeia também é. Sim, à escala europeia, sem dúvida. À escala europeia, não à escala mundial. E é até engraçada essa... E eles, nota-se que historicamente eles se habituaram a conviver com isso e nós também. A nossa história, embora sejamos um país muito mais pequeno, também é um bocadinho essa história, quer dizer, fora... A pessoa está fora do centro e tem aquela coisa do... Claro que isto varia e o norte, por exemplo, Portugal, mesmo sendo um país pequeno, é diferente do sul. Mas há muito essa lógica de... Mesmo no Estado Novo, por exemplo, havia determinadas coisas que as pessoas sabiam que não convinha, não convinha ter determinadas conversas nos cafés. Depois o resto, havia uma série de liberdades que hoje em dia a pessoa até não tem noção porque as pessoas, o Estado não estava interessado, sabia que não conseguia, não era tentacular o suficiente para chegar tão longe. E a sensação que eu tenho é que na China é um bocadinho assim, ou seja, o Estado está muito preocupado com determinadas coisas e há pontos vermelhos onde as coisas não convêm
Raquel Vaz Pinto
tão fácil. É literalmente vermelho,
José Maria Pimentel
está bom. Depois o resto, ela se torna um bocadinho mais títana. Mas isso era só uma parte...
Raquel Vaz Pinto
Não, não, mas esse aspecto é um aspecto fundamental, porque lá está, é outra imagem. Sim. Não é? A imagem da China, ditadura fortíssima, que é, não tínhamos quaisquer ilusões, ou seja, é
José Maria Pimentel
uma ditadura sofisticada,
Raquel Vaz Pinto
é uma ditadura que tem uma estratégia, ou seja, que pensa na sua sobrevivência a médio e longo prazo, não pensa como, e estou sempre a usar o exemplo do turconistão, mas podíamos usar outro...
José Maria Pimentel
O turistão.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. Mas que vê isso e, portanto, tem imensos recursos financeiros, que utiliza para quê? Para o controle da internet, para a tecnologia de controle das redes sociais, que obviamente não são as redes sociais nossas E há toda uma série de piadas, não é? A grande muralha, The Great Firewall of China, essas piadas todas. Mas isso, no fundo, mostra como a grande preocupação do centro, porque lá está, há uma consciência da história. E as revoltas ao longo da história da China são tremendas. Há períodos de desunião, há períodos em que aquele sul costeiro, diferente, cosmopolita, aberto, onde aliás começam as zonas económicas especiais em 78, 79, não tem nada a ver com aquele norte mais fechado, até em alguns aspectos um bocadinho virado para dentro, não é? Ou seja, psicologicamente, não é? Não tem nada a ver com Guangdong, com Cantão ou outras províncias mais costeiras. E no fundo, isso também nos ajuda a perceber como a China tem apostado tremendamente, quer na inteligência artificial, quer nestes meios tecnológicos, quer por exemplo uma coisa que é assustadora, é quase orwelliana, que eles têm feito, claro, em Xinjiang, a província norte do Tibete, onde a maioria das pessoas são uigurs, muçulmanas, ou pelo menos são a maioria, mas há cada vez mais migração Han, justamente para... Para... Iluminar também não é uma boa palavra, mas para...
José Maria Pimentel
Diluir, não é?
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, diluir, boa. Para diluir essa presença religiosa e essa identidade que é o reconhecimento facial. Há ali elementos, mas por outro lado, dito tudo isto, as grandes preocupações do partido são sempre internas. Isso ajuda-nos a perceber como é que a China, que tem O segundo maior orçamento de defesa do mundo, depois dos Estados Unidos, é claro, e o gap entre os Estados Unidos e a China é tremendo, embora nós possamos, obviamente, deve haver muita coisa que não se consegue, no fundo, saber em relação, sobretudo, àquelas indústrias de defesa de ponta da China, mas a China gasta mais no orçamento de segurança interna do que gasta com o seu orçamento de defesa. Isso diz-nos tudo sobre quais são as prioridades do governo, ou seja, controlar essa China, mas ao mesmo tempo que há esta China que se revolta, esta China que protesta. As três maiores razões que levam as pessoas a protestar nas ruas e há centenas de centenas de centenas de protestos nas ruas são falta de terra arável, que é um problema gravíssimo da China, ou seja, tem 1.4 bilhões de pessoas e tem muito pouco terra arável E por isso é que também nos ajuda a perceber porque é que a China compra tanta terra em outros países. A questão da segurança alimentar é importante. Em segundo lugar, as questões relacionadas com o ambiente, ou seja, o crescimento desenfriado poluiu muito. Há problemas cardiorespiratórios, toda uma série de doenças, a questão da água potável que é outro drama. E a terceira razão são razões laborais. Portanto, há de facto estas duas imagens, eu aliás estou neste momento, é um dos meus projetos com o meu colega e amigo Luís Má, estamos justamente a escrever e a trabalhar sobre estas várias imagens de um país que fascina, que quando falamos direitos humanos que nos repele, não é? Mas que ao mesmo tempo também tem que ser entendido. Ou seja, e nós portugueses, tendo em conta o peso da China na nossa, pelo menos em alguns setores estratégicos para Portugal, essas chinas têm que ser entendidas. Sobretudo numa época, num tempo em que nós vemos sinais muito... Que nos alertam, que nos preocupam da saúde das nossas democracias liberais.
José Maria Pimentel
Exato. Este tema é dos temas mais fascinantes que existem e agora parecia-me ficar a falar de algumas coisas da história, mas se fizer isso depois não falo de outras que queria falar também e portanto vou avançar, vou avançar, sabe? Ou seja, vou dar um passo em frente como
Raquel Vaz Pinto
diria o... Diz que não seja um grande salto
José Maria Pimentel
em frente. Como é que dizia? Era o Lenin que dizia aquela do dar um passo atrás para dar dois em frente, não era? Dar um passo em frente para continuar a falar daquilo que falámos há pouco da questão do regime. Porque... E isso depois faz-nos aponte para a questão da democracia ou da ausência dela, ou seja, do futuro desse regime. Porque realmente o regime chinês tem uma peculiaridade porque é uma ditadura mas é muito mais do que isso, sobretudo desde o Deng Xiaoping. O que o Mao tinha feito era de certa forma esvaziar as elites, lá está, uma coisa típica do líder despótico, não é? É, exatamente. Tentar agarrar-se ao poder, parece o líder do clube de futebol de que tu não és fã que fez agora que também tentou uma estratégia semelhante recentemente porque o óbvio! O óbvio, exatamente! É uma estratégia semelhante, é uma estratégia típica e o The Shopping faz uma coisa muito curiosa numa ditadura, ou seja, ele tem essa visão. É parecido com o... Como é que se chamou o da Singapura? Ainda há um bocadinho de falar. Com o Lee Kuan Yew. É muito parecido com ele, embora Singapura seja um bocadinho mais... Seja tecnicamente uma democracia, mas depois na prática está mais perto de um... É
Raquel Vaz Pinto
uma democracia iliberal.
José Maria Pimentel
Iliberal, exatamente. Eu vi no outro dia a guise of democracy. Há
Raquel Vaz Pinto
várias formas de dizer isto de maneira eufemística.
José Maria Pimentel
E ele tem esse golpe de asa grande a vários níveis, mas sobretudo tem o golpe de asa institucional que é realmente admirável, sobretudo porque não havia, provavelmente, incentivos para o fazer, ao institucionalizar aquela questão do limite dos mandatos, sendo certo que o cargo de Presidente da República, ou seja, Presidente do país, nem é o mais importante, o mais importante até era o Presidente do Partido, Mas eles estão ligados, quer dizer, aquilo acaba por estar ligado e ele institucionaliza essa questão de haver um limite de mandatos e torna institucionalizado aquilo que tu falavas há pouco, por um lado, uma rotação no cargo, que é essencial e que é uma característica que costuma existir justamente nas democracias, sem abrir nunca o regime, portanto ele nunca o torna democrático, mas recupera aquela tradição das burocracias no bom sentido que a China historicamente tinha. Provavelmente o primeiro país a ter um Estado centralizado eficaz, quer dizer, de formação... E funcionários públicos... Funcionários públicos, exatamente. Aliás, o confúrcio era isso. Que
Raquel Vaz Pinto
faziam exames de admissão e que eram promovidos por mérito nesses exames de admissão.
José Maria Pimentel
Muito à frente do que nós tínhamos. Nós éramos completamente feudais e eles já tinham esse sistema. E ele consegue recuperar isso e, no fundo, consegue fazer, sem nunca abrir mão do poder do partido... Não, não, tem que chupar, ele não era um democrata, vamos pôr o ponto final. Exatamente, e aliás o Tiananmen mostra isso bem, mas ele consegue, mantendo esse Estado comandado, dar uma vitalidade àquele regime que, goste ou não se goste, é o que está por trás dos últimos 35 anos de convergência. Claro. Isso é como é que... Quer dizer, daquilo que tu tens estudado o assunto, como é que aquilo surge? Quer dizer, como é que isto é tão diferente do que costuma acontecer em todas as ditaduras que há muito mais um caso parecido com o caso norte-coreano, por exemplo, a usar um... É caricatural, mas normalmente são muito mais próximos disso. Mesmo o nosso exemplo. O nosso exemplo está muito... O seu azar fica até ao fim, na prática. Ou seja, não há sequer uma transição e depois o Marcelo Caetano tenta ali no início fazer qualquer coisa, mas depois na prática rapidamente perde a vontade ou a possibilidade de fazer e o regime cai.
Raquel Vaz Pinto
Sim, sem dúvida. Eu acho que esse é dos aspectos que mais uma vez gostava destacar. A questão dos direitos humanos e o que é que a gente tem que fazer com isso, que eu acho que é muito importante, é que o Deng Xiaoping, ele não tinha a capacidade de fazer isso, Portanto, eu acho que Deng Xiaoping, como tantos outros que viveram aqueles anos 20, que viram como de facto havia a capacidade e a vontade de melhorar a vida dos chineses, que esse é um aspecto aqui fundamental, até pela própria sobrevivência do partido. Ou seja, no fundo, Deng Xiaoping, com a sua visão mais viajada, com mais noção do que estava lá fora, e também porque a elite o sentiu, não é? No fundo, o que tentou fazer foi continuar no poder, fazendo todas aquelas reformas que achou que tinha que fazer. Agora, concordo contigo, é muito raro nós encontrarmos, aliás, Um líder que faz tudo isto, low profile, não quer assumir essa linha da frente e que, no fundo, ele preferiu apostar no coletivo em detrimento do líder. O tal líder, no fundo, ele tinha perfeita consciência que se viesse outro Mao Zedong, a China provavelmente teria o mesmo destino da União Soviética, implodia, desfazia-se, não é? Eu acho que nesse aspecto ele foi extraordinariamente... Teve essa visão, essa visão acoplada à questão económica da abertura, no fundo ter o melhor dos dois mundos, que é aquilo que verdadeiramente nos deixa perplexos, não é? Porque a China, sendo um país ditatorial e uma ditadura fortíssima, por outro lado é um país que tem conseguido as tais taxas de crescimento que deixam muitos países em vias de envolvimento muito invejosos e que agora está justamente a fazer ou a tentar fazer um processo importante que é de deixar de apostar tanto em ser a fábrica do mundo com salários baixos e começar a desenvolver o seu mercado e o mercado de consumidores e com tudo aquilo que depois vem associado a isso. Por outro lado, nós há décadas, há anos, que andamos... Que se ouve muito dizer que a China vai abrir, a China vai se reformar. E no entanto que o facto é que a China não tem feito esse caminho. Houve algumas experiências na província de Guangdong, mas que, pelo menos pela atual composição do comitê permanente do Politburo do Partido Comunista da China, que são os chamados Sete Magníficos, ou os Sete Imortais, se quiseres. O que nós vemos é que essa linha foi talvez posta um bocadinho em banho-maria, porque havia de facto um aspecto importantíssimo que foi sempre, ou pelo menos foi uma das grandes razões de queda, seja de dinastias, seja de governos, que é a questão da corrupção. E, portanto, eu acho que essa é a principal razão pela qual Xi Jinping lhe foi permitido reforçar, de certa forma, o poder, afastar o Bo Xilai, que era o seu grande rival e afastou com toda a classe, com todo o melodrama, não é? E com o julgamento, tudo aquilo muito populista, com um aspecto claramente de mensagem. Eu acho que essa é a grande razão. Mas se ao mesmo tempo nós vemos esta questão de uma grande força, mas que eu acho que é relevante. Ainda esta semana saiu uma notícia de que um jogador brasileiro da liga chinesa, eu recuso-me a dizer super liga chinesa, que é preciso ter vragonha, Que é o Tardelli, que vai ser sancionado porque durante o hino da China não esteve irto. E portanto, já não sei, olhou para baixo e mexeu na cara. É qualquer coisa assim ridícula. E que portanto vai ser objeto de uma suspensão ou de... Seja lá o que for. Isto mostra-nos também como, por detrás de toda esta força, há ao mesmo tempo quase uma obsessão, uma paranoia com qualquer sinal de dissidência. E isso, para mim, é muito mais um sinal, uma demonstração se quiseres, dessa fraqueza do próprio amante da força e portanto se é verdade que Xi Jinping tem reforçado muito o seu poder do ponto de vista formal, como tu destacavas, e vem também a própria questão da reformulação, a talidade de reforma, de sair dos cargos, e depois foi buscar para ser o vice-presidente o vice-presidente, aquele que foi no mandato anterior o chamado, eu não gosto de dizer o Cesar da corrupção, que os chineses certamente não gostariam desta conversa, porque Cesar implicaria o outro país, mas que é o Wang Qichang, no fundo uma figura que era o seu braço direito e que ele foi buscar para vice-presidente. Portanto, eu acho que ali mesmo em toda aquela parafernália, aquela pompa em circunstância, aquela imagem de imperador, eu acho que também há muita noção do próprio partido de que era preciso reformar e de que era preciso limpar, fazer a tal purga, não é?
José Maria Pimentel
Mas é que há uma coexistência entre duas coisas que parecem mais ou menos de sinal contrário. Por um lado, a preocupação com debelar o problema da corrupção, que pode ter várias causas, mas a partir da interpretação que a pessoa faz é que ele percebe que aquilo era um impedimento no mínimo ao desenvolvimento econômico e no máximo à sustentabilidade do regime. Exatamente. Isso é, no fundo, não é uma forma de abertura, mas é uma forma de melhoria institucional do sistema. E depois, por outro lado, há uma coisa que vai quase ao arrepio disso, que é essa questão da eliminação do limite aos mandatos e, portanto, tornar-se um ditador menos sancionável ainda do que era antes, ou seja, muito mais independente, com muito mais autonomia, liberdade de ação e, portanto, no fundo, o primeiro, não digo que sugira um caminho no sentido da democracia, mas pelo menos sugere um caminho no sentido de melhorar o sistema do ponto de vista do cidadão, enquanto o segundo, a prazo, é exatamente o contrário, sobretudo, é completamente contrário àquilo que estávamos a falar há pouco, que a pessoa está farta de ouvir há anos de que será que é desta que a China se torna uma democracia e que era uma coisa que no início a pessoa dizia bom e tal mas eu lembro de usar esse argumento, mas a China, se virmos bem, a China lá está tem um ponto 4 de habitantes e se a pessoa fizer o PIB per capita, mesmo em paridade dos produtos de compra, ou seja, mesmo em termos de do que cada cidadão consegue comprar, eles entram lá muito abaixo. Hoje em dia já não estão tão abaixo assim, hoje em dia eles estão ao nível do Brasil e estão já acima, eu apanhei isto no outro dia e achei muito engraçado, eles estão acima, o PIB per capita, ou seja, o poder de compra do chinês médio já está acima do poder de compra do sul-coreano médio quando a Coreia do Sul se tornou uma democracia. Ou seja, já não, este argumento já não colhe completamente, há algo mais ali, não é simplesmente falta de desenvolvimento económico. Já começa a ser muito difícil fazer o argumento de que aquela tese de que capitalismo ou a economia de mercado e democracia andavam de mãos dadas não está a ser contrariada por este caso. Porque...
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que nós só vamos poder verdadeiramente responder essa pergunta no final do segundo mandato de Xi Jinping. Ou seja, e acho que nos próximos anos nós temos de estar muito atentos e perceber, sobretudo, no fundo vai ser interessante ver este segundo mandato, como é que ele vai pôr isto em prática e, sobretudo, as pessoas próximas de si. Mas aí também entra outro fator interessante que é quer a relação com a própria União Europeia, quer a relação com a administração Trump dos Estados Unidos. Ou seja, Há aqui fatores importantes em que, claro que obviamente não dependem da China, aliás, nós estávamos a falar um bocadinho sobre isso antes de começarmos aqui a nossa gravação, que é... Graham Ellison escreveu um livro chamado Armadilha de Tucídides, ou seja, indo buscar o grande Tucídides. Eu, se estivéssemos ao vivo e a cor estava neste momento a fazer uma vénia, porque Tucídides é sempre O clássico para quem trabalha em relações internacionais. É
José Maria Pimentel
o que eu estava a dizer há pouco, em Neof. É o Adam Smith das relações, pelo menos da escola realista.
Raquel Vaz Pinto
Lá está, eu acho que há mais do que só o realismo em Two Cities, mas A coisa extraordinária de um clássico, não só é o de aguentar mais de 2.000 anos, e estamos aqui nós a ler este texto, é de ter tantas leituras, não é? E no fundo, Graham Ellison o que diz é, esta armadilha de tecidos é muito fácil de explicar. Uma potência hegemónica olha para outra que está a começar a ascender, que tem ou não a possibilidade de ameaçar essa sua potência hegemónica e, portanto, antes que ela chegue lá, no fundo, em condições de disputar essa liderança entra em guerra. E no fundo foi isso que levou à guerra do polo pornês e à história que o Tucídides nos deixou, como ele diria e citando como um legado para todo o sempre. E no fundo, ele depois vai buscar, Graham Ellison vai buscar uma série de exemplos históricos, mas o que eu acho ali verdadeiramente interessante é que há muitos fatores que nós de todo não controlamos, ou seja, e o próprio Tusicidis, neste seu livro fabuloso, dá-nos muitos exemplos e muitos pontos importantes. Olha, desde logo, eu acho que talvez, e por isso é que eu acho que ele tem obviamente uma leitura realista, e lá vamos pescar o diálogo de melos e tal, mas há muitas outras leituras. Eu acho que aquela sua forma de descrever, aquele seu estilo tão minucioso, mostra-nos claramente, Por exemplo, três aspectos importantíssimos que também influenciam, obviamente, esta evolução ou esta conjuntura da relação entre as duas maiores economias do mundo hoje em dia. Primeiro, a questão da liderança. Nós, quando lemos Tucídides, Para nós é evidente que há uma democracia com pericles, que é o grande líder, passo a expressão não comunista aqui neste sentido. O
José Maria Pimentel
grande líder sem hífen.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. E depois a democracia ateniense com figuras claramente inferiores, tais como, seja Cleon, seja sobretudo Nisias, seja sobretudo Alcibietes. Portanto, a questão da liderança, a importância da liderança e como, seja em democracia, seja em oligarquia, que é o caso de Sparta aqui, a questão da liderança é absolutamente fundamental. Portanto, há, diz logo aqui, um aspecto importante para a tal guerra que pode ou não ser inevitável. Depois, um segundo aspecto que é as características internas de cada sociedade, ou seja, o modo como nós nos organizamos tem muita influência depois na própria condição da política externa, como nós ainda agora falávamos, não é? A China dará sempre primazia às questões internas, porque delas depende o seu monopólio do poder político, não é? Ou seja, questões como a taxa ou o desemprego, questões como a saúde, questões como, agora, depois do crescimento desenfriado, o ambiente. Ou seja, questões que claramente estão associadas à nossa qualidade de vida e que também há uma população, não diria reivindicativa, mas que em relação a esses aspectos está extraordinariamente atenta. E depois um outro aspecto que Tucídides também nos deixa, entre 3 mil outros, e podia ser outro programa e podíamos falar só de Tucídides, eu sou claramente uma croma de Tucídides e de todos os gregos antigos e os romanos, sou completamente fascinada, fascinada, fascinada, admito, não há nada a fazer, que é a desumanização da guerra e aquilo que nós damos como adquirido, que neste caso aqui é sobretudo o quê? A tal democracia de Pericles, não é nada adquirido. E, portanto, à medida que a tensão, que o conflito, neste caso a guerra vai avançando, nós vamos nos desumanizando. Ou seja, a primeira decisão de massacre é muito discutida e depois até é revertida, mas à medida que a guerra avança, não é? Deixa de haver qualquer relevância em relação ao sofrimento do outro. A própria religião, que era importantíssima para os gregos, uma religião politaísta com vários deuses, deixa de ser um freio, deixa de ser um limite e, portanto, aquela sua forma muito analítica de escrever, que é absolutamente... Eu cada vez que leio do Cid, eu descubro sempre qualquer coisa que não vi bem e que não dei bem atenção e eu fico sempre fascinada com um livro que tem mais de 2 mil anos e que aqui está para nos dar, aliás, grandes lições ou questões importantes. Voltando aos Estados Unidos e à China. Sim. Eu acho que há aqui muitos fatores que podem tornar Esta guerra evitável, ou esta tensão evitável. E estes três, eu acho que são exatamente três destes aspetos fundamentais. Agora, também há a sorte ou o azar. No caso da guerra do Peloponese, é peste, é peste que trama Atenas num primeiro momento e depois leva, aliás, à morte do próprio Péricles, não é? Mas aí aqui, fatores que não são controláveis. E se um dia a sociedade taiwanesa decide declarar a independência?
José Maria Pimentel
Sim, aí há um problema... Não é? Esse é o problema clássico. Este é um grande ponto, este é um assunto que depende diretamente do presidente. Nenhum presidente
Raquel Vaz Pinto
da China alguma vez quererá ficar na história, presidente barra secretário-geral, como aquele que não respondeu de forma forte, aquele que perdeu a última província que falta reunir, que falta voltar para, na perspectiva, claro, de Beijing, que falta voltar à China, voltar a casa, exatamente. É
José Maria Pimentel
engraçado porque eu, esse argumento, esse exemplo, eu ouvi ser dado por outro tipo que tu deves conhecer, eu não conhecia o John Mershmeier. Mershmeier, sim. Mershmeier,
Raquel Vaz Pinto
que é... Que é o outro dos grandes.
José Maria Pimentel
Que é o outro, que é uma personagem, pelo menos parece ser, há uma aula dele no Malo, ou palestra, whatever, no YouTube, até já tem alguns anos, mas podia ser de ontem. The
Raquel Vaz Pinto
Gathering Storm. Talvez. Que ele no fundo o que diz é, ouça, há aqui uma tempestade que se está a juntar, e
José Maria Pimentel
essa tempestade é a guerra e a
Raquel Vaz Pinto
extracina dos Estados Unidos. Ou
José Maria Pimentel
seja, a tese é exatamente a mesma do Graham Ellison, só que descrita de maneira diferente e há vários argumentos contra, no fundo, esta inevitabilidade. Ele não diz que há uma inevitabilidade da guerra, porque o modelo dele é parcial, como qualquer modelo nas ciências sociais, o que ele diz é que de acordo com o modelo dele, que ele acha que é o que explica melhor, o resultado seria guerra e há vários argumentos contra. Eu pessoalmente, a minha posição é a contrária, ou seja, eu acho que há mais argumentos contra a possibilidade de haver guerra do que a favor, embora seja muito interessante, quer dizer, intelectualmente não é nada interessante na prática, mas é intelectualmente interessante discutir os argumentos a favor dessa probabilidade e um dos argumentos que ele dá, um dos argumentos, perdão, que muitas vezes são dados contra, é o argumento mais óbvio, é o argumento económico das... Da interdependência, não é?
Raquel Vaz Pinto
Da interdependência
José Maria Pimentel
brutal que existe entre a China e os Estados Unidos e o exemplo que ele levanta, ele dá dois exemplos, um é Taiwan, é dizer, sim senhor, mas imaginem que isso que está a dizer, é evidente que a China ia reagir independentemente do que estava em jogo. Isso é 100% seguro. Exatamente, esse é seguro, esse nem sequer se põe em questão. E depois, por exemplo, embora não seja diretamente comparável, mas reconheço que é um bom argumento, a Primeira Guerra Mundial ecolode numa altura em que já havia uma integração comercial gigante. Esse aliás
Raquel Vaz Pinto
é um dos grandes temas que ele trabalha muito ao longo da sua vida, é dizer que, no fundo, ouçam, é tudo racional, faz todo sentido, ambos os países, a economia mundial tem imenso a perder com o conflito desta escala, todos nós, não é? Mas às vezes, ou aliás até muitas vezes, algumas decisões que são tomadas, elas não são tomadas racionalmente. Taiwan não é um assunto racional para a liderança chinesa, não é? Não é de tudo. É o final e sobretudo num país que, lá está, para preencher o vazio da ideologia, ou seja, Já ninguém justifica ideologicamente o Partido Comunista da China. Há uma educação patriótica.
José Maria Pimentel
Claro, tem que entrar outros mitos. É aquilo que o Harari fala. Claro, regressamos à história,
Raquel Vaz Pinto
regressamos à pátria, regressamos ao século da humilhação. Taiwan é, se quiseres, de todos, aquele que mais lembra de forma mais dura aos chineses a humilhação. Porquê? Porque Taiwan resultou do primeiro tratado de desigual imposto em 1895, não pelos malandres dos ocidentais, mas pelos japoneses. Que para os chineses foi a mesma coisa que o seu mundo, que é o seu mundo, que é o seu mundo de 1895. E, portanto, Taiwan vai ser uma colónia japonesa de 1895 a 1945. Japonesa de 1895 a 1945 e, portanto, é, se quiseres, aquele espinho cravado nesta narrativa da República Popular da China, porque não, ele não era verdadeiramente relevante, Ele só se torna relevante, evidentemente, em 1949, quando justamente Chiang Kai-shek pega nos tesouros e no que resta da sua elite e das suas tropas, uma série de pobres coitados que viviam na ilha de Taiwan e que não acharam especialmente graça receber aquela gente toda e governou de forma ditatorial Taiwan, que ele considerava ser a China verdadeira, não é? Até à sua morte. Portanto, nesse aspecto há ali uma certa pareciência com Mao Zedong.
José Maria Pimentel
E é engraçado porque o que tu estás a chamar a atenção é para o facto de os próprios chineses, ou seja, neste caso o povo chinês, ter interesses que vão para o lado do interesse do bem-estar económico, que é evidente. Temos um monte de exemplos que provam isso e qualquer um de nós pode pelo menos em sério sentido rever nisso. E depois ainda há outra coisa por cima dessa que eu acho que também é um argumento a favor da probabilidade da guerra. Guerra é no sentido de confronto, isto é gradativo, ou seja, o confronto pode ter várias... Pode ser uma guerra fria, mas também pode ser uma guerra declarada.
Raquel Vaz Pinto
Esperemos que nunca seja uma guerra quente no mundial, porque senão
José Maria Pimentel
aí... Pois, era aí que eu já... Lamentamos
Raquel Vaz Pinto
imenso, mas estes podcasts vão deixar de existir, assim como muitas outras coisas. Vão ficar
José Maria Pimentel
raciocinativos. Mas um fator suplementar por cima deste e que muitas vezes acontece nestes casos é que os líderes políticos podem ter incentivos para agir não em representação daquele povo, daquela nação, se quisermos, mas em representação do próprio regime. E neste caso, como nós temos dois regimes muito diferentes entre os Estados Unidos e a China, o regime chinês, aliás, estava-se a dar aquele exemplo há pouco, sente-se muito ameaçado pelo facto de ter uma matriz muito diferente da matriz que existe no outro lado e, portanto, se sentir exposto enquanto sentir que há uma força, por exemplo, do Ocidente para tentar implementar uma democracia na China, por exemplo, isso por si só pode ser motivo para reação, mesmo que para os chineses, para os habitantes da China isso não seja relevante. Não sei se estou...
Raquel Vaz Pinto
Não, claro que sim. E acho que há outro aspecto importante, que é, imagina que todas estas reformas, imagina que Xi Jinping não consegue manter uma taxa de... Não consegue combater o desemprego, não consegue responder às questões sociais. Uma das manobras clássicas que, aliás, Vladimir
José Maria Pimentel
Putin tem feito com imenso
Raquel Vaz Pinto
ênfase é encontrar um inimigo externo ou encontrar uma razão... Eu adoro dizer a palavra patriótica, porque lembra-me sempre, aliás, os russos nunca dizem Segunda Guerra Mundial, dizem a Grande Guerra Patriótica.
José Maria Pimentel
Ah é? Ah não sabia. No
Raquel Vaz Pinto
fundo é a guerra em que a pátria esteve viva, totalmente sob ameaça, não é? E isso nota-se depois e vê-se vai no número de russos, russos quer dizer soviéticos, russos e de todas as outras repúblicas que morreram na segunda guerra mundial, também, deva ser dito, por muitas das asneiras cometidas por Stalin. Mas pronto, isso depois ficaria para outra conversa e o José Milhaços faria isso muito melhor do que eu. Mas há muito esta... É uma manobra clássica, ou seja, temos imensos problemas internos, vamos encontrar um inimigo externo para poder, no fundo, continuar a corresponder a esse elemento nacionalista que é perigoso, ou seja, o nacionalismo em si mesmo pode muitas vezes ser uma faca de dois gumes ou imagina que acontece qualquer coisa que é uma enorme provocação e é A própria opinião pública, ou se quiseres, não podemos dizer opinião pública, a própria população que pode desencadear e exigir para que o presidente não pareça fraco, uma resposta forte. Há toda uma série aqui de elementos e de nuances que às vezes tornam a tal educação patriótica às vezes problemática e por vezes fora de controle. Nós honestamente não sabemos o que é que poderá acontecer. Eu acho que o cenário guerra fria será talvez guerra fria, mas noutros moldes, não é? Porque também não há... Lá está! Nós nem guerra fria podemos chamar, porque não estamos a falar de dois países que são totalmente diferentes, porque economicamente a China, apesar de ser o tal leninismo-mercado, não é a União Soviética, não é? E ao contrário da União Soviética, tem uma presença forte em países europeus. Em África é a máquina, América Latina e por aí fora. Portanto...
José Maria Pimentel
Sim, é completamente diferente, claro. Daquilo que era o
Raquel Vaz Pinto
conflito clássico bipolar, totalmente rígido e tal. Portanto, para quem trabalha em relações internacionais, estes são anos absolutamente fascinantes.
José Maria Pimentel
E desafiantes. Só esse fator que estavas a invocar é logo o fator de confusão gigantesco. Se a China continuar a expandir, à partida vai convergir para a armadilha de Tucídides, não é? Porque no sentido em que vai se tornando cada vez mais cada vez mais provável que venha a ultrapassar os Estados Unidos e, portanto, gera-se essa armadilha. E continua a
Raquel Vaz Pinto
apostar na construção de uma marinha chamada Blue Water Navy, a marinha de águas profundas. Já vai o segundo porta-aviões em andamento. Portanto, isso tem um destinatário claro.
José Maria Pimentel
É contestar
Raquel Vaz Pinto
a hegemonia dos Estados Unidos naquilo que a China considera ser a sua região de interesse.
José Maria Pimentel
Mas a lógica da armadilha dos tucídides é que quem é pressionado a agir são os Estados Unidos.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. É a potência status quo.
José Maria Pimentel
Exatamente. É o hegemon, não sei como é que se costuma traduzir.
Raquel Vaz Pinto
Quem tem a posição de hegemonia.
José Maria Pimentel
Exato, o poder hegemónico que ele vá de reagir, mas se tem coisa a acontecer ao contrário, como estavas a sugerir, se de repente a China começa a ter problemas económicos,
Raquel Vaz Pinto
ou sociais em grande escala,
José Maria Pimentel
Aí de repente pode haver instabilidade porque é a própria China a ter a necessidade de exteriorizar o problema.
Raquel Vaz Pinto
Sim, tudo pode acontecer.
José Maria Pimentel
Tudo pode acontecer. A partir da tese do Yuval Harari, que eu partilho, e que não tem nada de extraordinário é que hoje em dia, sobretudo, o que a Guerra Fever aprovou é que à partir levou ao fim da guerra, no sentido da guerra mundial, porque havendo um arsenal atómico, um arsenal nuclear, de ambos
Raquel Vaz Pinto
os lados... Acaba-se a humanidade.
José Maria Pimentel
Exatamente, até era suicida qualquer confronto. Parece um bom argumento. É um bom argumento, parece razoável. Mas ainda assim não é certo. Portanto, podemos assumir que há a ver confronto, seria um confronto, provavelmente mais localizado na zona perto da costa da China, ou dos Estados Unidos. Aliás, este tipo, como é que ele se chama? Merchmauer? Merchimer. Merchimer. Tens de dizer rápido, porque o nome não é fácil de ler. Pois, exato. Merchimer dizia, ele falava no Freedom to Rome, que tem piada, que ele dizia que o poder hegemónico no fundo habitua-se, e os Estados Unidos têm claramente isso, a poder passear pelo mundo à vontade. Claro. E claramente mais tarde ou mais cedo, isso já começou, os chineses vão começar a enxutá-los dali. No mínimo isso vai acontecer, não é?
Raquel Vaz Pinto
Mas veja, mas mesmo aí nós temos outro fator interessante, que é os vizinhos. Sim. Ou
José Maria Pimentel
seja... A China está muito pior que os Estados Unidos nesse aspecto. Os Estados Unidos têm uma sorte gigantesca.
Raquel Vaz Pinto
Claro, quer dizer, a China tem uma geografia... Aliás, aos meus alunos, começo sempre, as aulas de estudos asiáticos, começo sempre com o mapa em que os Estados Unidos estão no centro, que é quase a geografia perfeita, duas costas, dois oceanos, um vizinho norte, um vizinho sul e o Alasca, vá lá, que faz aquela pontinha com a Rússia, aliás era russo, não é? Pois o Cesar, com ocasiões financeiras, teve que vender o Alasca em 1867, que maçada, não é? E, portanto, na altura houve uma grande discussão americana. Agora, eu acho que era daqueles grandes ses, não é? Como é que teria sido a Guerra Fria se o Alasca fosse soviético? Tinha tido muito mais interesse ou talvez muito mais mísseis de Cuba em versão Alasca,
José Maria Pimentel
não é? Exato, exato. A crise dos mísseis de Alasca.
Raquel Vaz Pinto
Claro, a crise dos missais era mesmo ali, que horror! E depois mostra a geografia da China, que é uma série de vizinhos E vizinhos bastante problemáticos e complexos. A relação da China com andia é uma relação complexa e difícil. A relação da China com o Vietnã, para o Vietnã o seu inimigo histórico é a China. E, portanto, o que explica porque é que o Vietname, país que tem obviamente uma relação peculiar com os Estados Unidos, uma história peculiar com os Estados Unidos, quis ser, que fez tanta força para entrar na tal parceria transpacífico. Porquê? Porque também há uma necessidade de muitos países ali à volta de fazer o contrapeso à própria China, porque do ponto de vista comercial eles são esmagados, quer dizer, eles estão a lidar com um colosso que está mesmo ali ao lado. Então, esse também é outro fator interessante, é perceber até que ponto é que, e essa era a grande razão por detrás deste instrumento da administração Obama, que era este pacto económico comercial, no fundo, era encontrar uma forma de fazer frente ao domínio da China em toda esta região.
José Maria Pimentel
Era o Pivot Region, não é?
Raquel Vaz Pinto
Era, que depois foi mudado para Rebalancing porque alguém achou que Pivot tinha o nome... Uma conotação muito militar, enfim.
José Maria Pimentel
Ah é? É,
Raquel Vaz Pinto
portanto, são assim umas nuances, todas elas muito interessantes, mas que na prática é exatamente o
José Maria Pimentel
mesmo. Sim, mas este aspecto, o aspecto da geografia é muito importante. Houve um livro do, como é que ele se chama? Do Tim Marshall, que é os prisioneiros da geografia, que tem muita piada.
Raquel Vaz Pinto
E há outro ótimo também do Robert Kaplan, The Revenge of Geography. É mais ou menos o mesmo momento. Geografia, apesar de tudo, continua a ser absolutamente fundamental.
José Maria Pimentel
Exatamente, Exatamente. Esse é o ponto engraçado do livro, eu só li o do último março, o outro, que é um livro de divulgação, mas é interessante por trazer de novo para cima da mesa aquilo que é fácil de ignorar. E a China, por exemplo, os Estados Unidos, a boneca enorme que os Estados Unidos têm, geográfica, é uma coisa incrível! Não,
Raquel Vaz Pinto
aquilo só ajuda a contribuir para aquela ideia que eles têm, que não é eles têm, que alguns deles têm, que são abençoados por Deus. Porque, de facto, Aquela geografia, não é? E que também obviamente é fruto de uma conquista territorial absolutamente dramática, não é? Quer dizer, aquilo que acontece aos índios, não é? Aquilo que acontece aos mexicanos e tudo aquilo, quer dizer, é um processo de conquista.
José Maria Pimentel
Sim, os índios então é um problema não resolvido culturalmente porque aquilo é... Sim,
Raquel Vaz Pinto
aquilo foi uma chacina, uma chacina autêntica. Mas aquela geografia hoje em dia, Quer dizer, não se podia pedir melhor, não
José Maria Pimentel
é? Sim, é o melhor bairro da cidade.
Raquel Vaz Pinto
A China não. A China tem. A
José Maria Pimentel
China parece muito mais a Rússia nesse aspecto, não é? Tem um... Porque... Aliás, ele chama a atenção... A Rússia tem o que é o problema ocidente, não é? Tem aquele... Como é que é? Grande planície... Não sei qual é o nome técnico daquilo, mas é aquela planície, aquela zona da Europa onde está a Polónia, que vai quase até a França, se não me engano, e entra ali pelo norte da Holanda e pelo leste vai quase até Moscou, que é uma parte quase plana, por onde eles são ultra premiáveis. E a China, se não tivesse Xinjiang e o Tibete, também estava
Raquel Vaz Pinto
assim. Exato. Daí a importância, entre outras coisas, dessas duas províncias chinesas. Depois o Tibete, coitados dos tibetanos, tem outra grande vantagem que são os recursos hídricos.
José Maria Pimentel
Os rios que nascem
Raquel Vaz Pinto
lá e que são para um país, lá está, que tem problemas de água potável e que necessita imenso de água. E a água já é hoje em dia e será certamente uma das grandes fontes de conflito naquela região. Mas, depois, também Podíamos pensar o Afeganistão, embora neste momento o Afeganistão e a China sejam muito amiguinhos, mas depois também lá está a própriandia, há conflitos territoriais que ainda não estão de todo resolvidos, para além do facto de o Laila Lama continuar a viver em Dharamsala, no norte dandia, a relação com o Vietnã é complicada, A Coreia do Norte é sempre um drama, apesar de todo o entusiasmo nestes últimos tempos. E depois como se tudo isto não bastasse, a relação com a Rússia também não é fácil. Os chineses não esqueceram que o Império Russo, e que o Stalin obviamente não devolveu, ficou com imensos territórios nos tais tratados desiguais e toda aquela república popular na Mongólia era a província da Mongólia exterior da China, portanto não é uma vizinhança fácil e a China gasta muito do seu capital diplomático a gerir as relações com esta mais de uma dezena de vizinhos, não é? Depois como se tudo isto não bastasse, tenta expandir-se para o mar, tem os sul-coreanos, tem os japoneses, tem Taiwan ali, tem aquela marinha norte-americana a passear ali de um lado para o outro e pronto. E, portanto, isso também nos ajuda a compreender as tais ansiedades e como por todo... Mesmo quando nós estamos a falar de racionalidade e de linhas de comunicação abertas, que é aqui fundamental, por vezes um lapso, um encontro que não corre bem, um tiro que não devia ter saído, sei lá. Há uma série de fatores que podem ser literalmente mal geridos, mal percepcionados e depois acabam mal.
José Maria Pimentel
Na Guerra Fria teve para acontecer isso, há aquele tipo russo que... Não sei como é que ele se chama, que recebeu a ordem de disparar, disparar isto é, de lançar uma bomba nuclear e ele achou que aquilo era tinha sido um engano e não lançou e depois achava o erro. Depois o poder central foi a tempo de reverter aquilo porque tinha haver ali um problema qualquer de comunicação mas teve, foi graças a uma sorte dessas que de repente não arrebentou uma guerra nuclear. Bom, eu queria-te só perguntar, vamos terminar, que já estamos aqui a falar a muito tempo, embora eu tenha imensa pena, porque havia aqui várias coisas que eu gostava de falar também, e acabamos por passar até... Eu avancei para a contemporaneidade embora houvesse uma série de coisas engraçadas a falar sobre a história da China. Queria-te só perguntar, porque acho que é demasiado interessante para não terminarmos este tema, em relação a esta questão do futuro das relações China-Estados Unidos, Estados Unidos sendo o grande poder, eu depois não cheguei a perceber, tu concordas com a tese do Graham... Como é que ele se chama? Ellison. Do Graham Ellison ou discordas? Ou por outra, se tivesses que pronunciar era a favor de conflito ou a favor de manutenção da paz no médio prazo?
Raquel Vaz Pinto
Nem uma nem outra.
José Maria Pimentel
Conflito, não estou a falar de conflito nuclear. Sim, sim, não,
Raquel Vaz Pinto
não, não. Eu... Então espera, vamos fazer de outra forma. Sim, então
José Maria Pimentel
vá. Então vamos fazer de outra forma para não teres que estar a atravessar, eu queria-te era perguntar a tua opinião em relação aos meus argumentos contra essa tese que eu não cheguei a dar. Um deles é a questão do nuclear, não em conta disso há azor, mas pode-se argumentar que haverá uma guerra fria. Há a questão da integração comercial, obviamente, mas depois também há outros fatores que eu acho interessantes, sobretudo há... Um fator que para mim é essencial é o facto de há, obviamente, mais a perder hoje em dia com a guerra do que havia antes, por causa do nuclear, mas há também menos a ganhar, ou seja, tirando aqueles estados ali do Golfo, que de facto têm recursos naturais muito importantes e não sendo de sumir isto que nós falámos, a questão hídrica e tudo mais, a verdade é que hoje em dia o principal ativo de um país avançado como por exemplo Estados Unidos não está nos recursos naturais, sendo eles muito importantes, mas o principal ativo é o capital humano. O principal ativo da maior parte das economias desenvolvidas é o capital humano. Portanto, a guerra no sentido tradicional de conquista de espaço para desapoderar dos recursos que lá estão, acaba por ficar em segundo plano. Ou seja, ao fazer o exercício que o Graham Allison faz, eu não li o livro, mas pelo resumo que ele faz, no fundo ele faz um levantamento histórico de todas as situações em que houve uma situação análoga a esta e calcula que na maior parte delas houve guerra, mas nenhuma dessas situações é comparável à atual, porque neste caso não há... O território, sendo importante, não tem o peso que tinha historicamente. Não sei se concordas comigo.
Raquel Vaz Pinto
Não, claro que sim. Eu acho que nós vamos continuar nesta tal guerra fria, mas claro está, não é de toda uma guerra fria clássica pelas razões que nós já falámos e vamos continuar aqui nesta situação de grande rivalidade. A minha única preocupação é justamente uma destas situações que são voláteis e que podem, no fundo, fazer com que se perca o tal controle. Também porque, e nós começámos aliás o nosso programa com esta ideia, é verdade que há muita opacidade do lado da China, mas eu também te confesso que há muito da política externa norte-americana que eu ainda não sou capaz de compreender. Dada a atual... Apesar dos relatórios que são ótimos, aliás o último documento de defesa e de segurança nacional classificam a China como uma potência revisionista, ou seja, uma potência que quer alterar parte do status quo porque não está totalmente satisfeita com ele e essa é uma das grandes questões do século XXI. É a China uma potência revisionista ou é a China uma potência revolucionária que quer derrubar esse status quo? Eu ficaria mais pela parte revisionista, ou seja, claro que a China quer mudar e tornar a sua fatia do bolo internacional maior, de acordo com aquilo que tem sido a sua história, e que é ir a encontrar, obviamente, essa contestação norte-americana. Mas acho que há aqui tantos fatores voláteis, diferentes, mas sem dúvida que esse aspecto que tu falas, a guerra já não é uma guerra clássica, não é? E por isso é que aqui também entra outro aspecto importante, que é a ideia da aposta forte da China, por exemplo, entre o que é a cyber warfare, em que eles são absolutamente extraordinários, a espionagem industrial, ou seja, roubar aos outros as ideias, os produtos, as patentes, não é? Lá está. Porque, de facto, nesse aspecto os Estados Unidos continuam a ter a capacidade extraordinária de atrair os brains, ou seja, os cérebros, as ótimas universidades, a liberdade de investigação, que é fundamental para qualquer investigação, que não existe na China, há limites a essa liberdade. Esse é outro ponto que, aliás, muitos autores têm defendido que um dos aspectos que no fundo mina esta reemergência ou este regresso da China é justamente o facto de não ter liberdade total e conexão total, ou seja, imagina, redes em que os cientistas chineses possam estar inseridos e que possam testar, falar livremente, sem estarem a ser controlados, não é? Que é uma das regras básicas do conhecimento científico, não é uma regra, mas que é fundamental. Sim, claro. Portanto, nesse aspecto do que tu falavas do capital humano e sobretudo a capacidade de inovar, é verdade que os recursos naturais não são necessariamente cruciais, mas repara como a inovação, a tecnologia norte-americana no que diz respeito ao fracking do gás natural, do gás de xisto e do petróleo de xisto, tem tido um impacto fortíssimo no crescente desinteresse dos Estados Unidos pelo Médio Oriente. Exatamente. Portanto, esse também é aqui
José Maria Pimentel
um ponto importante. É verdade, é verdade. Não é assim tão pouco importante. É menos importante, mas não
Raquel Vaz Pinto
é assim tão pouco importante. É menos importante. Não será, talvez, se quiseres, pelo menos tendo em conta A China e os Estados Unidos são um fator de guerra.
José Maria Pimentel
Pode ser a mesma, mas é menos provável. Pode, mas é um dos
Raquel Vaz Pinto
seus cocanhares daquilo, a insuficiência energética.
José Maria Pimentel
É que a China é aquilo que estávamos a retomar agora. É muito difícil a pessoa saber o que se passa lá. Sim,
Raquel Vaz Pinto
mas ao mesmo tempo eu confesso que talvez porque eu acho ao mesmo tempo a administração de Trump no mínimo confusa. Ah,
José Maria Pimentel
pois claro, pois claro. Confusa de seguir. Mas é uma exceção, sendo certo, obviamente, que há muito que se passa que a pessoa não sabe. Mas há um episódio, agora lembra me disse, há uma coisa que o Kissinger conta, que é uma personagem incrível, já tem para aí 95 anos e continua a dar... Live and kicking. É incrível, tem que se pôr o áudio em 1.5 de velocidade, porque ele não fala muito fagar, mas é uma acuidade mental para um tipo de 95 anos indescritível. Ele estava a contar uma congresso que eu acho que... A mim matou-me isto, é, saciou-me um bocadinho a curiosidade que eu tinha em relação ao modo como o poder político lá funciona, porque apesar de tudo eles têm que ter, pelo menos ao nível do partido, um diálogo suficiente para ter inteligência coletiva suficiente para conseguir gerir o país e claramente eles têm. E ele contava que estava a ter uma reunião com já não sei que oficial chinês e que do lado dele havia um redator, o que é a expressão certa, ou seja, alguém que no fundo estava a tomar as notas da reunião e do lado chinês havia três ou quatro. E ele perguntou ao interlocutor chinês, agora fiquei muito curioso, porque é que o senhor traz mais do que uma pessoa para fazer o trabalho que podia ser feito por um? E ele diz, sabe que nós quando chegamos lá discutimos as notas para perceber o que é que todos ouvimos, o que é que retirámos e ia surpreender se soubesse o número de vezes em que há versões divergentes de pessoas que estiveram na mesma sala a apontar. E é muito engraçado isso.
Raquel Vaz Pinto
Não, não, isso é totalmente verdade.
José Maria Pimentel
E faz todo sentido o resto. Não, não, aliás, é totalmente verdade. Achei muito apiada a história. O que eu penso em relação... Tu estás com o livro na mão, vais citar Tu Sidić?
Raquel Vaz Pinto
Vou ter que terminar este programa com o meu amigo Tu Sidić. Então,
José Maria Pimentel
antes disso, desculpa, eu estou a ser muito chato. Nada, nada, nada. Mas acho que isto mesmo interessante era só para rematar um tema que não fechámos à pouco, é a questão da democracia e pegando numa coisa em que tu tocaste que é a questão da inovação, porque isso parece um bocadinho cínico porque a verdade é que ninguém diria que sequer isto pudesse ter acontecido como aconteceu mas a verdade é que é possível fazer o argumento que a China conseguiu desenvolver-se de uma maneira que é muito top down ou seja é muito seguir um cardápio, no fundo a fazer um bocado aquilo que o Mao queria fazer que é seguir um modelo que já é algo que outros países já fizeram e eles no fundo têm que replicar, têm que se tornar eficientes, o mais eficientes possível a fazer aquilo. E eles conseguiram. Agora, o modelo baseado na inovação é um modelo muito diferente, em que lá está, é preciso haver interação, é preciso haver liberdade de expressão, é preciso haver um monte de características que são muito mais típicas de uma democracia. A tua visão em relação a isso, e depois podes avançar logo para o tudo, Cid, a tua visão em relação a isso é que o mais provável é que eles não hajam uma convergência para uma democracia, mas isso não seja um impedimento, é que não haja uma convergência para uma democracia e isso seja um impedimento ao desenvolvimento económico ou, pelo contrário, que esta necessidade ajude a uma abertura do regime de alguma forma?
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que, em primeiro lugar, eu acho talvez um barómetro para poder responder essa tua pergunta é o Estado de Direito. Ou seja, percebermos até que ponto é que as leis, as regras que são, no fundo, que funcionam na China, sejam de facto de fiar, ou seja, seja para as empresas, seja para os seus próprios cidadãos.
José Maria Pimentel
Estituições, no fundo, sim. Estituições inclusivas.
Raquel Vaz Pinto
Que no fundo permitem aos outros ter alguma certeza, alguma... Uma expectativa que depois seja satisfeita. Essa é uma das grandes lições, se quiseres, uma das grandes vantagens de Singapura. Ou seja, há uma lei, uns podem gostar mais, outros podem gostar menos, um estado de direito neste
José Maria Pimentel
sentido. Exato, sim, sim, claro.
Raquel Vaz Pinto
Ou seja, não é tu chegares lá e depois na prática as coisas são... Qualquer momento pode haver uma lei discrecionária ou uma lei que venha a alterar. Eu acho que a China provavelmente caminhará mais nesse sentido do que propriamente num caminho democrático-liberal como nós estamos habituados a ter. Mas é justamente pegando nesta questão da democracia liberal. Vês, afinal... Fiz aqui já aponte lindamente, com a qual eu ando muito preocupada e acho que as nossas necrescias liberais têm sinais claros de que não estão nada bem de saúde. Eu acho que há desde logo uma pergunta importante a fazer que é as necrescias liberais sobrevivem sem prosperidade económica e sem a possibilidade dos pais darem uma vida melhor aos seus filhos, não é? Ou seja, há aqui uma questão de fundo e a propósito também destes Trump, destes Le Pen, dos Sirisas, dos Bolsonaro, dos Brexit, tudo isto que tem vindo a acontecer. Eu acho que há aqui uma... E sobretudo agora até relacionado com esta questão da eleição brasileira e o colapso do centro, o colapso dos moderados ou a menor prevalência dos moderados. E também um bocadinho inspirada por uma entrevista e uma crónica que li, a primeira do António Araújo justamente no público no dia 31 de outubro, que no fundo ele falava sobre esta questão brasileira e chamava a atenção de que uns aspectos que para ele foi surpreendente é que se parece que a nossa direita, e isso me preocupa porque eu sou de direita, é menos liberal do que nós estaríamos à espera, ou seja, há aqui... Ou do que se julgava. Eu penso que é essa a expressão correta do António, ou seja, eu acho que há aqui uma tentação de alguma direita em... Temos que aceitar Trump, temos que aceitar Bolsonaro e eu, muito honestamente, eu não consigo perceber, para mim é incompreensível. Quer dizer, Trump não é um homem de direita, Trump não é um conservador e Bolsonaro a mesma conversa e, portanto... É
José Maria Pimentel
autoritário, mas não é conservador. Nada
Raquel Vaz Pinto
de todo, não tem nada a ver com aquilo que deve ser a direita. E, em segundo lugar, um belíssimo texto escrito pelo Adolfo Mesquita Nunes no Diário de Notícias, em que ele, no fundo...
José Maria Pimentel
Tem muita piada, desculpe interromper-te, mas tem muita piada, estás a falar disso, porque eu entendo
Raquel Vaz Pinto
que é uma coisa que nós não damos muita atenção, mas que é a polarização da linguagem. Ou seja, para a direita tudo que saísse fora da economia de mercado é extrema-esquerda e para a extrema-esquerda e para a esquerda tudo o que sai fora do que deve ser o progressista de proibir, proibir e proibir é extrema-direita. E às tantas ele escreve qualquer coisa como se tudo é fascista nada é fascista. E portanto, juntando essa à outra, eu gostava aqui de terminar este nosso programa até porque já já despachei entre aspas o livro recomendado. Sim, exatamente. Eu gostava de vos trazer uns parágrafos do meu amigo Tussidits em que no fundo ele mostra-nos como uma sociedade se vai polarizando até chegar à guerra civil E às vezes é interessante nós lermos este e pensarmos que às vezes os nossos problemas, os nossos dilemas e aquilo que nós vivemos não é assim tão novo, ou seja, já houve no passado muitas pessoas que passaram por essas situações. E então o meu amigo Tucídides diz-nos o seguinte, no fundo descrevendo esta sociedade que se vai toda ela polarizando, diz ele assim, Mesmo as palavras tinham de mudar o seu sentido habitual e adaptarem-se ao que se pensava ser próximo das necessidades. Audácia, já irracional, passou a ser considerada como coragem fiel. Hesitação prudente, uma refinada cobardia. Moderação, considerada como um jogo premeditado, sem coragem viril. Ter visão global das coisas correspondia a ser incompetente em tudo. Avançar freneticamente e de cabeça era considerado digno de um verdadeiro homem. Querer decidir com segurança não passava de um pretexto bem-falante para se escusar. O homem radical é sempre de confiança, o que se lhe opõe é suspeito, quem tem sucesso a conspirar é esperto, quem descobre uma conspiração é ainda mais esperto. E foi assim que toda a espécie de iniquidade se implantou devido ao tumulto revolucionário no mundo helénico. O que era comportamento civilizado, do qual fazia parte algum sentimento nobre, era objeto de troça e desapareceu, enquanto a sociedade ficava dividida entre si, em toda e qualquer opinião, sem que confiasse em ninguém. Não havia forma de congraçar as pessoas, nem palavra que merecesse crédito, nem juramento que merecesse ser digno de temor. Todas as fações que eram mais fortes, apoiavam-se no calculismo, dentro da falta de esperança, numa situação que era para continuar e tomavam precauções para não serem prejudicadas, em vez de confiarem. Eram, pois, os que careciam de visão apropriada que levavam ao melhor. Por temerem as suas próprias deficiências e a capacidade dos seus adversários para que, se não vissem inferiorizados nos debates e Para evitar que não fossem surpreendidos pela habilidade e análise dos outros, precipitavam-se com temeridade na ação. A parte contrária pensava com arrogância que conseguiria saber tudo com antecedência e que, de alguma forma, era necessário recorrer à ação, mas sim, ao que a análise dos factos providenciava, foi vítima, frequentemente, de não se ter prevenido. Por acaso
José Maria Pimentel
é extraordinário, isso é de uma atualidade... Tremenda. Incrível, né? Incrível, por acaso. Agora se calhar já não vou a tempo, ia-te perguntar qual era a página. Este teste, ou seja... Isso é a edição da Gulbenkian, não
Raquel Vaz Pinto
é? É, já devia ter começado por aí. É a edição da Gulbenkian, com a tradução do professor Rosato Fernandes. E eu li, Eu soltei aqui uma parte no meio
José Maria Pimentel
para ter uma notária de tudo. É as
Raquel Vaz Pinto
páginas 317, 318, 319 e 320 e isto diz respeito ao que depois foi a guerra civil na Córcega, que hoje em dia se chama Corfu. E portanto, ele no fundo, ele aqui mostra como uma sociedade que antes era uma sociedade unida, normal, entre aspas, se vai deslaçando.
José Maria Pimentel
E eu acho que há aqui muito... Há imensos paralelos, é incrível. O não querer
Raquel Vaz Pinto
debater, porque obviamente sabe que é inferior, lembra-nos logo de várias pessoas, não é? Sim, sim, sim. E por aí fora.
José Maria Pimentel
É incrível, é incrível. Olha, obrigadíssimo, foi... Pode parecer que digas sempre, mas não é verdade, foi mesmo... Foi das melhores conversas que eu gravei num podcast. Mesmo tenho pena de não...
Raquel Vaz Pinto
Temos que fazer uma e sou futebol! Sou futebol, exato! Só acho
José Maria Pimentel
que eu sou do Porto, portanto...
Raquel Vaz Pinto
Oh meu Deus, agora é que ele diz isto, meu Deus! Só disse
José Maria Pimentel
no final! Têm gostado do 45°? Nesse caso, não deixem de seguir a página do podcast no Facebook e se utilizarem iOS de o avaliar no iTunes. Para além disso não hesitem em enviar questões ou sugestões de convidados. São sempre bem-vindas e é muito bom saber o que vai na cabeça de quem ouve. Obrigado a quem tem apoiado no Patreon. Em particular ao Gustavo Pimenta, ao João Vítor Baltazar, ao Salvador Cunha, à Aina Matheus, ao Ricardo Santos, ao Nelson Teodoro e ao Paulo Ferreira. Até ao próximo episódio.