#38 Raquel Vaz Pinto - “O que podemos esperar para a China no futuro: abertura política ou...
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José Maria Pimentel
Bem vindos ao 45°. Desta vez conversa sobre a China. O modo
para este episódio era a política externa chinesa, mas na verdade acabámos
por falar de muito mais do que isso. A política externa chinesa
é provavelmente dos temas mais interessantes das relações internacionais atualmente. Durante as
primeiras décadas de desenvolvimento, a China tinha uma política externa muito discreta,
mas tem se tornado cada vez mais conspicua nas últimas décadas e
sobretudo nesta última década de pós-crise financeira, de tal forma que a
rivalidade entre China e Estados Unidos é provavelmente o grande tema das
relações internacionais para as próximas décadas. Ainda há umas semanas, por exemplo,
a revista The Economist, que eles aliás chamam Jornal, fazia capa precisamente
com esse tema. A convidada deste episódio é então Raquel Vaz Pinto,
uma das maiores especialistas em Portugal em política externa e estratégia da
China. Sendo que este não é o único tema sobre o qual
desenvolve investigação, debruça-se também sobre, por exemplo, a política externa dos Estados
Unidos, o papel da religião nas relações internacionais e até futebol, sendo
uma acérrima adepta benficuista. Raquel Vaz Pinta é investigadora do Instituto Português
de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e foi entre 2012
e 2016 Presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política. Esta conversa foi,
sem querer enviazar demasiado as vossas expectativas, uma das melhores conversas que
já gravei para o podcast. A Raquel não só sabe muito sobre
o tema como o que neste formato é tão ou mais importante
mostrou-se logo desde o início muito à vontade com o formato peculiar
deste programa, que é meio conversa, meio entrevista, às vezes é pesado,
mas é sempre informal. E isto para não falar da enorme paciência
que teve para aturar as minhas perguntas incessantes durante mais de hora
e meia. E pronto, espero que gostem deste episódio e já sabem,
para apoiar o podcast desde apenas 2 dólares, ou seja, menos de
2 euros, basta ir a patreon.com.br por extenso. Podem encontrar na descrição
deste episódio o link para este site, juntamente com as pessoas, eventos
e livros que fomos falando ao longo da conversa. Até à próxima!
Então vá, Raquel, bem-vindo ao podcast. Vamos falar da China. Por acaso
é engraçado, estava a pensar nisto, O tema relações internacionais, no sentido
lá, até é um dos temas que me interessam mais e, no
entanto, é a primeira vez no podcast que estou a falar com
alguém que é especificamente dessa área. Embora tenha falado várias vezes sobre
o tema, lembro-me do episódio com o José Milhados, por exemplo, sobre
a Rússia, que na prática... Com a sua
José Maria Pimentel
passámos parte do tempo a falar, obviamente, da Rússia, nesse contexto das
relações internacionais. E dentro das relações internacionais, o tema China, que interessa,
sob vários pontos de vista, mas também desse, é porventura o tema
mais interessante no século XXI. A grande questão é a ascensão da
China. Me interessa-me especialmente porque eu vivi lá durante quase um ano,
então tive uma experiência de... Como nós estamos ainda há um minuto
a falar, aquilo é um continente. São sempre experiências parcelares, mas é
giro a pessoa ter um contacto direto com o que se passa
lá e mesmo depois de ter estado lá eu continuo com a
sensação, não sei se partilhas, de que para um ocidental da China
é um bocado uma caixa negra, a pessoa tem muita dificuldade em
perceber o que se passa lá. Por exemplo, no campo das relações
internacionais a pessoa sabe relativamente bem aquilo que se passa no Ocidente,
onde muitas vezes as discussões são feitas à porta aberta e fazemos
a mínima ideia do que eles pensam lá. Mas enfim, vou te
passar a bola a propósito da questão de Tiananmen, que estávamos a
falar há bocadinhos, sobre o qual tens um livro escrito, e que
é um tema interessante a vários níveis, é interessante porque toca na
questão dos direitos humanos e é também interessante porque é uma espécie
de... A maneira como eu olho para isso é que é uma
espécie de exceção, é um bocadinho quase a exceção que contraria a
regra, ou a exceção que confirma a regra na ascensão da China
e na convergência da China, na emergência da China, porque aquilo acontece
numa altura em que a China já está a fazer este caminho
que nós hoje em dia elogiamos, mas no início tem aquilo que
depois não dá em nada, não é? É um caso incrível, quer
dizer, há um aparente protesto que é completamente, quer dizer, contrariado pela
força, depois não dá em nada. Esmagado mesmo. Como? Esmagado mesmo. Esmagado,
sim, sim, claro. Mas Até há aquela imagem daquela... Acho que era
uma rapariga. Uma
estátua de liberdade.
Não, não, digo, aquela pessoa que se põe à frente de um...
Raquel Vaz Pinto
frente dos tanques, não é? E nós ainda hoje não sabemos de
todo a identidade daquela pessoa, mas que no fundo simboliza muito a
diferença, a escala, o desfazamento entre o que é o indivíduo e
aquele tanque que obviamente personifica, simboliza o Estado Chinês na sua faceta
mais opressora. Mas eu acho que o que é interessante em relação...
De facto a China é um país fascinante e como todos os
países grandes, É um país que tem várias chinas, várias perspectivas, é
extremamente difícil, é claro, e podemos dizer o mesmo em relação aos
outros países, é difícil nós termos uma imagem única do que são
os Estados Unidos, que são para nós muito mais próximos, não é?
E depois eu acho que tem muito a ver com a forma
como nós entramos num tema ou começamos a preocupar-nos ou a pensarmos
em algum tema. E eu acho que o que é o Texas
não tem nada a ver com o que é Nova Iorque ou
outro estado. E por exemplo, o mesmo podemos dizer em relação à
Rússia ou mesmo em relação àndia. Portanto, a China tem isso. E
depois, eu acho que tem muito a ver com a forma como
nós entramos num tema ou começamos a preocupar-nos ou a pensar num
tema. Nós hoje discutimos, sobretudo, a China nesta perspectiva da China investidor,
ou seja, neste momento Portugal é dos países mais importantes do ponto
de vista do investimento chinês quando olhamos para a Europa e isso
obviamente traz a China para as nossas conversas do dia a dia,
não é? Cada vez que acendemos uma luz, não é? Nós estamos
a contribuir para a China, pronto, entre outras coisas. Mas, para mim,
eu quando comecei a pensar na China foi obviamente o ano de
89, ou seja, e foi sobretudo o contraste Exato. Entre aquilo que
aconteceu, o tal esmagamento, o tal, o destruçar de toda aquela gente
que se reuniu na praça de Tiananmen e nas ruas adjacentes e
em outras cidades chinesas e depois o contraste com o 9 de
novembro que para nós europeus é o dia, não é? O ano
em que o muro de Berlim caiu. E esse contraste entre o
falhanço barra sucesso de um protesto e uma manifestação pôs-me muito a
pensar naquele país. Portanto, eu acho que para a minha geração a
nossa primeira imagem da China, aqueles que não viviam lá ou que
não estavam em Macau ou que
não tinham
uma outra imagem, foi esta imagem de uma China violadora dos direitos
humanos, a China ditadura. Mas ao mesmo tempo, e depois claro que
nós vamos crescendo, vamos evoluindo, vamos vendo as coisas de outra forma,
esse segundo aspecto que tu falas é importantíssimo, porque em 89, nós
nunca nos podemos esquecer que a China já leva em matéria de
abertura e de alguma reforma económica. Portanto, havia muito mais naquela China
do que apenas, com umas grandes aspas, aquele rótulo de comunista. Ou
seja, há um lado pragmático, um lado comercial, um lado de sobrevivência
e, sobretudo, um outro aspecto que a mim me parece muito importante
e eu partilho perfeitamente dessa tua sensação de que quanto mais conhecemos
às vezes mais temos a noção de que tudo isto é muito
complexo e tem muitas dimensões, de uma história absolutamente extraordinária. Não é?
Eu faço sempre questão de destacar...
José Maria Pimentel
Posso só dizer uma coisa em relação a isso? Desculpa, não queira
estar a interromper, mas a história, eu quando... Sobretudo quando fui para
lá, talvez tenha começado um bocadinho antes, mas foi aí que tive
a grande percepção disso, lembro-me de ficar quase escandalizado com o pouco
que nós aprendemos sobre a história da China na escola quando somos
miúdos. É escandaloso, quer dizer, nós temos, há essencialmente duas grandes civilizações,
quer dizer, o Europeu que tem o apogeu em Roma na Idade
Antiga e que tem o paralelo na China e depois existe nandia,
obviamente existe na Mesoamérica, mas a civilização chinesa é absolutamente comparável ao
Império Romano. Não tem mais nem menos, tem menos numas coisas e
mais noutras, e nós não sabemos nada daquilo, é incrível. Temos uma
vaga ideia de que existia um tipo chamado Confúcio, não é?
É, sem dúvida.
É quase escandaloso.
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que, aliás, um contraste interessante, ou não é bem um
contraste, mas é exatamente nesse sentido que estás a falar, que é
o Império da China é fundado em 221 a.C. E desde então
há toda uma história extraordinária, difícil, complexa, não é de toda uma
história linear, nem por sombras, ou seja, há imensos momentos de desunião,
de revolta. Há duas dinastias estrangeiras, a dinastia mongol do Kublai Khan,
que tanto impressionou o nosso, entre aspas, Marco Polo, e a última,
que é a
dinastia dos
Qing, a dinastia dos Manchus, que mais uma vez é outra das
imagens com que nós ficamos, não é?
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, aquela ideia do chinês com a trancinha é uma ideia de
um chinês, mas é um chinês Manchu, não é um chinês Han,
aliás. O século XIX é um século com muitas rebeliões e extraordinárias
revoltas e muitas vezes a revolta dos Han, ou seja, daqueles que
são etnicamente chineses, ou pelo menos são a maioria da China, a
China depois tem cerca de 8% de minorias, mas são 8% de
1.4 bilhões de pessoas, não é? Portanto, dizemos 92% de Han, mas
depois quando pensamos na população total, afinal é bastante gente, era justamente
cortar a trança. Ou seja, cortar essa trança no sentido da revolta
contra esta imposição manchú. Ao mesmo tempo, por exemplo, os manchus tentaram
que os chineses abolirem uma prática que aos olhos manchus era horrenda,
que era aquela prática das mulheres em faxarem
os pés
para os pés ficarem muito pequenos e completamente deformados, que provocavam dores
horrorosos. Portanto, há ali também esse elemento de alguma fusão ou de
tentativa de fusão com as várias culturas, mas eu lembro sempre isto,
que é talvez as duas grandes figuras que nós, até porque tem
também esse feedback no Ocidente, são Confúcio e Sun Tzu. Ambas viveram
antes da fundação do Império da China. E isso dá-nos desde logo
a noção clara que estamos a falar de um país ou de
um território que obviamente teve muitas imagens, muitas perspetivas ao longo de
uma história milenar. E esse aspecto que estavas a destacar, que eu
acho que é extraordinário, ia de encontro ao livro que eu ia
recomendar.
Raquel Vaz Pinto
recomendar já, que é um livro que se chama As Rotas da
Seda, da Silk Road, e eu li na versão inglesa, na versão
original, mas há uma tradução em português, do Peter Frankopan. É dos
melhores livros que eu li nos últimos anos. E o que é
que ele faz? Ele faz a Rota da Seda desde todo o
seu início. E a Rota da Seda verdadeiramente torna-se a tal Rota
da Seda, quando os romanos conseguem fazer toda aquela ligação, atravessando todos
aqueles territórios, que era realmente uma grande aventura, no ano de 116
a.C. E conseguem fazer essa conexão com quem? Com os chineses.
José Maria Pimentel
Mas espera lá, isso é engraçado, porque isso vai contra uma coisa
que eu tinha lido no livro de história da China, engraçado, que
se calhar não é verdade, que um dos puzzles históricos, digamos assim,
é o facto de duas grandes civilizações mais ou menos coexistentes, a
Roma antiga e o Império Chinês, parte do início do Império Chinês,
terem coexistido cronologicamente, mas nunca se terem cruzado. E o que havia
era... Há documentos chineses que têm uma referência que se interpreta como
sendo romano, já não sei qual era o nome que eles davam,
praticamente. E em Roma também havia uma ideia, lá está, do país
que exportava a seda. Sim, sim. Mas não havia qualquer contacto cultural,
mas isso parece ir um bocadinho contra isso. Não, no
José Maria Pimentel
moda,
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. A tal rota da seda no sentido em que, e repara
como, mais uma vez, e para nós vermos como... Eu, aliás, quando
comecei a estudar este país, não é? A questão da história era
de facto um aspecto que transformava muito todas estas perspectivas. E eu
lembro-me muitas vezes pensar como é que um país, não é? Aguentou
duas décadas de Mao Zedong, duas décadas de utopia totalitária com o
grande... Eu acho que talvez os dois melhores símbolos, mas símbolos é
aqui uma palavra que tem que ter algum cuidado, São o grande
salto em frente e a grande fome, que causou hoje, nós hoje
temos estimativas mais ou menos conservadoras que dizem que essa grande fome
causou pelo menos 45 milhões de mortos. Ou seja, é uma brutalidade.
E se nós pensámos quantas pessoas morreram direto ou indiretamente na Segunda
Guerra Mundial, o número esmaga, não é? E depois, claro, a Revolução
Cultural. E eu muitas vezes pensava no início, sobretudo por causa também
da própria questão dos direitos humanos, como é que foi possível, Ou
seja, se aquilo era a regra ou se aquilo era a exceção.
E agora quanto mais se estuda este país, quanto mais o vou
conhecendo, mais me impressiona que é justamente a resistência, ou agora outra
palavra que está na moda, que eu ainda não percebi se é
uma tradução ou não, que é a resiliência de um povo e
de uma elite que aguentou tudo até Mao Zedong. Eu acho que
essa resistência, essa resiliência é absolutamente extraordinária, porque o século XX para
a população chinesa é uma tragédia até 1978-79, com a ascensão de
Ang Shoping.
José Maria Pimentel
Uma dúvida que eu tenho em relação a isso é justamente a
relação às elites chinesas. Pronto à conclusão que eu tinha chegado em
relação a isso era que, pelo contrário, tinha havido uma espécie de
varrimento das elites porque, em primeiro lugar, bem, a primeira grande parte
das elites vai com o Chen Kaicheng, vai para Taiwan, e depois,
durante o comunismo, tudo que eram elites que tivessem sobrado eram quase
postas de parte e há quase uma emergência daquelas pessoas que tinham
juntado ao Partido Comunista e que vêm com Mao Zedong. Ou seja,
eu tinha exatamente a ideia contrária, de que aqueles que estão na
elite agora chinesa não têm nada a ver com a elite do
final do Império.
Raquel Vaz Pinto
para eles como uma elite que, depois de Mao Zedong, tem orgulho
nessa história, que vai buscar todas essas várias narrativas e repara como
toda esta ambição da China no mundo vai repescar uma ideia que
é aquela ideia da rota de seda. Ou seja, esta ideia de
que ao contrário do que se possa pensar, a China ao longo
dos séculos esteve presente, esteve interativa e outro aspecto importante, que eu
acho também é um dos grandes méritos deste livro do Peter Frankopan,
que é mostrar como, se nós pensarmos bem na história do mundo,
os anos de domínio do Ocidente são uma exceção
Raquel Vaz Pinto
Ou seja, o mundo esteve muito mais euroasiático do que propriamente centrado,
sobretudo na Europa e depois com a ascensão dos Estados Unidos, ocidental.
E isso também nos faz agora pensar porque é que com estes
Estados Unidos, que nós não percebemos muito bem qual é que é
a sua política externa e a sua relação com o mundo, nós
temos estes outros polos que têm uma história absolutamente extraordinária nos ombros.
Ou seja, muitas vezes, no fundo, a China, e aliás há um
livro também muito bom do Gideon Rahman, que
ele
escreve, é um dos dos polonistas do Financial Times, que é o
Easternization, e ele começa o livro com uma coisa muito simples, mas
que eu acho que é muito boa para nós percebermos, no fundo,
ele começa por contrastar aquilo a que ele chama a visão linear
da história dos Estados Unidos, não é? Ou seja, um país desde
que foi formado, claro, com um século XIX complicado, que tem uma
guerra civil tremenda, mas que desde então esteve sempre no auge e
ainda não desceu. Ao contrário da China, que tem uma visão cíclica
da sua história, ou seja, já esteve no topo, já esteve muito
mal, aliás os chineses fazem sempre questão de nos lembrar, agora cada
vez menos porque estão muito mais assertivos de que houve de facto
um século, meados séculos a 9 até ao final da Segunda Guerra
Mundial, um século de humilhação ocidental inipónica, que é sempre
um
aspecto que é bom adicionar, mas esta ideia de que houve um
período mau e que agora a China regressa. A China não é
uma potência emergente, a China, pelo contrário, é
um país
que regressa àquilo que é o seu lugar por natureza, que é
ser, não digo o centro do mundo, eu acho que a China
não tem essa ambição, mas regressa a um lugar que é por
direito próprio, entre aspas, normal para si, não é? E eu acho
que essa é uma perspectiva interessante. Nós, muitas vezes, nós também temos
essa perspectiva. Nós europeus tínhamos uma história longuíssima,
José Maria Pimentel
não é? É verdade, mas eu acho que o nosso raciocínio é
muito mais parecido com o americano nesse sentido da linearidade. Eu já
ouvi várias vezes essa referência, no fundo esta comparação entre o linearidade,
ou o que quer queiramos chamar, e esse pensamento mais circular, mais
cíclico dos chineses e eu acho que é quase impossível no ocidente
apreciar como é que isso funciona na prática, mas há um exemplo
engraçado de como isso é, como isso funciona, que é, por exemplo,
na historiografia deles. Eles têm muita dificuldade em reconstituir a história porque
aquilo era tudo contado. Eles não tinham provavelmente uma tradição historiográfica e,
portanto, os relatores, quer dizer, quem contava a história de cada dinastia
contava sempre para encaixar numa coisa, num molde pré-definido cíclico em que
havia. É um bocado aquela analogia das empresas, que é um que
constrói e outro que mantém e outro que desbarata. E a história
deles é toda... O início, sobretudo, é tudo contado assim, porque depois
não consegue ir atrás. Um historiador contemporâneo tem muita dificuldade em perceber
se aquilo aconteceu de facto assim ou se o relator daquele período
da história está simplesmente a fazer aquilo, entrar num molde pré-definido de
circularidade, de emergência muito bom e depois queda e depois por aí
sucessivamente. E eles se calhar olham para este período deles se calhar
de uma maneira parecida com essa, não é? Que no fundo tiveram
o avalio, um declínio sobretudo na última dinastia com maus imperadores e
depois eles têm que encaixar o mau no lado bom. Exatamente, e
essa é
José Maria Pimentel
Sim, mas isso, peraí, eu já agora queria perguntar uma coisa em
relação à elite, não sei se alguma vez já apanhaste alguma coisa
relacionada com isso, voltando àquele ponto que eu estava a fazer antes.
Porque eu achei isso muito interessante quando lá estava, sendo que só
a parte disso é o efeito de lá ter vivido, outra parte
é, às vezes, a pessoa quando está nos sítios, o mero facto
de lá estar e pensar sobre o assunto leva-nos a conclusões que
podíamos ter tirado perfeitamente cá, ou seja, não tem necessariamente a ver
com inputs que tenha recolhido pela experiência lá. Mas uma coisa que...
Uma sensação que eu fico ao olhar, sobretudo para a história recente
da China, era exatamente aquilo que Eu falava há pouco de eles
terem tido quase uma iluminação, uma descontinuidade nas elites, que é uma
coisa que não se nota bem. Portugal e toda a Europa do
Sul é um caso paradigmático, exatamente do oposto. Se nós fizermos um
exercício de recuar séculos, vemos que há uma continuidade drástica nas elites,
que de resto tem um grande problema de mobilidade social. Mas a
antídice disso, ou seja, a eliminação de elites, também pode ter problemas.
E na China, a situação com que eu fico é que todas
as pessoas, todos os membros da elite atual, não trazem consigo nenhuma
tradição, nenhum capital de práticas da China Imperial. Portanto, há uma série
de... Toda a nobreza da China Imperial foi completamente cortada. Parte terá
ido com o Cheng Kai-shek, imagino, parte terá sido completamente deposta. Portanto,
há essa espécie de descontinuidade que culturalmente não sei que impacto terá.
Porque, por um lado, eles parecem ter um modelo muito confucionista, mas
por outro lado, a sensação que eu tenho é que isto são
pessoas que emergiram muito recentemente. Não trazem a tradição da China antiga
e, portanto, há uma continuidade do país, há uma continuidade cultural no
sentido lato, mas há de haver ali por baixo diferenças grandes. Não
sei se estou a explicar bem, não.
Raquel Vaz Pinto
Não, estou a perceber lindamente. Claro que grande parte da elite, ou
pelo menos aquela que sobreviveu, foi com Chiang Kai-shek para a ilha
de Taiwan. E, aliás, Chiang Kai-shek fez mais. Chiang Kai-shek fez algo
que nós todos... Enfim, Chiang Kai-shek era um ditador com todas as
letras, portanto também nesse aspecto não há aqui muito a avançar, mas
fez uma coisa que foi muito importante, que foi ter levado grande
parte desses tesouros dessa China imperial do ponto de vista da arte
e levou-os para Taipei, onde aliás estão num museu fabuloso. Sempre que
alguém me pergunta por onde é que deve começar a visitar a
China, eu recomendo Taipei e recomendo este museu, que é o Museu
do Palácio Nacional, em que no fundo tudo o que é China
até 49 está lá. E portanto esse aspecto da cultura é importante.
Agora, também é verdade, seja dita, que muita dessa elite, essa elite
dos anos 30 e dos anos 40, também não era, como dizer,
uma elite que já estava assim de muito boa
Raquel Vaz Pinto
E com imensa corrupção, que aliás é uma das características, sobretudo nos
anos finais de Chiang Kai-shek. Mas, ao mesmo tempo, ainda encontra esse
aspecto que estavas a destacar. Eu acho que, quando hoje em dia
eu olho e conheço estas pessoas e tudo isto, eu tenho a
imagem exatamente oposta. É de que aqueles dois anos de Mao Zedong
foram uma exceção, foram esse corte, mas é um corte que dura
pouco. Porque há de facto esta geração e este Xi Jinping que
está no poder, eu acho que é um excelente exemplo, o conhecimento
que ele tem dos clássicos chineses, a forma como ele gosta muito
de estar sempre a citar pensadores anteriores, que de comunista têm zero,
não é? E sobretudo esta noção clara de que voltamos a estar
em cima. E voltamos a estar em cima com muitos aspectos importantes,
claro, e por isso é que eu à bocado dizia que eu
quando olho para esta elite, eu vejo... Olho para eles como mandarins
com uma roupa diferente, com um fato diferente, mas mandarins à mesma.
E aliás, é interessante perceber que quando acontece o grande salto em
frente, que era no fundo para resumir, Mao Zedong queria fazer a
revolução industrial, que como todos nós sabemos foi uma coisa muito rápida,
não é? E queria fazer a revolução industrial na China em poucos
anos. E aquilo, claro, foi um falhanço total, levou à tal grande
fome. E quando aquilo termina, percebe-se claramente que entre várias coisas Mao
não percebe nada da economia. E não percebe, aliás, muito mais coisas.
E isso foi interessante porque provocou na tal elite comunista, se quiser,
ou na elite maoísta, para sermos absolutamente corretos, provocou um choque. E
é esse choque que vai levar à revolução cultural, no qual está
inserido o nosso Deng Xiaoping, porque Deng Xiaoping é uma das grandes
vítimas das purgas, ou seja, no fundo, a elite começa a revoltar-se
contra o próprio Mao Zedong. E, aliás, a grande vítima da revolução
cultural são os quadros do Partido Comunista da China, ou seja, no
fundo Mao queria livrar-se e por isso é que ele faz aquele
apelo aos jovens, não é?
Raquel Vaz Pinto
Secretário-Geral do Partido Comunista, Presidente da China e, no fundo, o Presidente
da Comissão dos Assuntos Militares. Neste momento, Xi Jinping detém os três.
Dos três, aquele que verdadeiramente me interessa é saber quem é o
secretário-geral do partido. E aqui o partido, no fundo, tem ainda uma
coisa de comunista. Eu acho que tem sobretudo de leninista. Esta ideia
de ser o partido a vanguarda que vai liderar esta redistribuição do
crescimento económico para todas as áreas na China. E eu acho que
esse é um aspecto importantíssimo, ou seja, há de facto aqui uma
noção muito clara por parte destas elites do partido que mais uma
vez nós temos que pensar e voltar a 79. Quer dizer, Deng
Xiaoping, ao contrário de Mao Zedong, que só saiu da China, peia
duas vezes a União Soviética, que eu acho que não se classifica
propriamente como viagens interessantes, em que Xi Jinping faz parte daquela gente
que nos anos 20 fez aquela viagem absolutamente épica, em condições que
nós nem conseguimos imaginar, e que foi para a Europa trabalhar. E,
aliás, é justamente em França que ele conhece Zhou Enlai e que
adere ao Partido Comunista. E nessa viagem épica que no fundo lhe
deu a tal mundo e visão. Ou seja, ele percebeu claramente como
é que no fundo o resto do mundo funcionava. Isso depois foi
importantíssimo para esses anos e eu até gostaria de destacar uma conversa,
uma reunião que ele tem com o então líder de Singapura, ali
com a Niu, que recebe no fundo uma tentativa de contato por
parte de Deng Xiaoping e fica um bocado meio em pânico, meio
perplexo, não é? O que é que ele quer, no fundo? E,
no fundo, Deng Xiaoping disse-lhe de forma clara, ouça, eu passei aqui
em Singapura nos anos 20, isto era um bando, não é? Ele
não diz assim.
Raquel Vaz Pinto
capacidade de ir mais além, de pensar para além do que era
uma espécie de uma camisa de forças ideológica, que a China não
tinha, que permitiu à China ser capaz de em 1989 já ter
10 anos de avanço, quando o muro do Barlim caiu. Então eu
acho que esse, ou seja, eu acho que esse momento que nós
falávamos há bocado é muito revelador, aliás um jornalista que escreve muito
bem sobre a China, Richard McGregor, a faceta centralizadora e ao mesmo
tempo esta faceta pragmática. A China tem conseguido ter o melhor dos
dois mundos, pelo menos até agora. Sim,
Raquel Vaz Pinto
E isso é justamente uma das acusações dos chineses, que dizem de
forma clara. Bom, primeiro, eu acho que essa China não estava preparada
para o poder dos mídia. E, portanto, ficaram perplexos com estas reações.
Ou seja, e porquê que estava lá todo aquele aparato mediático? Porque
em maio ia ter lugar a grande cimeira entre Gorbachev e os
líderes chineses que, no fundo, fazia aquela re- ou normalização. Eu acho
que as relações entre a União Soviética e a China nunca foram
normais. Aliás, a relação nós hoje sabemos, na altura não se sabia
como é evidente, mas a relação entre Mao Zedong e Stalin era
péssima, mas péssima, péssima. E no fundo esta ida de Gorbachev a
Beijing era, no fundo, voltar a normalizar as relações e era ele
que ia à China e portanto... Mas como em Abril morre um
líder de morte natural, que é a coisa que eu digo sempre
aos meus alunos, porque há sempre esta coisa da conspiração...
Raquel Vaz Pinto
Eu honestamente estamos a discutir a escala dos horrores. Eu não vejo
grande diferença entre Staline e Mao Zedong. Eu acho que talvez os
chineses... Os chineses... Não, não posso dizer os chineses. Mao Zedong talvez
tivesse uma maior preocupação com aquilo a que nós chamaríamos de forma
direta ao assunto, a lavagem cerebral. Ou seja, o reformar, o obrigar,
o quebrar o indivíduo. Stalin provavelmente fuzilaria imediatamente, sem grandes preocupações. Esse
é um aspecto que não deve ser de todo descontextualizado, mas a
partir de Deng Xiaoping essas purgas são feitas, ou seja, As purgas
internas, ou seja, os dissidentes dentro do próprio partido não têm o
mesmo destino que acontecem com Mao Zedong. Mas, por outro lado, a
máquina repressiva continuou e continuou de forma... Aliás, nós vemos isso... Uma
das figuras mais fascinantes, e basta ler aquilo que ele escreveu e
que obviamente lhe mereceu o Prémio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, em
2010, e é um nome que nós devíamos todos saber de cor,
porque de facto foi alguém que foi julgado, que foi preso, que
não pôde receber o Prémio Nobel da Paz, ficou lá a cadeirinha
vazia, que eu acho que é simbolicamente importante e que morreu na
cadeia, não é? Portanto, e alguém que escrevia de forma direta as
questões entre, enquanto nós formos uma ditadura, este país não vai poder
evoluir, não vai poder andar para a frente, no fundo. E, portanto,
a máquina de repressão, a China é uma ditadura absolutamente sofisticada e
ao contrário de outras ditaduras, sei lá, como o turco-ministão, há um
processo interno de, se quiseres, de uma certa meritocracia neste sentido. Ou
seja, um líder, para chegar a líder, passa por uma série de
testes internos, seja governar províncias muito complicadas,
com
aspas, como diria Beijing, sei lá, Tibet, Xinjiang, não
é? Que são
geralmente sítios de, por razões óbvias, aliás de direitos humanos gravíssimos, de
violações de direitos humanos gravíssimos, são duas províncias que os Han gostam
muito de ter muito controlado, mas por outro lado, ou depois passarem
por províncias mais ricas, onde também há mais potencial de corrupção. Portanto,
há aqui uma espécie de uma...
Raquel Vaz Pinto
Está feito, está feito. Essa, exatamente. Mas essa é exatamente uma das
imagens que eu gostava de deixar aqui, que é Uma China tem
um Deng Xiaoping porque essa China precisava de Deng Xiaoping, completamente ao
contrário da União Soviética, que ossificou. Se nós pensarmos que nos anos
70, ou pelo menos na parte final dos anos 70, Os chineses
começam com Deng Xiaoping e os soviéticos ainda têm Brezhnev, e depois
ainda vão ter ali Andropov, Chernenko e depois finalmente lá vem o
Gorbachev, que tentou reformar, o que não era de todo
Raquel Vaz Pinto
Mas é interessante porque mesmo em relação para a liderança chinesa 89
a 91 foram anos horrorosos, não é? E voltando àquela questão do
poder mediático, ou seja, Todos aqueles jornalistas estavam na Praça de Teanamento
para cobrir essa cimeira extraordinária. E como o Hu Yao Bang, que
era um líder, foi um dos primeiros delfins escolhidos por Deng Xiaoping,
mas depois ele tinha uma perspectiva de que as reformas tinham que
ser muito mais abrangentes e muito mais rápidas e, portanto, houve ali
algum desconforto e ele no fundo é colocado numa prateleira adorada, que
é outra grande diferença. Deng Xiaoping, se fosse Mao Zedong, tínhamos arranjado
aqui um assassino ou coisa assim, ele é colocado. Mas era um
líder extraordinariamente popular e, portanto, quando ele morre em meados de abril,
os estudantes e muita gente começam-se a reunir na praça para, no
fundo, pedir ao Estado, ao partido, que façam umas exéquias, furmes, como
ele merece. Como ele merece e aquilo depois vai ganhando aquela vaga
e depois vai avançando. E, claro, a liderança chinesa passa a maior
das vergonhas porque não pode todo fazer nada de grande pompa em
circunstância, porque a praça está tudo tomada, há gente por todo lado
e, portanto, tudo aquilo é muito estranho assim, e os jornalistas, claro
que percebem que muito mais interessante do que o aperto de mão
é, obviamente, aquilo que está a acontecer na praça. Para a China
foi um acordar violento, para a China não, lá está, para a
liderança chinesa, para o poder da imagem. E como tu dizias, Ibem,
uma das acusações da liderança, a primeira tentação foi negar. Era impossível
negar aquilo, não é? E depois foi a diferença entre... E quando
nós começámos a reaproximação com outros Estados Unidos em 71, 72, estávamos
no meio da revolução cultural e vocês não disseram nada. Agora em
89 acontece, como eles chamam, este incidente. Sim. E há este escândalo
todo, porque não perceberam de todo, não foram capazes de compreender o
impacto. A razão que tu diz é Exatamente essa, porque nós não
percebíamos o que é que acontecia na China, não tínhamos informação e,
sobretudo, nessa altura, muito poucas pessoas falavam sequer chinês, não é? E,
portanto, nesse aspecto, a informação era extraordinariamente difícil. 89 foi visto na
televisão. Aliás, já não me lembro qual é o autor, eu penso
que é o Harry Harding, que no fundo diz 3 quartos da
população americana ou daqueles que vêem televisão, já não me recordo os
números, viu aquilo. A partir do momento em que isso acontece, há
obviamente uma opinião pública norte-americana que de repente acorda para esta China
autoritária, completamente em contraste com a visita histórica que Deng Xiaoping faz
no final de 78, que há aquela fotografia fabulosa de Deng Xiaoping
que fez uma turné pelos Estados Unidos, um case study de sucesso,
e há uma fotografia absolutamente deliciosa, mas que hoje nenhum presidente da
China faria aquela fotografia, lá está, com um chapéu gigante
Raquel Vaz Pinto
chapéu gigante de texano, de cowboy, vá lá. Hoje em dia é
inimaginável pensarmos que Xi Jinping faria aquilo, nem pensar. Portanto, há esta
China, que é uma China diferente daquela a que estávamos habituados a
pensar, a minha geração que tem aquele impacto com esta questão dos
direitos humanos E, portanto, e do outro lado da Guerra Fria, embora
a relação da China com a União Soviética tenha sido uma relação
extremamente complicada. E também, no fundo, este ponto de que, mesmo hoje
em dia, e essa era outra ideia que eu também gostava de
deixar, que é esta ideia do império centrífugo, ou seja, que é
de um professor, Jai Ho Chung, no fundo a ideia dele é
esta, de que ao longo da tal imensa história da China, há
esta ideia de, desta China, destas províncias, destas pessoas que se afastam
do centro. E a história da China pode ser contada como a
tentativa do centro de controlar todas estas regiões, estas pessoas que, de
forma passiva, dissimulada ou ativa, vai fazendo a sua vida sem se
preocupar muito com ou tentando não contestar o centro, mas
Raquel Vaz Pinto
Uma vez apanhei o susto da minha vida em Tianjin, quando ia
com uma amiga minha, estávamos numa conferência, quando chegamos a uma rotunda,
o condutor do táxi olhou para a rotunda, viu que aquela parte
toda à direita estava cheia de gente e fez a rotunda para
a esquerda. E eu estava lá atrás com a minha amiga e
disse assim, saímos já aqui ou continuamos? Ela olhou para mim, não,
não, continuamos, o hotel é já ali, pronto. É um de muitos
exemplos. Por acaso
José Maria Pimentel
eu não tenho várias, não tenho nenhum tão bom como esse. Não,
mas isso é típico, eles fazem e isso lembra-me um bocadinho, em
sério sentido, de Coisas de Vida e Assistência, Portugal. Eu acho a
cultura chinesa, ou, por outro lado, eu acho Portugal dos países europeus
com uma cultura mais parecida com a cultura chinesa em vários aspectos.
Um deles esse, nessa espécie de muitas regras, mas para serem pouco
cumpridas, sobretudo neste tipo de coisas, neste tipo de coisas mais comezinhas.
Depois o facto da sociedade ser relativamente coletivista, a sociedade chinesa é
muito coletivista, o papel da família, da comunidade e a portuguesa à
escala europeia também é. Sim, à escala europeia, sem dúvida. À escala
europeia, não à escala mundial. E é até engraçada essa... E eles,
nota-se que historicamente eles se habituaram a conviver com isso e nós
também. A nossa história, embora sejamos um país muito mais pequeno, também
é um bocadinho essa história, quer dizer, fora... A pessoa está fora
do centro e tem aquela coisa do... Claro que isto varia e
o norte, por exemplo, Portugal, mesmo sendo um país pequeno, é diferente
do sul. Mas há muito essa lógica de... Mesmo no Estado Novo,
por exemplo, havia determinadas coisas que as pessoas sabiam que não convinha,
não convinha ter determinadas conversas nos cafés. Depois o resto, havia uma
série de liberdades que hoje em dia a pessoa até não tem
noção porque as pessoas, o Estado não estava interessado, sabia que não
conseguia, não era tentacular o suficiente para chegar tão longe. E a
sensação que eu tenho é que na China é um bocadinho assim,
ou seja, o Estado está muito preocupado com determinadas coisas e há
pontos vermelhos onde as coisas não convêm
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. Mas que vê isso e, portanto, tem imensos recursos financeiros, que
utiliza para quê? Para o controle da internet, para a tecnologia de
controle das redes sociais, que obviamente não são as redes sociais nossas
E há toda uma série de piadas, não é? A grande muralha,
The Great Firewall of China, essas piadas todas. Mas isso, no fundo,
mostra como a grande preocupação do centro, porque lá está, há uma
consciência da história. E as revoltas ao longo da história da China
são tremendas. Há períodos de desunião, há períodos em que aquele sul
costeiro, diferente, cosmopolita, aberto, onde aliás começam as zonas económicas especiais em
78, 79, não tem nada a ver com aquele norte mais fechado,
até em alguns aspectos um bocadinho virado para dentro, não é? Ou
seja, psicologicamente, não é? Não tem nada a ver com Guangdong, com
Cantão ou outras províncias mais costeiras. E no fundo, isso também nos
ajuda a perceber como a China tem apostado tremendamente, quer na inteligência
artificial, quer nestes meios tecnológicos, quer por exemplo uma coisa que é
assustadora, é quase orwelliana, que eles têm feito, claro, em Xinjiang, a
província norte do Tibete, onde a maioria das pessoas são uigurs, muçulmanas,
ou pelo menos são a maioria, mas há cada vez mais migração
Han, justamente para... Para... Iluminar também não é uma boa palavra, mas
para...
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, diluir, boa. Para diluir essa presença religiosa e essa identidade que
é o reconhecimento facial. Há ali elementos, mas por outro lado, dito
tudo isto, as grandes preocupações do partido são sempre internas. Isso ajuda-nos
a perceber como é que a China, que tem O segundo maior
orçamento de defesa do mundo, depois dos Estados Unidos, é claro, e
o gap entre os Estados Unidos e a China é tremendo, embora
nós possamos, obviamente, deve haver muita coisa que não se consegue, no
fundo, saber em relação, sobretudo, àquelas indústrias de defesa de ponta da
China, mas a China gasta mais no orçamento de segurança interna do
que gasta com o seu orçamento de defesa. Isso diz-nos tudo sobre
quais são as prioridades do governo, ou seja, controlar essa China, mas
ao mesmo tempo que há esta China que se revolta, esta China
que protesta. As três maiores razões que levam as pessoas a protestar
nas ruas e há centenas de centenas de centenas de protestos nas
ruas são falta de terra arável, que é um problema gravíssimo da
China, ou seja, tem 1.4 bilhões de pessoas e tem muito pouco
terra arável E por isso é que também nos ajuda a perceber
porque é que a China compra tanta terra em outros países. A
questão da segurança alimentar é importante. Em segundo lugar, as questões relacionadas
com o ambiente, ou seja, o crescimento desenfriado poluiu muito. Há problemas
cardiorespiratórios, toda uma série de doenças, a questão da água potável que
é outro drama. E a terceira razão são razões laborais. Portanto, há
de facto estas duas imagens, eu aliás estou neste momento, é um
dos meus projetos com o meu colega e amigo Luís Má, estamos
justamente a escrever e a trabalhar sobre estas várias imagens de um
país que fascina, que quando falamos direitos humanos que nos repele, não
é? Mas que ao mesmo tempo também tem que ser entendido. Ou
seja, e nós portugueses, tendo em conta o peso da China na
nossa, pelo menos em alguns setores estratégicos para Portugal, essas chinas têm
que ser entendidas. Sobretudo numa época, num tempo em que nós vemos
sinais muito... Que nos alertam, que nos preocupam da saúde das nossas
democracias liberais.
José Maria Pimentel
em frente. Como é que dizia? Era o Lenin que dizia aquela
do dar um passo atrás para dar dois em frente, não era?
Dar um passo em frente para continuar a falar daquilo que falámos
há pouco da questão do regime. Porque... E isso depois faz-nos aponte
para a questão da democracia ou da ausência dela, ou seja, do
futuro desse regime. Porque realmente o regime chinês tem uma peculiaridade porque
é uma ditadura mas é muito mais do que isso, sobretudo desde
o Deng Xiaoping. O que o Mao tinha feito era de certa
forma esvaziar as elites, lá está, uma coisa típica do líder despótico,
não é? É, exatamente. Tentar agarrar-se ao poder, parece o líder do
clube de futebol de que tu não és fã que fez agora
que também tentou uma estratégia semelhante recentemente porque o óbvio! O óbvio,
exatamente! É uma estratégia semelhante, é uma estratégia típica e o The
Shopping faz uma coisa muito curiosa numa ditadura, ou seja, ele tem
essa visão. É parecido com o... Como é que se chamou o
da Singapura? Ainda há um bocadinho de falar. Com o Lee Kuan
Yew. É muito parecido com ele, embora Singapura seja um bocadinho mais...
Seja tecnicamente uma democracia, mas depois na prática está mais perto de
um... É
José Maria Pimentel
E ele tem esse golpe de asa grande a vários níveis, mas
sobretudo tem o golpe de asa institucional que é realmente admirável, sobretudo
porque não havia, provavelmente, incentivos para o fazer, ao institucionalizar aquela questão
do limite dos mandatos, sendo certo que o cargo de Presidente da
República, ou seja, Presidente do país, nem é o mais importante, o
mais importante até era o Presidente do Partido, Mas eles estão ligados,
quer dizer, aquilo acaba por estar ligado e ele institucionaliza essa questão
de haver um limite de mandatos e torna institucionalizado aquilo que tu
falavas há pouco, por um lado, uma rotação no cargo, que é
essencial e que é uma característica que costuma existir justamente nas democracias,
sem abrir nunca o regime, portanto ele nunca o torna democrático, mas
recupera aquela tradição das burocracias no bom sentido que a China historicamente
tinha. Provavelmente o primeiro país a ter um Estado centralizado eficaz, quer
dizer, de formação... E funcionários públicos... Funcionários públicos, exatamente. Aliás, o confúrcio
era isso. Que
José Maria Pimentel
Muito à frente do que nós tínhamos. Nós éramos completamente feudais e
eles já tinham esse sistema. E ele consegue recuperar isso e, no
fundo, consegue fazer, sem nunca abrir mão do poder do partido... Não,
não, tem que chupar, ele não era um democrata, vamos pôr o
ponto final. Exatamente, e aliás o Tiananmen mostra isso bem, mas ele
consegue, mantendo esse Estado comandado, dar uma vitalidade àquele regime que, goste
ou não se goste, é o que está por trás dos últimos
35 anos de convergência. Claro. Isso é como é que... Quer dizer,
daquilo que tu tens estudado o assunto, como é que aquilo surge?
Quer dizer, como é que isto é tão diferente do que costuma
acontecer em todas as ditaduras que há muito mais um caso parecido
com o caso norte-coreano, por exemplo, a usar um... É caricatural, mas
normalmente são muito mais próximos disso. Mesmo o nosso exemplo. O nosso
exemplo está muito... O seu azar fica até ao fim, na prática.
Ou seja, não há sequer uma transição e depois o Marcelo Caetano
tenta ali no início fazer qualquer coisa, mas depois na prática rapidamente
perde a vontade ou a possibilidade de fazer e o regime cai.
Raquel Vaz Pinto
Sim, sem dúvida. Eu acho que esse é dos aspectos que mais
uma vez gostava destacar. A questão dos direitos humanos e o que
é que a gente tem que fazer com isso, que eu acho
que é muito importante, é que o Deng Xiaoping, ele não tinha
a capacidade de fazer isso, Portanto, eu acho que Deng Xiaoping, como
tantos outros que viveram aqueles anos 20, que viram como de facto
havia a capacidade e a vontade de melhorar a vida dos chineses,
que esse é um aspecto aqui fundamental, até pela própria sobrevivência do
partido. Ou seja, no fundo, Deng Xiaoping, com a sua visão mais
viajada, com mais noção do que estava lá fora, e também porque
a elite o sentiu, não é? No fundo, o que tentou fazer
foi continuar no poder, fazendo todas aquelas reformas que achou que tinha
que fazer. Agora, concordo contigo, é muito raro nós encontrarmos, aliás, Um
líder que faz tudo isto, low profile, não quer assumir essa linha
da frente e que, no fundo, ele preferiu apostar no coletivo em
detrimento do líder. O tal líder, no fundo, ele tinha perfeita consciência
que se viesse outro Mao Zedong, a China provavelmente teria o mesmo
destino da União Soviética, implodia, desfazia-se, não é? Eu acho que nesse
aspecto ele foi extraordinariamente... Teve essa visão, essa visão acoplada à questão
económica da abertura, no fundo ter o melhor dos dois mundos, que
é aquilo que verdadeiramente nos deixa perplexos, não é? Porque a China,
sendo um país ditatorial e uma ditadura fortíssima, por outro lado é
um país que tem conseguido as tais taxas de crescimento que deixam
muitos países em vias de envolvimento muito invejosos e que agora está
justamente a fazer ou a tentar fazer um processo importante que é
de deixar de apostar tanto em ser a fábrica do mundo com
salários baixos e começar a desenvolver o seu mercado e o mercado
de consumidores e com tudo aquilo que depois vem associado a isso.
Por outro lado, nós há décadas, há anos, que andamos... Que se
ouve muito dizer que a China vai abrir, a China vai se
reformar. E no entanto que o facto é que a China não
tem feito esse caminho. Houve algumas experiências na província de Guangdong, mas
que, pelo menos pela atual composição do comitê permanente do Politburo do
Partido Comunista da China, que são os chamados Sete Magníficos, ou os
Sete Imortais, se quiseres. O que nós vemos é que essa linha
foi talvez posta um bocadinho em banho-maria, porque havia de facto um
aspecto importantíssimo que foi sempre, ou pelo menos foi uma das grandes
razões de queda, seja de dinastias, seja de governos, que é a
questão da corrupção. E, portanto, eu acho que essa é a principal
razão pela qual Xi Jinping lhe foi permitido reforçar, de certa forma,
o poder, afastar o Bo Xilai, que era o seu grande rival
e afastou com toda a classe, com todo o melodrama, não é?
E com o julgamento, tudo aquilo muito populista, com um aspecto claramente
de mensagem. Eu acho que essa é a grande razão. Mas se
ao mesmo tempo nós vemos esta questão de uma grande força, mas
que eu acho que é relevante. Ainda esta semana saiu uma notícia
de que um jogador brasileiro da liga chinesa, eu recuso-me a dizer
super liga chinesa, que é preciso ter vragonha, Que é o Tardelli,
que vai ser sancionado porque durante o hino da China não esteve
irto. E portanto, já não sei, olhou para baixo e mexeu na
cara. É qualquer coisa assim ridícula. E que portanto vai ser objeto
de uma suspensão ou de... Seja lá o que for. Isto mostra-nos
também como, por detrás de toda esta força, há ao mesmo tempo
quase uma obsessão, uma paranoia com qualquer sinal de dissidência. E isso,
para mim, é muito mais um sinal, uma demonstração se quiseres, dessa
fraqueza do próprio amante da força e portanto se é verdade que
Xi Jinping tem reforçado muito o seu poder do ponto de vista
formal, como tu destacavas, e vem também a própria questão da reformulação,
a talidade de reforma, de sair dos cargos, e depois foi buscar
para ser o vice-presidente o vice-presidente, aquele que foi no mandato anterior
o chamado, eu não gosto de dizer o Cesar da corrupção, que
os chineses certamente não gostariam desta conversa, porque Cesar implicaria o outro
país, mas que é o Wang Qichang, no fundo uma figura que
era o seu braço direito e que ele foi buscar para vice-presidente.
Portanto, eu acho que ali mesmo em toda aquela parafernália, aquela pompa
em circunstância, aquela imagem de imperador, eu acho que também há muita
noção do próprio partido de que era preciso reformar e de que
era preciso limpar, fazer a tal purga, não é?
José Maria Pimentel
Mas é que há uma coexistência entre duas coisas que parecem mais
ou menos de sinal contrário. Por um lado, a preocupação com debelar
o problema da corrupção, que pode ter várias causas, mas a partir
da interpretação que a pessoa faz é que ele percebe que aquilo
era um impedimento no mínimo ao desenvolvimento econômico e no máximo à
sustentabilidade do regime.
Exatamente.
Isso é, no fundo, não é uma forma de abertura, mas é
uma forma de melhoria institucional do sistema. E depois, por outro lado,
há uma coisa que vai quase ao arrepio disso, que é essa
questão da eliminação do limite aos mandatos e, portanto, tornar-se um ditador
menos sancionável ainda do que era antes, ou seja, muito mais independente,
com muito mais autonomia, liberdade de ação e, portanto, no fundo, o
primeiro, não digo que sugira um caminho no sentido da democracia, mas
pelo menos sugere um caminho no sentido de melhorar o sistema do
ponto de vista do cidadão, enquanto o segundo, a prazo, é exatamente
o contrário, sobretudo, é completamente contrário àquilo que estávamos a falar há
pouco, que a pessoa está farta de ouvir há anos de que
será que é desta que a China se torna uma democracia e
que era uma coisa que no início a pessoa dizia bom e
tal mas eu lembro de usar esse argumento, mas a China, se
virmos bem, a China lá está tem um ponto 4 de habitantes
e se a pessoa fizer o PIB per capita, mesmo em paridade
dos produtos de compra, ou seja, mesmo em termos de do que
cada cidadão consegue comprar, eles entram lá muito abaixo. Hoje em dia
já não estão tão abaixo assim, hoje em dia eles estão ao
nível do Brasil e estão já acima, eu apanhei isto no outro
dia e achei muito engraçado, eles estão acima, o PIB per capita,
ou seja, o poder de compra do chinês médio já está acima
do poder de compra do sul-coreano médio quando a Coreia do Sul
se tornou uma democracia. Ou seja, já não, este argumento já não
colhe completamente, há algo mais ali, não é simplesmente falta de desenvolvimento
económico. Já começa a ser muito difícil fazer o argumento de que
aquela tese de que capitalismo ou a economia de mercado e democracia
andavam de mãos dadas não está a ser contrariada por este caso.
Porque...
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que nós só vamos poder verdadeiramente responder essa pergunta no
final do segundo mandato de Xi Jinping. Ou seja, e acho que
nos próximos anos nós temos de estar muito atentos e perceber, sobretudo,
no fundo vai ser interessante ver este segundo mandato, como é que
ele vai pôr isto em prática e, sobretudo, as pessoas próximas de
si. Mas aí também entra outro fator interessante que é quer a
relação com a própria União Europeia, quer a relação com a administração
Trump dos Estados Unidos. Ou seja, Há aqui fatores importantes em que,
claro que obviamente não dependem da China, aliás, nós estávamos a falar
um bocadinho sobre isso antes de começarmos aqui a nossa gravação, que
é... Graham Ellison escreveu um livro chamado Armadilha de Tucídides, ou seja,
indo buscar o grande Tucídides. Eu, se estivéssemos ao vivo e a
cor estava neste momento a fazer uma vénia, porque Tucídides é sempre
O clássico para quem trabalha em relações internacionais. É
Raquel Vaz Pinto
Lá está, eu acho que há mais do que só o realismo
em Two Cities, mas A coisa extraordinária de um clássico, não só
é o de aguentar mais de 2.000 anos, e estamos aqui nós
a ler este texto, é de ter tantas leituras, não é? E
no fundo, Graham Ellison o que diz é, esta armadilha de tecidos
é muito fácil de explicar. Uma potência hegemónica olha para outra que
está a começar a ascender, que tem ou não a possibilidade de
ameaçar essa sua potência hegemónica e, portanto, antes que ela chegue lá,
no fundo, em condições de disputar essa liderança entra em guerra. E
no fundo foi isso que levou à guerra do polo pornês e
à história que o Tucídides nos deixou, como ele diria e citando
como um legado para todo o sempre. E no fundo, ele depois
vai buscar, Graham Ellison vai buscar uma série de exemplos históricos, mas
o que eu acho ali verdadeiramente interessante é que há muitos fatores
que nós de todo não controlamos, ou seja, e o próprio Tusicidis,
neste seu livro fabuloso, dá-nos muitos exemplos e muitos pontos importantes. Olha,
desde logo, eu acho que talvez, e por isso é que eu
acho que ele tem obviamente uma leitura realista, e lá vamos pescar
o diálogo de melos e tal, mas há muitas outras leituras. Eu
acho que aquela sua forma de descrever, aquele seu estilo tão minucioso,
mostra-nos claramente, Por exemplo, três aspectos importantíssimos que também influenciam, obviamente, esta
evolução ou esta conjuntura da relação entre as duas maiores economias do
mundo hoje em dia. Primeiro, a questão da liderança. Nós, quando lemos
Tucídides, Para nós é evidente que há uma democracia com pericles, que
é o grande líder, passo a expressão não comunista aqui neste sentido.
O
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. E depois a democracia ateniense com figuras claramente inferiores, tais como,
seja Cleon, seja sobretudo Nisias, seja sobretudo Alcibietes. Portanto, a questão da
liderança, a importância da liderança e como, seja em democracia, seja em
oligarquia, que é o caso de Sparta aqui, a questão da liderança
é absolutamente fundamental. Portanto, há, diz logo aqui, um aspecto importante para
a tal guerra que pode ou não ser inevitável. Depois, um segundo
aspecto que é as características internas de cada sociedade, ou seja, o
modo como nós nos organizamos tem muita influência depois na própria condição
da política externa, como nós ainda agora falávamos, não é? A China
dará sempre primazia às questões internas, porque delas depende o seu monopólio
do poder político, não é? Ou seja, questões como a taxa ou
o desemprego, questões como a saúde, questões como, agora, depois do crescimento
desenfriado, o ambiente. Ou seja, questões que claramente estão associadas à nossa
qualidade de vida e que também há uma população, não diria reivindicativa,
mas que em relação a esses aspectos está extraordinariamente atenta. E depois
um outro aspecto que Tucídides também nos deixa, entre 3 mil outros,
e podia ser outro programa e podíamos falar só de Tucídides, eu
sou claramente uma croma de Tucídides e de todos os gregos antigos
e os romanos, sou completamente fascinada, fascinada, fascinada, admito, não há nada
a fazer, que é a desumanização da guerra e aquilo que nós
damos como adquirido, que neste caso aqui é sobretudo o quê? A
tal democracia de Pericles, não é nada adquirido. E, portanto, à medida
que a tensão, que o conflito, neste caso a guerra vai avançando,
nós vamos nos desumanizando. Ou seja, a primeira decisão de massacre é
muito discutida e depois até é revertida, mas à medida que a
guerra avança, não é? Deixa de haver qualquer relevância em relação ao
sofrimento do outro. A própria religião, que era importantíssima para os gregos,
uma religião politaísta com vários deuses, deixa de ser um freio, deixa
de ser um limite e, portanto, aquela sua forma muito analítica de
escrever, que é absolutamente... Eu cada vez que leio do Cid, eu
descubro sempre qualquer coisa que não vi bem e que não dei
bem atenção e eu fico sempre fascinada com um livro que tem
mais de 2 mil anos e que aqui está para nos dar,
aliás, grandes lições ou questões importantes. Voltando aos Estados Unidos e à
China. Sim. Eu acho que há aqui muitos fatores que podem tornar
Esta guerra evitável, ou esta tensão evitável. E estes três, eu acho
que são exatamente três destes aspetos fundamentais. Agora, também há a sorte
ou o azar. No caso da guerra do Peloponese, é peste, é
peste que trama Atenas num primeiro momento e depois leva, aliás, à
morte do próprio Péricles, não é? Mas aí aqui, fatores que não
são controláveis. E se um dia a sociedade taiwanesa decide declarar a
independência?
Raquel Vaz Pinto
da China alguma vez quererá ficar na história, presidente barra secretário-geral, como
aquele que não respondeu de forma forte, aquele que perdeu a última
província que falta reunir, que falta voltar para, na perspectiva, claro, de
Beijing, que falta voltar à China, voltar a casa, exatamente. É
José Maria Pimentel
seja, a tese é exatamente a mesma do Graham Ellison, só que
descrita de maneira diferente e há vários argumentos contra, no fundo, esta
inevitabilidade. Ele não diz que há uma inevitabilidade da guerra, porque o
modelo dele é parcial, como qualquer modelo nas ciências sociais, o que
ele diz é que de acordo com o modelo dele, que ele
acha que é o que explica melhor, o resultado seria guerra e
há vários argumentos contra. Eu pessoalmente, a minha posição é a contrária,
ou seja, eu acho que há mais argumentos contra a possibilidade de
haver guerra do que a favor, embora seja muito interessante, quer dizer,
intelectualmente não é nada interessante na prática, mas é intelectualmente interessante discutir
os argumentos a favor dessa probabilidade e um dos argumentos que ele
dá, um dos argumentos, perdão, que muitas vezes são dados contra, é
o argumento mais óbvio, é o argumento económico das... Da interdependência, não
é?
José Maria Pimentel
brutal que existe entre a China e os Estados Unidos e o
exemplo que ele levanta, ele dá dois exemplos, um é Taiwan, é
dizer, sim senhor, mas imaginem que isso que está a dizer, é
evidente que a China ia reagir independentemente do que estava em jogo.
Isso é 100% seguro. Exatamente, esse é seguro, esse nem sequer se
põe em questão. E depois, por exemplo, embora não seja diretamente comparável,
mas reconheço que é um bom argumento, a Primeira Guerra Mundial ecolode
numa altura em que já havia uma integração comercial gigante. Esse aliás
Raquel Vaz Pinto
é um dos grandes temas que ele trabalha muito ao longo da
sua vida, é dizer que, no fundo, ouçam, é tudo racional, faz
todo sentido, ambos os países, a economia mundial tem imenso a perder
com o conflito desta escala, todos nós, não é? Mas às vezes,
ou aliás até muitas vezes, algumas decisões que são tomadas, elas não
são tomadas racionalmente. Taiwan não é um assunto racional para a liderança
chinesa, não é? Não é de tudo. É o final e sobretudo
num país que, lá está, para preencher o vazio da ideologia, ou
seja, Já ninguém justifica ideologicamente o Partido Comunista da China. Há uma
educação patriótica.
Raquel Vaz Pinto
regressamos à pátria, regressamos ao século da humilhação. Taiwan é, se quiseres,
de todos, aquele que mais lembra de forma mais dura aos chineses
a humilhação. Porquê? Porque Taiwan resultou do primeiro tratado de desigual imposto
em 1895, não pelos malandres dos ocidentais, mas pelos japoneses. Que para
os chineses foi a mesma coisa que o seu mundo, que é
o seu mundo, que é o seu mundo de 1895. E, portanto,
Taiwan vai ser uma colónia japonesa de 1895 a 1945. Japonesa de
1895 a 1945 e, portanto, é, se quiseres, aquele espinho cravado nesta
narrativa da República Popular da China, porque não, ele não era verdadeiramente
relevante, Ele só se torna relevante, evidentemente, em 1949, quando justamente Chiang
Kai-shek pega nos tesouros e no que resta da sua elite e
das suas tropas, uma série de pobres coitados que viviam na ilha
de Taiwan e que não acharam especialmente graça receber aquela gente
toda
e governou de forma ditatorial Taiwan, que ele considerava ser a China
verdadeira, não é? Até à sua morte. Portanto, nesse aspecto há ali
uma certa pareciência com Mao Zedong.
José Maria Pimentel
raciocinativos. Mas um fator suplementar por cima deste e que muitas vezes
acontece nestes casos é que os líderes políticos podem ter incentivos para
agir não em representação daquele povo, daquela nação, se quisermos, mas em
representação do próprio regime. E neste caso, como nós temos dois regimes
muito diferentes entre os Estados Unidos e a China, o regime chinês,
aliás, estava-se a dar aquele exemplo há pouco, sente-se muito ameaçado pelo
facto de ter uma matriz muito diferente da matriz que existe no
outro lado e, portanto, se sentir exposto enquanto sentir que há uma
força, por exemplo, do Ocidente para tentar implementar uma democracia na China,
por exemplo, isso por si só pode ser motivo para reação, mesmo
que para os chineses, para os habitantes da China isso não seja
relevante. Não sei se estou...
Raquel Vaz Pinto
fundo é a guerra em que a pátria esteve viva, totalmente sob
ameaça, não é? E isso nota-se depois e vê-se vai no número
de russos, russos quer dizer soviéticos, russos e de todas as outras
repúblicas que morreram na segunda guerra mundial, também, deva ser dito, por
muitas das asneiras cometidas por Stalin. Mas pronto, isso depois ficaria para
outra conversa e o José Milhaços faria isso muito melhor do que
eu. Mas há muito esta... É uma manobra clássica, ou seja, temos
imensos problemas internos, vamos encontrar um inimigo externo para poder, no fundo,
continuar a corresponder a esse elemento nacionalista que é perigoso, ou seja,
o nacionalismo em si mesmo pode muitas vezes ser uma faca de
dois gumes ou imagina que acontece qualquer coisa que é uma enorme
provocação e é A própria opinião pública, ou se quiseres, não podemos
dizer opinião pública, a própria população que pode desencadear e exigir para
que o presidente não pareça fraco, uma resposta forte. Há toda uma
série aqui de elementos e de nuances que às vezes tornam a
tal educação patriótica às vezes problemática e por vezes fora de controle.
Nós honestamente não sabemos o que é que poderá acontecer. Eu acho
que o cenário guerra fria será talvez guerra fria, mas noutros moldes,
não é? Porque também não há... Lá está! Nós nem guerra fria
podemos chamar, porque não estamos a falar de dois países que são
totalmente diferentes, porque economicamente a China, apesar de ser o tal leninismo-mercado,
não é a União Soviética, não é? E ao contrário da União
Soviética, tem uma presença forte em países europeus. Em África é a
máquina, América Latina e por aí fora. Portanto...
José Maria Pimentel
Exatamente, até era suicida qualquer confronto. Parece um bom argumento. É um
bom argumento, parece razoável. Mas ainda assim não é certo. Portanto, podemos
assumir que há a ver confronto, seria um confronto, provavelmente mais localizado
na zona perto da costa da China, ou dos Estados Unidos. Aliás,
este tipo, como é que ele se chama? Merchmauer? Merchimer. Merchimer. Tens
de dizer rápido, porque o nome não é fácil de ler. Pois,
exato. Merchimer dizia, ele falava no Freedom to Rome, que tem piada,
que ele dizia que o poder hegemónico no fundo habitua-se, e os
Estados Unidos têm claramente isso, a poder passear pelo mundo à vontade.
Claro. E claramente mais tarde ou mais cedo, isso já começou, os
chineses vão começar a enxutá-los dali. No mínimo isso vai acontecer, não
é?
Raquel Vaz Pinto
Claro, quer dizer, a China tem uma geografia... Aliás, aos meus alunos,
começo sempre, as aulas de estudos asiáticos, começo sempre com o mapa
em que os Estados Unidos estão no centro, que é quase a
geografia perfeita, duas costas, dois oceanos, um vizinho norte, um vizinho sul
e o Alasca, vá lá, que faz aquela pontinha com a Rússia,
aliás era russo, não é? Pois o Cesar, com ocasiões financeiras, teve
que vender o Alasca em 1867, que maçada, não é? E, portanto,
na altura houve uma grande discussão americana. Agora, eu acho que era
daqueles grandes ses, não é? Como é que teria sido a Guerra
Fria se o Alasca fosse soviético?
Tinha
tido muito mais interesse ou talvez muito mais mísseis de Cuba em
versão Alasca,
Raquel Vaz Pinto
Claro, a crise dos missais era mesmo ali, que horror! E depois
mostra a geografia da China, que é uma série de vizinhos E
vizinhos bastante problemáticos e complexos. A relação da China com andia é
uma relação complexa e difícil. A relação da China com o Vietnã,
para o Vietnã o seu inimigo histórico é a China. E, portanto,
o que explica porque é que o Vietname, país que tem obviamente
uma relação peculiar com os Estados Unidos, uma história peculiar com os
Estados Unidos, quis ser, que fez tanta força para entrar na tal
parceria transpacífico. Porquê? Porque também há uma necessidade de muitos países ali
à volta de fazer o contrapeso à própria China, porque do ponto
de vista comercial eles são esmagados, quer dizer, eles estão a lidar
com um colosso que está mesmo ali ao lado. Então, esse também
é outro fator interessante, é perceber até que ponto é que, e
essa era a grande razão por detrás deste instrumento da administração Obama,
que era este pacto económico comercial, no fundo, era encontrar uma forma
de fazer frente ao domínio da China em toda esta região.
José Maria Pimentel
Exatamente, Exatamente. Esse é o ponto engraçado do livro, eu só li
o do último março, o outro, que é um livro de divulgação,
mas é interessante por trazer de novo para cima da mesa aquilo
que é fácil de ignorar. E a China, por exemplo, os Estados
Unidos, a boneca enorme que os Estados Unidos têm, geográfica, é uma
coisa incrível! Não,
Raquel Vaz Pinto
aquilo só ajuda a contribuir para aquela ideia que eles têm, que
não é eles têm,
que
alguns deles têm, que são abençoados por Deus. Porque, de facto, Aquela
geografia, não é? E que também obviamente é fruto de uma conquista
territorial absolutamente dramática, não é? Quer
dizer,
aquilo que acontece aos índios, não é? Aquilo que acontece aos mexicanos
e tudo aquilo, quer dizer, é um processo de conquista.
José Maria Pimentel
China parece muito mais a Rússia nesse aspecto, não é? Tem um...
Porque... Aliás, ele chama a atenção... A Rússia tem o que é
o problema ocidente, não é? Tem aquele... Como é que é? Grande
planície... Não sei qual é o nome técnico daquilo, mas é aquela
planície, aquela zona da Europa onde está a Polónia, que vai quase
até a França, se não me engano, e entra ali pelo norte
da Holanda e pelo leste vai quase até Moscou, que é uma
parte quase plana, por onde eles são ultra premiáveis. E a China,
se não tivesse Xinjiang e o Tibete, também estava
Raquel Vaz Pinto
lá e que são para um país, lá está, que tem problemas
de água potável e que necessita imenso de água. E a água
já é hoje em dia e será certamente uma das grandes fontes
de conflito naquela região. Mas, depois, também Podíamos pensar o Afeganistão, embora
neste momento o Afeganistão e a China sejam muito amiguinhos, mas depois
também lá está a própriandia, há conflitos territoriais que ainda não estão
de todo resolvidos, para além do facto de o Laila Lama continuar
a viver em Dharamsala,
no norte
dandia, a relação com o Vietnã é complicada, A Coreia do Norte
é sempre um drama, apesar de todo o entusiasmo nestes últimos tempos.
E depois como se tudo isto não bastasse, a relação com a
Rússia também não é fácil. Os chineses não esqueceram que o Império
Russo, e que o Stalin obviamente não devolveu, ficou com imensos territórios
nos tais tratados desiguais e toda aquela república popular na Mongólia era
a província da Mongólia exterior da China, portanto não é uma vizinhança
fácil e a China gasta muito do seu capital diplomático a gerir
as relações com esta mais de uma dezena de vizinhos, não é?
Depois como se tudo isto não bastasse, tenta expandir-se para o mar,
tem os sul-coreanos, tem os japoneses, tem Taiwan ali, tem aquela marinha
norte-americana a passear ali de um lado para o outro e pronto.
E, portanto, isso também nos ajuda a compreender as tais ansiedades e
como por
todo...
Mesmo quando nós estamos a falar de racionalidade e de linhas de
comunicação abertas, que é aqui fundamental, por vezes um lapso, um encontro
que não corre bem, um tiro que não devia ter saído, sei
lá.
Há uma
série de fatores que podem ser literalmente mal geridos, mal percepcionados e
depois acabam mal.
José Maria Pimentel
Na Guerra Fria teve para acontecer isso, há aquele tipo russo que...
Não sei como é que ele se chama, que recebeu a ordem
de disparar, disparar isto é, de lançar uma bomba nuclear e ele
achou que aquilo era tinha sido um engano e não lançou e
depois achava o erro. Depois o poder central foi a tempo de
reverter aquilo porque tinha haver ali um problema qualquer de comunicação mas
teve, foi graças a uma sorte dessas que de repente não arrebentou
uma guerra nuclear. Bom, eu queria-te só perguntar, vamos terminar, que já
estamos aqui a falar a muito tempo, embora eu tenha imensa pena,
porque havia aqui várias coisas que eu gostava de falar também, e
acabamos por passar até... Eu avancei para a contemporaneidade embora houvesse uma
série de coisas engraçadas a falar sobre a história da China. Queria-te
só perguntar, porque acho que é demasiado interessante para não terminarmos este
tema, em relação a esta questão do futuro das relações China-Estados Unidos,
Estados Unidos sendo o grande poder, eu depois não cheguei a perceber,
tu concordas com a tese do Graham... Como é que ele se
chama? Ellison.
Do Graham Ellison ou discordas? Ou por outra, se tivesses que pronunciar
era a favor de conflito ou a favor de manutenção da paz
no médio prazo?
José Maria Pimentel
vá. Então vamos fazer de outra forma para não teres que estar
a atravessar, eu queria-te era perguntar a tua opinião em relação aos
meus argumentos contra essa tese que eu não cheguei a dar. Um
deles é a questão do nuclear, não em conta disso há azor,
mas pode-se argumentar que haverá uma guerra fria. Há a questão da
integração comercial, obviamente, mas depois também há outros fatores que eu acho
interessantes, sobretudo há... Um fator que para mim é essencial é o
facto de há, obviamente, mais a perder hoje em dia com a
guerra do que havia antes, por causa do nuclear, mas há também
menos a ganhar, ou seja, tirando aqueles estados ali do Golfo, que
de facto têm recursos naturais muito importantes e não sendo de sumir
isto que nós falámos, a questão hídrica e tudo mais, a verdade
é que hoje em dia o principal ativo de um país avançado
como por exemplo Estados Unidos não está nos recursos naturais, sendo eles
muito importantes, mas o principal ativo é o capital humano. O principal
ativo da maior parte das economias desenvolvidas é o capital humano. Portanto,
a guerra no sentido tradicional de conquista de espaço para desapoderar dos
recursos que lá estão, acaba por ficar em segundo plano. Ou seja,
ao fazer o exercício que o Graham Allison faz, eu não li
o livro, mas pelo resumo que ele faz, no fundo ele faz
um levantamento histórico de todas as situações em que houve uma situação
análoga a esta e calcula que na maior parte delas houve guerra,
mas nenhuma dessas situações é comparável à atual, porque neste caso não
há... O território, sendo importante, não tem o peso que tinha historicamente.
Não sei se concordas comigo.
Raquel Vaz Pinto
Não, claro que sim. Eu acho que nós vamos continuar nesta tal
guerra fria, mas claro está, não é de toda uma guerra fria
clássica pelas razões que
nós já
falámos e vamos continuar aqui nesta situação de grande rivalidade. A minha
única preocupação é justamente uma destas situações que são voláteis e que
podem, no fundo, fazer com que se perca o tal controle. Também
porque, e nós começámos aliás o nosso programa com esta ideia, é
verdade que há muita opacidade do lado da China, mas eu também
te confesso que há muito da política externa norte-americana que eu ainda
não sou capaz de compreender.
Dada a atual...
Apesar dos relatórios que são ótimos, aliás o último documento de defesa
e de segurança nacional classificam a China como uma potência revisionista, ou
seja, uma potência que quer alterar parte do status quo porque não
está totalmente satisfeita com ele e essa é uma das grandes questões
do século XXI. É a China uma potência revisionista ou é a
China uma potência revolucionária que quer derrubar esse
status
quo? Eu ficaria mais pela parte revisionista, ou seja, claro que a
China quer mudar e tornar a sua fatia do bolo internacional maior,
de acordo com aquilo que tem sido a sua história, e que
é ir a encontrar, obviamente, essa contestação norte-americana. Mas acho que há
aqui tantos fatores voláteis, diferentes, mas sem dúvida que esse aspecto que
tu falas, a guerra já não é uma guerra clássica, não é?
E por isso é que aqui também entra outro aspecto importante, que
é a ideia da aposta forte da China, por exemplo, entre o
que é a cyber warfare, em
que eles
são absolutamente extraordinários, a espionagem industrial, ou seja, roubar aos outros as
ideias, os produtos, as patentes, não é? Lá está. Porque, de facto,
nesse aspecto os Estados Unidos continuam a ter a capacidade extraordinária de
atrair os brains, ou seja, os cérebros, as ótimas universidades, a liberdade
de investigação, que é fundamental para qualquer investigação, que não existe na
China, há limites a essa liberdade. Esse é outro ponto que, aliás,
muitos autores têm defendido que um dos aspectos que no fundo mina
esta reemergência ou este regresso da China é justamente o facto de
não ter liberdade total e conexão total, ou seja, imagina, redes em
que os cientistas chineses possam estar inseridos e que possam testar, falar
livremente, sem estarem a ser controlados, não é? Que é uma das
regras básicas do conhecimento científico, não é uma regra, mas que é
fundamental.
Sim, claro. Portanto, nesse
aspecto do que tu falavas do capital humano e sobretudo a capacidade
de inovar, é verdade que os recursos naturais não são necessariamente cruciais,
mas repara como a inovação, a tecnologia norte-americana no que diz respeito
ao fracking do gás natural, do gás de xisto e do petróleo
de xisto, tem tido um impacto fortíssimo no crescente desinteresse dos Estados
Unidos pelo Médio Oriente. Exatamente. Portanto, esse também é aqui
José Maria Pimentel
pois claro, pois claro.
Confusa de seguir.
Mas é uma exceção, sendo certo, obviamente, que há muito que se
passa que a pessoa não sabe. Mas há um episódio, agora lembra
me disse, há uma coisa que o Kissinger conta, que é uma
personagem incrível, já tem para aí 95 anos e continua a dar...
Live and kicking.
É incrível, tem que se pôr o áudio em 1.5 de velocidade,
porque ele não fala muito fagar, mas é uma acuidade mental para
um tipo de 95 anos indescritível. Ele estava a contar uma congresso
que eu acho que... A mim matou-me isto, é, saciou-me um bocadinho
a curiosidade que eu tinha em relação ao modo como o poder
político lá funciona, porque apesar de tudo eles têm que ter, pelo
menos ao nível do partido, um diálogo suficiente para ter inteligência coletiva
suficiente para conseguir gerir o país e claramente eles têm. E ele
contava que estava a ter uma reunião com já não sei que
oficial chinês e que do lado dele havia um redator, o que
é a expressão certa, ou seja, alguém que no fundo estava a
tomar as notas da reunião e do lado chinês havia três ou
quatro. E ele perguntou ao interlocutor chinês, agora fiquei muito curioso, porque
é que o senhor traz mais do que uma pessoa para fazer
o trabalho que podia ser feito por um? E ele diz, sabe
que nós quando chegamos lá discutimos as notas para perceber o que
é que todos ouvimos, o que é que retirámos e ia surpreender
se soubesse o número de vezes em que há versões divergentes de
pessoas que estiveram na mesma sala a apontar. E é muito engraçado
isso.
José Maria Pimentel
antes disso, desculpa, eu estou a ser muito chato. Nada, nada, nada.
Mas acho que isto mesmo interessante era só para rematar um tema
que não fechámos à pouco, é a questão da democracia e pegando
numa coisa em que tu tocaste que é a questão da inovação,
porque isso parece um bocadinho cínico porque a verdade é que ninguém
diria que sequer isto pudesse ter acontecido como aconteceu mas a verdade
é que é possível fazer o argumento que a China conseguiu desenvolver-se
de uma maneira que é muito top down ou seja é muito
seguir um cardápio, no fundo a fazer um bocado aquilo que o
Mao queria fazer que é seguir um modelo que já é algo
que outros países já fizeram e eles no fundo têm que replicar,
têm que se tornar eficientes, o mais eficientes possível a fazer aquilo.
E eles conseguiram. Agora, o modelo baseado na inovação é um modelo
muito diferente, em que lá está, é preciso haver interação, é preciso
haver liberdade de expressão, é preciso haver um monte de características que
são muito mais típicas de uma democracia. A tua visão em relação
a isso, e depois podes avançar logo para o tudo, Cid, a
tua visão em relação a isso é que o mais provável é
que eles não hajam uma convergência para uma democracia, mas isso não
seja um impedimento, é que não haja uma convergência para uma democracia
e isso seja um impedimento ao desenvolvimento económico ou, pelo contrário, que
esta necessidade ajude a uma abertura do regime de alguma forma?
Raquel Vaz Pinto
Eu acho que, em primeiro lugar, eu acho talvez um barómetro para
poder responder essa tua pergunta é o Estado de Direito. Ou seja,
percebermos até que ponto é que as leis, as regras que são,
no fundo, que funcionam na China, sejam de facto de fiar,
ou
seja, seja para as empresas, seja para os seus próprios cidadãos.
Raquel Vaz Pinto
Ou seja, não é tu chegares lá e depois na prática as
coisas são... Qualquer momento pode haver uma lei discrecionária ou uma lei
que venha a alterar. Eu acho que a China provavelmente caminhará mais
nesse sentido do que propriamente num caminho democrático-liberal como nós estamos habituados
a ter. Mas é justamente pegando nesta questão da democracia liberal.
Vês, afinal...
Fiz aqui já aponte lindamente, com a qual eu ando muito preocupada
e acho que as nossas necrescias liberais têm sinais claros de que
não estão nada bem de saúde. Eu acho que há desde logo
uma pergunta importante a fazer que é as necrescias liberais sobrevivem sem
prosperidade económica e sem a possibilidade dos pais darem uma vida melhor
aos seus filhos, não é? Ou seja, há aqui uma questão de
fundo e a propósito também destes Trump, destes Le Pen, dos Sirisas,
dos Bolsonaro, dos Brexit, tudo isto que tem vindo a acontecer. Eu
acho que há aqui uma... E sobretudo agora até relacionado com esta
questão da eleição brasileira e o colapso do centro, o colapso dos
moderados ou a menor prevalência dos moderados. E também um bocadinho inspirada
por uma entrevista e uma crónica que li, a primeira do António
Araújo justamente no público no dia 31 de outubro, que no fundo
ele falava sobre esta questão brasileira e chamava a atenção de que
uns aspectos que para ele foi surpreendente é que se parece que
a nossa direita, e isso me preocupa porque eu sou de direita,
é menos liberal do que nós estaríamos à espera, ou seja, há
aqui... Ou do que se julgava. Eu penso que é essa a
expressão correta
do
António, ou seja, eu acho que há aqui uma tentação de alguma
direita em... Temos que aceitar Trump, temos que aceitar Bolsonaro e eu,
muito honestamente, eu não consigo perceber, para mim é incompreensível. Quer dizer,
Trump não é um homem de direita, Trump não é um conservador
e Bolsonaro a mesma conversa e, portanto... É
Raquel Vaz Pinto
que é uma coisa que nós não damos muita atenção, mas que
é a polarização da linguagem. Ou seja, para a direita tudo que
saísse fora da economia de mercado é extrema-esquerda e para a extrema-esquerda
e para a esquerda tudo o que sai fora do que deve
ser o progressista de proibir, proibir e proibir é extrema-direita. E às
tantas ele escreve qualquer coisa como se tudo é fascista nada é
fascista. E portanto, juntando essa à outra, eu gostava aqui de terminar
este nosso programa até porque já já despachei entre aspas o livro
recomendado.
Sim, exatamente.
Eu gostava de vos trazer uns parágrafos do meu amigo Tussidits em
que no fundo ele mostra-nos como uma sociedade se vai polarizando até
chegar à guerra civil E às vezes é interessante nós lermos este
e pensarmos que às vezes os nossos problemas, os nossos dilemas e
aquilo que nós vivemos não é assim tão novo, ou seja, já
houve no passado muitas pessoas que passaram por essas situações. E então
o meu amigo Tucídides diz-nos o seguinte, no fundo descrevendo esta sociedade
que se vai toda ela polarizando, diz ele assim, Mesmo as palavras
tinham de mudar o seu sentido habitual e adaptarem-se ao que se
pensava ser próximo das necessidades. Audácia, já irracional, passou a ser considerada
como coragem fiel. Hesitação prudente, uma refinada cobardia. Moderação, considerada como um
jogo premeditado, sem coragem viril. Ter visão global das coisas correspondia a
ser incompetente em tudo. Avançar freneticamente e de cabeça era considerado digno
de um verdadeiro homem. Querer decidir com segurança não passava de um
pretexto bem-falante para se escusar. O homem radical é sempre de confiança,
o que se lhe opõe é suspeito, quem tem sucesso a conspirar
é esperto, quem descobre uma conspiração é ainda mais esperto. E foi
assim que toda a espécie de iniquidade se implantou devido ao tumulto
revolucionário no mundo helénico. O que era comportamento civilizado, do qual fazia
parte algum sentimento nobre, era objeto de troça e desapareceu, enquanto a
sociedade ficava dividida entre si, em toda e qualquer opinião, sem que
confiasse em ninguém. Não havia forma de congraçar as pessoas, nem palavra
que merecesse crédito, nem juramento que merecesse ser digno de temor. Todas
as fações que eram mais fortes, apoiavam-se no calculismo, dentro da falta
de esperança, numa situação que era para continuar e tomavam precauções para
não serem prejudicadas, em vez de confiarem. Eram, pois, os que careciam
de visão apropriada que levavam ao melhor. Por temerem as suas próprias
deficiências e a capacidade dos seus adversários para que, se não vissem
inferiorizados nos debates e Para evitar que não fossem surpreendidos pela habilidade
e análise dos outros, precipitavam-se com temeridade na ação. A parte contrária
pensava com arrogância que conseguiria saber tudo com antecedência e que, de
alguma forma, era necessário recorrer à ação, mas sim, ao que a
análise dos factos providenciava, foi vítima, frequentemente, de não se ter prevenido.
Por acaso