#37 Miguel Real - “Quais são os Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa?”
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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Desta vez falamos sobre um tema que tem surgido em várias
conversas do podcast, mas que ainda não tinha merecido um episódio autónomo,
a cultura portuguesa. O convidado é Miguel Real, pseudónimo deste escritor, ensaísta
e professor de filosofia e um dos mais prolíficos escritores portugueses. Contei
pelo menos 45 livros no site de uma livraria online. Falámos sobre
o livro que publicou no ano passado, Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa.
Neste momento devem estar a pensar, cultura em que sentido? O termo
realmente é polissémico, mas o autor abraça essa polissemia porque o livro
aborda tanto a cultura enquanto conjunto de valores, costumes, comportamentos de uma
sociedade, com uma chamada alta cultura, isto é, a cultura na associação
do património literário, artístico e científico dessa mesma sociedade ou país, no
caso, Portugal. Foi uma conversa descontraída, em que de maneira nenhuma abordámos
todos os aspectos deste tema, que não tem fim, mas vale muito
a pena porque o Miguel é um poço de conhecimento. Aqui vai.
Miguel, bem-vindo ao podcast. Vamos falar então do... Já falei do seu
livro, dos traços da cultura portuguesa. Traços fundamentais, perdão, da cultura portuguesa.
Que é um livro muito engraçado, quer dizer, toca um tema antigo.
Aliás, é um tema que tem, ainda por cima, o mérito de
ser um tema que cruza uma conversa intelectual e uma conversa de
café. Sem dúvida. Então é um tema que presta-se a isso, o
que é engraçado. E Eu gostei muito do livro.
Obrigado.
Mas achei que fazia sentido gostar pelas partes que eu tinha gostado
menos. Acho que faz sentido. Ah, sim. Claro. No sentido de discutir
porque no fundo é aquilo que me deixou a pensar.
José Maria Pimentel
Claro, não, mas tem que ver, tem que ver sobretudo com a
abordagem. Porque há essencialmente duas coisas ali em relação às quais eu
gostava de falar consigo, porque me deixaram algumas dúvidas. Por um lado,
o tipo de cultura que se está a falar, isto obviamente tem
uma tradição grande, sobretudo ali a partir do meados do século XVIII
e até ao final do século XIX em que grandes intelectuais portugueses
se debruçaram sobre a cultura portuguesa, que depois abarca uma série de
coisas, não é? Quer dizer, cultura no sentido de valores, cultura no
sentido das mentalidades, muito relacionado com o atraso até do país e
muito dado como explicação para uma série de coisas e com uma
carga histórica grande. Mas, paralelamente a esta cultura, a cultura nesta aceção,
há outra aceção deste termo cultura, aliás há várias, é um termo
ultra-polissémico, mas há ainda outra que é cultura num sentido mais transversal,
não alta cultura, neste sentido, das elites, se quisermos, à falta de
melhor palavra mas uma cultura de todos nós, que abarca todas as
ruas. Cultura comum, digamos assim. E no livro, muitas vezes, aquilo que
me pareceu é que o Quinto Império do Padre Torvillera e do
Agostinho da Silva, por exemplo, estavam misturados com... Que é uma coisa
muito mais literária, digamos assim, embora tenha um fundo na nossa cultura
específica, mas é uma coisa mais literária, com, por exemplo, a percepção
que os estrangeiros têm de nós. Os portugueses são generosos, mas são
lentos. São voluntaristas, mas são desorganizados. Estoufado, etc. Eu não sei como
é que Quando o Miguel escreveu o livro, provavelmente teve essa... Não
Miguel Real
há uma cultura portuguesa no sentido ontológico,
é no
sentido de que tal conceito é o coração da cultura portuguesa, é
a identidade portuguesa, vive à base, vive em função e à volta
desse conceito. Por exemplo, o conceito de saudade em Teixeira de Pascoais.
Toda a cultura, seja ela qual for, aproximantes ou afastantes, vive em
função desse centro que é a saudade e ele transforma a saudade
num movimento cultural chamado saudosismo, especificado na renascença portuguesa. Portanto, o livro
defende que não existe esse tipo e que a cultura portuguesa se
foi fazendo foi fazendo ao longo dos séculos e no futuro, no
século, digamos, na segunda metade do século XXI poderá ser muito diferente
daquilo que nós pensamos ser a cultura portuguesa tradicional. A entrada na
Europa trouxe-nos um conjunto da porra, desde o digital, novas modas, novos
estilos, novos comportamentos. Hoje consideramos normal o divórcio, fazia parte de Ziocara
de Alcerejeira, da cultura portuguesa, o casamento tradicional e uma hierarquia vertical
no seio da família, hoje hierarquia no seio da família horizontal, se
quisermos, já não sabemos bem o que é exatamente essa família portuguesa,
portanto, aquele núcleo pai-mãe-filhos-filhas,
Miguel Real
esta hierarquia já está absolutamente destroçada. Portanto, não há uma cultura portuguesa,
há culturas portuguesas, não é? E nós pusemos aqui os traços fundamentais
tentando abarcar, e haveria mais, por exemplo, tenho sido criticado, não pus
o fado. O fado é muito importante para Lisboa, possivelmente para Coimbra
também, mas para as pessoas de Mirandela, do Algarve, do Alentejo, de
Trados de Montes, o Fado é qualquer coisa que de vez em
quando ouvem na telefonia e não sentem essa motivação, claro, de sentido,
nem sequer sabem o que é o bairro da Mouraria e Alfama,
onde terá nascido o Fado, nem há uma certeza absoluta. Portanto, não
é a essência da cultura... O livro não se chama A Essência
da Cultura Portuguesa, mas é uma espécie de... Em função da cultura
e da cultura que Existe em Portugal, não falamos de Espanha, nem
sequer aqui falamos dos Açores e da Madeira, mas
não se
pode falar de tudo, é absolutamente impossível. Sim, sim, faz um bocadinho
o caso do... Uma espécie de caleidoscópico, o livro é uma espécie
de caleidoscópico que brilha para, determina, para muitos sítios e cada capítulo
é uma espécie de um traço que, de certo modo, identifica ou
identificou, tanto identifica a questão da saudade, por exemplo, é considerado mais
nos Açores, por exemplo, do que na Madeira, sabe, um dos tratos
distintivos do primeiro livro dos Açores é Saudades da Terra, que é
do padre Gaspar Fortuoso. É o primeiro livro, logo foi, logo a
palavra saudade aparece e a canção mais, uma das canções mais populares
é justamente a canção da saudade cantada na terceira, na terceira ou
no pico, agora não me lembro, tem uma definição lindíssima que é
a saudade é um pano roxo, ou seja, a saudade é triste.
Roxo é a quaresma, é a parte anterior à morte de Cristo,
é o momento anterior à morte de Cristo, não se pode comer
carne e tal, então as pessoas dos Açores interpretavam século XVII, século
XVIII como o momento mais triste do ano. E então, a saudade
é um pano hoje. É um verso absolutamente magnífico. Não sabemos quem
é o autor desta frase, desta canção. A música sabemos, mas... Até
há várias músicas, mas não o verso. Portanto, Zé Maria, o que
se pretendeu dar foi esse caleidoscópio de traços fundamentais da cultura portuguesa.
Não são traços superficiais. Portanto, é importante o bairro alto, as multidões
de turistas, as multidões de jovens à noite, num bairro alto em
Santos. Será um traço? O bairro alto será um traço fundamental da
cultura portuguesa? Não é.
José Maria Pimentel
E os hábitos estão numa camada acima. Sim, claro. E Aquilo que
o Miguel falava, essa crítica de não ter incluído o fado, eu
podia perfeitamente ter incluído o fado, mas a questão do que é
interessante no fado não é a manifestação em si, mas sim o
que lhe dá origem. E isso está no livro, o lirismo, a
história do fado, não vai sair de casa de ver. Mas este
ponto, essa distinção que o Miguel estava a fazer e este ponto
que eu fazia da psicologia distinguir entre valores e práticas, por exemplo,
nem sei se é esta a tecnologia correta. São comportamentos. Ou comportamentos,
exatamente. Há-de-se comportamentos. Isso leva-me à segunda impressão com que eu tinha
ficado, com que eu fiquei a ler o livro, que lhe gostava
de perguntar, que é, como eu disse, houve uma série de intelectuais
que escreveram sobre este tema de maneiras diferentes e muitas vezes até
dificilmente compatibilizáveis entre si. Mas aquilo que eles não tinham na altura
e que nós temos hoje e que não resolve o problema, mas
na minha opinião traz alguma informação útil, é ciências sociais, no fundo.
Ou seja, hoje é... Sim, claro. Que na altura não existiam ou
existiam na sua infância, num estado embrionário. E nós hoje em dia
temos informação, temos pesquisas, temos uma série de informação que nos permite...
E que para mim é ultra interessante. Há um tipo holandês, que
eu já falei aqui no podcast várias vezes, que é o Gert
Hofstede que é sociólogo e que fez um modelo... Há vários, mas
o modelo dele é o mais conhecido, é aquele que tem mais
validação académica porque depois foi já replicado centenas de vezes e em
contextos diferentes. O modelo dele começou com quatro variáveis, digamos assim, que
lá estavam, variavam entre países. Uma espécie de escala, quatro escalas e
depois acabou por lhes acrescentar mais duas. Neste momento são seis. E
aquilo é muito interessante porque, por exemplo, um exercício muito engraçado de
fazer é a pessoa complementar aquela informação, que é uma informação que
não é definitiva, porque estamos a falar de uma ciência social, portanto
tudo isto é uma enquete, uma série de... E além disso é...
É cambiável no tempo, como o Miguel estava a dizer. Isto tudo
vai evoluindo, não é? E os valores de hoje em dia não
são os valores de antes. Embora ele chama a atenção para que
os valores são muito mais rígidos do que as práticas, lá está,
do que os comportamentos. Sim, sim. Eles são muito mais cambiáveis do
que os valores. Mas, por exemplo, ele tem... Eu estava a fazer
esse exercício só para lhe dizer quando estava a ler o seu
livro. Por exemplo, ele tem uma das dimensões, que é provavelmente a
mais intuitiva de todas, ela se chama distância ao poder, mas pode
ser hierarquização ou qualquer coisa. E isso tem que ver, por exemplo,
desde logo, com o fator de que o Miguel fala, que existe
historicamente em Portugal, que é uma desigualdade social grande. Grande, sempre houve,
desde a segunda metade do século XVI. Exatamente, Desde o alcance do
arquibismo, não é? Pelo menos, não é? Pelo menos essa é uma
tese que o Miguel Alves... Desde que a nossa nobreza se perdeu
lá. E isso gera dois subprodutos, de quem está em cima, uma
espécie de paternalismo e condescendência da evolução em geral, e de quem
está em baixo... Uma espécie de servilismo. Servilismo e inveja. Ah, sim,
sim, inveja.
Sendo que
isto em si mesmo é... Também é alterável.
Claro, claro.
O que eu quero dizer é que nós podemos ser... Podemos fazer
parte de uma elite intelectual, mas não fazer parte de uma elite
económica e vice-versa.
Miguel Real
Se fosse um livro de sociologia teria de haver inquéritos. Esses inquéritos
teriam de ser bem estabelecidos, com base nos paradigmas dos inquéritos, tanto
americanos como portugueses, como europeus, para a cultura. Este livro é um
pouco ao modo do Eduardo Lourenço, que poderíamos chamar a filosofia da
cultura, que por vezes umas universidades têm e outras não têm umas
dão um grande, grande valor, outras não, substituem pela sociologia, substituem hoje
por qualquer coisa que está na moda desde a década de 70,
aqueles estudos culturais E eu não pretendi fazer isso, até porque não...
Estou ligado ao CLEPUL, que é a Faculdade de Letras, que faz
parte da Faculdade de Letras, e portanto, investigo aí nesse sentido. Mas,
e portanto, é um livro e o meu curso também, talvez seja
importante saber, é filosofia. E eu fui professor de filosofia durante 40
anos no ensino secundário,
décimo
segundo ano. Portanto, há aqui uma conformação mental, ou uma configuração mental,
que eu não dei de fora, mesmo que se quisesse, se calhar
ela não saía. E que eu tenho algum orgulho nisso.
Miguel Real
Não, mas, por exemplo, Eduardo Lorenz é acusado, pela Boa Aventura de
Sousa Santos, pela Escola de Sociologia e Economia de Coimbra, de se
passear na literatura. Muito acusado é acusado pela Universidade Nova, sobretudo pela
Bragança de Miranda, ele está na Nova e está na Lusófona, não
sei, acho que já saiu, mas estava nos dois lados, de se
basear na literatura. É acusado pela Universidade do Minho de justamente fazer
um retrato de Portugal, o labirinto da saudade, sobretudo fundado numa evolução
da própria literatura. Não é crível, totalmente cabal, que a literatura represente
a sociedade. Claro. Eu teria de... Dizem eles, e se calhar com
razão, mas o Eduardo escreve de maneira tão maravilhosa, e encontra conceitos
tão maravilhosos, que Eu também dou razão a ele. Querível que a
música também refleta, que a ciência também refleta, que a arte em
geral agora reflete e a literatura também. E, sobretudo, se ele quisesse
fazer um retrato de Portugal, deveria centrar-se, e eu e qualquer outra
pessoa, dizem eles em geral, devia centrar-se na educação e nas qualificações
que os portugueses vão tendo. Ele nunca fala em alfabetismo, isso é
um dado para estes sociólogos, é um dado terrivelmente importante. Nunca fala
da mulher fora do mercado de trabalho. No século XIX, quando a
mulher, não só na Inglaterra, mas também na Alemanha, na França, e
depois, a partir da Primeira Guerra Mundial, entra totalmente no mercado de
trabalho. A mulher, tanto fora do mercado de trabalho, está totalmente dependente
da família, da vida doméstica, do marido, até depois dos filhos, etc.
Portanto, todos estes elementos sociológicos deveriam fazer outro retrato de Portugal. Eu
acho que não. Eu acho que não. E ele também acha que
não, mas quer dizer, neste caso, se me permite, eu não tenho
nenhuma procuração dele, mas, de certo modo, defendo. Acho que a literatura
é uma espécie de imagem ao espelho de Portugal, que sintetiza. Basta
ler o Camilo, basta ler o Eça de Queiroz, basta ler o
Saramago quando falou de Portugal, a partir do evangelho segundo Jesus Cristo,
ele deixa de falar de Portugal, só depois tem uma coisinha pequenina
na viagem de elefante, basta ler o grande retrato que O Lobo
Antunes está a fazer de Portugal, hoje, bom, Portugal década de 80
para cá, o Portugal europeu e a dissolução, não é a dissolução,
é a contaminação espúria das instituições pelos novos ricos, pelos novos letrados,
pela nova mulher que agora trabalha e é independente. Portanto, o Abandoned
faz isso e a Lídia Jorge também faz isso com muito
Miguel Real
A questão dos estrangeirados, a questão do quinto império. Nós só analisamos,
por exemplo, ou da Maria, deixa-me só dizer isto, talvez para o
ouvinte, o futuro ouvinte, talvez perceba imediatamente. O Ser Amago era mais,
o Ser Amago atinge o comunismo e desenvolve as teses dele nos
romances sobre o comunismo, não é sobre o comunismo que ele nunca
fala de comunismo nos romances, é sobre a fraternidade entre as pessoas,
a partir de um sub-extracto que é o sub-extracto do Quinto Império.
O Quinto Império é, segundo o padre de Tornavieira, segundo o Bandarra,
e só aparece quando a desigualdade é total, a seguir aos fumes
dandia, digamos assim, na segunda metade do século XVI, é viver num
país justo, viver num país com abastança, hoje diríamos prosperidade, o padre
António Vera diz abastança. Justiça quer dizer qualquer coisa como também ter
aquilo que chamamos hoje de segurança social na reforma, o Estado garantir
a educação dos filhos, o Estado garantir o enterro, o hospital para
os velhos, o hospital garantir o enterro quando se morte, Hoje está
garantido até pelas câmaras e pelas misericórdias, mas no tempo do padre
António Vieira, que não tivesse dinheiro, não era enterrado. Aliás, era enterrado
numa mortalha que era um pano velho e era atirado por uma
vala comum, onde já estavam 20 e a câmara passava lá, não
me lembro agora, mas quando era no meio da cidade, e era
o caso do Poço dos Negros, passava o sábado e atirava cal
para não
cheirar e para não infestar, etc. Portanto, o Quinto Império, para o
padre António Vieira, sob a grande bênção de Cristo é a mesma
coisa que o comunismo para o Saramago, é a mesma coisa que
a idade do Espírito Santo do Agostinho da Silva na prisão. Foi
isso que eu tentei dizer. Não sei se está... Ou seja, há
um substrato de caráter, de necessidade absoluta de uma justiça social fortíssima,
de uma igualdade. E porquê? E isso aparece quando? Aparece no século
XVI, quando os portugueses olham para si, vêm chegar as naus dandia,
descarregar as sacas na casa dandia, de malagueta, de cravinho, canela, etc,
etc, e depois serem pesadas e depois serem embarcadas, irem para Bruges,
Bruges, Rates de Borda, onde eram distribuídas pela obra inteira. Ficavam umas
migalhas cá e essas migalhas eram muitas vezes usadas pelos, eram sobretudo
usadas pelos pequenos comerciantes, digamos assim, e não pela população. Até a
população não atingia essas migalhas. Ora, isso acontece de uma maneira que
vai fazer com que os grandes pensadores portugueses tenham uma afeição utópica,
uma afeição utópica. Chamamos hoje utopia, naquela altura não se chamava. O
padre António Vieira, o Pessoa, o quinto império do Pessoa, esta afeição
utópica de um conhecimento absoluto tentado através da gnose, isto é, de
uma iniciação sófica que ele teria, ou teria tido, disse ele, diretamente
de mestre a discípulo, portanto ele nem estava numa ordem, um grande
mestre. Uns dizem que é o Crowley, que era o mago que
tinha vindo da Inglaterra, da Escócia. Outros falam noutros da cavalaria espiritual,
etc. Porquê é que Sampaio Bruno escreve um livro a dizer que
é o Cavaleiros do Amor, que só foi editado em 1960, portanto
ele morreu em 15, a dizer justamente que os grandes pensadores e
atores, atores no sentido de ação, participantes portugueses, são todos aqueles que
defendem o amor. Camões foi o principal. Amor é o contrário de,
diz ele, dentro de uma linha que o Brown, David Brown, também
aceitaria hoje, é o contrário de Roma. Roma, pelo contrário, é o
demónio. Amor, a religião do amor, seria a grande religião dos portugueses.
O que eu me perguntei foi, porquê é que Vamos para a
França e as pessoas... A França, a Inglaterra, tem muitos autores que
defendem a Fifth Monarchy, que é uma espécie de Quinto Império nosso,
não é?
Miguel Real
Nós começamos com o Bandarra. Sim. Portanto, o Bandarra terá morrido, terá...
Ele foi preso em 1540. Não se sabe ainda hoje porquê, é
absolvido, é absolvido, volta para a guarda, absolvido aqui em Lisboa, volta
para a guarda, desaparece, em 70 aparece uma carta, uma nota do
Bispo da Guarda a falar nele, mas no bom sentido, pois não
se sabe mais nele. Mas A 5 monarquia na Inglaterra e todos
os movimentos, digamos, místicos e utópicos franceses ligados àquilo que nós chamamos
o 5º Império aqui, são marginais à cultura. São muito marginais. Portanto,
existem bastantes
e
até muitos deles têm como origem os cátaros, que é anterior a
isto tudo, mas são marginais à cultura. O José Maria não consegue
definir a cultura inglesa, ou britânica em geral, ou a cultura francesa,
ou a cultura italiana, que encontra no nome da Rosa, muito bem
explicado, do Umberto Eco, através desta constante mítica. No entanto, os grandes
autores portugueses, tirando o Ésser de Kérosque, mas mesmo assim o Ésser
de Kérosque, mesmo assim o Ésser de Kérosque, depois da morte dele
foi publicado um livro, chama-se Lendas dos Santos, que reúne ele na
última década de vida, pensa até que nos últimos cinco anos de
vida, ele andou a escrever sobre os santos e escreveu um conto,
chamamos de conto hoje, uma narrativa ainda, sei lá, 50 páginas talvez,
que é o São Cristóvão. O São Cristóvão é o retrato perfeito
do homem do Quinto Império. Aquilo que tudo o que tem dá
ao outro, ainda por cima, sacrifica pelo outro e durante certos momentos
é castigado pelo outro. Ele põe-se à frente dos pobres e luta
pelos pobres, etc. Quer dizer, é uma coisa espantosa nós atravessarmos a
cultura portuguesa e constatarmos que desde Alcácer Cabir, ou desde a segunda
metade do século XVI, há qualquer coisa que é absolutamente constante. E
essa constante é um desejo de igualdade, de solidariedade, de justiça, de
abastança, como diz o padre da história
José Maria Pimentel
vieja. Então, mas, Miguel, eu acho... Eu acho este exercício ultra interessante,
mas a minha tentação logo é... Sim, sim,
diga, diga.
É ir a tentar descer mais a fundo, no fundo ir à
raiz do... Não ao fenómeno, lá está. Lá está, claro. Mas ao
que está na origem dele e tentar mais ou menos descascá-lo. E
é certo que esse é um fenómeno literário, mas o Miguel argumenta,
e eu acho que faz sentido, que tem um peso total na
nossa produção literária, que isso tem que ser o reflexo de uma
preocupação que está atrás disso. Agora, aquilo que me parece, a minha
intuição em relação ao fenómeno é que o fenómeno não é unívoco,
ele tem mais do que uma característica. Por exemplo, uma manifestação do
Quinto Império, o nome que queremos dar a essa utopia, é harmonia,
é uma espécie de harmonia social. Essa é uma manifestação. Mas há
outra manifestação que é diferente dessa, que é uma espécie de grandeza
perdida. São duas manifestações, são coisas diferentes. Ela
José Maria Pimentel
Além disso, isso leva a outra questão que é sempre interessante discutir,
que é... E que está muito ligada a uma coisa que o
Miguel fala, que é esta espécie de bipolaridade entre uma sensação de
grandeza e uma sensação de inferioridade que é o facto de quão
grandes fomos nós de facto durante os descobrimentos, por exemplo. Todos nós,
quer dizer, nós somos gerações diferentes mas eu lembro-me na escola a
pessoa é mais ou menos doutrinada em relação a uma espécie de...
Não, e eu...
E era uma
coisa... Pá, bem, no seu caso ainda mais, não é? No meu
caso já é um bocadinho mais... Já é mais... No
Miguel Real
Até acho que escrevi isso aqui, mas não me lembro bem. Se
não tivesse havido descobrimentos, nós éramos hoje, tínhamos sido ao longo da
história, uma espécie de galiza, maior, uma galiza grande, a galiza é
mais pequena do que nós, sempre local de partida de imigração, local
de pobreza, local de alguma pesca. Nem sequer sabemos, provavelmente teríamos ficado
Miguel Real
Não, não, não. O Saramago diz que o Saramago era ibeirista, o
professor Oliveira Marques, um grande historiador, era ibeirista.
Outros,
agora, o Oliveira Martins era de certo modo, embora só do ponto
de vista cultural, um iberista também, e eles achavam que Portugal estaria
mais seguro, agora com a Europa isso já não se põe, porque
entrámos os dois para a Europa. O Teófilo Braga era iberista, e
se agora começar a pensar, para aí dizíamos para aí vinte que
eram ibéricos. Claro, era mais seguro, mais próspero, a parte da economia
é importante, e até mais cultos, digamos, seríamos mais cultos se tivéssemos
pertencido a Espanha
José Maria Pimentel
desde há muito tempo. E a questão toda a questão do nacionalismo
é uma coisa que é um bocadinho difícil acho que o personagem
da nossa história quando é que surge? Porque lá está o Miguel
estava a dizer que Elas Barrota foi qualificada e é verdade, mas
o nacionalismo na acessão atual é uma coisa que vem do Estado
na Sombra então é uma coisa que surge muito mais à frente.
Sim, não sei o que. Mas ainda há, Mas havia lives disso,
não é? A própria nossa independência, o 1640, a recuperação da independência,
é ali uma coisa que, por um lado, tem os lives desse
nacionalismo, mas por outro... D. João IV afirma
Miguel Real
onde não deixava de existir o interesse, porque ele tinha sido, ele,
D. João IV, tinha sido convocado para… agora não me lembro, mas
tinha sido convocado para uma luta, umas batalhas, uma conquista, uma defesa,
não me lembro, mas não era para a Cataluña, ou penso que
não era para a Cataluña, com quem Madrid estava em guerra e
teria que se apresentar a um tribunal de tipo, se não, se
desobedecesse ao rei, possivelmente as suas terras e o palácio seriam confiscados,
deixaria de ter o título de Duque, então ele, digamos assim, que
a Espanha ou Madrid o pôs entre a espada e a parede.
E o patriotismo dele não se nega de modo algum, não é?
Mas ele foi um bocado relutante, não é? Ele foi relutante,
Miguel Real
do... O país inteiro, não, os holandeses, mas há uma certa elite
onde se inclui bastante das casas estrangeiras que estavam cá, ligadas a
banhos e companhias de comércio, que lucraram bastante. Por exemplo, todo o
bairro Santa Catarina, que estamos em Lisboa, o bairro Santa Catarina, aquilo
que vai do Chiado até ao fundo da calçada do Combro, foi
praticamente feito pelos capitães dandia, vitoriosos, que enriqueceram nandia, não se sabe
como, não interessa, que fizeram aquelas casas num bairro que estava a
nascer, século XVI, ainda estava a nascer, portanto Santa Catarina é no
fundo dessa colina do bairro Alto, e portanto temos de dizer que
todos esses capitães dandia que lá, que fizeram essas casas e algumas
delas eram solares, já não existem, hoje são os prédios, é Caixa
de Alto Podes, é a Biblioteca Camões, etc. Os marinheiros pobres foram
atirados para a pica, que é a seguir, só que
Miguel Real
encosta que vai até à Rua da Boa Vista, que hoje sobe
e desce um elétrico, foram tirados, havia duas bicas, eram terrenos enlameados,
portanto, sempre com água a correr, e foram tirados para aí, foram
cedidos terrenos aí, eles fizeram umas choces, umas cabeiras, não tinham nada
a ver com os outros. Ou seja, isso vê-se pelo Luís Vicente.
O, portanto, nunca tão cosmopolita e e rico, próspero Portugal foi, sobretudo
Lisboa, certamente o Porto também, certamente Coimbra, porque tinha os estudantes e
recebeu os estudantes, começou então a receber os estudantes do Império, a
Coimbra, desloca a Coimbra, portanto a Universidade desloca-se de Lisboa para Coimbra
nessa altura e há uma consciência de que podemos ser a Europa
e até podemos ser cabeça da Europa, como diz o Luís de
Camões, mais tarde também, eu pessoa, quer dizer, há uma consciência de
que antes dos portugueses, o mapa do globo terrestre, o mapa, desculpe,
não era do globo, o mapa de resto era um e a
partir dos portugueses, sobretudo com o mapa de Cantino, que é de
702, vê-se perfeitamente que o mapa do mundo é diferente. Foram os
portugueses os primeiros, sem dúvida os espanhóis foram no alcance, sobretudo a
partir de Madrid e de Andalusia, sem dúvida, e depois é que
vêm os franceses, vêm os franceses, depois vêm os holandeses, depois vêm
os ingleses, que seguem já na pelgada dos portugueses. Sigo agora um
livro muito interessante, muito interessante,
do
Onésimo, Vittorio Almeida, que é o Século dos Predígeos. Há muitos livros
sobre o século XVI, não é? No século dos prodígios, ele tenta
ver... O prodígios aqui tem a ver com acontecimentos que se passaram
no século XVI por iniciativa dos portugueses e dos descobrimentos que nunca
se tinham passado antes. É um livro muito interessante, lê-se muito bem
e mostra que os portugueses de facto devem orgulhar-se e não têm
que ter vergonha de terem feito o que fizeram, embora, como sabemos,
há uma polémica grande sobre o Museu
Miguel Real
Não temos de ter vergonha daquilo que os nossos tetravós fizeram. Temos
de nos orgulhar do que fizeram de bem e temos que reprovar
o que fizeram de mal, evidentemente. O Diogo do Couto tem um
livro que é o Saudade Prática, onde mostra todas as maneiras de
roubar nandia, todas as maneiras e põe lá os nomes também, muitos
nomes lá põe. Não vamos dizer que todos os que foram para
andia roubaram. Há pelo menos o Luís de Camões, veio tão pobre,
tão pobre, tão pobre, dificilmente terá roubado, embora ele tenha sido preso,
por ter roubado o cofre dos defuntos, defuntos e ausentes de Macau,
quer dizer, daqueles que morriam ou que desapareciam no mar, então havia
um cofre que tentava, havia um dinheiro que tentava, não era cofre,
desculpa, um fundo que tentava suprir as viúvas, os órfãos etc. Esse
dinheiro, ele diz que desapareceu, que ele sofreu uma naufragem na forja
do Mekong, mas o Francisco Perretti, que era o governador de Goa,
acusa-o de ter ficado com o dinheiro. O facto é que ele
chegou para o Perre, viveu um pouco à custa da mãe, enquanto
não recebeu a tensa. Depois, mesmo depois de morrer, a mãe continuou
viva e recebeu, por sua vez, a
Miguel Real
E não é por acaso que o nosso poeta, nosso maior poeta,
digamos assim, tentou participar no Estado. Era muito fugoso e apaixonado e
foi afastado do Estado por esses motivos, penso que não foi por
motivos de classe social. Ele era um escudeiro pobre, mas tinha direito
a estar dentro da corte e dentro da corte podia ir subindo,
como muitos outros a subiram. Pós-Ark, ele era muito atraído pelas senhoras
e acabou por dar-se mal. Não sabemos ainda bem porque é que
ele foi para a celta. Possivelmente foi com essas ilusões de amor,
depois ficou sem o tal olho e acaba por atravessar o mar
oceano, como eles diziam, acaba por viver, salvou-a 17 anos nandia e
voltar pobre, tanto como a Maria Sá, acabou em Odioco do Coto
e outros, foi encontrar-lo na ilha de Moçambique sem dinheiro para pagar
o resto da viagem e o capitão do navio o pôs fora
porque ele tinha dito que quando chegasse a Moçambique dava-lhe o dinheiro
e ele não lhe o deu. Dinheiro que ele já devia a
ele, ele pô-lo fora. E nessa altura, tem tanto azar que até
lhe roubam um livro que ele teria, que não sabemos, desconhecemos onde
é que está, já não deve existir, que era o Parnassus. É
um conjunto, Parnassus é onde... Os sítios onde estão os intellectuais. E,
portanto, seria um conjunto de ideias filosóficas e poéticas, etc. Que ele
ia recolhendo ao longo da vida e esse livro desapareceu. Sim,
Miguel Real
Claro. A diferença social é tão forte em Portugal, continua a ser.
Hoje ia discutir se baixavam o ordenado dos gestores para... Foi proposta
do Bloco de Esquerda e eu ouvi na rádio agora que o
PS já disse que não e o CDS e o PSD. A
diferença social e econômica, não é? É tão financeira, mesmo dinheiro no
banco nós temos para educar os nossos filhos para comprar a roupa,
etc. A riqueza. A riqueza, exatamente. A diferença social é tão marcante
e é tão intransponível, quer dizer, eu não consigo atingir o nível
de riqueza suficiente para viver normalmente, tanto sem sacrifícios, que só há
duas soluções. Verdadeiramente há três. Uma é emigrar. Portugal é um país
de emigração desde a segunda metade do século XVI. Tudo começa na
segunda metade do século XVI. Eu tenho pena de não poder fazer
um estudo, há vários estudos, do professor Silva Dias e outros, não
é? Mas não estudos históricos, estudos históricos basta ir lá e já
sabemos o que é que lá está. Estudos mesmo de personalidade do
português, estudos antropológicos, digamos assim. E para isso é preciso consultar os
livros mais diversos, desde história, navegadores, a igreja, etc. Portanto, não é
emigrar, puro e simplesmente. E nós emigramos desde essa altura. Desabramos para
emigrar para andia, para o Brasil, para os Açores, que era despovoada,
enfim, para o império e quando o império já não nos... Já
no império aconteceu a mesma e, portanto, esta diferença social era tão
abissal e tão intransponível, tão transponível, que Os Açores e a Madeira
foram distribuídos pelos primeiros povoadores, todos os que chegaram a seguir já
não tinham mais terra, portanto, estava distribuído. Eu ia para lá, vinha
das beiras, vinha do Alentejo, ia para lá para tentar, enfim, subir
na vida, chegava lá, tinha que ser feitor daqueles que já lá
estavam. Alfredo Fiancapo tinha que ser um lavrador que trabalhava para eles,
acabava por emigrar para o Brasil. Aqui aparece o fator também, o
fator dos termores de terra, que os ajudava, vamos embora daqui, não
queremos mais nada, e o D. João V, que chegou a dar
quatro ou oito cruzados a cada um deles que iria para o
Brasil, que era para povoar o Brasil. Portanto, este é um fator,
eu não consigo, por mais que trabalhe, eu trabalho 8 horas, 6
horas, 12 horas por dia, eu até tenho 2 empregos, tanto trabalho
no restaurante de dia, à noite vou para um bar, trabalho até
às duas, levanto-me às sete, etc, etc, etc. O que é um
facto é que a vida social, económica portuguesa é de tal modo
que se eu tiver dois, três filhos, eu não tenho dinheiro suficiente,
eu sei de quem estou a falar, são pessoas de Sintra, se
eles têm uma diferença de dois, três anos, e tal, podem estar
na universidade ao mesmo tempo. E se tiverem que mudar de localidade,
isto é, um foi para a Cuvier, ou estuda o que está
na Cuvier, ou estuda o que tem em Lisboa, porque a Cuvier
acaba por ser mais caro, porque está deslocado, não é? Está deslocado.
Bem, a passividade vem desta consciência de cada pai de família, portanto
não estamos a falar de teorias, cada pai de família, da impossibilidade
de ter pão sobre a mesa, como dizia o Eça, ter pão
sobre a mesa para os seus filhos, ter uma escola para os
seus filhos, ter um trabalho para os seus filhos e ter uma
casa para viver e ter prosperidade. Poder fazer o que faziam os
outros povos, sobretudo os povos da Europa, que nós desde o século
XVI, XVII, começámos a ver-se uma separação total. Os povos avançavam. A
Holanda, que era um país mais pequeno do que o nosso, era,
é, um país mais pequeno do que o nosso. Muitos dos judeus
que estavam lá tinham vindo de Portugal e de Espanha e eram
mais ricos. Porquê? E a resposta do Cavaleiro de Oliveira é taxativa.
O rei tem o monopólio dandia. Na Holanda ninguém tem monopólios, cada
holandês, sobretudo a Amsterdão, mas cada holandês vai ao porto e paga
um tanto, põe lá 100 florinhos, eu não sei se florinho no
século XII era destino, põe 100 florinhos E arrisca, quer dizer, quando
o barco, o galeão, voltar com canela e pimenta, aqueles 100 transformam-se
em 150, não é? Eu faço isto por ano, todos os anos
faço. No segundo ano perco, no terceiro mais ganho. E mais, Como
eu não quero ganhar, desculpe, como eu não quero perder, o que
é normal, vai-se fazer uma guilda, uma companhia de seguros, em que
se eu perder, perdemos os dois. Ou seja, se é 50 que
eu perco, a companhia dá-me 25 e ela perde 25 também. Isso
foi na Holanda, no século XVI. Até a própria Câmara, Câmara de
Amsterdão, investia, aliás foi a câmara que fez a companhia das índias
ocidentais, para o açúcar. Este é o primeiro grande traço que é,
não há mobilidade social em Portugal. Claro que eu vou mostrar o
século XVI, XVII, XVIII. Hoje posso fazer um inquérito sociológico e até
económico e mostrar que não tem sentido um banco que existe para
os seus mutualistas, os administradores ganharem tanto como um banco privado, ou
ganharem mais aliás, de um banco privado. Ora, depois, e portanto a
consequência disto é a passividade. Não vale a pena eu continuar a
trabalhar, também não vou pôr a chorar, então Eu não vou pôr
a chorar a vida inteira, então eu torno-me relativamente servil para poder
agradar ao meu senhorio, para poder agradar ao meu patrão, para poder
agradar ao meu político e deposito as esperanças, até ao século XIX,
deposito as esperanças na Igreja em Deus. No século XX nasceu o
novo Dom Sebastião, que é Nossa Senhora de Fátima, deposito as esperanças
na Nossa Senhora de Fátima. E mesmo assim, como não profio na
virgem se não correr, eu compro tatalote ou
José Maria Pimentel
Exatamente. No fundo é, há uma ortodoxia que condena tudo o que
é a ortodoxia. Exatamente. Depois cessa a ortodoxia a mudar. Mas muda
para o oposto. Torna-se a ortodoxia. Torna-se. A antiga ortodoxia passa a
ser ortodoxia e nós vimos isso com os jesuítas, vimos isso com
os republicanos, com os comunistas, depois ao contrário, a igreja antes estava
de um lado e passou a estar do outro e mesmo hoje
em dia no debate político vê-se muito isso, uma espécie de, eu
costumo chamar isso intolerância face à ambiguidade, ou seja, ambiguidade no sentido
de para eu estar convicto do que eu estou a dizer o
outro tem que ser
o contrário de mim.
O outro tem que estar absolutamente errado, o que não é necessariamente
verdade, ou seja, eu posso estar convicto do que estou a dizer
e no entanto, assumir que o que o Miguel está a dizer
pode também estar parcialmente certo. Claro, claro, exato. E esta intolerância com
essa ambigüidade gera essa culturofagia e esse desconforto com a convivência de
opiniões diferentes. Por isso é que havia aquele ponto do... Há dois
fenómenos interessantes em relação a isto. Um deles, que ambos vêm no
livro, é aquela questão, e o Miguel fala disso a propósito do
Felizmente está ao luar, do Luís de Taumonteiro, que é aquela questão
de... Ali o herói, no fundo, o herói da peça é alguém
que parece ser o herói do povo, mas que depois é derrubado
e ninguém faz nada a favor ou impedir. E há um fenómeno
que nós temos muito ao longo da nossa história.
José Maria Pimentel
vai a todas as portas e ninguém a faz. Exatamente. E há
um fenómeno que nós temos na nossa história, tivemos-lo pelo menos de
forma absolutamente distinta no fim da monarquia e no fim do Estado
Novo, que é, no dia anterior, parece não haver um particular descontentamento,
obviamente, há uma fação descontente, mas a generalidade da população faz a
sua vida normalmente e, portanto, está, de certa forma, implicitamente com a
situação, mas a situação muda, o regime parece que cai mais ou
menos de podre. Sim, claro, aí vem tudo para a rua. E
a partir desse momento as pessoas já estão com a situação do
dia a seguir. Já estão, exatamente. É uma espécie de receio das
pessoas pronunciarem. E o José Gil fala daquela questão do... Como é
que ele diz o... O medo, não ter medo, não é?
Não inscrição.
Não inscrição, exatamente. Não inscrição.
Miguel Real
mensagem está a passar, quer dizer, a Europa, uma das grandes virtudes
ou um dos grandes benefícios que a Europa nos trouxe foi trazer
um conceito, tanto a culturofagia, por supõem que há um conceito que
não existe, que é o conceito de tolerância e também o conceito
de liberdade. Portanto, a tolerância faz-se em função de um campo político
e social geral, que é o da liberdade, em que se autotoleram,
se toleram mutuamente as diversas partes. A Europa, penso que, digamos, amaciou
esse canibalismo cultural, mas ela própria, ela própria, Europa, está a desenvolver
um novo canibalismo cultural que pode vir ainda a fete anos. Portanto,
não é nada que esteja absolutamente firmado e resolvido. Pode voltar. Olha
o Brasil, fui muitas vezes ao Brasil, o Brasil sobretudo as cidades,
claro, não o interior. Nessas cidade, recantos parecem Nova Iorque, parecem Londres,
outros parecem aldeias portuguesas, claro. Mas agora, com este novo candidato a
Presidente da República, que está à frente das eleições, não lembro o
nome
Miguel Real
Bolsonaro, exato, Bolsonaro, pode ser um regresso, um retorno terrível a situações
de alta cultura canibalista. Todos aqueles que não estão no meu campo
são heterodoxos e, portanto, põe um sapau que eu hei de chegar
lá". Aquela frase dele, eu até me arrepiei, quer dizer, quando eu
li no jornal, li no jornal, por supónico é uma frase dele,
que ele teria dito que o problema do regime anterior foi torturar
e não matar. Isso quando ele se referiu à antiga Presidente da
República, que foi torturada, mas ela devia ter sido matada, ou morta,
não é? Morta e pronto. O
José Maria Pimentel
eu, em Portugal, até acho que mais do que... Eu acho que
a nossa versão... Eu gosto dessa expressão, mas, se calhar, interpreto-a até
de uma maneira ligeiramente diferente, a questão da culturalfagia ou canibalismo cultural.
Porque não é... É certo que houve um período em que isso
era muito mais acirrado, quando tivemos a Inquisição, o Max Pomal fez
coisas inacreditáveis, mas aquilo que eu acho, o fenómeno que eu acho
que existe hoje em dia, para mim está mais próximo até dessa
questão da não inscrição do que o José Gil falava. Continuamos com
o método. Não tem a ver tanto com haver posições extremadas e
cada uma a querer derrubar a outra, mas mais quase se calharem,
em resposta a um medo de que isso ocorra, uma espécie de
rasura pela média de mínimo denominador comum. Aquele exemplo dos gelos tem
muita piada, não é? O facto de nós não termos tido, como
os Estados Unidos tiveram o Vietnâmia e França teve o... Já não
sei qual era, por causa das guerras... Guerra de África, se eu
não me engano. Exatamente, da Argélia. E nós Não tivemos um fenómeno
idêntico com a Guerra Colonial. É certo que houve coisas, até hoje
em dia estive a ler os cursos de Judas do Globo Antunes,
que é exatamente sobre a Guerra Colonial, mas não foi um fenómeno.
E hoje em dia observa-se muito isso. Observa-se... A propósito de uma
série de coisas. Estou-me a lembrar, no outro dia, tive uma conversa
destas com o Tiago Cavaco, que é pastor protestante. E estávamos a
falar sobre religião, e ele estava a chamar a atenção para uma
coisa que me agradou, porque é exatamente o que eu penso, que
em Portugal há... Esse é um tema que é muito pouco falado,
há uma espécie de compromisso tácito de que os crentes e os
não-crentes respeitam-se mutuamente e a coisa só não fala. Ambos dizem umas
coisas simpáticas. Isso é agora. É agora, exatamente. Os protestantes sofreram... Claro,
é agora, justamente. Como minoria, sofreram imenso. É isso aí agora. É
agora. Os protestantes sofreram,
Miguel Real
Era, exatamente. A partir de 1820 a nova carta constitucional dá-lhes direitos
a exprimirem-se livremente, mas diz logo no artigo seguinte que a religião
do povo português é a religião católica e que ofender qualquer dos
símbolos da Igreja Católica, conduz imediatamente à aparição. Portanto, a religião católica,
não é cristã, por não é o problema. E o Robert Cowley,
que é um pastor e médico protestante da Igreja Escocesa, que esteve
na Madeira, e a Madeira já tinha uma igreja anglicana, portanto tinha
um templo anglicano, mas quem é que ia para o templo anglicano?
Eram só os ingleses que lá viviam, porque a Madeira foi, durante
muito tempo, uma espécie de quarentena dos ingleses que vinham dandia, para
não irem diretamente com doenças, possíveis doenças, micróbios, como eles diziam, bactérias,
vírus, infestar a Inglaterra, ficavam ali durante algum tempo, tinham lá um
conjunto de médicos e tudo aquilo, e tinha uma igrejinha, mas só
iam os ingleses lá, iam. E o Roberto Callas chega, vai para
o monte, olha e diz, este povo é um povo sacrificado e
eu não consigo perceber, este povo é um povo analfabeto, este povo
não tem hospitais e faz hospitais de campanha e começa a dar
aulas de manhã e à noite, de manhã às crianças e à
noite E nos hospitais consegue mandar vir remédios da Escócia e de
Londres, lá da congregação religiosa dela, e distribui os remédios gratuitamente. Foi
logo atacado pelo bispo, logo pelo governador. Foi... Atacaram a casa dele,
atacaram todos os maderenses que o apoiavam, ele teve que fugir, a
casa foi incendiada, antes foi preso, é uma longa história que não
é longo de 5 anos, teve que fugir para um barco vestido
mulher, senão não chegava lá vivo e os 2 a 5 mil
não sabe bem congregacionistas da congregação dele foram postos num barco, foram
postos em barcos e enviados para o Haiti.
Miguel Real
E mais, só a seguir ao 25 de abril, foram os protestantes,
foram perseguidos pela igreja e pelo Estado, durante todo o regime do
Estado Novo, os seus representantes maiores, ano sim, ano não, Não era
prisão no sentido como se fosse um malfeitor, mas eram interrogados, iam
a tribunal, etc. Portanto, e eram identificados, imagino, quando iam para a
prisão, como me disseram, não sei, eram postos nas salas dos homossexuais,
eram equiparados, os homossexuais eram presos, andavam à noite na rua e
tal, ao pé dos quartéis, lá ia a polícia e prendia-os. Eram
portos, portanto. Os protestantes, com esta história do canibalismo cultural, os protestantes,
as diversas congregações protestantes sofreram imenso. É só a seguir ao 25
de abril que há um espaço de liberdade religiosa, não é?
José Maria Pimentel
Sim, mas isso é engraçado, sabe que essa questão do... Tudo isto
que nós estamos a falar, uma das dimensões daquele social que eu
falava no início, que é uma das seis, para além da outra
que eu falei, que é a aversão à incerteza, que eu cito
sempre porque é aquela em que nós claramente mais nos distinguimos dos
outros países. Está relacionada com a necessidade de ter códigos de valores
rígidos, mesmo que apenas rígidos na aparência, aquela coisa de ter regras
mas que depois muitas vezes não são seguidas, que é absolutamente uma
característica internacional e uma intolerância com a heterodoxia. E esta necessidade de
ter regras é muito emocional. Ou seja, isto para dizer que... Depende
José Maria Pimentel
Não, não, eu digo, a necessidade de as ter... Ah, de as
ter a necessidade. É emocional no sentido
de... Ah, sim, sim, claro.
Ou seja, eu acho que isso também está muito relacionado com a
nossa... Todo aquele irismo, a questão da saudade, a falta de sentido
prático... Sim, claro, claro. Que historicamente, pelo menos, existiam. São duas faces
da mesma moeda, no fundo é a minha intuição. Estou
Miguel Real
é muito fácil. Este ano, Muito fácil de medir. Este ano? É,
este ano foram 8 milhões. A Fátima? De portugueses a Fátima. Portugueses
e estrangeiros,
mas com,
pronto, não imigrantes, quer dizer, estrangeiros. Portanto, se tirarmos 500 mil estrangeiros,
foram 7 milhões ou 7 milhões e meio de portugueses, entre os
quais imigrantes, entre os quais açorianos e madeirenses, a Fátima. É muito
fácil de admitir. Um povo que vai a Fátima já não rasteja,
já tem comportamento burguês, fala diretamente, intimamente com Nossa Senhora a rezar,
então é um povo em que a transcendência é superior à imanência.
Quer dizer, eu penso que, por outro lado, consolatoriamente a nossa poesia
perdeu a imanência, e estou a falar em geral, não é? Não
quero dizer nome de poetas... Perdeu a transgênese. A transgênese, hoje é
uma poesia da circunstancialidade, poesia das coisas, poesia dos encontros gratuitos, dos
acasos, dos acidentes, portanto perdeu aquela capa espiritual, não é espiritual, é
uma capa metafísica que tinha, digamos, que o último grande poeta metafísico,
se calhar ele ficaria ofendido, é o Rui Bel, que morreu em
76 ou 77. Para cá há uns que têm alguma metafísica, sem
dúvida, até há um que era padre, era monge, o Daniel Faria,
o Torentino de Mendonça, por dever tem que o ser. Estou a
falar dos poetas novos que têm hoje 40, máximo 50 anos, Não
estou a falar dos de 20 anos, que não se sabe bem
o que é que vão ser, ainda estão um
José Maria Pimentel
bocado... Mas essa é uma luta, e isso leva ao outro ponto
que eu ia fazer, é engraçado o Miguel dizer isso, que é,
da mesma forma que existe um substrato que vem de trás, e
o facto de sermos um país antigo permite estudar isso, antigo e
coerente, Isto em Espanha ou Itália seria muito mais difícil de fazer.
Ou até em França. Ao mesmo tempo que isso existe, também existe
uma mudança grande e até uma mudança recente. Essa questão da transcendência
versus imanência, para usar essa terminologia, ou se quisermos espiritualidade versus materialismo
nas vantagens e desvantagens que cada uma delas tem, isso é algo
que nós observamos, ou seja, claramente a cultura atual é muito mais,
e eu confesso que me identifico mais com ela é uma cultura
muito mais da imanência nesse sentido. Sim, sim. Europa
Miguel Real
jornais todos os dias, ninguém é crente, ou poucos são crentes. Ou
o Freiburg em Domingos, e mais três ou quatro. Se formos à
missa, já há mais, mas não há muitos. Quer dizer, nós, era
isso que tinha o livro de Fátima que eu não pude trazer,
Nós acreditamos no sagrado, vivemos e temos esperança de entrar em comunhão
com o sagrado, mas desprezamos, talvez seja uma palavra muito forte, mas
desprezamos a religião institucionalizada. Até por todas as notícias, até pelas posições
da igreja relativamente ao preservativo, relativamente ao divórcio e aos divorciados, relativamente
ao celebritarismo, relativamente ao tratamento da mulher na igreja. Quer dizer, eu
ia com a minha mãe à igreja da Penha de França, todos
os fins de semana, ela era muito religiosa, na década de 50,
ela morreu na década de 60, eram todos muito religiosos, não sei,
sobretudo as mulheres. E hoje, aquela altura não dava importância, hoje vejo
como ela era tratada, ela era aquela que comprava flores que eles
não lhe davam o dinheiro, ela também não queria, mas comprava flores,
limpava as jarras, fazia ou comprava… Pronto, as toalhas,
Miguel Real
Comprava as toalhas para o altar, varria em última análise, não lhe
incumbia, mas ela se aproximasse da missa no sábado à tarde e
aquelas senhoras que enfim eram as que deviam ter varrido, não varressem,
ela varria etc. Não me era dado nenhum privilégio absoluto e era
tratada pela dona Rosa que é a que vem cá fazer e
mais nada, que é dizer os padres e eram padres holandeses e
eram padres portugueses era como se ela não existisse, só davam por
ela se ela não trouxesse as flores para o altar de sábado
e domingo. Aí sim, então o que aconteceu? Não estão cá as
flores. Portanto, era um verbo de encher. Era um verbo de encher
na igreja e, no entanto, não havia pessoa mais dedicada à igreja.
Não tinha poder absolutamente nenhum, nem era perguntado absolutamente nada. Digamos que
a grande autonomia dela é que comprava as flores que quisesse, não
tinha... Não era... Diziam compra d'álias, compra isto...
José Maria Pimentel
é uma diferença obviamente que está devidamente enquadrado mas a aversão do
Protestantismo aos santos tem muito que ver com esse regresso à raiz
e o catolicismo mais pragmático. É, sem dúvida. Mas isso é muito
interessante, porque por exemplo a nossa cultura, eu acho que o mundo
rural, por razões óbvias, acaba por ser mais genuíno dessa cultura portuguesa
original. E isso é muito visível, essa espécie de pragmatismo. É uma
cultura que, na face, até é ultra conservadora, mas depois na prática,
muitas vezes, até tem coisas que nos surpreendem pela liberalidade. Sim, sim.
Há falta de melhor expressão. Mas enfim, Miguel, o que eu quero
tirar mais tempo. Quer que eu fale dos livros? Era ir avançar
para a rubrica de encerramento. Disse-me os livros. Pode ser um ou
mais, é como quiser. Não, são dois. Então, esteja à vontade.
Miguel Real
São dois romances que acabam, estamos a falar em setembro, finais de
setembro de 2018. Dois romances que acabam de sair, para falar a
verdade, um deles ainda não saiu. Um é o prémio de literatura
Agostina Bessa Luiz, escrito por... Que este ano ganhou Rui Lages, que
é um poeta muito conhecido do norte de Portugal, que tem atividade
política também ligada ao Partido Socialista, mas sobretudo é conhecido como poeta.
Politicamente é muito discreto, mas tem atividade política. Ele ganhou o prémio
com o romance fabuloso, que é o Invisível, que nos resgata um
ferrante de pessoa esotérico, hermético, necromante,
Miguel Real
E como é que o Jago Araújo Ferreira Gomes tem conhecimentos de
técnicas fotográficas, de revoação, de fixação e consegue fotografar a senhora e
depois ao revelar, ele explica lá, mas eu já não lembro como,
aparece uma sombra por cima, é o tal, o marido ou o
filho ou a irmã ou a mãe e tal, da senhora. E
assim vão, de tal maneira eles são burlões que os antigos patrões
do pessoa como correspondente comercial já nem querem falar com ele, não
lhe dão. Bem, agora não vou contar mais. Como é que ele
ganha esta visão mediúnica, digamos assim, esta capacidade de atrair o mundo
invisível? Ele viveu na África do Sul, esta hipótese é muito agradável,
e foi instruída, foi iniciada por uma criada negra, Zulu, que levava
para o interior da floresta, e isso é tudo muito bem descrito,
e faziam rituais pelos quais adoravam os deuses mais antigos da terra.
Ele terá bebido uma certa bebida, uma certa poção, que a partir
daí passou a ter essas visões etéricas. Não conto mais, porque agora
vai-se desenrolar uma história de 200 páginas, o que é que ele
faz com isso? Há uma aldeia que está a ser atormentada por
espíritos do outro mundo, em Alvão, Serra de Alvão, que é ali
a sequira Chaves. Ele vai de comboio lá, a viagem também. Portanto,
Rui Lages, o livro chama-se O Invisível, é sobre Fernando de Souza.
É um romance absolutamente magnífico, com a característica de ser o primeiro.
O primeiro romance é o romance de estreia. Prêmio Agostina Bessa Luiz,
obrigar que ninguém possa ter escrito romance antes. Poesia sim. O outro
é Sandra Catarina, não sei quem é. Não sei quem é, uma
pessoa muito nova. A Mundo Parca, na Badana, tem lá a dizer,
fui professora de história e tal, já não sou, agora dedico-me só
à escrita, então não sei quem é, portanto, vivem cascais, é só
estas informações, Então não a conhecem, então é importante dizer. Escreveu um
romance sobre a vida antiga numa aldeia, mas um romance de um
lirismo. O do Rui Lágina não tem pouco lirismo. Este é de
um romance lírico absolutamente fundamental. Os fios. Os fios. É o primeiro,
também é o primeiro. Portanto, qualquer destes romances, se o leitor for
mais para as curiosidades de investigação esotérica, de hermetismo, gosta de ir
à Quinta da Regaleira em Sintra, compre o Rui Lajes. Compre o
Peça na Biblioteca e compre, porque os escritores também têm que viver.
Se for mais lírico e tiver um avô que veio do interior
de Portugal com uma mão à frente e outra atrás, vai encontrar
os fios, este romance que é absolutamente fabuloso. Pronto,