#37 Miguel Real - “Quais são os Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa?”

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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Desta vez falamos sobre um tema que tem surgido em várias conversas do podcast, mas que ainda não tinha merecido um episódio autónomo, a cultura portuguesa. O convidado é Miguel Real, pseudónimo deste escritor, ensaísta e professor de filosofia e um dos mais prolíficos escritores portugueses. Contei pelo menos 45 livros no site de uma livraria online. Falámos sobre o livro que publicou no ano passado, Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa. Neste momento devem estar a pensar, cultura em que sentido? O termo realmente é polissémico, mas o autor abraça essa polissemia porque o livro aborda tanto a cultura enquanto conjunto de valores, costumes, comportamentos de uma sociedade, com uma chamada alta cultura, isto é, a cultura na associação do património literário, artístico e científico dessa mesma sociedade ou país, no caso, Portugal. Foi uma conversa descontraída, em que de maneira nenhuma abordámos todos os aspectos deste tema, que não tem fim, mas vale muito a pena porque o Miguel é um poço de conhecimento. Aqui vai. Miguel, bem-vindo ao podcast. Vamos falar então do... Já falei do seu livro, dos traços da cultura portuguesa. Traços fundamentais, perdão, da cultura portuguesa. Que é um livro muito engraçado, quer dizer, toca um tema antigo. Aliás, é um tema que tem, ainda por cima, o mérito de ser um tema que cruza uma conversa intelectual e uma conversa de café. Sem dúvida. Então é um tema que presta-se a isso, o que é engraçado. E Eu gostei muito do livro. Obrigado. Mas achei que fazia sentido gostar pelas partes que eu tinha gostado menos. Acho que faz sentido. Ah, sim. Claro. No sentido de discutir porque no fundo é aquilo que me deixou a pensar.
Miguel Real
Sim, sim. Também não tenho certezas absolutas sobre todos os capítulos.
José Maria Pimentel
Claro, não, mas tem que ver, tem que ver sobretudo com a abordagem. Porque há essencialmente duas coisas ali em relação às quais eu gostava de falar consigo, porque me deixaram algumas dúvidas. Por um lado, o tipo de cultura que se está a falar, isto obviamente tem uma tradição grande, sobretudo ali a partir do meados do século XVIII e até ao final do século XIX em que grandes intelectuais portugueses se debruçaram sobre a cultura portuguesa, que depois abarca uma série de coisas, não é? Quer dizer, cultura no sentido de valores, cultura no sentido das mentalidades, muito relacionado com o atraso até do país e muito dado como explicação para uma série de coisas e com uma carga histórica grande. Mas, paralelamente a esta cultura, a cultura nesta aceção, há outra aceção deste termo cultura, aliás há várias, é um termo ultra-polissémico, mas há ainda outra que é cultura num sentido mais transversal, não alta cultura, neste sentido, das elites, se quisermos, à falta de melhor palavra mas uma cultura de todos nós, que abarca todas as ruas. Cultura comum, digamos assim. E no livro, muitas vezes, aquilo que me pareceu é que o Quinto Império do Padre Torvillera e do Agostinho da Silva, por exemplo, estavam misturados com... Que é uma coisa muito mais literária, digamos assim, embora tenha um fundo na nossa cultura específica, mas é uma coisa mais literária, com, por exemplo, a percepção que os estrangeiros têm de nós. Os portugueses são generosos, mas são lentos. São voluntaristas, mas são desorganizados. Estoufado, etc. Eu não sei como é que Quando o Miguel escreveu o livro, provavelmente teve essa... Não
Miguel Real
há uma cultura portuguesa no sentido ontológico, é no sentido de que tal conceito é o coração da cultura portuguesa, é a identidade portuguesa, vive à base, vive em função e à volta desse conceito. Por exemplo, o conceito de saudade em Teixeira de Pascoais. Toda a cultura, seja ela qual for, aproximantes ou afastantes, vive em função desse centro que é a saudade e ele transforma a saudade num movimento cultural chamado saudosismo, especificado na renascença portuguesa. Portanto, o livro defende que não existe esse tipo e que a cultura portuguesa se foi fazendo foi fazendo ao longo dos séculos e no futuro, no século, digamos, na segunda metade do século XXI poderá ser muito diferente daquilo que nós pensamos ser a cultura portuguesa tradicional. A entrada na Europa trouxe-nos um conjunto da porra, desde o digital, novas modas, novos estilos, novos comportamentos. Hoje consideramos normal o divórcio, fazia parte de Ziocara de Alcerejeira, da cultura portuguesa, o casamento tradicional e uma hierarquia vertical no seio da família, hoje hierarquia no seio da família horizontal, se quisermos, já não sabemos bem o que é exatamente essa família portuguesa, portanto, aquele núcleo pai-mãe-filhos-filhas,
José Maria Pimentel
Portanto,
Miguel Real
esta hierarquia já está absolutamente destroçada. Portanto, não há uma cultura portuguesa, há culturas portuguesas, não é? E nós pusemos aqui os traços fundamentais tentando abarcar, e haveria mais, por exemplo, tenho sido criticado, não pus o fado. O fado é muito importante para Lisboa, possivelmente para Coimbra também, mas para as pessoas de Mirandela, do Algarve, do Alentejo, de Trados de Montes, o Fado é qualquer coisa que de vez em quando ouvem na telefonia e não sentem essa motivação, claro, de sentido, nem sequer sabem o que é o bairro da Mouraria e Alfama, onde terá nascido o Fado, nem há uma certeza absoluta. Portanto, não é a essência da cultura... O livro não se chama A Essência da Cultura Portuguesa, mas é uma espécie de... Em função da cultura e da cultura que Existe em Portugal, não falamos de Espanha, nem sequer aqui falamos dos Açores e da Madeira, mas não se pode falar de tudo, é absolutamente impossível. Sim, sim, faz um bocadinho o caso do... Uma espécie de caleidoscópico, o livro é uma espécie de caleidoscópico que brilha para, determina, para muitos sítios e cada capítulo é uma espécie de um traço que, de certo modo, identifica ou identificou, tanto identifica a questão da saudade, por exemplo, é considerado mais nos Açores, por exemplo, do que na Madeira, sabe, um dos tratos distintivos do primeiro livro dos Açores é Saudades da Terra, que é do padre Gaspar Fortuoso. É o primeiro livro, logo foi, logo a palavra saudade aparece e a canção mais, uma das canções mais populares é justamente a canção da saudade cantada na terceira, na terceira ou no pico, agora não me lembro, tem uma definição lindíssima que é a saudade é um pano roxo, ou seja, a saudade é triste. Roxo é a quaresma, é a parte anterior à morte de Cristo, é o momento anterior à morte de Cristo, não se pode comer carne e tal, então as pessoas dos Açores interpretavam século XVII, século XVIII como o momento mais triste do ano. E então, a saudade é um pano hoje. É um verso absolutamente magnífico. Não sabemos quem é o autor desta frase, desta canção. A música sabemos, mas... Até há várias músicas, mas não o verso. Portanto, Zé Maria, o que se pretendeu dar foi esse caleidoscópio de traços fundamentais da cultura portuguesa. Não são traços superficiais. Portanto, é importante o bairro alto, as multidões de turistas, as multidões de jovens à noite, num bairro alto em Santos. Será um traço? O bairro alto será um traço fundamental da cultura portuguesa? Não é.
José Maria Pimentel
Pois, traço é, se é fundamental é que... É uma
Miguel Real
expressão hoje atual, é pela qual os jovens vivem o cosmopolitismo que nós estamos a viver
José Maria Pimentel
hoje. É um hábito, aliás. É um hábito. Os sociólogos, e não só, distinguem valores e hábitos,
Miguel Real
por exemplo. Hábitos, sim.
José Maria Pimentel
E os hábitos estão numa camada acima. Sim, claro. E Aquilo que o Miguel falava, essa crítica de não ter incluído o fado, eu podia perfeitamente ter incluído o fado, mas a questão do que é interessante no fado não é a manifestação em si, mas sim o que lhe dá origem. E isso está no livro, o lirismo, a história do fado, não vai sair de casa de ver. Mas este ponto, essa distinção que o Miguel estava a fazer e este ponto que eu fazia da psicologia distinguir entre valores e práticas, por exemplo, nem sei se é esta a tecnologia correta. São comportamentos. Ou comportamentos, exatamente. Há-de-se comportamentos. Isso leva-me à segunda impressão com que eu tinha ficado, com que eu fiquei a ler o livro, que lhe gostava de perguntar, que é, como eu disse, houve uma série de intelectuais que escreveram sobre este tema de maneiras diferentes e muitas vezes até dificilmente compatibilizáveis entre si. Mas aquilo que eles não tinham na altura e que nós temos hoje e que não resolve o problema, mas na minha opinião traz alguma informação útil, é ciências sociais, no fundo. Ou seja, hoje é... Sim, claro. Que na altura não existiam ou existiam na sua infância, num estado embrionário. E nós hoje em dia temos informação, temos pesquisas, temos uma série de informação que nos permite... E que para mim é ultra interessante. Há um tipo holandês, que eu já falei aqui no podcast várias vezes, que é o Gert Hofstede que é sociólogo e que fez um modelo... Há vários, mas o modelo dele é o mais conhecido, é aquele que tem mais validação académica porque depois foi já replicado centenas de vezes e em contextos diferentes. O modelo dele começou com quatro variáveis, digamos assim, que lá estavam, variavam entre países. Uma espécie de escala, quatro escalas e depois acabou por lhes acrescentar mais duas. Neste momento são seis. E aquilo é muito interessante porque, por exemplo, um exercício muito engraçado de fazer é a pessoa complementar aquela informação, que é uma informação que não é definitiva, porque estamos a falar de uma ciência social, portanto tudo isto é uma enquete, uma série de... E além disso é... É cambiável no tempo, como o Miguel estava a dizer. Isto tudo vai evoluindo, não é? E os valores de hoje em dia não são os valores de antes. Embora ele chama a atenção para que os valores são muito mais rígidos do que as práticas, lá está, do que os comportamentos. Sim, sim. Eles são muito mais cambiáveis do que os valores. Mas, por exemplo, ele tem... Eu estava a fazer esse exercício só para lhe dizer quando estava a ler o seu livro. Por exemplo, ele tem uma das dimensões, que é provavelmente a mais intuitiva de todas, ela se chama distância ao poder, mas pode ser hierarquização ou qualquer coisa. E isso tem que ver, por exemplo, desde logo, com o fator de que o Miguel fala, que existe historicamente em Portugal, que é uma desigualdade social grande. Grande, sempre houve, desde a segunda metade do século XVI. Exatamente, Desde o alcance do arquibismo, não é? Pelo menos, não é? Pelo menos essa é uma tese que o Miguel Alves... Desde que a nossa nobreza se perdeu lá. E isso gera dois subprodutos, de quem está em cima, uma espécie de paternalismo e condescendência da evolução em geral, e de quem está em baixo... Uma espécie de servilismo. Servilismo e inveja. Ah, sim, sim, inveja. Sendo que isto em si mesmo é... Também é alterável. Claro, claro. O que eu quero dizer é que nós podemos ser... Podemos fazer parte de uma elite intelectual, mas não fazer parte de uma elite económica e vice-versa.
Miguel Real
Exatamente, é claro. É elite económica, mas não política.
José Maria Pimentel
E a elite política
Miguel Real
explora muitas vezes a elite económica. Exatamente. Mas se eu percebia a questão, é muito importante talvez dizer que este não é um livro de sociologia. Claro.
José Maria Pimentel
Não, isso eu sei que não. Claro que não, sim.
Miguel Real
Se fosse um livro de sociologia teria de haver inquéritos. Esses inquéritos teriam de ser bem estabelecidos, com base nos paradigmas dos inquéritos, tanto americanos como portugueses, como europeus, para a cultura. Este livro é um pouco ao modo do Eduardo Lourenço, que poderíamos chamar a filosofia da cultura, que por vezes umas universidades têm e outras não têm umas dão um grande, grande valor, outras não, substituem pela sociologia, substituem hoje por qualquer coisa que está na moda desde a década de 70, aqueles estudos culturais E eu não pretendi fazer isso, até porque não... Estou ligado ao CLEPUL, que é a Faculdade de Letras, que faz parte da Faculdade de Letras, e portanto, investigo aí nesse sentido. Mas, e portanto, é um livro e o meu curso também, talvez seja importante saber, é filosofia. E eu fui professor de filosofia durante 40 anos no ensino secundário, décimo segundo ano. Portanto, há aqui uma conformação mental, ou uma configuração mental, que eu não dei de fora, mesmo que se quisesse, se calhar ela não saía. E que eu tenho algum orgulho nisso.
José Maria Pimentel
Claro que sim.
Miguel Real
Não, mas, por exemplo, Eduardo Lorenz é acusado, pela Boa Aventura de Sousa Santos, pela Escola de Sociologia e Economia de Coimbra, de se passear na literatura. Muito acusado é acusado pela Universidade Nova, sobretudo pela Bragança de Miranda, ele está na Nova e está na Lusófona, não sei, acho que já saiu, mas estava nos dois lados, de se basear na literatura. É acusado pela Universidade do Minho de justamente fazer um retrato de Portugal, o labirinto da saudade, sobretudo fundado numa evolução da própria literatura. Não é crível, totalmente cabal, que a literatura represente a sociedade. Claro. Eu teria de... Dizem eles, e se calhar com razão, mas o Eduardo escreve de maneira tão maravilhosa, e encontra conceitos tão maravilhosos, que Eu também dou razão a ele. Querível que a música também refleta, que a ciência também refleta, que a arte em geral agora reflete e a literatura também. E, sobretudo, se ele quisesse fazer um retrato de Portugal, deveria centrar-se, e eu e qualquer outra pessoa, dizem eles em geral, devia centrar-se na educação e nas qualificações que os portugueses vão tendo. Ele nunca fala em alfabetismo, isso é um dado para estes sociólogos, é um dado terrivelmente importante. Nunca fala da mulher fora do mercado de trabalho. No século XIX, quando a mulher, não só na Inglaterra, mas também na Alemanha, na França, e depois, a partir da Primeira Guerra Mundial, entra totalmente no mercado de trabalho. A mulher, tanto fora do mercado de trabalho, está totalmente dependente da família, da vida doméstica, do marido, até depois dos filhos, etc. Portanto, todos estes elementos sociológicos deveriam fazer outro retrato de Portugal. Eu acho que não. Eu acho que não. E ele também acha que não, mas quer dizer, neste caso, se me permite, eu não tenho nenhuma procuração dele, mas, de certo modo, defendo. Acho que a literatura é uma espécie de imagem ao espelho de Portugal, que sintetiza. Basta ler o Camilo, basta ler o Eça de Queiroz, basta ler o Saramago quando falou de Portugal, a partir do evangelho segundo Jesus Cristo, ele deixa de falar de Portugal, só depois tem uma coisinha pequenina na viagem de elefante, basta ler o grande retrato que O Lobo Antunes está a fazer de Portugal, hoje, bom, Portugal década de 80 para cá, o Portugal europeu e a dissolução, não é a dissolução, é a contaminação espúria das instituições pelos novos ricos, pelos novos letrados, pela nova mulher que agora trabalha e é independente. Portanto, o Abandoned faz isso e a Lídia Jorge também faz isso com muito
José Maria Pimentel
carinho. Mas eu não... Desculpe interromper-lo. Interrompi-o e ia falar. Eu não acho as duas coisas necessariamente incompatíveis.
Miguel Real
Não, Sá, eu também acho que não.
José Maria Pimentel
Segundo aquilo que eu percebo que o Camil quer dizer, e eu acho que é uma tese que tem alguma validade pelo menos, é que, independentemente destas alterações, há uma espécie de substrato cultural, valores que não é alterável e que se mantém.
Miguel Real
A questão dos estrangeirados, a questão do quinto império. Nós só analisamos, por exemplo, ou da Maria, deixa-me só dizer isto, talvez para o ouvinte, o futuro ouvinte, talvez perceba imediatamente. O Ser Amago era mais, o Ser Amago atinge o comunismo e desenvolve as teses dele nos romances sobre o comunismo, não é sobre o comunismo que ele nunca fala de comunismo nos romances, é sobre a fraternidade entre as pessoas, a partir de um sub-extracto que é o sub-extracto do Quinto Império. O Quinto Império é, segundo o padre de Tornavieira, segundo o Bandarra, e só aparece quando a desigualdade é total, a seguir aos fumes dandia, digamos assim, na segunda metade do século XVI, é viver num país justo, viver num país com abastança, hoje diríamos prosperidade, o padre António Vera diz abastança. Justiça quer dizer qualquer coisa como também ter aquilo que chamamos hoje de segurança social na reforma, o Estado garantir a educação dos filhos, o Estado garantir o enterro, o hospital para os velhos, o hospital garantir o enterro quando se morte, Hoje está garantido até pelas câmaras e pelas misericórdias, mas no tempo do padre António Vieira, que não tivesse dinheiro, não era enterrado. Aliás, era enterrado numa mortalha que era um pano velho e era atirado por uma vala comum, onde já estavam 20 e a câmara passava lá, não me lembro agora, mas quando era no meio da cidade, e era o caso do Poço dos Negros, passava o sábado e atirava cal para não cheirar e para não infestar, etc. Portanto, o Quinto Império, para o padre António Vieira, sob a grande bênção de Cristo é a mesma coisa que o comunismo para o Saramago, é a mesma coisa que a idade do Espírito Santo do Agostinho da Silva na prisão. Foi isso que eu tentei dizer. Não sei se está... Ou seja, há um substrato de caráter, de necessidade absoluta de uma justiça social fortíssima, de uma igualdade. E porquê? E isso aparece quando? Aparece no século XVI, quando os portugueses olham para si, vêm chegar as naus dandia, descarregar as sacas na casa dandia, de malagueta, de cravinho, canela, etc, etc, e depois serem pesadas e depois serem embarcadas, irem para Bruges, Bruges, Rates de Borda, onde eram distribuídas pela obra inteira. Ficavam umas migalhas cá e essas migalhas eram muitas vezes usadas pelos, eram sobretudo usadas pelos pequenos comerciantes, digamos assim, e não pela população. Até a população não atingia essas migalhas. Ora, isso acontece de uma maneira que vai fazer com que os grandes pensadores portugueses tenham uma afeição utópica, uma afeição utópica. Chamamos hoje utopia, naquela altura não se chamava. O padre António Vieira, o Pessoa, o quinto império do Pessoa, esta afeição utópica de um conhecimento absoluto tentado através da gnose, isto é, de uma iniciação sófica que ele teria, ou teria tido, disse ele, diretamente de mestre a discípulo, portanto ele nem estava numa ordem, um grande mestre. Uns dizem que é o Crowley, que era o mago que tinha vindo da Inglaterra, da Escócia. Outros falam noutros da cavalaria espiritual, etc. Porquê é que Sampaio Bruno escreve um livro a dizer que é o Cavaleiros do Amor, que só foi editado em 1960, portanto ele morreu em 15, a dizer justamente que os grandes pensadores e atores, atores no sentido de ação, participantes portugueses, são todos aqueles que defendem o amor. Camões foi o principal. Amor é o contrário de, diz ele, dentro de uma linha que o Brown, David Brown, também aceitaria hoje, é o contrário de Roma. Roma, pelo contrário, é o demónio. Amor, a religião do amor, seria a grande religião dos portugueses. O que eu me perguntei foi, porquê é que Vamos para a França e as pessoas... A França, a Inglaterra, tem muitos autores que defendem a Fifth Monarchy, que é uma espécie de Quinto Império nosso, não é?
José Maria Pimentel
É, desculpa, não conheço.
Miguel Real
A Fifth, portanto, a Quinta... A Quinta Monarquia? Monarquia. Tem muitos autores, agora não trouxe
José Maria Pimentel
aqui. Sim, sim, sim, eu não conheci.
Miguel Real
Quem tem um estudo sobre isso é o José Eduardo Restes. Também o Mentecasta Henriques. Sim, sim. Sabe quem é ele. Sei, sei, sei. Sei-se também fala imenso na 5 Monarquia. Não
José Maria Pimentel
conhecia, não conhecia. Agora estava aqui, eu depois coloquei isto no podcast. A pergunta... Mas era uma coisa do século XVII, não é? Sim, esta no século XVII.
Miguel Real
Nós começamos com o Bandarra. Sim. Portanto, o Bandarra terá morrido, terá... Ele foi preso em 1540. Não se sabe ainda hoje porquê, é absolvido, é absolvido, volta para a guarda, absolvido aqui em Lisboa, volta para a guarda, desaparece, em 70 aparece uma carta, uma nota do Bispo da Guarda a falar nele, mas no bom sentido, pois não se sabe mais nele. Mas A 5 monarquia na Inglaterra e todos os movimentos, digamos, místicos e utópicos franceses ligados àquilo que nós chamamos o 5º Império aqui, são marginais à cultura. São muito marginais. Portanto, existem bastantes e até muitos deles têm como origem os cátaros, que é anterior a isto tudo, mas são marginais à cultura. O José Maria não consegue definir a cultura inglesa, ou britânica em geral, ou a cultura francesa, ou a cultura italiana, que encontra no nome da Rosa, muito bem explicado, do Umberto Eco, através desta constante mítica. No entanto, os grandes autores portugueses, tirando o Ésser de Kérosque, mas mesmo assim o Ésser de Kérosque, mesmo assim o Ésser de Kérosque, depois da morte dele foi publicado um livro, chama-se Lendas dos Santos, que reúne ele na última década de vida, pensa até que nos últimos cinco anos de vida, ele andou a escrever sobre os santos e escreveu um conto, chamamos de conto hoje, uma narrativa ainda, sei lá, 50 páginas talvez, que é o São Cristóvão. O São Cristóvão é o retrato perfeito do homem do Quinto Império. Aquilo que tudo o que tem dá ao outro, ainda por cima, sacrifica pelo outro e durante certos momentos é castigado pelo outro. Ele põe-se à frente dos pobres e luta pelos pobres, etc. Quer dizer, é uma coisa espantosa nós atravessarmos a cultura portuguesa e constatarmos que desde Alcácer Cabir, ou desde a segunda metade do século XVI, há qualquer coisa que é absolutamente constante. E essa constante é um desejo de igualdade, de solidariedade, de justiça, de abastança, como diz o padre da história
José Maria Pimentel
vieja. Então, mas, Miguel, eu acho... Eu acho este exercício ultra interessante, mas a minha tentação logo é... Sim, sim, diga, diga. É ir a tentar descer mais a fundo, no fundo ir à raiz do... Não ao fenómeno, lá está. Lá está, claro. Mas ao que está na origem dele e tentar mais ou menos descascá-lo. E é certo que esse é um fenómeno literário, mas o Miguel argumenta, e eu acho que faz sentido, que tem um peso total na nossa produção literária, que isso tem que ser o reflexo de uma preocupação que está atrás disso. Agora, aquilo que me parece, a minha intuição em relação ao fenómeno é que o fenómeno não é unívoco, ele tem mais do que uma característica. Por exemplo, uma manifestação do Quinto Império, o nome que queremos dar a essa utopia, é harmonia, é uma espécie de harmonia social. Essa é uma manifestação. Mas há outra manifestação que é diferente dessa, que é uma espécie de grandeza perdida. São duas manifestações, são coisas diferentes. Ela
Miguel Real
surge quando estávamos no mais alto momento da nossa grandeza. Ela surge da passagem da primeira metade para a segunda metade do século XVI, surge o primeiro autor a falar de uma maneira explícita e sem aquele conteúdo religioso cristão que a Idade Média todos traziam, o juízo final em Cristo, etc. É justamente o bandarra. Depois, a partir daí, por século é mais ou menos um dois, um dois, um dois. Surge num
José Maria Pimentel
momento mais alto. Mas era um momento mais alto. Bom, isso
Miguel Real
leva... Já suspeita a decadência.
José Maria Pimentel
Além disso, isso leva a outra questão que é sempre interessante discutir, que é... E que está muito ligada a uma coisa que o Miguel fala, que é esta espécie de bipolaridade entre uma sensação de grandeza e uma sensação de inferioridade que é o facto de quão grandes fomos nós de facto durante os descobrimentos, por exemplo. Todos nós, quer dizer, nós somos gerações diferentes mas eu lembro-me na escola a pessoa é mais ou menos doutrinada em relação a uma espécie de... Não, e eu... E era uma coisa... Pá, bem, no seu caso ainda mais, não é? No meu caso já é um bocadinho mais... Já é mais... No
Miguel Real
final da década de 50, pronto, vai lá que o meu professor era um bocado neutro, pessoa primária neutra. Mas ao lado, de sala ao lado, era o professor Faustino, que era um apologista do Estado Novo.
José Maria Pimentel
Mas é curioso porque com a democracia, obviamente que... Houve uma diluição e sobretudo, quer dizer, deixou de fazer parte de uma espécie de visão geral da história, onde isso entrava. Mas os descobrimentos continuam a ser, e em certo sentido bem obviamente, dados como o apógeo de Portugal. Em certo sentido isso está correto, mas...
Miguel Real
Se não tivesse havido desculpa, está
José Maria Pimentel
a entender?
Miguel Real
Até acho que escrevi isso aqui, mas não me lembro bem. Se não tivesse havido descobrimentos, nós éramos hoje, tínhamos sido ao longo da história, uma espécie de galiza, maior, uma galiza grande, a galiza é mais pequena do que nós, sempre local de partida de imigração, local de pobreza, local de alguma pesca. Nem sequer sabemos, provavelmente teríamos ficado
José Maria Pimentel
unidos a Espanha, provavelmente. Sim,
Miguel Real
possivelmente teríamos, embora estivéssemos em Algebarrota, portanto, que é a anterior, afirmámos muito fortemente a nossa independência e glorificámo-la. Fizemos o mosteiro de Santa Maria da Vitória na batalha e tal.
José Maria Pimentel
Sim, claro, mas isso não impediu que depois tivesse a ajuda da União Ibérica e ocupar a independência como uma espécie de bamburrio da sorte, porque os espanhóis estavam virados para o outro lado. Os
Miguel Real
desejos dos portugueses na União Ibérica, e isso acontece com Dom João II, com Dom Manuel I, com Dom João III, que era unir as duas caças dinásticas sob, digamos assim, o comando português. Exato. Teve quase para acontecer. Teve quase para acontecer.
José Maria Pimentel
Foi um azar. Azar?
Miguel Real
Não, não, não. O Saramago diz que o Saramago era ibeirista, o professor Oliveira Marques, um grande historiador, era ibeirista. Outros, agora, o Oliveira Martins era de certo modo, embora só do ponto de vista cultural, um iberista também, e eles achavam que Portugal estaria mais seguro, agora com a Europa isso já não se põe, porque entrámos os dois para a Europa. O Teófilo Braga era iberista, e se agora começar a pensar, para aí dizíamos para aí vinte que eram ibéricos. Claro, era mais seguro, mais próspero, a parte da economia é importante, e até mais cultos, digamos, seríamos mais cultos se tivéssemos pertencido a Espanha
José Maria Pimentel
desde há muito tempo. E a questão toda a questão do nacionalismo é uma coisa que é um bocadinho difícil acho que o personagem da nossa história quando é que surge? Porque lá está o Miguel estava a dizer que Elas Barrota foi qualificada e é verdade, mas o nacionalismo na acessão atual é uma coisa que vem do Estado na Sombra então é uma coisa que surge muito mais à frente. Sim, não sei o que. Mas ainda há, Mas havia lives disso, não é? A própria nossa independência, o 1640, a recuperação da independência, é ali uma coisa que, por um lado, tem os lives desse nacionalismo, mas por outro... D. João IV afirma
Miguel Real
um nacionalismo forte, Mas talvez, como a palavra hoje está contaminada por elementos
José Maria Pimentel
negativos… Sim, patriotismo, sim. Estou a dizer nacionalismo. Era um patriotismo
Miguel Real
onde não deixava de existir o interesse, porque ele tinha sido, ele, D. João IV, tinha sido convocado para… agora não me lembro, mas tinha sido convocado para uma luta, umas batalhas, uma conquista, uma defesa, não me lembro, mas não era para a Cataluña, ou penso que não era para a Cataluña, com quem Madrid estava em guerra e teria que se apresentar a um tribunal de tipo, se não, se desobedecesse ao rei, possivelmente as suas terras e o palácio seriam confiscados, deixaria de ter o título de Duque, então ele, digamos assim, que a Espanha ou Madrid o pôs entre a espada e a parede. E o patriotismo dele não se nega de modo algum, não é? Mas ele foi um bocado relutante, não é? Ele foi relutante,
José Maria Pimentel
sim. Até havia aquela frase da Rainha, como é que se chamava? Luísa de Guzmão. Exatamente, antes de... Como é que era?
Miguel Real
Antes Rainha por uma hora ou por
José Maria Pimentel
um dia. Ou por um dia do que exatamente. Da vida. Bom, mas é bem, agora devíamos... Eu não sabo bem se ela disse isso. Pois, provavelmente não, é pouco.
Miguel Real
Ela era andaluza. Sim. E a Andaluzia, desde há 80 anos, mais ou menos para cá, 1640, afirmava-se também como um desejo de, mais do que autonomia, independência. E ela pertencia a uma família, que eram os Medinos Sidónios, que estavam à frente dessas lutas contra o centralismo de Madrid. Sim.
José Maria Pimentel
Eu ia dizer que há bocado... Acho que foi culpa minha, desviámos daquilo que estávamos a falar há pouco. Era a questão dos descobrimentos e de... Sim, sim. Mesmo nessa pós EU, é uma idade de ouro muito mais cultural do que económica.
Miguel Real
Ou seja, é uma idade de ouro. Sim, para uma certa elite económica e também científica. No
José Maria Pimentel
sentido de que nós não ganhámos muitíssimo dinheiro com o descobrimento dos holandeses e acabaram por beneficiar
Miguel Real
do... O país inteiro, não, os holandeses, mas há uma certa elite onde se inclui bastante das casas estrangeiras que estavam cá, ligadas a banhos e companhias de comércio, que lucraram bastante. Por exemplo, todo o bairro Santa Catarina, que estamos em Lisboa, o bairro Santa Catarina, aquilo que vai do Chiado até ao fundo da calçada do Combro, foi praticamente feito pelos capitães dandia, vitoriosos, que enriqueceram nandia, não se sabe como, não interessa, que fizeram aquelas casas num bairro que estava a nascer, século XVI, ainda estava a nascer, portanto Santa Catarina é no fundo dessa colina do bairro Alto, e portanto temos de dizer que todos esses capitães dandia que lá, que fizeram essas casas e algumas delas eram solares, já não existem, hoje são os prédios, é Caixa de Alto Podes, é a Biblioteca Camões, etc. Os marinheiros pobres foram atirados para a pica, que é a seguir, só que
José Maria Pimentel
é naquela
Miguel Real
encosta que vai até à Rua da Boa Vista, que hoje sobe e desce um elétrico, foram tirados, havia duas bicas, eram terrenos enlameados, portanto, sempre com água a correr, e foram tirados para aí, foram cedidos terrenos aí, eles fizeram umas choces, umas cabeiras, não tinham nada a ver com os outros. Ou seja, isso vê-se pelo Luís Vicente. O, portanto, nunca tão cosmopolita e e rico, próspero Portugal foi, sobretudo Lisboa, certamente o Porto também, certamente Coimbra, porque tinha os estudantes e recebeu os estudantes, começou então a receber os estudantes do Império, a Coimbra, desloca a Coimbra, portanto a Universidade desloca-se de Lisboa para Coimbra nessa altura e há uma consciência de que podemos ser a Europa e até podemos ser cabeça da Europa, como diz o Luís de Camões, mais tarde também, eu pessoa, quer dizer, há uma consciência de que antes dos portugueses, o mapa do globo terrestre, o mapa, desculpe, não era do globo, o mapa de resto era um e a partir dos portugueses, sobretudo com o mapa de Cantino, que é de 702, vê-se perfeitamente que o mapa do mundo é diferente. Foram os portugueses os primeiros, sem dúvida os espanhóis foram no alcance, sobretudo a partir de Madrid e de Andalusia, sem dúvida, e depois é que vêm os franceses, vêm os franceses, depois vêm os holandeses, depois vêm os ingleses, que seguem já na pelgada dos portugueses. Sigo agora um livro muito interessante, muito interessante, do Onésimo, Vittorio Almeida, que é o Século dos Predígeos. Há muitos livros sobre o século XVI, não é? No século dos prodígios, ele tenta ver... O prodígios aqui tem a ver com acontecimentos que se passaram no século XVI por iniciativa dos portugueses e dos descobrimentos que nunca se tinham passado antes. É um livro muito interessante, lê-se muito bem e mostra que os portugueses de facto devem orgulhar-se e não têm que ter vergonha de terem feito o que fizeram, embora, como sabemos, há uma polémica grande sobre o Museu
José Maria Pimentel
das Descobertas. Sim, sim, sim.
Miguel Real
Mas foi agora um senhor, um senhor, deu agora este fim de semana uma entrevista ao público e disse se há um país na Europa que merece um museu das descobertas
José Maria Pimentel
é Portugal. Ah, eu vi, se tivesse só um museu era esse.
Miguel Real
Não temos de ter vergonha daquilo que os nossos tetravós fizeram. Temos de nos orgulhar do que fizeram de bem e temos que reprovar o que fizeram de mal, evidentemente. O Diogo do Couto tem um livro que é o Saudade Prática, onde mostra todas as maneiras de roubar nandia, todas as maneiras e põe lá os nomes também, muitos nomes lá põe. Não vamos dizer que todos os que foram para andia roubaram. Há pelo menos o Luís de Camões, veio tão pobre, tão pobre, tão pobre, dificilmente terá roubado, embora ele tenha sido preso, por ter roubado o cofre dos defuntos, defuntos e ausentes de Macau, quer dizer, daqueles que morriam ou que desapareciam no mar, então havia um cofre que tentava, havia um dinheiro que tentava, não era cofre, desculpa, um fundo que tentava suprir as viúvas, os órfãos etc. Esse dinheiro, ele diz que desapareceu, que ele sofreu uma naufragem na forja do Mekong, mas o Francisco Perretti, que era o governador de Goa, acusa-o de ter ficado com o dinheiro. O facto é que ele chegou para o Perre, viveu um pouco à custa da mãe, enquanto não recebeu a tensa. Depois, mesmo depois de morrer, a mãe continuou viva e recebeu, por sua vez, a
José Maria Pimentel
tensa.
Miguel Real
E não é por acaso que o nosso poeta, nosso maior poeta, digamos assim, tentou participar no Estado. Era muito fugoso e apaixonado e foi afastado do Estado por esses motivos, penso que não foi por motivos de classe social. Ele era um escudeiro pobre, mas tinha direito a estar dentro da corte e dentro da corte podia ir subindo, como muitos outros a subiram. Pós-Ark, ele era muito atraído pelas senhoras e acabou por dar-se mal. Não sabemos ainda bem porque é que ele foi para a celta. Possivelmente foi com essas ilusões de amor, depois ficou sem o tal olho e acaba por atravessar o mar oceano, como eles diziam, acaba por viver, salvou-a 17 anos nandia e voltar pobre, tanto como a Maria Sá, acabou em Odioco do Coto e outros, foi encontrar-lo na ilha de Moçambique sem dinheiro para pagar o resto da viagem e o capitão do navio o pôs fora porque ele tinha dito que quando chegasse a Moçambique dava-lhe o dinheiro e ele não lhe o deu. Dinheiro que ele já devia a ele, ele pô-lo fora. E nessa altura, tem tanto azar que até lhe roubam um livro que ele teria, que não sabemos, desconhecemos onde é que está, já não deve existir, que era o Parnassus. É um conjunto, Parnassus é onde... Os sítios onde estão os intellectuais. E, portanto, seria um conjunto de ideias filosóficas e poéticas, etc. Que ele ia recolhendo ao longo da vida e esse livro desapareceu. Sim,
José Maria Pimentel
engraçado. Por acaso, não sabia dessa história. Sim. O Calma e Zé é uma boa ponte para todos os nossos traços identificados no livro, que é a questão do lirismo e de uma espécie de... O Miguel até descreve como uma prevalência da transcendência sobre a imanência. No fundo, projetarmos para aquilo que está para além do material e para olhar para o passado e um certo idealismo também, que muitas vezes está ligado a alguma inação.
Miguel Real
Sim, sim. A Passividade. Historicamente,
José Maria Pimentel
onde é que o Miguel encontra a origem disso? Desta passividade. Entre outras coisas, isto é uma confluência de vários fatores, não é só história. Também tem a ver com biografia, contingências.
Miguel Real
Claro. A diferença social é tão forte em Portugal, continua a ser. Hoje ia discutir se baixavam o ordenado dos gestores para... Foi proposta do Bloco de Esquerda e eu ouvi na rádio agora que o PS já disse que não e o CDS e o PSD. A diferença social e econômica, não é? É tão financeira, mesmo dinheiro no banco nós temos para educar os nossos filhos para comprar a roupa, etc. A riqueza. A riqueza, exatamente. A diferença social é tão marcante e é tão intransponível, quer dizer, eu não consigo atingir o nível de riqueza suficiente para viver normalmente, tanto sem sacrifícios, que só há duas soluções. Verdadeiramente há três. Uma é emigrar. Portugal é um país de emigração desde a segunda metade do século XVI. Tudo começa na segunda metade do século XVI. Eu tenho pena de não poder fazer um estudo, há vários estudos, do professor Silva Dias e outros, não é? Mas não estudos históricos, estudos históricos basta ir lá e já sabemos o que é que lá está. Estudos mesmo de personalidade do português, estudos antropológicos, digamos assim. E para isso é preciso consultar os livros mais diversos, desde história, navegadores, a igreja, etc. Portanto, não é emigrar, puro e simplesmente. E nós emigramos desde essa altura. Desabramos para emigrar para andia, para o Brasil, para os Açores, que era despovoada, enfim, para o império e quando o império já não nos... Já no império aconteceu a mesma e, portanto, esta diferença social era tão abissal e tão intransponível, tão transponível, que Os Açores e a Madeira foram distribuídos pelos primeiros povoadores, todos os que chegaram a seguir já não tinham mais terra, portanto, estava distribuído. Eu ia para lá, vinha das beiras, vinha do Alentejo, ia para lá para tentar, enfim, subir na vida, chegava lá, tinha que ser feitor daqueles que já lá estavam. Alfredo Fiancapo tinha que ser um lavrador que trabalhava para eles, acabava por emigrar para o Brasil. Aqui aparece o fator também, o fator dos termores de terra, que os ajudava, vamos embora daqui, não queremos mais nada, e o D. João V, que chegou a dar quatro ou oito cruzados a cada um deles que iria para o Brasil, que era para povoar o Brasil. Portanto, este é um fator, eu não consigo, por mais que trabalhe, eu trabalho 8 horas, 6 horas, 12 horas por dia, eu até tenho 2 empregos, tanto trabalho no restaurante de dia, à noite vou para um bar, trabalho até às duas, levanto-me às sete, etc, etc, etc. O que é um facto é que a vida social, económica portuguesa é de tal modo que se eu tiver dois, três filhos, eu não tenho dinheiro suficiente, eu sei de quem estou a falar, são pessoas de Sintra, se eles têm uma diferença de dois, três anos, e tal, podem estar na universidade ao mesmo tempo. E se tiverem que mudar de localidade, isto é, um foi para a Cuvier, ou estuda o que está na Cuvier, ou estuda o que tem em Lisboa, porque a Cuvier acaba por ser mais caro, porque está deslocado, não é? Está deslocado. Bem, a passividade vem desta consciência de cada pai de família, portanto não estamos a falar de teorias, cada pai de família, da impossibilidade de ter pão sobre a mesa, como dizia o Eça, ter pão sobre a mesa para os seus filhos, ter uma escola para os seus filhos, ter um trabalho para os seus filhos e ter uma casa para viver e ter prosperidade. Poder fazer o que faziam os outros povos, sobretudo os povos da Europa, que nós desde o século XVI, XVII, começámos a ver-se uma separação total. Os povos avançavam. A Holanda, que era um país mais pequeno do que o nosso, era, é, um país mais pequeno do que o nosso. Muitos dos judeus que estavam lá tinham vindo de Portugal e de Espanha e eram mais ricos. Porquê? E a resposta do Cavaleiro de Oliveira é taxativa. O rei tem o monopólio dandia. Na Holanda ninguém tem monopólios, cada holandês, sobretudo a Amsterdão, mas cada holandês vai ao porto e paga um tanto, põe lá 100 florinhos, eu não sei se florinho no século XII era destino, põe 100 florinhos E arrisca, quer dizer, quando o barco, o galeão, voltar com canela e pimenta, aqueles 100 transformam-se em 150, não é? Eu faço isto por ano, todos os anos faço. No segundo ano perco, no terceiro mais ganho. E mais, Como eu não quero ganhar, desculpe, como eu não quero perder, o que é normal, vai-se fazer uma guilda, uma companhia de seguros, em que se eu perder, perdemos os dois. Ou seja, se é 50 que eu perco, a companhia dá-me 25 e ela perde 25 também. Isso foi na Holanda, no século XVI. Até a própria Câmara, Câmara de Amsterdão, investia, aliás foi a câmara que fez a companhia das índias ocidentais, para o açúcar. Este é o primeiro grande traço que é, não há mobilidade social em Portugal. Claro que eu vou mostrar o século XVI, XVII, XVIII. Hoje posso fazer um inquérito sociológico e até económico e mostrar que não tem sentido um banco que existe para os seus mutualistas, os administradores ganharem tanto como um banco privado, ou ganharem mais aliás, de um banco privado. Ora, depois, e portanto a consequência disto é a passividade. Não vale a pena eu continuar a trabalhar, também não vou pôr a chorar, então Eu não vou pôr a chorar a vida inteira, então eu torno-me relativamente servil para poder agradar ao meu senhorio, para poder agradar ao meu patrão, para poder agradar ao meu político e deposito as esperanças, até ao século XIX, deposito as esperanças na Igreja em Deus. No século XX nasceu o novo Dom Sebastião, que é Nossa Senhora de Fátima, deposito as esperanças na Nossa Senhora de Fátima. E mesmo assim, como não profio na virgem se não correr, eu compro tatalote ou
José Maria Pimentel
faço um
Miguel Real
tatalote, eu lutaria todas
José Maria Pimentel
as semanas. Quando eu estava a ler isso no seu livro, lembrei-me logo do Euromilhões e do Iafim, de que eu sou mais ou menos o objector de consciência. Porque aí... E acho que isso... Agora não sei os números de core, mas nós somos... Juro que nos mantemos como o país onde, proporcionalmente, as pessoas mais apostam nesse tipo de coisas.
Miguel Real
É a única possibilidade que eu tenho de dar o salto.
José Maria Pimentel
Sim, é uma espécie de... O problema é que isso tem um efeito pernicioso grande sobre uma série de outras coisas. Porque a pessoa acha que não existe um locus de controle sobre a realidade. E portanto eu não vou mexer porque... Claro, é isso. Isso tem uma série de ramificações engraçadas. Ou engraçadas, no sentido de curiosas. O Miguel estava a falar da desigualdade social e às vezes há duas realidades diferentes ou dois fenómenos diferentes que às vezes se confundem e não são iguais. Um é desigualdade social e outro é mobilidade social. Ou seja, um país como os Estados Unidos, por exemplo, é um país onde existe uma desigualdade social
Miguel Real
muito grande mas existe mobilidade
José Maria Pimentel
mas existe mobilidade social, não quer dizer que seja perfeita, e eles têm um problema grande com isso hoje em dia mas é diferente, o problema em Portugal, historicamente e ainda hoje em dia, é obviamente um problema de desigualdade mas é sobretudo um problema de falta de mobilidade é,
Miguel Real
não há mobilidade. Ou seja... Exatamente, é isso mesmo, eu estou de acordo.
José Maria Pimentel
E isso gera essa espécie de...
Miguel Real
A igreja e o exército serviam como fatores de atenuação dessa não existência de mobilidade nacional. Exatamente, uma espécie de paliativo.
José Maria Pimentel
E no fundo essa ideia do Quinto Império também está muito relacionada com isso. E depois há outro fenómeno que o Miguel... Eu não sei se este termo é cunhado por si, se for para mais, está bem gizada aquela questão do canibalismo cultural.
Miguel Real
Ah, sim.
José Maria Pimentel
Está com piada e é algo que está relacionado com isto, que é o facto de... Isto no fundo conduz a que haja uma grande aversão ao risco e um grande receio de que as coisas mudem porque a partir de a mudar mudam para pior e uma espécie de fenómeno que eu não consigo mapear completamente que é esta questão do canibalismo cultural ou da culturofagia que é outro termo que hoje em dia é engraçado, que é no fundo um fenómeno que nós observamos. Não sei onde é que o Miguel coloca o início disso, mas há ideias do pombalismo talvez, ou até antes disso.
Miguel Real
Sim, sobretudo a partir do pombalismo. Não, não, quer dizer, A partir da Inquisição. A partir da Inquisição, exato. A grande instituição canibalista. Exatamente. Tudo que era diferente...
José Maria Pimentel
Exatamente. No fundo é, há uma ortodoxia que condena tudo o que é a ortodoxia. Exatamente. Depois cessa a ortodoxia a mudar. Mas muda para o oposto. Torna-se a ortodoxia. Torna-se. A antiga ortodoxia passa a ser ortodoxia e nós vimos isso com os jesuítas, vimos isso com os republicanos, com os comunistas, depois ao contrário, a igreja antes estava de um lado e passou a estar do outro e mesmo hoje em dia no debate político vê-se muito isso, uma espécie de, eu costumo chamar isso intolerância face à ambiguidade, ou seja, ambiguidade no sentido de para eu estar convicto do que eu estou a dizer o outro tem que ser o contrário de mim. O outro tem que estar absolutamente errado, o que não é necessariamente verdade, ou seja, eu posso estar convicto do que estou a dizer e no entanto, assumir que o que o Miguel está a dizer pode também estar parcialmente certo. Claro, claro, exato. E esta intolerância com essa ambigüidade gera essa culturofagia e esse desconforto com a convivência de opiniões diferentes. Por isso é que havia aquele ponto do... Há dois fenómenos interessantes em relação a isto. Um deles, que ambos vêm no livro, é aquela questão, e o Miguel fala disso a propósito do Felizmente está ao luar, do Luís de Taumonteiro, que é aquela questão de... Ali o herói, no fundo, o herói da peça é alguém que parece ser o herói do povo, mas que depois é derrubado e ninguém faz nada a favor ou impedir. E há um fenómeno que nós temos muito ao longo da nossa história.
Miguel Real
A mulher, a Matilda. Matilda não
José Maria Pimentel
vai a todas as portas e ninguém a faz. Exatamente. E há um fenómeno que nós temos na nossa história, tivemos-lo pelo menos de forma absolutamente distinta no fim da monarquia e no fim do Estado Novo, que é, no dia anterior, parece não haver um particular descontentamento, obviamente, há uma fação descontente, mas a generalidade da população faz a sua vida normalmente e, portanto, está, de certa forma, implicitamente com a situação, mas a situação muda, o regime parece que cai mais ou menos de podre. Sim, claro, aí vem tudo para a rua. E a partir desse momento as pessoas já estão com a situação do dia a seguir. Já estão, exatamente. É uma espécie de receio das pessoas pronunciarem. E o José Gil fala daquela questão do... Como é que ele diz o... O medo, não ter medo, não é? Não inscrição. Não inscrição, exatamente. Não inscrição.
Miguel Real
Quer dizer, não inscrever na praça pública as minhas ideias.
José Maria Pimentel
E nós temos... O
Miguel Real
mensagem está a passar, quer dizer, a Europa, uma das grandes virtudes ou um dos grandes benefícios que a Europa nos trouxe foi trazer um conceito, tanto a culturofagia, por supõem que há um conceito que não existe, que é o conceito de tolerância e também o conceito de liberdade. Portanto, a tolerância faz-se em função de um campo político e social geral, que é o da liberdade, em que se autotoleram, se toleram mutuamente as diversas partes. A Europa, penso que, digamos, amaciou esse canibalismo cultural, mas ela própria, ela própria, Europa, está a desenvolver um novo canibalismo cultural que pode vir ainda a fete anos. Portanto, não é nada que esteja absolutamente firmado e resolvido. Pode voltar. Olha o Brasil, fui muitas vezes ao Brasil, o Brasil sobretudo as cidades, claro, não o interior. Nessas cidade, recantos parecem Nova Iorque, parecem Londres, outros parecem aldeias portuguesas, claro. Mas agora, com este novo candidato a Presidente da República, que está à frente das eleições, não lembro o nome
José Maria Pimentel
dele. Bolsonaro.
Miguel Real
Bolsonaro, exato, Bolsonaro, pode ser um regresso, um retorno terrível a situações de alta cultura canibalista. Todos aqueles que não estão no meu campo são heterodoxos e, portanto, põe um sapau que eu hei de chegar lá". Aquela frase dele, eu até me arrepiei, quer dizer, quando eu li no jornal, li no jornal, por supónico é uma frase dele, que ele teria dito que o problema do regime anterior foi torturar e não matar. Isso quando ele se referiu à antiga Presidente da República, que foi torturada, mas ela devia ter sido matada, ou morta, não é? Morta e pronto. O
José Maria Pimentel
regime anterior, ou seja, a ditadura.
Miguel Real
Pois, a ditadura. Militar. Era, exatamente. Mas
José Maria Pimentel
eu, em Portugal, até acho que mais do que... Eu acho que a nossa versão... Eu gosto dessa expressão, mas, se calhar, interpreto-a até de uma maneira ligeiramente diferente, a questão da culturalfagia ou canibalismo cultural. Porque não é... É certo que houve um período em que isso era muito mais acirrado, quando tivemos a Inquisição, o Max Pomal fez coisas inacreditáveis, mas aquilo que eu acho, o fenómeno que eu acho que existe hoje em dia, para mim está mais próximo até dessa questão da não inscrição do que o José Gil falava. Continuamos com o método. Não tem a ver tanto com haver posições extremadas e cada uma a querer derrubar a outra, mas mais quase se calharem, em resposta a um medo de que isso ocorra, uma espécie de rasura pela média de mínimo denominador comum. Aquele exemplo dos gelos tem muita piada, não é? O facto de nós não termos tido, como os Estados Unidos tiveram o Vietnâmia e França teve o... Já não sei qual era, por causa das guerras... Guerra de África, se eu não me engano. Exatamente, da Argélia. E nós Não tivemos um fenómeno idêntico com a Guerra Colonial. É certo que houve coisas, até hoje em dia estive a ler os cursos de Judas do Globo Antunes, que é exatamente sobre a Guerra Colonial, mas não foi um fenómeno. E hoje em dia observa-se muito isso. Observa-se... A propósito de uma série de coisas. Estou-me a lembrar, no outro dia, tive uma conversa destas com o Tiago Cavaco, que é pastor protestante. E estávamos a falar sobre religião, e ele estava a chamar a atenção para uma coisa que me agradou, porque é exatamente o que eu penso, que em Portugal há... Esse é um tema que é muito pouco falado, há uma espécie de compromisso tácito de que os crentes e os não-crentes respeitam-se mutuamente e a coisa só não fala. Ambos dizem umas coisas simpáticas. Isso é agora. É agora, exatamente. Os protestantes sofreram... Claro, é agora, justamente. Como minoria, sofreram imenso. É isso aí agora. É agora. Os protestantes sofreram,
Miguel Real
como minoria, sofreram imenso. Tanto até o liberalismo, até 1820, só eram admitidos protestantes em Portugal que fossem estrangeiros. Era um embaixador anglicano, embaixador de Inglaterra, era um anglicano.
José Maria Pimentel
Era o mínimo pragmatismo.
Miguel Real
Era, exatamente. A partir de 1820 a nova carta constitucional dá-lhes direitos a exprimirem-se livremente, mas diz logo no artigo seguinte que a religião do povo português é a religião católica e que ofender qualquer dos símbolos da Igreja Católica, conduz imediatamente à aparição. Portanto, a religião católica, não é cristã, por não é o problema. E o Robert Cowley, que é um pastor e médico protestante da Igreja Escocesa, que esteve na Madeira, e a Madeira já tinha uma igreja anglicana, portanto tinha um templo anglicano, mas quem é que ia para o templo anglicano? Eram só os ingleses que lá viviam, porque a Madeira foi, durante muito tempo, uma espécie de quarentena dos ingleses que vinham dandia, para não irem diretamente com doenças, possíveis doenças, micróbios, como eles diziam, bactérias, vírus, infestar a Inglaterra, ficavam ali durante algum tempo, tinham lá um conjunto de médicos e tudo aquilo, e tinha uma igrejinha, mas só iam os ingleses lá, iam. E o Roberto Callas chega, vai para o monte, olha e diz, este povo é um povo sacrificado e eu não consigo perceber, este povo é um povo analfabeto, este povo não tem hospitais e faz hospitais de campanha e começa a dar aulas de manhã e à noite, de manhã às crianças e à noite E nos hospitais consegue mandar vir remédios da Escócia e de Londres, lá da congregação religiosa dela, e distribui os remédios gratuitamente. Foi logo atacado pelo bispo, logo pelo governador. Foi... Atacaram a casa dele, atacaram todos os maderenses que o apoiavam, ele teve que fugir, a casa foi incendiada, antes foi preso, é uma longa história que não é longo de 5 anos, teve que fugir para um barco vestido mulher, senão não chegava lá vivo e os 2 a 5 mil não sabe bem congregacionistas da congregação dele foram postos num barco, foram postos em barcos e enviados para o Haiti.
José Maria Pimentel
Alguns pós-cariú.
Miguel Real
Ainda lá estão hoje, alguns foram depois para o Brasil levar as ideias de Roberto Kallig, protestantes, para lá. O realizador Sam Mendes é um neto de um que foi para lá, de Madeira. É, é engraçado. E isto da Madeira, aqui em Portugal continental, os protestantes não conseguiram desenvolver-se e estava escrito que se fizessem um templo não podiam ter ostensivamente a fachada virada para a rua.
José Maria Pimentel
E os judeus também. Os judeus? A sinagoga. Quer dizer,
Miguel Real
todas as outras religiões que não
José Maria Pimentel
fossem a igreja católica. Estive há pouco tempo na sinagoga aqui em Lisboa e... Bem, na Alcântara
Miguel Real
do Lano é virada para dentro. É
José Maria Pimentel
virada para dentro, exatamente, não é virada para a rua por causa disso.
Miguel Real
E mais, só a seguir ao 25 de abril, foram os protestantes, foram perseguidos pela igreja e pelo Estado, durante todo o regime do Estado Novo, os seus representantes maiores, ano sim, ano não, Não era prisão no sentido como se fosse um malfeitor, mas eram interrogados, iam a tribunal, etc. Portanto, e eram identificados, imagino, quando iam para a prisão, como me disseram, não sei, eram postos nas salas dos homossexuais, eram equiparados, os homossexuais eram presos, andavam à noite na rua e tal, ao pé dos quartéis, lá ia a polícia e prendia-os. Eram portos, portanto. Os protestantes, com esta história do canibalismo cultural, os protestantes, as diversas congregações protestantes sofreram imenso. É só a seguir ao 25 de abril que há um espaço de liberdade religiosa, não é?
José Maria Pimentel
Sim, mas isso é engraçado, sabe que essa questão do... Tudo isto que nós estamos a falar, uma das dimensões daquele social que eu falava no início, que é uma das seis, para além da outra que eu falei, que é a aversão à incerteza, que eu cito sempre porque é aquela em que nós claramente mais nos distinguimos dos outros países. Está relacionada com a necessidade de ter códigos de valores rígidos, mesmo que apenas rígidos na aparência, aquela coisa de ter regras mas que depois muitas vezes não são seguidas, que é absolutamente uma característica internacional e uma intolerância com a heterodoxia. E esta necessidade de ter regras é muito emocional. Ou seja, isto para dizer que... Depende
Miguel Real
de quem é o autor das regras.
José Maria Pimentel
Não, não, eu digo, a necessidade de as ter... Ah, de as ter a necessidade. É emocional no sentido de... Ah, sim, sim, claro. Ou seja, eu acho que isso também está muito relacionado com a nossa... Todo aquele irismo, a questão da saudade, a falta de sentido prático... Sim, claro, claro. Que historicamente, pelo menos, existiam. São duas faces da mesma moeda, no fundo é a minha intuição. Estou
Miguel Real
a perceber perfeitamente.
José Maria Pimentel
Que é engraçado. E outro ponto que eu acho interessante em relação a isto, ou que eu sou tentado a concluir quando leio sobre isto. Se a pessoa olhar para a nossa história nós conseguimos ver lá está duas coisas que no fundo estão presentes aqui na nossa conversa desde o início que é por um lado uma rigidez ou por outra um determinado substrato de valores que se mantém desde sempre que é difícil medir e eu achava interessante lá está como disse no início medir pelo menos hoje em dia. Obviamente para trás, como o Miguel disse, é muito difícil, mas há... Aquela questão da transcendência e da imanência
Miguel Real
é muito fácil. Este ano, Muito fácil de medir. Este ano? É, este ano foram 8 milhões. A Fátima? De portugueses a Fátima. Portugueses e estrangeiros, mas com, pronto, não imigrantes, quer dizer, estrangeiros. Portanto, se tirarmos 500 mil estrangeiros, foram 7 milhões ou 7 milhões e meio de portugueses, entre os quais imigrantes, entre os quais açorianos e madeirenses, a Fátima. É muito fácil de admitir. Um povo que vai a Fátima já não rasteja, já tem comportamento burguês, fala diretamente, intimamente com Nossa Senhora a rezar, então é um povo em que a transcendência é superior à imanência. Quer dizer, eu penso que, por outro lado, consolatoriamente a nossa poesia perdeu a imanência, e estou a falar em geral, não é? Não quero dizer nome de poetas... Perdeu a transgênese. A transgênese, hoje é uma poesia da circunstancialidade, poesia das coisas, poesia dos encontros gratuitos, dos acasos, dos acidentes, portanto perdeu aquela capa espiritual, não é espiritual, é uma capa metafísica que tinha, digamos, que o último grande poeta metafísico, se calhar ele ficaria ofendido, é o Rui Bel, que morreu em 76 ou 77. Para cá há uns que têm alguma metafísica, sem dúvida, até há um que era padre, era monge, o Daniel Faria, o Torentino de Mendonça, por dever tem que o ser. Estou a falar dos poetas novos que têm hoje 40, máximo 50 anos, Não estou a falar dos de 20 anos, que não se sabe bem o que é que vão ser, ainda estão um
José Maria Pimentel
bocado... Mas essa é uma luta, e isso leva ao outro ponto que eu ia fazer, é engraçado o Miguel dizer isso, que é, da mesma forma que existe um substrato que vem de trás, e o facto de sermos um país antigo permite estudar isso, antigo e coerente, Isto em Espanha ou Itália seria muito mais difícil de fazer. Ou até em França. Ao mesmo tempo que isso existe, também existe uma mudança grande e até uma mudança recente. Essa questão da transcendência versus imanência, para usar essa terminologia, ou se quisermos espiritualidade versus materialismo nas vantagens e desvantagens que cada uma delas tem, isso é algo que nós observamos, ou seja, claramente a cultura atual é muito mais, e eu confesso que me identifico mais com ela é uma cultura muito mais da imanência nesse sentido. Sim, sim. Europa
Miguel Real
foi um bem de imanência. Sim. Mas a reação...
José Maria Pimentel
E Fátima tem muito dano crónico. Tem, sem dúvida. Continua obviamente, quer dizer, esses números são...
Miguel Real
Mas nunca tanta gente como... Claro que veio o Papa, não é? Há uma espécie de espetáculo barroco com a vinda do Papa. A possessão das velas à noite é de uma beleza inexcedível. A cerimónia do adeus também. O Papa a atravessar por meio daquela multidão no Papa móvel, todos é um homem que é dito ser o representante de Deus na Terra, todos querem aproximar o mais possível dele.
José Maria Pimentel
Mas há aí duas realidades, ou seja, o país e sobretudo as gerações mais novas são cada vez menos crentes, embora, eu estou a dizer isto, não sei como é que nós comparamos com outros países do sul da Europa, outros países católicos, por exemplo. Eu não estou de acordo
Miguel Real
com isso. Nós somos... O menos crente parece...
José Maria Pimentel
É só a superfície. É, exatamente isso. É, sem os
Miguel Real
jornais todos os dias, ninguém é crente, ou poucos são crentes. Ou o Freiburg em Domingos, e mais três ou quatro. Se formos à missa, já há mais, mas não há muitos. Quer dizer, nós, era isso que tinha o livro de Fátima que eu não pude trazer, Nós acreditamos no sagrado, vivemos e temos esperança de entrar em comunhão com o sagrado, mas desprezamos, talvez seja uma palavra muito forte, mas desprezamos a religião institucionalizada. Até por todas as notícias, até pelas posições da igreja relativamente ao preservativo, relativamente ao divórcio e aos divorciados, relativamente ao celebritarismo, relativamente ao tratamento da mulher na igreja. Quer dizer, eu ia com a minha mãe à igreja da Penha de França, todos os fins de semana, ela era muito religiosa, na década de 50, ela morreu na década de 60, eram todos muito religiosos, não sei, sobretudo as mulheres. E hoje, aquela altura não dava importância, hoje vejo como ela era tratada, ela era aquela que comprava flores que eles não lhe davam o dinheiro, ela também não queria, mas comprava flores, limpava as jarras, fazia ou comprava… Pronto, as toalhas,
José Maria Pimentel
as toalhas, aquilo tem um nome agora não? Pois tem, pois tem.
Miguel Real
Comprava as toalhas para o altar, varria em última análise, não lhe incumbia, mas ela se aproximasse da missa no sábado à tarde e aquelas senhoras que enfim eram as que deviam ter varrido, não varressem, ela varria etc. Não me era dado nenhum privilégio absoluto e era tratada pela dona Rosa que é a que vem cá fazer e mais nada, que é dizer os padres e eram padres holandeses e eram padres portugueses era como se ela não existisse, só davam por ela se ela não trouxesse as flores para o altar de sábado e domingo. Aí sim, então o que aconteceu? Não estão cá as flores. Portanto, era um verbo de encher. Era um verbo de encher na igreja e, no entanto, não havia pessoa mais dedicada à igreja. Não tinha poder absolutamente nenhum, nem era perguntado absolutamente nada. Digamos que a grande autonomia dela é que comprava as flores que quisesse, não tinha... Não era... Diziam compra d'álias, compra isto...
José Maria Pimentel
Aquela questão da humildade, não é? Da generosidade que o Miguel também fala. Mas eu por acaso acho, por acaso, é curioso que eu discordo em certo sentido dessa visão em relação à atualidade. Ou seja, é certo que há um substrato cultural de alguma tendência para essa transcendência e sobretudo de um desconforto quando o raciocínio é demasiado materialista. Isso existe claramente, é visível e para mim é herdeiro disso. Agora, dito isto, se essa transcendência tivesse o peso que tinha antes, ela ter si a transferido da igreja católica para a igreja dos protestantes, por exemplo?
Miguel Real
Sim. Ou seja, e nós não observamos isso. Sim, mas a transcendência é pelo sagrado.
José Maria Pimentel
A transcendência é pelo
Miguel Real
sagrado. A adesão
José Maria Pimentel
é pelo sagrado,
Miguel Real
não é pela religião. Quer dizer, até o século XIX foi pela religião, em geral era pela religião. Mas é-se o Espírito Santo que tem os livros sobre a religião dos portugueses, religião dos portugueses, sobre o nome dos santos, tem o Episópio de Fátima, etc. Diz que o português verdadeiramente nunca foi religioso ao nível do cristianismo vertical, autoritário, do padre de costas para trás das gradas do altar.
José Maria Pimentel
É que a dia a pouco a necessidade de regras, mas depois não é para as cumprir. Não, não. Portanto, depois havia uma série de batotas
Miguel Real
a... Portanto, a senhora da aldeia era cristã, não podia deixar de ser, o templo era o momento e o monumento sagrado da aldeia, mas na sua vida do dia a dia continuava a ser pagã. Ele dá para 40 mil exemplos, é a religião popular dos portugueses.
José Maria Pimentel
É ultra-pagã, sim, sim, curioso. E
Miguel Real
trata tão pagã que trata aos santos, inclusivamente Nossa Senhora e a Virgem, como mais uma deles a antiga que ela deve prestar vassalagem. Os santos são uma herança do paganismo. Sim, eu acho que sim. Claramente. Se fossem a ser um padre, diria que não era tão clara.
José Maria Pimentel
Pois, mas antropologicamente é evidente. Quer dizer, o paganismo adora
Miguel Real
uma figura em si e o fim é ela própria o santo é adorado como interceptor para Deus nos nossos pedidos
José Maria Pimentel
é uma diferença obviamente que está devidamente enquadrado mas a aversão do Protestantismo aos santos tem muito que ver com esse regresso à raiz e o catolicismo mais pragmático. É, sem dúvida. Mas isso é muito interessante, porque por exemplo a nossa cultura, eu acho que o mundo rural, por razões óbvias, acaba por ser mais genuíno dessa cultura portuguesa original. E isso é muito visível, essa espécie de pragmatismo. É uma cultura que, na face, até é ultra conservadora, mas depois na prática, muitas vezes, até tem coisas que nos surpreendem pela liberalidade. Sim, sim. Há falta de melhor expressão. Mas enfim, Miguel, o que eu quero tirar mais tempo. Quer que eu fale dos livros? Era ir avançar para a rubrica de encerramento. Disse-me os livros. Pode ser um ou mais, é como quiser. Não, são dois. Então, esteja à vontade.
Miguel Real
São dois romances que acabam, estamos a falar em setembro, finais de setembro de 2018. Dois romances que acabam de sair, para falar a verdade, um deles ainda não saiu. Um é o prémio de literatura Agostina Bessa Luiz, escrito por... Que este ano ganhou Rui Lages, que é um poeta muito conhecido do norte de Portugal, que tem atividade política também ligada ao Partido Socialista, mas sobretudo é conhecido como poeta. Politicamente é muito discreto, mas tem atividade política. Ele ganhou o prémio com o romance fabuloso, que é o Invisível, que nos resgata um ferrante de pessoa esotérico, hermético, necromante,
José Maria Pimentel
burlão.
Miguel Real
Ele tem isso, mas burlão, junta-se com Augusto Ferreira Gomes, que era um grande amigo do Pessoa nos finais da década de 20 e fazem uma firma para fazerem sessões mediúnicas em casas endinheiradas, convencer viúvas que o marido ou os filhos... Estavam lá com eles. Estavam lá com eles. O Augusto Ferreira Gomes, isto é tudo inventado. Eu creio que tanta pessoa nunca fez nada
José Maria Pimentel
disso. Mas a parte dele acreditar nessas coisas não é inventada. Sim, sim, é verdade.
Miguel Real
E como é que o Jago Araújo Ferreira Gomes tem conhecimentos de técnicas fotográficas, de revoação, de fixação e consegue fotografar a senhora e depois ao revelar, ele explica lá, mas eu já não lembro como, aparece uma sombra por cima, é o tal, o marido ou o filho ou a irmã ou a mãe e tal, da senhora. E assim vão, de tal maneira eles são burlões que os antigos patrões do pessoa como correspondente comercial já nem querem falar com ele, não lhe dão. Bem, agora não vou contar mais. Como é que ele ganha esta visão mediúnica, digamos assim, esta capacidade de atrair o mundo invisível? Ele viveu na África do Sul, esta hipótese é muito agradável, e foi instruída, foi iniciada por uma criada negra, Zulu, que levava para o interior da floresta, e isso é tudo muito bem descrito, e faziam rituais pelos quais adoravam os deuses mais antigos da terra. Ele terá bebido uma certa bebida, uma certa poção, que a partir daí passou a ter essas visões etéricas. Não conto mais, porque agora vai-se desenrolar uma história de 200 páginas, o que é que ele faz com isso? Há uma aldeia que está a ser atormentada por espíritos do outro mundo, em Alvão, Serra de Alvão, que é ali a sequira Chaves. Ele vai de comboio lá, a viagem também. Portanto, Rui Lages, o livro chama-se O Invisível, é sobre Fernando de Souza. É um romance absolutamente magnífico, com a característica de ser o primeiro. O primeiro romance é o romance de estreia. Prêmio Agostina Bessa Luiz, obrigar que ninguém possa ter escrito romance antes. Poesia sim. O outro é Sandra Catarina, não sei quem é. Não sei quem é, uma pessoa muito nova. A Mundo Parca, na Badana, tem lá a dizer, fui professora de história e tal, já não sou, agora dedico-me só à escrita, então não sei quem é, portanto, vivem cascais, é só estas informações, Então não a conhecem, então é importante dizer. Escreveu um romance sobre a vida antiga numa aldeia, mas um romance de um lirismo. O do Rui Lágina não tem pouco lirismo. Este é de um romance lírico absolutamente fundamental. Os fios. Os fios. É o primeiro, também é o primeiro. Portanto, qualquer destes romances, se o leitor for mais para as curiosidades de investigação esotérica, de hermetismo, gosta de ir à Quinta da Regaleira em Sintra, compre o Rui Lajes. Compre o Peça na Biblioteca e compre, porque os escritores também têm que viver. Se for mais lírico e tiver um avô que veio do interior de Portugal com uma mão à frente e outra atrás, vai encontrar os fios, este romance que é absolutamente fabuloso. Pronto,
José Maria Pimentel
é isso. Ok, perfeito. Miguel, muito Obrigado por ter vindo.
Miguel Real
Eu é que lhe agradeço, foi um fim de tarde tão agradável.
José Maria Pimentel
Foi uma ótima conversa. Uma última nota para relembrar que podem tornar-se apoiantes deste projeto através do Patreon no site www.patreon.com.br, 45 graus por extenso. Obrigado a quem tem apoiado no Patreon, em particular ao Gustavo Pimenta, ao João Vítor Baltazar, ao Salvador Cunha, à Ana Mateus, ao Ricardo Santos, ao Nelson Teodoro e ao Paulo Ferreira. Até ao próximo episódio!
Miguel Real
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