#33 António de Castro Caeiro - “Como é que a Filosofia nos pode ajudar a viver melhor?”

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José Maria Pimentel
Bem-vindos! Prepare-se para uma conversa com um convidado que é tão descontraído quanto erudito. António Castroqueiro é várias pessoas numa só. No mesmo corpo, dentro da mesma cabeça, vive alguém que foi membro da mítica banda punk rock Mata Ratos, que trançou músicas como A Minha Sogra é um Boi, alguém que pratica Muay Thai porque, e cito, gosta de andar à pancada e depois de já ter feito 36 anos de Karaté, e ao mesmo tempo alguém que é um dos maiores especialistas portugueses em filosofia antiga e contemporânea e que cita diretamente do grego clássico e do alemão, como já vão ouvir. Com um convidado destes bastava não fazer a geneira para resultar daqui uma conversa interessante, mas isso não significa que tenha sido uma conversa fácil. O António é um convidado desafiante e as matérias da filosofia de que falámos são, para mim, campos com os quais tenho ainda uma relação algo difícil e até crítica, por alguns motivos de que falo ao longo da conversa. Mas enfim, já vão ver ou ouvir. Conversámos então sobre uma série de temas, desde filósofos-referência para o convidado, como Husserl e sobretudo Heidegger, da fenomenologia, sobre como viver autenticamente e até sobre o estoicismo e, para terminar, e podem não acreditar, sobre jejum intermitente. Só ouvindo. Mas antes de passar a conversa deixem-me agradecer às dezenas de ouvintes que se deram ao trabalho de responder ao inquérito que lancei há duas semanas. É mesmo muito útil para mim ter o vosso feedback. Aliás, continua a ser muito útil e demora apenas cinco minutos a responder. Por isso, mantenho o Icaritonline. Para quem puder responder, e quiser, claro, fica na descrição deste episódio o link para o site. Bom, e agora convosco António Castro Caeiro.
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António, bem-vindo ao podcast. Já estamos a gravar. Vamos entrar a falar de filosofia. Antes de falarmos de alguns aspectos mais concretos, havia uma pergunta que eu gostava de fazer, porque não é todos os dias que se tem aqui um filósofo no podcast. Um professor de filosofia. Um professor de filosofia. Filosofia é uma área engraçada porque eu acho que as pessoas têm alguma dificuldade em defini-la. Eu próprio tenho alguma dificuldade em fazer-la. Ou seja, na Antiguidade, filosofia era quase sinónimo de uma espécie de protociência, quer dizer, tudo era abarcado pela filosofia e depois a partir da modernidade a filosofia vai ficando acantonada num terreno muito mais específico e que é muito mais difícil de definir. A minha intuição é que tem a ver com a filosofia está sempre a tentar, por um lado, tendo a ser abstrata, mas sobretudo, eu acho que mais do que isso, o que eu defino é tentar ir em qualquer campo que esteja a analisar, tentar ir às fundações, no fundo, ao que está por baixo do que é que se esteja a fazer sobre aquilo. Por exemplo, eu já tive o palcato que é a filosofia de ciência e o que uma filosofia de ciência faz, por exemplo, na área da inteligência artificial, é muito isso, é tentar ir às fundações e questionar o que é que se pode concluir, o que é que pode ser conhecimento. Aquilo que enquanto outsider sempre me criou alguma distância face à filosofia contemporânea, ou moderna e contemporânea, é o facto de tender a ser muito idiosincrática, a estar dependente da obra de alguém. É óbvio que existem correntes, mas parece que cada autor cria o seu sistema quase fechado, muitas vezes críptico, muitas vezes com uma linguagem muito específica, e o Heidegger, que já vamos falar, é um bom exemplo disso, que é quase impenetrava para cá vindo fora e que parece estar contido sobre si mesmo, ou seja, parece morrer a partir do momento em que aquele autor, ele próprio, morre e outra
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pessoa cria um sistema diferente. Tu fazes, digamos assim, uma espécie de introdução com comentário, e eu queria... Não,
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não, está à vontade para descascar tudo. Eu fiz de propósito para juntar duas coisas numa só. Então,
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eu começava mesmo pela parte inicial e é uma das minhas preocupações sempre, porque eu dou aulas de filosofia antiga e calha filosofia antiga, porque há uma espécie de visão darwinista, primeiro vêm os antigos, depois os medievales, depois os contemporâneos, e a mim calha-me o primeiro semestre do primeiro ano porque dou Filosofia Antiga e uma das minhas preocupações é precisamente procurar destruir a opinião. Ou seja, a Filosofia tem como inimiga a opinião. Isto é, a ideia de que cada um de nós pode dizer o que lhe apetecer acerca do que quer que seja ou de quem quer que seja, sem justamente ter essa ideia de fundação. Heidegger fala até de uma sonda que desce até à profundidade do abismo para ver onde é que estão os alicerces daquilo que depois pode ser a espuma dos dias ou pode ser justamente a ponta de um iceberg. Bom, normalmente ou habitualmente, quando eu era miúdo, a filosofia era traduzido por amizade pelo saber. Ora, nada pode estar mais afastado da realidade linguística do termo filosofia, do verbo filosoféugen ou do substantivo philosophos, porque a palavra é um composto de philo mais de sophos ou sofia e philo, philia, não quer dizer apenas amizade, quer dizer na verdade uma adesão compulsiva a qualquer coisa. É como se tivesse um OCD, Obsessive Compulsive Disturbance, e isso é o que está a ser designado por filia. Pode ser por cavalos, pode ser por mulheres, pode ser por vitória, pode ser por contenda, pode ser por o que quer que seja. Neste caso o objeto da filia é a sofia, e que em grego quer dizer transparência. E portanto a tese habitual não é, nós já temos um saber e depois gostamos muito de saber e queremos saber mais e mais, a tese fundamental da filosofia é, há opacidade, falta de transparência, Eu estou no domínio da ambiguidade, do mal-entendido. Puseram-me uma venda nos olhos, levaram-me para caminhos e envios. Desatam-me a venda dos olhos e a primeira pergunta que eu faço é onde é que eu estou, que dia é hoje, que horas são, como é que eu vi aqui parar. Quer dizer que a tensão da filosofia resulta justamente da opacidade e, portanto, positivamente da tentativa de obtenção de transparência. Isto é, de forma genérica, como várias palavras como sofó, sofia, safena, o adverbio sofoso, quer dizer, na verdade, clareira aberta, transparência, onde no meio, completamente adverso, e é de opacidade, falta de transparência, ambiguidade, meias tintas, etc. Esse é o primeiro ponto.
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Ou seja, fazer, encontrar transparência no meio da
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escuridão. Ou seja, a tensão é como se nós estivéssemos sob uma pressão de opacidade e, portanto, tu queres é obter a tua transparência. O outro aspecto que focaste prende-se justamente com uma ideia complexa da abstração e do concreto que são categorias anacrónicas relativamente ao pensamento antigo, porque os textos fundacionais da filosofia na verdade são os escritos hipocráticos, são os escritos médicos. E a medicina hipocrática, de hipócrates ou de todas as escolas, que justamente constitui o corpus hipocrático, defendem uma espécie de filosofia holística, de medicina holística, isto é, o problema deles nem sequer é o problema da perceção, ou seja, da sincronização entre o ponto de vista e um determinado objeto. O problema deles é um problema de diagnóstico e um problema de prognóstico e, portanto, tem em si já a partida, de uma forma muito mais inteligente do que a mera teoria da perceção, tem uma teoria da antecipação, de uma prolepsis, e, portanto, da tentativa de construir, digamos assim, um projeto que vem justamente pela tentativa de defesa, por medidas profiláticas ou então tomar medidas SOS para resolver um determinado problema. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto tem que ver com a ideia de que eu sou o que como e, portanto, tem que ver com a ideia de dieta, no sentido não apenas de regime alimentar, mas na ideia de que eu estou inserido num meio, num mundo envolvente e é completamente diferente esta situação filosófica da situação cartesiana ou kantiana, eu sou um sujeito e tenho o mundo
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contra mim como objeto.
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E, portanto, nós lemos da Eprísica Medicina Antiga, o que nós vemos é justamente a identificação das dietas sólidas, líquidas, se deves comer muito ou pouco, se deves jejuar, que é esta ideia agora do intermittent fasting. Era uma ideia muito antiga, eles comiam uma vez por dia e comiam quando havia comida, mas também noutros textos dos ares, das águas, agora não me lembro do título completo, mas onde se identificam os diversos pacientes como vivendo no litoral ou no interior, na montanha ou na planície, no plano alto, na região norte ou na região sul e estão expostos às horas do dia, estão expostos às idades da vida, estão expostos às estações do ano, estão expostos, na verdade, ou seja, é um mundo que não está contra mim mas sou eu no mundo, Eu sou portador do mundo como o mundo é portador de mim. O que é que Patoeiro e Aristóteles fazem? Por exemplo, conceitos como eidosse, forma ou ideia, apresentação, estão a utilizar os termos dos hipocráticos para fazer um diagnóstico. O diagnóstico é um diagnóstico também da doença, de uma doença para a morte, que é a vida, não é sexualmente transmissível, mas no sentido precisamente em que o polo de resolução é um polo de resolução do sentido, Obviamente de uma hiperbolização do problema. Como é que eu posso ser eterno? Como é que eu posso ser o melhor possível? Como é que eu posso ser o superlativo absoluto? Como é que eu posso ser o máximo? Como é que eu posso ser um necrosultra? Assumindo à partida que os graus de comparatividade são insuficientes para resolver a equação vital, porque a imagem que eu tenho de mim próprio é ser o máximo e, portanto, pobretes mas alegretes, como diz o povo português, é insuficiente para um grego. Portanto, eu posso resolver o problema da medicina, Wittgenstein diz isso, alguns no Tractatus, eu posso resolver o problema das ciências mas não resolvo o problema do sentido da vida, portanto o mundo dos felizes é completamente diferente do mundo dos infelizes e contudo é estudado da mesma maneira pela ciência. Esse é um aspecto que quer dizer que é uma vivência absolutamente maciça e portanto concreta, não abstrata, da totalidade. O que acontece a partir dos atomistas e a partir, em parte, de Platão, depois de Aristóteles, que tinha como heróis os atomistas, Demócrito e Leocipo, O que existe é justamente uma espécie de compartimentação, de enciclopédia de disciplinas. Aristóteles inventa a medicina, a biologia, a lógica, a epistemologia, a metafísica, a ética, a política, etc. E portanto, o que existe é uma espécie de especialização já à Bonne Lettre daquilo que no fundo depois é reivindicado por Heidegger na pergunta pelo sentido do ser em geral, die Frage nach dem Sinn von sein überhaupt. E isso significa justamente que há uma enorme dificuldade em equacionar de novo, em pôr o problema, levantar a questão, fazer a pergunta do ser como tal, isto é, da vida. E esse é o problema que aparentemente pode ser abstrato, mas quando estás metido lá no meio, és levado, atraído pelo abismo, como diz o Nietzsche, e ao contemplares o abismo tu transformas-te no abismo, ou então não há filosofia. Ou seja, a filosofia é como a música. Ou tu escutas música e voas, danças um slow com a namorada aos 14 anos, ou saltas que nem um doido ouvir punk rock, ou então não há música, porque se alguém estiver a tentar decifrar por decibéis o que está ali a acontecer, não se agarra a miúda e não salta. O que é que acontece na modernidade? O que acontece na modernidade, em certa medida, não é uma especialização, a deslocação do problema do mundo, do problema da vida, para uma coisa absolutamente incrível chamada o eu. E, portanto, como é que o eu, na conjugação verbal, passa a ser, digamos assim, o subiectum, o hypokéimenon, como diz Aristóteles, a partir do qual eu penso a desmultiplicação dos heterónimos, do comité, como diz Nietzsche, que eu sou, ou Platão diz também, cada um dos cidadãos de uma cidade é a totalidade dos cidadãos dessa mesma cidade. E portanto, não há um problema do solipsismo, como é que eu chego ao outro, à partida eu estou escancarado no conjunto de todos os outros, as gerações passadas, as gerações futuras, da contemporaneidade. Quando eu reduzo, como Descartes, o penso ao eu, eu posso deixar de parte, como diz Heidegger, o sum, porque a equação do sum nunca é como a do ego, porque o ego é eterno, o sum é sempre moribundo, é aquele que tem de morrer. E portanto, nesse sentido, a filosofia aí aproxima-se da perspectiva médica e da perspectiva teológica, de uma teologia da cruz e não de uma teologia da glória, onde justamente o problema é posto exacerbadamente na minha relação com o outro. E a minha relação com o outro não é o outro em geral, é a minha mãe, é o meu irmão, é a minha tia, a minha namorada, os meus amigos. Eles? Eles, Concretos. E que é facilmente perdido, é o Beltrano, Sicrano, fulano, não é? É como vês a tua mãe referida, aquela mulher ou aquela gaja, e tu passas-te por precisamente, é, é a minha mãe. E precisamente quando eu digo, é a minha mãe, o conteúdo é a minha mãe e quando tu dizes a minha mãe, o conteúdo é a tua mãe e, digamos assim, a tradução é também uma tradução complexa porque é uma tradução formal, mas, objetivamente, estamos em mundos completamente diferentes. Portanto, o problema da filosofia, a partir de determinada altura, corresponde ou vais para uma tese absolutamente reducionista e, portanto, equacionas a vida a uma relação de sinapses, a uma relação neuronal com sinapses e procuras ver o que é uma inteligência artificial, que é uma duplicação para mim do problema e uma falsa problematização do que está aqui em causa, que é muito antiga, muito antiga. Ou, por outro lado, pões o problema de outra maneira que não o resolve, mas hiperboliza-o de certa maneira, que tem que ver com um problema do sentido e não com um problema do referente, um problema da equação da ciência e não da resolução técnica ou científica.
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Sabia? Há pouco falavas da questão da opinião. O que me pareceu que querias dizer é que a função de alguém que aborda estes problemas é tentar esporgar a análise que se está a fazer da opinião do próprio. Do preconceito. Sim. A dificuldade que eu tenho a entrar na obra de alguns filósofos mais recentes, aí o Heidegger era um exemplo desse, porque na prática é um filósofo praticamente contemporâneo, é o facto de que, ao contrário do exemplo de Aristóteles, por exemplo, é um exemplo engraçado porque alguém era um polímata, basicamente, fazia quase tudo e integrava de certa forma aquilo que fazia, aliás, muitas das coisas até com uma integração que hoje em dia a pessoa não apanha. Essa questão do Intermittent Fasting é um exemplo engraçado. A filosofia feita hoje em dia não pode estar abstraída daquilo que são os progressos que foram feitos na ciência. É evidente que a grande dificuldade é perceber até que ponto é que nós podemos assegurar que aquilo que foi descoberto é a verdade ou não e é conhecimento válido e depois por outro lado até que ponto é que ele é válido para mim? Até que ponto é que eu, enquanto sujeito com uma vida específica, sou compreensível à luz daquilo? E eu admito que não seja muito fácil, ou que seja impossível, basicamente, nós conhecermos a nós próprios e decidirmos, no fundo, como viver a nossa vida, que é a pergunta a que se está a tentar responder, só com base nisso. Mas totalmente abstraídos disso também me parece difícil. E aquilo que eu vejo, vendo de fora, e isto é um bocadinho a arrogância da ignorância, vendo a coisa de fora parece-me que muitas vezes há uma abstração completa daquilo que são progressos que foram feitos e conhecimentos que existem em relação ao ser humano em geral e em relação à forma como nós estamos, hardwired, não é? A maneira como nós funcionamos e algumas coisas das quais estão comuns a todos nós, independentemente da nossa situação
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específica. O Aristóteles, comentando com o exemplo do filósofo, como lhe chamava, São Tomás de Aquino, dizia que as propriedades dos ângulos internos de um triângulo são sempre as mesmas, tenho eu dor de dentes ou não. Isto é, o progresso científico deixa em colmo a minha culpa, a minha traição, o meu remorso, o meu amor. Mas
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não ajuda a explicá-los?
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Não, nada, porque explica entes com outros entes e, portanto, o que faz é que todo o modelo explicativo científico parte de uma hipótese e a hipótese é uma tentativa de compreensão da realidade que depois é aplicada pelo médico científico. Agora, os problemas da existência mantêm-se em colunos e continuam a ser postos. As mesmas perguntas acerca da felicidade, sejas tu um marxista materialista e achares que quando morres não vai haver nada, sejas tu um crente que acha que vai haver vida para além da morte, os problemas mantêm-se os mesmos, ou seja, os mesmos desafios, os problemas dos filmes dos anos 30 são os problemas dos filmes de 2000, 2020 e portanto tu podes ter um Blade Runner, podes ter, sei lá, uma sociedade em que existem clones, podes ter o que quiseres. No fundo, nós estamos sempre sozinhos a ter que ver connosco relativamente a um projeto de futuro. E portanto, nós estamos na situação do Kurtz no Heart of Darkness em que diz o horror, o horror e nenhuma ciência te alivia, nenhuma ciência é capaz de explicar o que é um medo sem objeto. E portanto, enquanto a ciência tem objetos e tem de ter um referente, o programa da filosofia é, corresponde, digamos assim, como diz Platão, a uma forma de como nos tornarmos pacientes psicológicos. Como um grande professor da tua cidade escreve um livro como nos tornarmos pacientes psicológicos, não lembro bem, psiquiátricos,
José Maria Pimentel
alguma coisa assim.
António de Castro Caeiro
E, portanto, o ponto é justamente esse, é como é que tu podes ter, do ponto de vista científico, um controle absoluto do método, tanto quanto possível, mesmo que mudes de paradigma, ou seja, tu passas de um espaço euclidiano para um espaço riemanniano multidimensional, tu passas de um tempo newtoniano para um tempo einsteiniano, mas o problema de tu seres o teu tempo, tu teres os dias contados, seres cronicamente finito, não é anulável por nenhuma explicação científica. E, portanto, os problemas da filosofia, como os problemas da religião, como os problemas da arte, são equacionáveis e resolúveis, tanto quanto possível, de maneiras diferentes, mas nenhuma explicação científica me acalma o suficiente. Ou seja, sem dúvida, a técnica, a indústria, a medicina, sei lá, eu lembro-me que o meu pai teve duas vezes tuberculose, sobreviveu a essas duas vezes por causa das invenções médicas e portanto, sim, são como digo, kiones sinequibus non, mas não te resolvem o problema da tua relação afetiva. Se vais casar ou se não vais casar, como dizia Sócrates, em Diógenes Lércio, quer te cases, quer não te cases, vais-te arrepender sempre. Se casares, arrependes, se não te casares, arrependes, quer te cases, quer não te cases, vais-te arrepender.
José Maria Pimentel
Mas posso saber porque é que os exames que davas são mais de técnica do que de ciência, embora estejam relacionados. O que falava, a ciência é termos do conhecimento e não necessariamente das valências, mas o que nós sabemos hoje, sabemos que quer que nos casemos, quer não casemos, seremos em parte infelizes, porque isso faz parte da condição humana, mas sabemos melhor os motivos pelos quais seremos ou deixaremos de ser. Se reduzísse a equação de Aristóteles, de Totsaon, de
António de Castro Caeiro
Logan, de Econ, o ser humano é um animal vivo que é capaz de falar e que é traduzido pelos estoicos por Seneca por animal rational, o que tu vais ver é se eu me reduzir ao meu ADN, está bem, e so what? Eu não resolvo nenhum problema.
José Maria Pimentel
Então deixa-me fazer a pergunta de outra forma. Pegando aquilo que eu falava inicialmente, no fundo há um problema que é eterno e que tem sido abordado por vários filósofos, por vários pensadores. Nós estamos a falar só de um dos problemas da filosofia, Estamos a falar no fundo do ramo da ética, eu diria, não é? Ou seja, como devemos viver o que... Como devemos gerir a nossa própria vida, finitude, tudo o que está relacionado com isso. Nesse caminho que foi sendo feito de forma mais ou menos idiosincrática por vários pensadores ao longo da história, o que é que nós hoje já sabemos que não sabíamos há 2 mil anos, por exemplo? Ou por outra, se calhar vais me dizer que não podemos saber nada, mas que conforto podemos ter hoje que não tínhamos antes com o caminho que já foi desbravado por quem já pensou sobre isto?
António de Castro Caeiro
Quer dizer, eu acho que nenhum. Ou seja, se nós acreditarmos na palavra de Nietzsche, Deus morreu, não é? E como Deus, interpretado pela filosofia, significa a possibilidade da constituição do sentido absoluto, superlativo, do bom, do belo e da verdade. Mas isso já é uma mudança. Em
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si mesmo já é uma alteração. Já
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é uma alteração. E, portanto, significa que... Digamos assim, acho que só por uma enorme leveza é que nós podemos afirmar com alegria esta palavra, que Deus morreu. Zaratustra diz Deus morreu. Na verdade lança um desafio que significa eu penso filosoficamente, ou dito de outra maneira oferece-se-me a pensar filosoficamente naquelas circunstâncias da minha vida em que nada faz sentido. Eu às nove da manhã de um domingo, depois de um heavy weekend, não sei como chego à hora do almoço sem sofrimento. E portanto verifica-se as palavras do Apocalipse de João de Patmos. Entais, aquenas e meireis, hoi anthropoi, epithumusi, thnesken, cairothanatos, theugoi, Apauton. Naqueles dias os homens procuraram a morte e a morte fugia deles. Portanto, são circunstâncias de esvaziamente completo sentido. Portanto, não são perguntas que eu faça das nove às cinco da tarde, segunda à sexta e até aos fins de semana, são perguntas que resultam justamente… eu sou o objeto dessa mesma interrogação. E portanto, nesse sentido, todo o património do saber, todo o tesouro do saber humano é completamente inútil para mim. E é nesse ponto cego do retrovisor, nesse ponto cego que a filosofia acontece, ou seja, pontos de fuga onde a filosofia acontece. E portanto, nesse sentido imaginemos que alguém resolve os problemas filosóficos, que Cristo morreu na cruz e que foi acolhido pelo Pai e cada um de nós tem que percorrer a via sacra, não tem outra hipótese. E portanto, nesse sentido, a despistagem é uma despistagem que nós fazemos, ou seja, a inquietação científica, a curiosidade científica, a necessidade científica, tem que ver com qualquer coisa completamente diferente do método científico, da aplicação, da vida das criaturas que têm bolsas da FCT para desenvolverem programas de investigação. Porquê? Porque necessidade, curiosidade, gozo, correspondem a categorias aparentemente subjetivas, que é isso que de alguma forma move, como nós vemos, as descobertas científicas, ou seja, as casas em que Einstein viveu, a forma como Newton vê uma maçã cair pela primeira vez daquela maneira. E, portanto, isso significa que o momento antes de uma ciência ter sido matematicamente constituída é um momento de absoluta rotura, de abismal relativamente à opinião. Um exemplo simples é, nós achamos que é a terra que anda à volta do Sol, mas nós vivemos num mundo ptolemaico, porque vamos ver o nascer do sol e o pôr do sol e não vamos ver o baixar da terra ou levantar da terra, não é? E portanto nós, por exemplo, relativamente a isso, temos uma perceção do mundo em que nós vivemos exatamente essa e obviamente nós vamos ver é o nascer do sol, vamos ver o pôr do sol e não vamos ver qualquer movimento da Terra a fazer aquilo que nós sabemos desde Copérnico que faz. Portanto, neste sentido, digamos assim, a esfera, a interpretação do ser, da existência é concreta e maciça e o que existe no projeto da ciência, o que existe no projeto artístico, no projeto religioso correspondem a disciplinas e, portanto, a abstrações de qualquer coisa que fica à montante delas. E, portanto, aquilo que os gregos identificam como permanentes diz estigar aenai porque, na verdade, o que existe é ser e ser quer dizer estar presente e estar presente quer dizer no limite para sempre corresponde a características categoriais da temporalidade e não especificamente a conteúdos analisados mesmo do microcosmos ou macrocosmo. Ou seja, voltando um pouco atrás, Se nós reequacionarmos o projeto filosófico crítico de Kant, onde ele faz quatro perguntas. A primeira pergunta é, o que é que eu posso saber? Crítica de razão pura. O que é que eu posso fazer? Crítica de razão prática. O que é que me é permitido explorar a religião, a antropologia, e a parte final, o que é o ser humano, ou seja, são estas perguntas complexas que encarnam as perguntas dos estoicos da Antiguidade, correspondem precisamente a despistagens completas que levam no fundo a dizer isto. Eu posso não saber aquilo que eu gostava de saber, eu posso não ser como eu gostava de ter sido ou a fazer o que eu devia fazer, mas a pergunta fundamental é o que é que me é permitido esperar? E a resposta pode ser a do desespero e portanto não me é permitido esperar nada, ou pode ser a da esperança gloriosa, é me permitido esperar tudo, mas a resolução sóbria é que nós sabemos que há um cash flow e há um custo de oportunidade, nós não podemos ter tudo, esse é o déficit da finitude e a questão fundamental é, em épocas de balanço, nas relações mais intensas com os amigos, com paixões, com a nossa profissão, se imigramos ou não imigramos e se imigramos, regressamos ou não regressamos, Ou seja, todas as nossas escolhas, no momento da escolha, mesmo que o momento da escolha seja feita quase cegamente, mas os momentos prévios à escolha são momentos em que tu equacionas esta pergunta, was darf ich erwarten? Qual é a noção da minha expectativa? E portanto, eu acho que essas perguntas nunca são perguntas antigas, mas são perguntas arcaicas, isto é, têm futuro. Estas perguntas têm absoluto futuro, enquanto a ciência é estafada e, portanto, os paradigmas científicos, a cada nova invenção maravilhosa que cura doenças e que mantém as pessoas vivas sem sofrimento não conseguem, porque nunca fizeram esta pergunta, que é uma pergunta que tem que ver com se é o amor que resolve a minha vida e qual amor? Amor por Deus? Há pessoas que toda a vida amaram Deus e nunca O viram e uma pessoa ama aquela rapariga ou aquele rapaz conforme, ou uma profissão, desporto, o quê? O que é que te mexe? E essa pergunta, o que te mexe é um resultado no presente relativamente a objetivos, no curto prazo, no médio prazo, no longo prazo. Porque se suprimirem o prazo Até o curto, o que acontece é a ausência completa de sentido e é, como Nietzsche já dizia, Deus morreu. Eu não tenho expectativa. Eu ponho o dedo na existência e eu sinto tédio. Tenho todo o tempo do mundo e não consigo fazer nada dele.
José Maria Pimentel
Estavas a falar, estava a me lembrar de um exemplo que acho que está mais ou menos relacionado com isto que o Sartre dava numa aula, salvo erro, que era do aluno dele que tinha que tomar uma decisão difícil, tu conheces a mesma certeza, entre, isto era, julgo que era durante a Segunda Guerra Mundial, que ele tinha que escolher
António de Castro Caeiro
hoje… Acho que é na carta sobre o humanismo. É? Talvez, talvez. Não, essencialismo é um humanismo. Acho que é nesse texto.
José Maria Pimentel
Rapidamente, portanto, só para explicar a quem está a ouvir, ele tinha ou que se juntar ao exército, portanto fazer o papel dele por uma guerra em que ele acreditava, ou ir assistir a avó, avoeiro, que estava inválido ou perto disso e, portanto, que dependeria de alguém para assistir. E, portanto, era a escolha entre, o trade-off lá está entre fazer pouco, é algo, num projeto que ajudava muitos, sendo que ele acreditava nele, é preciso esse disclaimer, ou fazer muito num projeto que infelizizava só uma pessoa. E o que ele dizia é que não havia escolha certa nem escolha errada naquele aspecto. Sim.
António de Castro Caeiro
Faz-me lembrar, alguém me dizia há muitos anos que a diferença entre a iconografia católica e protestante era que Cristo na católica tinha os braços bem abertos e estendidos para abraçar a humanidade, mas na protestante tinha os braços não estendidos porque só podia abraçar algumas pessoas. Portanto, a ideia dessa dificuldade complexa, se tu podes salvar uma pessoa, se salvas a humanidade ou o projeto se calhar cristão que é se eu salvar uma única pessoa num dado momento da minha vida eu o salvarei, terei salvado a humanidade. A ideia do humano no outro, a ideia de que o outro é portador de vida. Eu também não saberia como decidir, ou provavelmente eu decidiria, porque não acredito em guerras, eu decidiria, poderia cuidar da
José Maria Pimentel
minha avó. Pois, por isso é que eu disse que era preciso. É preciso ter... Neste exemplo só funciona na premissa dele acreditar, senão não funciona nada. Mas nesta... Uma das vertentes da filosofia, se calhar a melhor categorização, ou método a que estás dedicado é a questão da fenomenologia, que
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é
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a criação do Husserl. Husserl.
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Husserl. Husserl. Husserl.
António de Castro Caeiro
Até eu dizia Hursle, em deem
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of. Os anglo-saxónicos dizem. Corrigiste-me pronto a mente. E é, lá está, entre outras coisas, um método que teve também a sua influência em várias áreas da ciência, da psicologia, à própria inteligência artificial, que falavas há pouco. Acho que o mais fácil é o pedido para explicar,
António de Castro Caeiro
vais fazer-o melhor do que eu, de certeza. A ideia, digamos assim, básica na formulação de Husserl é que a consciência é a consciência de algo E a desformalização disto significa que a minha ideia de amor é uma ideia de amor maternal, de amor paternal, de amor fraternal, de amor filial, de amor…
José Maria Pimentel
Tem um objeto. Tem um objeto.
António de Castro Caeiro
E esse objeto existe apenas por um projeto da própria consciência. Ou seja, o objeto em si é como Kierkegaard diz isto, vejo mil vezes uma rapariga e à milionésima primeira vez apaixono-me por ela. Qual é a diferença? Ou então que a água ferve, a água vai aquecendo até 99 graus mas mais um grau mete em ebulição. E portanto o ponto é precisamente este, de que um determinado conteúdo explicado pela ciência é neutro de consciência, mas à luz da própria consciência, na sua projeção de amor, ódio, de empatia, de simpatia, antipatia, de indiferença, corresponde a adumbrações, a pechá de um gano. Isto é, a própria realidade corresponde a uma realidade que está pincelada por determinações da própria consciência. Ou seja, agora vim ter aqui contigo a tua casa, esta zona de Lisboa não é frequentada por mim habitualmente, mas lembra-me, vindo das passadas aqui e, Portanto, corresponde a quê? A qualquer coisa que já não é neutra, como se fosse um sítio onde eu fosse para a primeira vez, mas tem, digamos assim, a sombra da consciência a bater sobre esses mesmos conteúdos. O que você lhe faz, digamos assim, é uma espécie de redução ou recondução de todo e qualquer conteúdo à consciência. Ou seja, nós vemos a sombra dos quadros na tua parede e eu diria que é a cor da sombra, mas se um pintor estivesse a pintar a cor da sombra teria de pintar com cinzento. Eu vejo o brilho dos sapatos num quadro e a cor do brilho dos sapatos, quando o pintor pinta o brilho a cor, pinta o brilho com a sua cor, o que ele está a pintar branco e não nos passa pela cabeça que a sombra é cinzenta e que o brilho dos sapatos é branco. E, portanto, o que ele faz é justamente procurar, ele chama aquilo de conteúdos elétricos, conteúdos materiais, serem reconduzidos a morfemas ou a configurações da própria consciência que estão a constituí-los. E, portanto, aquilo que aparentemente é em si, impermeável à minha própria consciência, está a ser constituído por mim. No limite, o que ele faz é reconduzir todo o dado da consciência à temporalidade, do que eu tenho uma impressão originária, um agora agora, e que o agora agora não se escapa completamente porque fica retido e essa retenção do passado é uma retenção de um conteúdo que já não pode ser percepcionado, como quando vemos uma moto a passar a alta velocidade, nós vemos o motoqueiro e a moto a serem distendidos ao longo do tempo, mas se eu tentar atirar aquela criatura quando já passou, eu não consigo atirar, não consigo acertar nela porque já não está lá. E por outro lado tem um conteúdo de expectativa, ou seja, quando estamos a conduzir numa estrada cheia de curvas e contracurvas, nós estamos sempre com um olho no que está a seguir e nunca estamos a ver exatamente o que está a acontecer. Ou quando estamos a passear, sei lá, na baixa, a contracorrente, nós aceleramos o passo, nós abrandamos, nós desviamos e isso é feito por antecipações. E, portanto, o problema da antecipação em Husserl é justamente a ideia de que o tempo não é passado, presente e futuro, mas é exatamente o contrário. Futuro e o futuro como possibilidade caem no presente, constituem-se e depois de ser constituído passa ao passado e o passado de primeira ordem, de segunda ordem até cair no esquecimento. E portanto a consciência corresponde a esse fluxo heraclitiano, como ele chama. E portanto, fenologia porquê? Porque a palavra alemã é Erscheinung, aquilo que aparece é mais do que o conteúdo aparecido e, portanto, eu olho para ti e sei que tens costas porque não faz sentido que só tenhas, digamos assim, a apresentação direta, mas nós temos ideia de que uma grávida há de ter lá uma criatura, ou duas ou três, ou o que for, pode ser de um sexo ou de outro, de uma etnia ou de outra, que as gavetas hão de estar cheias ou vazias, ou então são apenas as portas das gavetas, que os armários hão de ter roupa ou loiça, e portanto o que nós vemos é apenas a camada superficial da apresentação perceptiva, contudo, nós vemos muito mais do que aquilo que lá está. E, portanto, a tese do Fusserl é, na totalidade das apresentações da cidade de Lisboa, eu tenho uma ínfima parte da cidade de Lisboa, como da Europa, por mais países onde tivesse estado, eu tenho uma ínfima parte da Europa e por meio de razão do mundo e por meio de razão da galáxia e por meio de razão da galáxia, da galáxia, da galáxia e isso significa justamente que eu estou a ser vítima de um logro, porque estou, digamos assim, a comer gato por leva. E, portanto, essa ideia de sistematicamente ser cético e pôr em causa as coisas, resulta do facto de tudo depender da consciência. Portanto, a tese inicial consciência, consciência, significa o mundo na sua totalidade. Os 7 mil milhões de habitantes do planeta Terra, se for esse o número, são conteúdos da minha própria consciência. Eu vi o exemplo para isso, que acho que
José Maria Pimentel
era algo deste género. Era como se nós estivéssemos a ver o mundo através de uma cortina com buracos e portanto só estávamos a ver, só vemos a parte que, a parte da imagem que corresponde àqueles buracos e o resto não... Exato, não estamos inevitavelmente a ver. Houve uma... Algo que me ocorreu logo a ler sobre isto, sua fonologia foi... Fez-me lembrar, mas isso também tem que ver com o facto de isto ter trazido o enfoque para a consciência, ou ter ligado o sujeito e o objeto, em vez de estarem desligados e ter feito o objeto depender do sujeito que o está a ver. E isso lembrou-me logo o Budismo. Comecei a ler sobre isso e lembrei-me. E depois apanhei uma série de coisas em que o Herschel se inspirou, teve alguma inspiração de textos budistas que ele tinha lido e acho que ele até chegou a escrever um tratado ou uma coisa qualquer sobre o tipo de budismo específico salvo o erro do chinês, porque há dois ramos de budismo e achei isso engraçado. Não sei se já uma vez apanhaste isso. Não. É interessante porque o budismo tem um enfoque muito grande na questão da consciência, não é? Sim. Da autoanálise da nossa consciência.
António de Castro Caeiro
Sou completamente... Eu fiz 36 anos de Karaté, mas eu queria andar à pera. Tudo quanto era a parte espiritual, eu fiz como russo-alienismo uma epoké. Nunca me interessou, porque achava que teria de dominar os conceitos no próprio original. Acho a versão, com as devidas vénias feitas ao meu colega Paulo Borges, que eu não sei e gostaria até muito de saber, mas eu tenho uma enorme dificuldade em pensar fora do âmbito do que é a própria língua em que os pensamentos são formulados. E portanto a ideia da respiração, das técnicas do budismo zen, e que não me são estranhas, mas por outro lado, digamos assim, não consigo pronunciar o suficiente, fazer a ligação entre um pensamento oriental-asiático e o pensamento europeu-ocidental. Não consigo estabelecer essa ponta.
José Maria Pimentel
Engraçado. O que é que queres dizer? É impossível a pessoa... Acho que foi perceber completamente quando o enquadramento cultural em que nós nascemos, a própria língua, e a língua condiciona sempre o pensamento. Sempre. Olhe, o alemão é um bom exemplo disso. O catarna que diz filosofar só mesmo em alemão. Quem é que diz isso? O catano-filosofo.
António de Castro Caeiro
Parece um heideggeriano, por idade. Sim,
José Maria Pimentel
porque realmente, eu não falo alemão e tu falas, mas conheço suficientemente mal, o pouco suficiente a estrutura da língua para perceber a influência que isso tem, porque o verbo surge no fim, só isso muda muito. E acho que, aliás, os tradutores de Heidegger têm grandes dificuldades por causa disso. Tem, por vários motivos. Os
António de Castro Caeiro
próprios alemães não percebem design and insight. O design and insight, sério e tempo, utiliza linguagem banal, podia ser da DOCAS. Pois, pois codifica, não é? Modificas completamente, não é? Portanto, é muito difícil, ou seja, Uma pessoa tem que dominar a língua de acolhimento tão bem quanto a língua que está a traduzir e no caso tem que dominar a história da filosofia em peso, porque Heidegger está a brincar continuamente com toda a história da filosofia. E portanto, se alguém acha que sabe muito alemão, é como alguém que acha que sabe muito grego e se mete a traduzir Aristóteles ou Platão, não consegue, é completamente impossível. Pode traduzir Homero, mas não vai traduzir Aristóteles.
José Maria Pimentel
Mas deixa-me pegar Uma coisa que disseste aí que eu acho importante. Disseste que para perceber convenientemente era preciso conhecer a história da filosofia e eu senti exatamente o mesmo. Mas isso em si mesmo não é uma... Como é que eu ia dizer? É uma maneira de... Fazendo-me perguntar de outra forma. Não era escusado que assim fosse, era necessário ser assim, porque a filosofia tem muito disso, e daí eu dizer que é muito idiosincrático, não há uma construção com um objeto que se vai construindo e ao qual se vai acrescentando e se vai retirando. Parece que cada pensador redefine o objeto completamente dos pés à cabeça, misturando algumas partes que já foram feitas por outro, mas que torna impossível ser consultado por alguém que não conheça todos
António de Castro Caeiro
aqueles antecedentes. Não necessariamente, ou seja, dou-te dois nomes. Husserl, só muito mais tarde é que conhece mais ou menos a história da filosofia. Conhece bem Kant, conhece Platão e Aristóteles, conhece David Hume, mas não é um Heidegger, que conhece toda a história da filosofia. Era matemático, não era o que o Filipe disse agora? Era matemático. E tens Wittgenstein, que ele próprio dizia, a mentir, que não conhecia nada da história da filosofia, afinal tinha lido o Tete, afinal tinha lido o Santacostinho, e portanto… ou seja, mesmo alguém que venha do exterior. Imaginemos o Wittgensteiner, que é especialista em engenharia aeronáutica, não é? E ele pega nos conceitos da escola de Viena, e que são conceitos que por osmos estão a ser utilizados pelos fenomenólogos e pelos empiristas lógicos. Esses mesmos conceitos têm uma interpretação diferente conforme as escolas, mas são conceitos, são palavras que estão a ser utilizadas, são formulações. E quando nós lemos o tratado, nós podemos achar que o tratado não tem implicações históricas. O tratado é uma versão de Frege, de Gottlob Frege. Passei um semestre em Oxford e o professor David Charles dizia, Frigge, não dizia Frigge, Frigge is our God. E portanto, nós não podemos mesmo, por mais que os lógicos queiram, os lógicos formais queiram, nós não conseguimos estudar a lógica, conseguimos obviamente aplicar um algoritmo lógico e fazer uma dedução lógica, mas a filosofia da lógica é impossível ser pensada sem Frege, sem Zin und Bedeutung, sem os Begriffschritten. E, portanto, é completamente impossível. E, portanto, quer dizer o quê? Na nossa vida, quando vamos ler qualquer coisa, nós pomos-nos lá, somos nós que estamos a ler. E portanto, ou percebemos ou não percebemos, conforme temos ou não temos experiência de ler. É como ver filmes na infância com os pais e vermos esses filmes muito mais tarde. E A gente não faz a mínima ideia do que é que viu na altura, mas percebemos que não vimos a mesma coisa que estamos a ver agora. Eu lembro, sei lá, de ver o Citizen Kane e aquela palavra Rosebud, que designa o sexo feminino. Ele chamava Rosebud ao sexo da sua namorada. E que é a cena inicial, tal como Lawrence of Arabia. O meu pai está a me explicar o que é o flashback, que é a parte, tu vês a parte final de alguém que morre e depois vais ao princípio. E esse é dos conceitos mais fascinantes que eu tenho. E tu nunca ouviste falar em flashback, porque aquilo altera completamente o sentido que tu tens de tempo enquanto criança, mas isso começa a mexer e, portanto, toda a leitura nunca é sem preconceito, porque se não tiveres preconceitos, se não tiveres pressuposições, não consegues fazer a leitura de qualquer coisa. E, portanto, nesse sentido, o que a filosofia procura fazer é, ou seja, mesmo as formulações mais abstrusas, que do ponto de vista dos filósofos não é necessariamente uma decisão estética ou querer ser confuso e abstruto, Normalmente é o contrário, eles querem ser claros, querem dizer no mínimo de palavras qualquer coisa que perspe um desenvolvimento de páginas.
José Maria Pimentel
Claro, mas ao mesmo tempo, eu percebo isso, mas estão a criar um jargão muitas vezes inescrutável, que é o caso do... Não, demora tempo. É como leres... Ou seja, É
António de Castro Caeiro
como nós passarmos da matemática da primeira classe logo para, sei lá, derivadas. Portanto, demora tempo. Não,
José Maria Pimentel
não, mas o que eu digo é o seguinte, é o que é o próprio que está a criar esse jargão para um sistema que o próprio está a montar.
António de Castro Caeiro
Do ponto de vista de Heidegger, o que ele acha é que as palavras que tem ao seu dispor... Einstein dizia falta-me matemática e o que Heidegger diz é, como terá dito eventualmente São Paulo, falta-me língua. E, portanto, o que ele vê são fenómenos tão recalcitrantes e tão diferentes, que não podem ser domados. Então, não são neologismos para dizerem coisas velhas, são palavras forjadas
José Maria Pimentel
para dizer coisas novas. Ok, já estou a perceber. E O ponto dele, o ponto do Heidegger, e é interessante desse ponto de vista, vai ao encontro aqui que estávamos a falar, é que a experiência precede o conhecimento, ou seja, nós antes sequer de raciocinarmos, se quisermos, tivemos que experienciar as coisas, ou seja, antes de raciocinarmos sobre o filme tivemos que o ver, ou tivemos que ver os filmes anteriores e portanto o ponto dele, e diz-me se estou a explicar isto bem, é que a linguagem que nós inventámos a maioria da linguagem é feita para o raciocínio sobre, muitas vezes quando as coisas correm mal ou de maneira diferente àquela que nós estávamos à espera, acho que ele dava, era dele o exemplo do do tipo com o martelo, não era? Exatamente, o tipo com o martelo não está sequer a pensar quando está a martelar. Se estiver a pensar, não está a martelar. Se estiver a pensar, não está a martelar. Só pensa que está a martelar quando... Se o martelo for pesado demais...
António de Castro Caeiro
Se o martelo for pesado
José Maria Pimentel
demais, se tiver uma armadura de gelo. E portanto não há uma palavra que designe o ato de estar a martelar sem estar a pensar. E daí a história dele da design. Como é que se traduz em português?
António de Castro Caeiro
Ser o AI. Na verdade, significa descobrir o AI. Cada um de nós descobrir o seu A.I. E portanto, no horizonte da vida que é inóspito, os primeiros dias de aulas nas escolas mais inóspitas e a domesticação que nós fazemos disso. Ou o primeiro dia de férias e depois o último dia de férias, o primeiro dia de aulas e o último dia de aulas. A primeira vez que vês alguém e a última vez que vês esse alguém implica qualquer coisa como um horizonte. Horizonte quer dizer em grego definição. Horizen, quer dizer definir. E o que o Heidegger diz é todos nós somos portadores da vida, mas nós não temos consciência necessária, nós não fazemos ontologia da vida. Quer dizer, o que define o horizonte, o a priori total da vida, é ser no encaminhamento da morte. Sim,
José Maria Pimentel
ela falava muito da morte.
António de Castro Caeiro
A inflexão temporal é irrepetível, inultrapassável, irreversível. São os três conceitos da temporalidade. E, portanto, nós não estamos continuamente nesse ponto. Nós não estamos continuamente no ponto do horizonte do moribundo. Mas às vezes estamos na ansiedade, no stress, na angústia, no tédio. E quando aflora esses momentos é como ires a casa a um dia e a uma hora onde não costumas lá estar. E a casa é inóspita. Porque a casa implica ritmos completamente diferentes de vida. Ou quando a primeira vez que vais à praia da tua infância, lembro-me de ir pela primeira vez a Milfondes de inverno, quando eu ia de Anano. E, portanto, Milfondes era mítico porque era o verão. E depois estava meses e meses e meses em que Milfondes estava mergulhada nas brumas de qualquer coisa que era à memória ou de qualquer coisa que era à expectativa, nas vésperas de férias, e quando eu vou para a primeira vez lá, cai completamente esse horizonte mágico. E, portanto, quando o horizonte temporal deixa de ser sempre qualquer coisa, sempre a abrir novos e novos horizontes, a eternidade como limite e passa a ser revertível, é como Sartre diz alguns, mesmo que eu viva 10 mil anos, eu acho que ele diz 3 mil, já não me lembro, Eu vivo sempre a morrer, é sempre a perder. Eu não tenho essa consciência, mas quando essa consciência vem, aí cria-se uma tensão filosófica. E é aí que entra o ponto do próprio esclarecimento.
José Maria Pimentel
Aquilo que me ocorreu a ler isto foi imediatamente, e que na altura não era conhecido, pelo menos nesta medida, é o papel do inconsciente. Na altura era conhecido o inconsciente na versão freudiana.
António de Castro Caeiro
Ou se lhe chama anónimo. Fala do anonimado, não fala do inconsciente. Não,
José Maria Pimentel
mas é exatamente isso. Ele está a falar, para ele, porventura está a falar de um fenómeno que lá está, que ele acha que é suficientemente diferente para merecer um termo diferente. Mas ao chamar-lhe o anónimo e não o inconsciente, está a criar uma dificuldade
António de Castro Caeiro
a quem está a tentar fazer pontos entre... Sim, mas a razão é simples. O que ele está a fazer, como ele diz no início de Ser e Tempo, é explorar os juízes ocultos da razão comum, uma formação kantiana. No volume 2930, quando ele opõe o consciente à consciência, o que ele diz é que invoca Aristóteles, ele diz o seguinte, eu posso estar a dormir acordado e isso significa que alguém chama-me à razão e eu digo, epá, estava longe, estava longe. Portanto, eu estou sentado à beira de alguém, frente a alguém que está a falar e eu apago porque me está a descrever um amigo meu, estava-me a descrever como é que se fazia um programa informático e o outro faz assim, António, agora resuma o que o Vitinho esteve a dizer-te. E eu não podia resumir porque eu já não estava lá. Claro. E eu digo que estava longe. Portanto, acontece que na vigília tu podes estar geistig abwesen, ou seja, espiritualmente abusento podes estar na lua, estar longe e o que acontece é que no próprio sono, no sonho a dormir tu podes ter um pesadelo e estás absolutamente consciente do que se está a passar não consegues neutralizar o conteúdo não sabes se mataste ou não mataste alguém, mas não sabes o motivo da angústia é verdade ou não, porque justamente no momento da vivência e do pesadelo aquilo está a acontecer. E o que Heidegger diz é a oposição consciente e inconsciente não colhe, precisamente porque eu posso estar a dormir com níveis de consciência acutilante e posso estar em vigília e acordado e completamente a sonhar. E portanto o que
José Maria Pimentel
é que ele... Claro, mas porquê é que isso não colhe necessariamente? Inconsciente não é no sentido de estar inconsciente. Quer dizer,
António de Castro Caeiro
são falsos amigos. Ou seja, do ponto de vista de Rádio, eu não consigo invocar o inconsciente. Nunca. Ou seja, é uma incógnita. Porque ao chamar inconsciente, eu estou a designar um horizonte que, na verdade, ou vem à consciência
José Maria Pimentel
ou não vem. Mas o que ele quer dizer é exatamente isso, não é? A maior parte das coisas, seja tarefas quotidianas, seja a nossa vida projetada até à morte... É automático,
António de Castro Caeiro
é diferente.
José Maria Pimentel
Pois, mas... Não é inconsciente. É de forma inconsciente, diria.
António de Castro Caeiro
Não, quer dizer, porque... Ou seja, a ideia... O automatismo
José Maria Pimentel
é mesmo isso, a pessoa vai a conduzir, não é aquela coisa... Exato.
António de Castro Caeiro
Então agora, se o carro este... Se não é inconsciente. Como? Se não é inconsciente.
José Maria Pimentel
É o nosso inconsciente. Se eu for para casa a pensar nesta conversa, agora estou em casa, não é? Exato. Mas se fosse, admitindo que estava a vir para casa, e viesse pelo caminho de sempre a pensar nesta conversa, quem estava a conduzir era o meu inconsciente.
António de Castro Caeiro
Não, ou seja, isso é completamente diferente. Vamos ver. O que acontece é que eu pergunto sempre aos meus amigos se calçam primeiro os sapatos ou calçam os sapatos depois de vestirem as calças. E ninguém sabe. Acontece. Se ouvestes, acontece. Mas isso não é um inconsciente. O inconsciente que aqui está a ser referido é uma determinação complexa para a vida inteira. Significa quem é o verdadeiro eu que está a constituir o que é que seja. Ou seja, o desenvolvimento de mecanismos implica justamente, por exemplo, uma reaprendizagem se tivéssemos um AVC. A pessoa vai começar a aprender a língua pelo A, A, A, A, B, A, C, depois B, B, A, B, B, C, e vai aprendendo assim a língua. O que o Heidegger está a referir com a ideia de inconsciente e que substitui pela ideia do sentido do ser tem a ver com níveis de profundidade. Muito rapidamente o exemplo é este. Eu vou para uma estação de caminhos de ferro e perco o comboio. Comece a me aborrecer. O próximo comboio só vem daqui a 4 horas. E o que é que eu faço? Sem dar conta disso e não é inconsciente. Eu pego num livro da mochila, mas eu não consigo ler, eu procuro equacionar uma aula, mas eu não consigo fazê-la. Pego num ramo de uma árvore e começo a fazer desenhos na areia, conto as pessoas que saem e as pessoas que entram nos comboios, vou ber um e outro café, olho para as horas. E a pergunta é, e olho para as horas para quê? Não é para saber as horas, é para saber quanto tempo ainda falta para vir o outro comboio. E portanto, eu estou ali entediado porque há um atraso de vida, portanto o tempo parece que parou, eu não consigo dar vazão à minha vida e por outro lado há um esvaziamento do sentido da estação de caminho de ferro, porque a estação de caminho de ferro é o sítio onde tu vais mesmo por muitas horas para ir buscar alguém, deixar alguém, entrar no comboio, sair do comboio e o sentido da tua permanência na estação de caminho de ferro é preenchido. O segundo exemplo é, portanto, aqui aparentemente uma leção de causa e efeito. Tu fazes todo um conjunto de atividades de tempo livre para te extraires do tempo, ou seja, uma espécie de reação proactiva à chatice monumental ou aborrecimento de só poderes partir daqui a quanto tempo. O segundo exemplo que ele dá no volume 2930 é, fui convidado para uma festa. A festa foi fantástica. O Serão foi incrível, as pessoas eram encantadoras, a comida era excelente, o vinho ótimo e ele chega à casa e diz assim, mas aquilo foi uma amassada. E ele pergunta, mas que critérios é que eu tenho? E quando eu estava na estação de Caminhos de Ferro, eu tinha alguns critérios, mas eu agora não tenho critérios nenhums. E ele vai, retrospectivamente, encontrar os vestígios, vai traçar os vestígios, vai despistar os vestígios daquilo que é o tédio. E ele diz, eu estive a fazer argolas com o cigarro, houve uma anedota que foi contada, eu fui surpreendido pela gargalhada das pessoas, dos circunstantes, mas eu não ouvi a anedota. Eu estive a tamburilar com os dedos sobre a mesa. Eu distraí-me completamente. Ou seja, eu abdiquei de mim, eu macei-me, eu aborreci-me, eu entediai-me a mim, porque eu queria ter estado era a estudar, queria ter estado era a ler, e abdiquei de mim do que eu queria estar a fazer e fui para aquela situação. Ou seja, não é uma relação causa e efeito, é uma relação ex post facto, depois das coisas se darem eu vou procurar perceber o que é que estava a acontecer. Verdadeiramente não há um inconsciente, ou seja, há inconsciente na situação, mas a recuperação desse inconsciente desfaz completamente o horizonte da vivência. A terceira forma de tédio é domingo à tarde. E há pessoas para quem a vida inteira é domingo à tarde. Ou seja, Qualquer circunstância, não tem nada para fazer. Tudo é o dia seguinte, domingo é véspera da semana e o tempo absoluto corresponde justamente a essa mesma circunstância. Portanto, são níveis de profundidade e eu posso nunca estar nesse nível de profundidade em que acuaciono a minha vida toda como sendo o quê? A vida toda é um conjunto de ações que são atividades que procuram justamente servir-me de terapia ocupacional de manhã à noite, em todos os anos da minha vida, das décadas da minha vida, porque tudo era uma amassada, tudo foi um teto. E essa possibilidade é que subsiste na interrogação de Heidegger. É
José Maria Pimentel
engraçado. Uma particularidade do Heidegger, e que eu acho que... Para mim cria uma dificuldade que não é mais evidente. Ele tem um percurso da vida dele ligado ao Partido Nazista que foi uma coisa que depois esteve sempre sobre a cabeça dele e depois ficou sempre como uma espécie de peso sobre a memória dele e até da obra dele para futuro. Mas eu até acho que a obra vale para além da pessoa. Mas neste caso, quer dizer, no caso de uma obra idiosincrática, é mais difícil fazer esse juízo. Tendo em conta que a obra tem muito a ver com uma pessoa específica, com a vida de uma pessoa específica, com a maneira como essa pessoa vê a sua vida, com o contexto em que viveu, por exemplo, ele insurgia-se muito contra o papel da tecnologia, que se percebe porque viveu justamente numa altura em que a tecnologia estava a ter, de certa forma, um papel que nós hoje conhecemos na vida das pessoas, com a rádio e depois com a televisão. E depois ele próprio, pelo que eu percebo, ele próprio também veio a contrariar a tese inicial dele, ou o modelo inicial dele, mais tarde na vida. O que, pelo menos a mim, me deixa um bocadinho...
António de Castro Caeiro
Parece uma contradição. Sim. Bom, quando ele critica a técnica, ele está a pensar em Aristóteles, ou seja, Aristóteles tem diversos horizontes de desdobramento do que nós poderíamos chamar hoje em dia a racionalidade. A poesis, ou seja, a produção e que pode no limite ser a produção artística. A fucis, que é uma forma de criação da natureza a partir de si próprio, os entes naturais crescem a partir de si próprios. Eu não posso, ao enterrar um quadro, esperar que no ano seguinte a colheita me dê outros quadros. A tecne, que significa justamente uma forma de produção controlada, isto é, o princípio criador é exterior relativamente ao criado e portanto carpintaria, os exemplos antigos, sapataria, carpintaria, arte do serralheiro, etc. Significa o quê? São fatores de produção técnicos, exteriores ao objeto produzido e o objeto produzido existe sem a presença do Criador, como na natureza, em nós enquanto entes naturais. E o último é a praxis, isto é, a ideia de que uma conversa entre duas pessoas pode fomentar futuro, pode acabar com o futuro da relação e nós somos o conjunto de frases que dissemos ou que pensamos dos outros. Portanto, quando ele critica a Tecne, o que ele está a dizer é que a razão tecnológica implica fatores de produção que alienaram constitutivamente os entes que produziram. E, portanto, o que nós temos é, imaginemos, uma cidade fantasma ou uma cidade bombardeada pela bomba de neutrões, sem ninguém lá, onde todos os equipamentos se mantêm de pé, todos os apetreios se mantêm de pé e contudo não está lá ninguém para os criar, que os criou, nem está lá ninguém para os utilizar. E portanto o que ele diz é o sucesso da razão tecnológica procura domesticar a praxis e procura domesticar o pensamento da existência. Eu nunca conseguirei domesticar a existência do ponto de vista tecnológico porque sou eu ao ser e ao compreender o que eu estou a ser e se eu não compreender o que eu estou a ser, então eu não sou nunca na minha decisão, sim ou não, na minha indiferença que está a constituir o sentido e a maneira como nós constituímos o sentido da vida não é nunca tecnológico. Por isso é que a ideia da educação nos gregos implica justamente princípios de tecnologia, de apropriação de gestos técnicos, o exemplo clássico do platão eu boxe, eu faço sombra, eu bato no saco, eu rodo com os amigos do meu ginásio e depois sou deitado aos bichos no rinco e depois é o que for, mas eu não tenho a técnica suficiente que me permita saber o que fazer na circunstância, depende das ações, por maioria de razão na própria existência, eu não tenho uma razão tecnológica a explicar o que está a acontecer. Essa é a crítica de Heidegger à técnica e à tecnologia. No que diz respeito, digamos assim, à configuração do pensamento heideggeriano para a sua biografia, eu acho que Kant diria que é sintético, ou seja, eu não vejo laivos de nazismo, digamos assim, não mais do que em Wittgenstein ou em Platão e, portanto, até laivos do pensamento semita em Heidegger, que é o pensamento de um sentido do ser monolítico, sempre dizer das mesmas coisas da mesma maneira acerca do mesmo, que é a tese de Sócrates relativamente à filosofia. Eu não vejo mais em Heidegger do que noutros autores a influência biográfica no seu pensamento. Digamos assim, não há nenhuma. Ele descobre um conjunto de fenómenos, reveste-os linguisticamente nas suas formulações daquela maneira, mas eu não vejo um Mein Kampf, ou seja, não vejo um manifesto nazi em nenhum dos textos.
José Maria Pimentel
Aquilo pode ser uma dose de pragmatismo, porque uma das teses dele, ou um dos objetos de estudo dele, era a questão da autenticidade, como ser autêntico, e aqui o autêntico não tem exatamente o significado que o senso comum lhe dá, mas o que também não está especialmente distante, e aquilo que me parece é que ele tinha uma visão relativamente pragmática em relação a isso, ou seja, o que ele dizia no fundo é que nós, se vivermos naquilo que eu chamava inconsciente ou sob um automatismo, vivemos, fazemos o que os outros fazem, porque vivemos, nascemos num determinado contexto, numa determinada família e tivemos essa experiência que procede do conhecimento, estávamos a fazer antes sequer de pensarmos sobre o que estamos a fazer e continuaremos a fazer e faremos o que nos aparece à frente, mas a resposta que ele dava, pelo que me parece, também não é uma rotura completa com isto, não é a pessoa decidir o seu destino, independentemente do contexto em que surge, mas sim tentar quase um ponto de equilíbrio, uma espécie de quadratura do círculo entre ser autêntico sem ficar alienado do resto da sociedade. E se calhar foi a resposta que foi.
António de Castro Caeiro
Quer dizer, eu acho que o Gadamer diz isso, em parte, defende Heidegger, deve ser… Heidegger queria ser como fichista, ele queria ser a consciência da Alemanha, não é? E Eu acho que ele depressa-se, desencanta e recua relativamente ao nacionalsocialismo. Eu percebo claramente o que é que eles são. A autenticidade, o ser, o si, corresponde a uma formação muito antiga de Píndaro, numa das píticas em que ele diz aprende-te a tornar-te como és e Nietzsche formula verda det obis et se, como és, ou torna-te em quem tu és. E isso em parte não significa escolher a profissão, como nós aos 15 anos agora temos de escolher uma profissão ou um desporto, quando o pai diz, agora tens de escolher um desporto. Tinha um amigo meu que escolheu xadrez porque ele não queria fazer desporto físico.
José Maria Pimentel
Mas essa É uma perspectiva essencialista, não é? Essa perspectiva de que…
António de Castro Caeiro
Não, é… Digamos assim, a ideia de que tu tens um livro de encargos e tu sentes-te mal e deprimido se não estiveres a fazer qualquer coisa que tu queres fazer… E queres antes de… Sim, há qualquer coisa de um… Quer dizer, É curioso o que estás a dizer, porque o Sartre diria que o existencialismo vem primeiro e depois
José Maria Pimentel
é que é a existência.
António de Castro Caeiro
Eu acho que é tudo ao mesmo tempo. A ideia que tu tens um livro de encargos e não sabes bem como. A ideia de que tu tens de estudar ou que te portaste mal e que não vem de onde. É uma coisa que tu tens, não é necessariamente aprendido pelos pais. É uma coisa que temos de abrir ou não temos, portamos desta maneira ou daquela, sabemos bem, nós sabemos o que é que fazemos. E portanto, autenticidade é uma autenticidade, é o facto de eu ter vindo à existência e não atravessar e ir para o jardim das tabuletas sem ter sido, já há uma data de pessoas que estão no jardim das tabuletas e nunca foram. E tiveram aqui décadas. E essa ideia do desafio complexo que é a vida como uma paixão. A filosofia é paixão pela vida.
José Maria Pimentel
Será aquela frase do Sócrates, não é? A vida não examinada não vale a pena ser vivido. Aí
António de Castro Caeiro
não há grandes diferenças no projeto filosófico?
José Maria Pimentel
Não, sim, eu acho que a diferença será a resposta a dar. Não está no problema. Eu acho
António de Castro Caeiro
que é a pergunta. Heidegger diz que... Fragens di frâmischkeit des denkens. Perguntar é a piedade do pensamento. Enquanto a religião tem rezar, aprece, a filosofia tem perguntar, interrogar. E eu acho que essa tensão interrogativa corresponde a qualquer coisa que nós... Eu não gosto muito de identificar isto, mas como tenho estado próximo de crianças, é o porquê e o espanto e o dia de verão que nunca mais acaba, não é? Aquela ideia magnífica de estar a ser. E é isso que eu acho que a filosofia procura reavivar, não é? Dias felizes. Então,
José Maria Pimentel
Manoeste, deixa-me puxar-te só... Deixa-me puxar-te para uma situação concreta, no caso de uma pessoa do século XXI, que leia Heidegger, ou entrei em contacto com ele indiretamente. Claro que o caminho é de cada um, mas o que me parece haver nesta questão da autenticidade é uma... Em primeiro lugar, o homem é um ser social. Social não só do contexto em que surge, mas também pelo facto de... És com outros. Exatamente. Não, e de ser definido também por eles, não é só... E dos outros serem importantes para a sua própria satisfação. Ou seja, uma espécie de autenticidade existencialista ou essencialista, mas uma espécie de autenticidade absoluta pode vir à custa de um alienamento face ao resto da sociedade, o que também não é desejável. Ou seja, aqui é uma luta entre... Para tu seres completamente tu próprio e, portanto, rejeitares tudo aquilo que são práticas que são feitas automaticamente religiosas ou que seja por exemplo estás a ir completamente contra aquilo que os outros fazem por muito automático que eles façam e isso em si mesmo é uma fonte de infelicidade
António de Castro Caeiro
Sim, mas Jesus morreu na cruz Sócrates com a cicuta E Sócrates dizia no diálogo de Górias, eu sou a vida e a verdade, nem que todos os atenientes estejam contra mim, eu sou a vida e a verdade.
José Maria Pimentel
Mas acha que é bom exemplo o Sócrates? Não sei se é um grande exemplo.
António de Castro Caeiro
Eu acho que é um excelente exemplo. Ou seja, quer dizer, estamos a falar… Quer
José Maria Pimentel
dizer, o homem é praticamente suicidoso, para todos os efeitos. Só que diz o Nietzsche. Diz
António de Castro Caeiro
o Nietzsche, diz que Sócrates quis morrer, qualquer coisa assim. E
José Maria Pimentel
os relatos que existem, que vêm, quer dizer, que valem
António de Castro Caeiro
o que valem, mas o… Não, ele podia ter fugido, mas ele disse que não ia fugir às leis de Atenas.
José Maria Pimentel
Acho que foram-lhe dadas todas as oportunidades.
António de Castro Caeiro
Mas ele tinha que ser exilado e ele disse que nunca tinha saído da cidade e não ia sair da cidade.
José Maria Pimentel
Não, mas mesmo durante o julgamento ele zomba dos… Bem, isso depende dos relatos. Pois, depende dos relatos. Os relatos é do Platão, não é? Há três relatos. Acho que até há quatro, mas um deles não é bem valido. É a própria, se calhar. Não, era... Há do Platão, há de outro filósofo que tentou acrescentar algumas ideias do próprio para ter o carimbo de Sócrates, depois há outro que não gostava nada dele, enfim, já não sei quais são os outros dois. Agora não tenho presença. Bom,
António de Castro Caeiro
independentemente disso, eu tenho estado a ler os cadernos negros, não é? Que foram editados. E ele diz, este livro falhou, série Tempo falhou porque eu não tenho inimigos suficientes, e depois acrescenta eu não tenho um único inimigo à altura. E portanto percebe-se claramente que ele está a escrever, ele percebe, percebe-se que ele percebe que o que está a escrever é qualquer coisa de absolutamente inovador na sua própria perspectiva. E portanto a minha dúvida é, e aí estou de acordo com a tua perplexidade, estou de acordo, não quer dizer, é congenial a tua perplexidade, é saber se ser autêntico é ser um pensador e se ser autêntico é ser um pensador original. E eu costumo dizer aos meus alunos, da mesma forma que um padre não tem de ser um revolucionário teológico, um filósofo, um professor de filosofia, também não tem de inventar uma filosofia. O que ele tem é, de alguma forma, ter a experiência da ferida na pele e deitar-lhe a álcool e depois perceber como é que os textos de alguma forma lidam com o sentido.
José Maria Pimentel
Como é que ajudam-se.
António de Castro Caeiro
Outra coisa completamente diferente pode ser, eu fecho os livros, como o Alexandre Herculano desistiu da história e foi fazer azeite, ou como a célula personagem do diálogo de Parménides de Platão, que sabe decorar a conversa entre Zenão e Parménides e se dedicou a criar cavalos, não é? E desistiu da filosofia. E portanto, como é que essa forma de desistência do pensamento, ou da religião, ou da arte, pode ser também uma espécie de divórcio, porque há uma ligação complexa, muito íntima entre uma pessoa e o pensamento a que se dedica. Um pensamento, eu não tenho nenhuma pretensão a dizer que sou original, nem que tenha um pensamento. Não, eu dedico-me ao pensamento como um padre se dedica à leitura da bíblia, não é? Porque aquilo para mim corresponde ao meu momento zero. Se eu não leio, se eu não estudo, se eu não falo sobre filosofia, eu fico com… naqueles dias em que a gente está indisposta, percebeu? Não ouvimos uma música nesse dia. E ouvimos música, coisa gala. E portanto tem que ver com essa partilha complexa e isso é o quê? Isso é autenticidade? Não é autenticidade? Ou alguém que opta por ser comunista, um comprometimento político ou... Ser comunista eu estou agora a lembrar-me de comunista porque estou a me lembrar do meu pai, estou a me lembrar da festa do Avante ele teria ido hoje, ontem comigo, mas morreu. E, portanto, esse ser autêntico, ou ser genuíno é o quê? Corresponde à descoberta de quem se é. E depois temos de ser aquilo, ou então… Mas
José Maria Pimentel
que já se é ou que se constrói?
António de Castro Caeiro
Eu acho que é um conjunto de acasos, mas o conjunto de acasos põe em ferida quem tu és, não é? É como se apaixonasse por uma pessoa, já estavas apaixonado por aquela pessoa, já há algo. Não, estavas disponível. Ou não, aquilo acontece. E portanto, digamos, Os momentos da vida em que tu te tornas tu são aqueles momentos em que tu podes dizer antes de, antes daquele momento e depois daquele momento. Tu não eras aquela pessoa, não és a mesma pessoa se não tivesses passado por aqueles momentos em que há anos e depois. Um antes de Cristo, um depois de Cristo. E portanto são esses momentos de dobra que nos formam e que constituem, digamos assim, o mapa da tua autenticidade em que tu te tornas autosse, tu te tornas o próprio. E isso é, digamos assim, é uma proposta.
José Maria Pimentel
Agora lembraste-me de uma coisa que está relacionada com isto e de que nós falávamos antes por causa de uma sugestão que o Gustavo Pimenta, que é um ouvinte, fazia ao saber que eu vinha falar contigo. Nós falávamos dos toicos, porque a filosofia estoica tem tido algum ressurgimento nos últimos anos, com base até nos escritos do Marco Aurélio, que nós estávamos a falar há bocado, que é um dos imperadores romanos considerados imperadores filósofos em certo sentido, tal como o Adriano, por exemplo, e ouves-te ressuscitar do estoicismo enquanto abordagem à vida. Há um livro muito conhecido chamado, de que ele falava, que é o The Obstacle is the Way, que é de um tipo chamado Ryan Holiday. E tu contavas-me que tens estado ainda por cima a traduzir o Calhaben.
António de Castro Caeiro
Os fragmentos éticos, ou políticos e éticos, melhor, dos estoicos. Porque o estoicos, o estoicismo, é uma escola que dura para aí mil anos, e como para muitas coisas acaba com a queda do Império Romano do Oriente. A queda do Império do Oriente, quando era miúdo, dava para demarcar uma data de coisas.
José Maria Pimentel
Pois dá, no fim da Idade Média.
António de Castro Caeiro
Exato, entre as quais também a queda do estoicismo, O que, na verdade, não acontece assim. Se nós formos ler, já falámos dele, de um dos monstros do pensamento ocidental, que é Immanuel Kant, ele invoca sempre os históricos. E, portanto, a própria divisão do pensamento crítico kantiano, a episteme ou logos, depois o ethos, a ética, e depois a estética ou as emoções correspondem digamos assim a três disciplinas que estão a ser estudadas nas diversas... A perspectiva estoica é, digamos assim, como as escolas hellenistas, os cínicos e os epicuristas, correspondem precisamente a essa ideia, digamos assim, de uma escola para a vida. Não apenas do pregador, ou seja, daquele que é o alterador das consciências e que está a acordar e a despertar as próprias consciências, mas tem um projeto vital. Não é um, claramente, não é uma filosofia do domínio estritamente cognitivo, teórico, epistemológico, essa é uma das suas vertentes, Mas o que está em causa fundamentalmente é justamente uma escolha de um caminho. Exato. Na formulação de Seneca, quae potest mori non potest cogii, aquele que pode morrer não pode ser coagido. E, portanto, trata-se, digamos assim, de uma espécie de formulação de todas as formas dos obstáculos, para citar o título de há pouco, todas as formas de coação que te levam justamente à formulação da morte e que portanto marca Aurelio nas suas reflexões, na verdade, as reflexões ta, hi, au, tu, as coisas que dizem respeito ao si, são formulações complexas, precisamente, em causa está a tentativa de definição do que é a própria vida, a tentativa de definição daquilo que é indiferente à própria vida, Aquilo a que nós damos uma importância, fazemos o Yahoo da existência, na verdade, se calhar é só um Lilliput, ou outras circunstâncias em que nós lilliputeamos essas circunstâncias e na verdade são os Yahoo's da nossa própria existência. Portanto, é a ideia de uma medida, ou seja, de graus de significância, de graus de importância. Ou seja, é uma forma peculiar, Nietzsche revive isso de alguma forma, é um modo peculiar de homeopatia, isto é, é uma forma de eu me deixar incolocar pela morte, pelo sofrimento, pela dificuldade, e tentar justamente transformar-me em, como eles dizem, em sophós ou sapiens, o sábio. E o sábio estoico é um projeto para cada um de nós, é o projeto do superlativo. Ou seja, como cada um de nós tem uma ideia de auto-hierofilia, vamos ser melhores ao treinarmos, ao lermos, etc. Para os estoicos o melhor era justamente a descoberta do sábio em cada um de nós, que resulta de uma tensão que é reformulada desde sempre em toda a história da filosofia, é reformulada na circunstância da proximidade da morte. E a proximidade da morte não se dá quando eu sou velho. A proximidade da morte dá-se quando eu o achamo a mim e é aí que declara justamente a possibilidade da autenticidade.
José Maria Pimentel
Nisso vejo aí um bocado de Heidegger também, porque A opção dele com a morte tinha exatamente a ver com isso, não é? Com antecipar o pensamento da morte força-nos a… Sim, isso é Seneca, puridor. Corrismo se tiver enganado, mas a ideia que eu tenho é que o estoicismo tem… Bem, e o resto é a expressão corrente, é exatamente a ver com isso, tem a ver com uma espécie de negação do prazer ou negação do anti-hedonismo. Como é que isso encaixa nesse… Digamos,
António de Castro Caeiro
para o estoico, a gargalhada e a diversão são formas de eu estar fora de mim e, portanto, são formas de esquecimento. É mais por aí do que propriamente por uma crítica, digamos assim, ao hedonismo. Portanto, a ideia... Mas o riso, por exemplo, é atrair? Sim, quer dizer, é como o Pascal, na ideia de diversão. A ideia de diversão significa que eu me espalho para fora de mim, eu não estou em mim, e isso significa que há uma espécie de desautentificação, se assim se pode dizer, de mim próprio. E portanto a ideia é uma ideia de crispação, a descrição do estoico, da sua silhueta, da sua faquice, como alguém que está franzido, sempre tenso, sério. Portanto, justamente, coisa que não acontece quando se come ou se bebe ou se riu, ou estamos divertidos porque justamente não estávamos lá verdadeiramente. Mas digamos assim, faz parte da ideologia popular do stoicismo. Sim, engraçado. O Demócrito chamava-lhe o filósofo que ri, agora está a me lembrar por causa disso. Sim, porque aparece naquele filme, naquele livro do Humberto Bueco, que curiosamente surge como o velho cego, porque o Demócrito supostamente morre cego.
José Maria Pimentel
Ah é? Ah, isso eu não sabia. Engraçado. António, vou terminar a conversa. Antes de agora, queria te perguntar alguma coisa. Falaste, não está nada a ver com o tema que estivemos a falar, mas acho engraçado ter a experiência de alguém. Estavas a falar da questão do junto e dos gregos, isso é uma coisa que hoje em dia está muito em voga. A questão dos benefícios do junto. Tu experimenta-o também ou...? Eu faço. Quer dizer, eu era gordo quando
António de Castro Caeiro
era miúdo, depois sempre fiz artes marciais. Nos últimos anos descontrolei completamente a alimentação e há um ano sensivelmente foi-me diagnosticada uma artrose degenerativa nas ancas. E o médico, um amigo meu, o Jacob Frischnett, disse-me que eu tinha de perder peso ou deixar as artes marciais. Eu decidi perder peso. E eu tinha um dietista, que é o dietista da minha equipe, da Dinamite Team, de Dino e Pedro, e ele punha-me, digamos assim, a comer seis e sete vezes ao dia e, portanto, engordei mais com a dieta do que não a fazendo. Então fui investigar, fui fazer as coisas por mim E dei comigo a ler livros, a ver podcasts sobre a dieta cetogénica, basicamente a transformação da segregação de farinhas, hidratos de carbono, para a segregação pelo pâncreas de gordura e, portanto, uma anulação radical da ingestão de hidrato de carbono e, por outro lado, o jejum intermitente. E, portanto, o que eu faço habitualmente é, eu estou 18 horas sem comer ou 19 horas sem comer.
José Maria Pimentel
Falas do quê? O pequeno almoço?
António de Castro Caeiro
Eu não tomo pequeno almoço. Tomo pequeno almoço, por exemplo, às duas da tarde ou às três da tarde. Aí como ovos com bacon e depois janto. Portanto, eu de manhã não como. Sim. E isso resultou. Perdi 23 quilos. E continuo porque é uma coisa que me dá vitalidade, eu não tenho, não sofro de nenhuma espécie de fraquezas, nem nada, e portanto aguento muito bem a trabalhar de seguida. Pois,
José Maria Pimentel
esse é um dos mitos que existe em relação ao júnior. Fala apenas de plantar, ninguém
António de Castro Caeiro
vai morrer se
José Maria Pimentel
estiver de saúde
António de Castro Caeiro
e tem que ter cuidado porque isto pode incorrer em anorexias e depois em bulimias. Nunca fazer-se o acompanhamento médico, eu fiz o acompanhamento médico, eu estava maluco, mas depois dei a ciência, importei livros, dei aos meus dietistas a ler, ao meu dietista a ler e ele fez o regime, mandou-me fazer as análises, portanto as análises são sempre controladas por causa do zinco, do magnésio e de tudo aquilo que não tenho por não ingerir pão, hidratos de carbono, mas por outro lado, visto os jeans dos 15 anos, é ótimo.
José Maria Pimentel
Mas há duas coisas, de qual a importância, uma é uma espécie de regime alimentar de dieta e outro é, não implica necessariamente menos calorias, mas, ou até uma recomposição, mas passar muitas horas sem comer com os benefícios que supostamente isso tem. Por acaso, deixava graça o fermentar e sem falar até com os amigos. Isto tu não precisas. Não, mas não era para emagrecer, era para... O benefício
António de Castro Caeiro
é óbvio que tu ficas... Eu trabalho 7 horas de seguida e fico muito mais com uma acuidade muito pior do que se parar para almoçar e depois tenho, tinha sonolências, aquilo, sigo de seguida.
José Maria Pimentel
Pois, é exatamente por isso, porque aquilo tem ou parece ter benefícios análogos aos do desporto, por exemplo. Exato,
António de Castro Caeiro
exato. Aceleras o metabolismo.
José Maria Pimentel
Acelera o metabolismo E há uma série de trabalhos solar que supostamente só se faz a partir das ditas de 16 horas ou 18 horas, daí a história de saltar um pequeno almoço, embora haja quem faça, quem fica o dia inteiro sem… Já
António de Castro Caeiro
tive seis dias sem comer. A sério? A sério. Quando eu comecei isto, eu tinha feito um jejum na Alemanha só com líquidos em 95 e achei aquilo altamente benéfico. Ou seja, uma espécie de purga a seguir à passagem do ano. Tive uma semana, não foi bem uma semana porque sábado já comi uma salada valente, como os alemães sabem fazer, e bebi uma caneca de cerveja que me soou pela vida. Com a salada? Com a salada. E depois aquilo, em vez de beber 10, bebi uma e fiquei com o mesmo efeito. Mas depois aqui, desta vez, fiz os 5 só com líquidos. Bebi a café e bebi a água E, portanto, é uma coisa que se faz bem, dormes e trabalhas e fiz de esporte, sem qualquer espécie de problema. Depois aprendi uma altura, digamos assim, à segunda-feira procuro ser mais extremo, mas digamos assim, habitualmente a janela das 18 horas é facilmente realizável. Só não faço nos dias do treino porque tenho, digamos assim, algum medo, mas também não está aprovado. Já treinei sem comer, mas não faço isso.
José Maria Pimentel
Certo. Ok, boa, acabámos a aprender nutrição também. Olha, o livro, para terminar. Para terminar, trouxe
António de Castro Caeiro
um livro que me foi recomendado há muito pouco tempo, da Isabela Figueiredo, chamado Caderno de Memórias Coloniais, é da Caminho, e é um livro que retrata, digamos assim, a experiência, por um lado autobiográfica e por outro lado histórica, que é contemporânea, desta senhora que na altura menina, que viveu em Lourenço Marques com o pai e portanto são capítulos muito curtos, escritos à maneira anglo-saxónica, muitos, muito comoventes, outros absolutamente aviltantes da história, digamos assim, do colonialismo, que é a experiência de ser branco e de viver com, agora não se pode dizer pretos, portanto com africanos, uma experiência, digamos assim, complexa de colonizador a colonizado, de todos os extremos que aí se passaram, da vida em família de uma criança que ama o pai, mas que também é um colonizador e, portanto, é
José Maria Pimentel
uma ambivalência de sentimentos.
António de Castro Caeiro
Digamos assim, a narradora, que eu não quero confundi-la com a autora, a narradora acha-se traidora do pai e ao mesmo tempo que o ama e portanto é uma história que vale a pena ser lida porque nunca... Eu lembro-me do 25 de Abril, eu tinha 8 anos quando se deu o 25 de Abril e lembro-me dos chamados retornados, lembro-me hoje em dia ali embaixo onde é a metropolitana ser edifícios onde estavam os caixotes daquelas pessoas que tiveram de vir para a metrópole, depois, obviamente, do 25 de Abril. Mas não tenho contacto, Ou seja, não sei se pessoas que eu conheço vêm do ultramar ou não, são diluídas praticamente na história do tempo. E isto é uma história até hoje em dia que está bastante presente, porque há um movimento de uma espécie de pedido de desculpas, como acontece em vários movimentos da igreja relativamente aos judeus, assim também do colonizador relativamente aos colonizados ou aos próprios. Digamos, estas pessoas abdicaram das suas vidas de muitas gerações até para virem para Portugal e foram vistos também na altura como portugueses de segunda por outras pessoas até tiveram mais oportunidades que os próprios que cá estavam. Então é uma história ainda que está por contar.
José Maria Pimentel
Pois está, pois está. Sem estar a ressurgir agora, tem sido publicado uma série de livros sobre o... É quase um tema... Não digo um tema tabu, mas um tema recalcado, se calhar, durante muito tempo e agora tem ressurgido. Sem dúvida. António, obrigado por teres vindo. Obrigado a eu
António de Castro Caeiro
por me teres dedicado.
José Maria Pimentel
Uma última nota para relembrar que podem tornar-se apoiantes deste projeto através do Patreon, no site www.patreon.com.br. Obrigado a quem tem apoiado no Patreon, em particular ao Gustavo Pimenta, ao João Vítor Baltazar, ao Salvador Cunha, à Ana Mateus, ao Ricardo Santos, ao Nelson Teodoro e ao Paulo Ferreira. Até ao próximo episódio!