#31 Tiago Cavaco - “Faz falta acreditar em Deus?”

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José Maria Pimentel
Bem-vindos! Neste episódio eu regresso ao tema religião. Já expliquei em episódios anteriores porque é que o tema me interessa, sob várias perspetivas, mas neste episódio o meu objectivo era simples, Complementar a conversa que tive com Ludovico Kripal, até o confesso, com a perspectiva de um crente. E não de um crente qualquer. Um pregador, um pastor, no caso de uma igreja protestante. Tiago Cavaco é para muitos o rosto do cristianismo não-católico em Portugal. Os sermões dele conquistaram admiradores, mesmo entre os não-batistas e os não-crentes. Lançou recentemente o livro Milagres no Coração, da Quetzal, um conjunto de sermões sobre o evangelho de Marcos prefaciado, nada mais nada menos, do que por Ricardo Araújo Pereira. O Tiago revelou-se melhor do que a encomenda, porque se mostrou ao mesmo tempo um crente a sério e um crente que não foge ao diálogo, como ele próprio aliás explica no início da conversa. O meu objetivo durante a nossa troca de ideias foi desafiá-lo, da minha perspectiva inevitavelmente diferente, mas sobretudo tentar aproveitar esta oportunidade única para perceber como é que um crente informado e culto vê a religião em que acredita no século XXI. Admito que esta minha opinião não seja consensual, mas acho este um tema inegavelmente importante, independentemente da opinião que cada um de nós tem, seja em relação à existência de Deus, seja sobre as religiões com que convivemos. Uma última nota para corrigir um pormenor. Falamos perto do final sobre o Corão e o dia que os muçulmanos acreditam que este foi ditado por Deus, mas a verdade é ligeiramente diferente de que terá sido o anjo Gabriel a ditar o livro Maomé ao longo de duas pacientes décadas. Finalmente deixei-me aproveitar a oportunidade para agradecer aos patronos mais recentes do 45°, Gustavo Pimenta, Nelson Teodoro e Pedro Leal. Muito obrigado a todos. E agora deixo-vos com o pastor Tiago Cavaco. Tiago, bem-vindo ao podcast.
Tiago Cavaco
Obrigado, Eusé Maria, obrigado
José Maria Pimentel
pelo convite. Nada. Voltamos ao tema religião, que já falei aqui algumas vezes. Na introdução ao teu livro de sermões, terminas, ou já quase no final, tu tens uma frase que eu achei interessante e que foi de certa forma aquilo que teve na origem do convite. Tu dizes, este é um livro de um crente que quer mesmo impingir a sua crença a quem ainda não a tem e este é um livro de um crente que acredita sinceramente que o seu credo é a diferença entre a vida e a morte. Uma é um convite ao diálogo e a segunda é uma frase provocadora. Por isso eu achei que estava na altura de pegar nisso. Estávamos a falar há bocado em off. É um tema que eu acho interessante a vários níveis. Fico sempre na dúvida se é de pegar nele ou não, e estou a pegar nele mais ou menos do que os ouvintes desejariam. A grande vantagem de um formato como o podcast é que quem nos está a ouvir neste momento já sabe o que é que veio. E, portanto, tem algum interesse no tema à partida. Eu... E esta questão... Eu já disse várias vezes, já estava a te dizer, eu... Se tivesse que me descrever, descrever Mia como agnóstico em relação à existência de Deus, no sentido em que não sei. Teria que... Se tivesse que me atravessar, atravessar Mia para ou não, mas a verdade é que não sei e acho um tema muito interessante, em relação ao qual basicamente não há resposta e até eu em relação a qualquer das religiões em particular porque para mim parece difícil que existindo Deus, o que quer que seja, que é difícil até de conceber e já lá vamos. E havendo, na possibilidade de existir Deus e na possibilidade de uma das milhares de religiões que existem estar certo, a probabilidade de eu acertar é tão baixa
Tiago Cavaco
que... Por isso mesmo, Talvez a probabilidade não seja o melhor dispositivo para
José Maria Pimentel
nós entregarmos estas questões da existência de Deus. Eu por acaso estava a ver um tipo... É um economista americano que tem um podcast também interessante, um bocadinho ao estilo deste, e ele dizia uma... Ele tem um... O Tyler Cowen que tem um blog, por acaso interessante, chama-se Marginal Revolution, é um blog interessante porque ele fala de uma série de coisas e ele tem lá um exposto em relação à questão de Deus e ele dizia uma coisa que eu acho que sou um economista, é que podia dizer que sempre tinha achado muito estranho que as pessoas não tivessem, em relação à religião, uma abordagem estatística de dizer, portanto, bom, eu sou x% luterano porque me parece que tenho tanta probabilidade de estar certo. Porque as pessoas são binárias em relação a isso, é evidente. Mas pronto, eu ia dizer há pouco, e estávamos a falar disso em off, e eu, por exemplo, já tive uma conversa sobre o tema com o Ludwig Kripal, em que falávamos da questão da existência de Deus e do debate em relação à existência de Deus ser um debate que hoje em dia, sobretudo em Portugal, nos Estados Unidos, por exemplo, não é bem o caso, aquela onda dos New Atheists, por exemplo, mas é um debate que basicamente deixou de ser tido praticamente no espaço público. E o que acontece, ou o que me parece, O que acontece é que as pessoas, tu se fores crente e fores educado numa determinada religião, tens acesso, no fundo, às práticas dessa religião e as pessoas que provavelmente terão a mesma crença do que tu ou no limite serão uma espécie de ateus apateus, como dizia o Carlos Quevedo, ateus por apatia, por inércia. O Carlos diz isso, apateus? É, apateus. É muito bom.
Tiago Cavaco
Já estive com ele algumas vezes e até no contexto do programa dele, da Antena...
José Maria Pimentel
De Deus Criou o Mundo.
Tiago Cavaco
Mas nunca o tinha ouvido a dizer isso. Acho que
José Maria Pimentel
o adotar. Se calhar a frase não é dele.
Tiago Cavaco
Se não faz mal, eu vou adotar.
José Maria Pimentel
É para Deus. É para Deus. Acho que era para Deus. E quem está do outro lado, quer dizer, se tiveres uma educação ateia, se a tua família não for crente, hoje em dia podes viver praticamente a tua vida inteira se não tiveres uma predisposição para isso completamente fora desse mundo. Tu enquanto crente que quer impingir a sua crença, o que é que
Tiago Cavaco
diz a isto? Sabes que uma das coisas interessantes é que eu acho que Eu provavelmente, na necessidade que sinto de falar sobre este assunto, tenho mais em comum com um ateu militante do que com um
José Maria Pimentel
religioso
Tiago Cavaco
suave. Aliás, eu não conheço o Luís, o Ludwig Kripal, mas se eu não me engano, reconheço de há mais de uma década nos blogs, de que é um ateu, né?
José Maria Pimentel
É um ateu. Sim, se há uma pessoa a quem se pode aplicar esse adjetivo, eu a luvo.
Tiago Cavaco
E eu creio que chegámos, não tenho a certeza, porque de facto a minha memória já não é o que era, mas eu até... É possível que tenhamos trocado documentários nos inícios dos blogs, alguns em 2003, quando a chamada blogosfera era mais pequena e quando apareceu alguns blogs de ateus que naturalmente iam arranjar discussão com os religiosos que havia nos blogs. E uma coisa curiosa é que de facto, de certo modo, eu identifico-me mais, emocionalmente falando, eu identifico-me mais com um ateu zangado do que com um religioso descontraído. Sim. E também percebo, e é óbvio que estou a fazer uma grande generalização, mas que países mais influenciados pela reforma protestante, e por exemplo no caso dos Estados Unidos, que ainda por cima é um país comparado com a Europa recente, um país moderno, de facto seja muito importante discutir porque discutir... Porque as pessoas acreditam na discussão de um modo que países mais antigos já não acreditam e continua a simplificar muitas coisas, mas, por exemplo, em Portugal falar sobre Deus, discutir a existência de Deus é visto quase como um luxo. Por um lado, uns vão dizer, isso já ficou, é óbvio que isso já ficou tão resolvido no final do século XIX, dizendo que Deus não existe, ou outros dizendo que discutir é a pior maneira de honrarmos a importância do assunto. Que de facto eu acabo, como te dizia, emocionalmente falando eu acabo por me sentir mais próximo de um ateu zangado, zangado por Deus não existir, e há muitos assim, que pelo menos tomem esse assunto como uma coisa realmente importante. E mesmo com estes, os novos ateus, que há uns anos estavam muito na moda. E isso é uma das coisas que eu apreciava, bem, eu apreciava o Christopher Hitchens, além dos críticos polémicos dele anti-religiosos, mas mesmo no Sam Harris, eu gosto desse lado, ou do Dawkins, esse lado pronto para a discussão. E não é casual que nos Estados Unidos, tu tens sempre uma pequena multidão de crentes, cristãos e não só, prontos para discutir, porque eu creio que há uma sociedade que valoriza mais a importância do argumento... Eu não quero dizer que é uma sociedade mais racional, porque noutros sentidos pode não ser. Pois. Mas tu percebes, a importância da discussão e do debate é de facto ainda nos Estados Unidos ocupa um papel que aqui, seguramente em Portugal, não ocupará. E aqui acontece uma coisa que na minha opinião é particularmente irritante, apesar de eu ser português, aceitar isso e gostar de ser português e ao mesmo tempo não gostar, como qualquer. Que é, em Portugal, a discussão religiosa é sobretudo muito chata porque é feita para uma espécie de concórdia política acerca das benesses de sermos todos moderados em relação a qualquer coisa na vida. E isso é chato, é francamente chato. Quando tu vês programas sobre religião, e eu já participo em alguns na televisão, eles são francamente chatos. Pois já, exatamente. Porque dá a ideia de que, no fundo, nós criamos uma reserva especial para que se possa acreditar em Deus desde que isso não ocupe uma função muito fundamental na vida das pessoas.
José Maria Pimentel
E depois não falas sobre o assunto, é como se fosse uma… é uma coisa quase da vida privada, não pode entrar na esfera pública, mas há uma espécie de respeito tácito, quase uma paz podre, como dizia um amigo
Tiago Cavaco
meu… Que nem é bem um respeito, eu diria mais que é mais uma condescendência.
José Maria Pimentel
É uma condescendência, exatamente, é uma… E que depois usa artigos…
Tiago Cavaco
o vocabulário tende a ser uma espécie de discurso idealista, político, com poesia existencialista. E digo isto, obviamente, quando digo isto pensei em algumas pessoas que são meus amigos e com quem também desenvolvo relações de admiração, mas usam-se umas palavras assim, por exemplo, eu tenho uma implicação com esta palavra, é o indizível, o sublime, e diz isto devagar e calmo, e de repente como quem diz, se calhar é melhor eu não dizer nada porque a pessoa está a transmitir uma serenidade tal, não quer ser eu a estragá-la. E Isso, pronto, eu respeito, obviamente, faz parte da cultura à qual eu pertenço como português, mas não me identifico muito com isso. Sim, é uma espécie de covardia intelectual, não é? Pelo
José Maria Pimentel
menos é a maneira... Eu acho que sim. Eu... Por exemplo, esse movimento dos new atheists nos Estados Unidos é interessante e há uma série de debates. Eles também têm muito a cultura de debates, que é uma coisa que eu tenho pena que não existe em Portugal, embora eles também tenham alguma tendência para exagerar-me, porque depois aquilo antagoniza, forja uma espécie de antagonização durante o tempo todo, mas há uma série de debates interessantes com algumas dessas pessoas que tu falaste e são... E isso força no fundo discutirmos e concretizarmos aquilo que estamos a falar. Por exemplo, essa questão do absoluto e do universal, umas coisas meias poéticas, essa desde logo é uma discussão interessante, que é como é que tu casas isso, primeiro, isso é infalsificável, como é lógico, mas como é que tu casas isso com o Deus do dia a dia, não é? E tu, como pastor, sentes isso, quer dizer, tu não, tu, esse Deus presta-se bem para a poesia e presta-se para... Presta-se, só que há muito tipo de poesia aí,
Tiago Cavaco
há algumas que são mais interessantes do que outras. Eu quando digo termos poéticos, nesse sentido, não estou, se calhar, a ser justo com toda a poesia que eu realmente aprecio. Estou a usar poética como uma espécie de fuga ao lado da assunção clara que eu acho que é possível quando se fala acerca de religião. E com isto eu não estou a dizer que nos assuntos religiosos é sempre possível ter à mão uma formulação, aliás, Até porque seria ao mesmo tempo uma grande arrogância também, uma vez que, na perspectiva de crente, eu falo de uma realidade na qual acredito objetivamente em Deus, mas acredito que Ele está também além da minha compreensão. É também isso que o torna Deus, né? É esse chiasmo, é essa distância entre mim e Ele. Mas, correndo o risco de fazer... Isto é fácil para mim, eu sou um pastor evangélico, e já que nós temos uma reputação, ao menos podemos vivê-la. Exato. Tirar proveito dela. Mas eu diria também que o facto de, por exemplo, num país como Estados Unidos, eu vou dizer, um bocado puxando a brasa à minha sardinha, dizer que isso tem a ver com os efeitos positivos da Reforma Protestante, que é um dos nossos pontos fortes e também fracos ao mesmo tempo, que é de facto a discussão. Nós acreditamos no debate de uma maneira diferente, porque acreditamos numa coisa que de facto trouxe um sisma para a cristandade, com a Reforma Protestante, sem dúvida nenhuma. E eu acredito no valor desse sisma que foi criado. Mas que foi... Nós acreditamos que, havendo uma revelação divina presente na Bíblia, e sendo essa revelação divina acessível às pessoas, apesar de acharmos que a fé é mais do que simplesmente ler um texto, porque senão todas as pessoas que leriam o texto teriam fé, até precisa de facto, nós acreditamos naquilo que é preciso a graça de Deus para a pessoa de facto acreditar, mas acreditamos que tu, o cidadão com um texto à frente, isso é algo muito importante. E quando tu acreditas nesta ideia, o cidadão com um texto à frente, com o direito que ele tem a poder ler o texto e tirar as suas conclusões, provavelmente isso vai conduzir a uma sociedade mais dada à discussão. Se calhar às vezes exageradamente dada à discussão, mas é uma das coisas que tu encontras mais quando estás num paradigma que foi influenciado pela reforma protestante.
José Maria Pimentel
Eu sempre achei, e acho que até com o caso que o Vedo tinha, falei desse ponto, embora ele seja católico e portanto seja do outro lado, eu sempre achei, sempre me pareceu que o Protestantismo tem muito parecido com o judaísmo, ou seja, houve uma espécie de... Completamente. A questão da discussão, por exemplo, da primazia da palavra, da interpretação dos textos é muito
Tiago Cavaco
parecido com o que os judeus fazem. Sem dúvida. Aliás, essa é uma das coisas que eu passo a vida a repetir quando, de uma maneira mais ou menos abreviada, tem de explicar diferenças entre catolicismo e protestantismo, é que o protestantismo é visto como um movimento de regresso. No certo sentido, ele é um movimento como qualquer movimento de reforma, que ele procura sempre algum tipo de purificação em relação à crença basilar. E nesse sentido, o Protestantismo, sendo múltiplo nas suas expressões, mas ele vem defender um regresso aos textos, que era uma coisa que naquela altura, independentemente das questões religiosas, estava a acontecer na história europeia, mas com isso ele vem de facto tornar-se mais semelhante ao judaísmo. Não no sentido teológico, porque nós acreditamos num Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, coisa que é inaceitável no
José Maria Pimentel
Judaísmo. Sim, claro que não é do ponto de vista teológico. Mas não
Tiago Cavaco
é, por exemplo, casual que, por exemplo, e tu viste o salão de culto lá em baixo, os salões de culto protestantes são muito, voltam a ser parecidos com os sinagogas. São sobretudo espaços que até podem parecer desinspirados para quem vem de um contexto católico. Sempre. Então tens aquela imagética toda e de repente tens uma coisa que, ok, é solene, mas podia ser quase uma sala de aula, porque é a relação com o texto fundamental.
José Maria Pimentel
É engraçado que eu estive numa cinecola aqui em Lisboa, no outro dia tinha feito essa promessa quando gravei com o Esther Muzinic, já no início, quase nos episódios iniciais e depois cumpria, foi giro, e quando entrei lá embaixo, no momento em que entrei, tive
Tiago Cavaco
exatamente essa percepção. É parecido, é parecido. E nesse sentido, repara, porque eu costumo... Isto, isto obviamente muitas... Uma multidão de pessoas diz isto ao longo da história ao refletir sobre a questão do Protestantismo e do Catolicismo. Mas o catolicismo, e novamente, eu sei que continuo a simplificar muito, mas o catolicismo tende a ser emocionalmente mais grego na maneira de olhar para o mundo, para a realidade. O protestantismo quer voltar a uma ética mais hebraica, Tanto assim é que Lutero, que é um Brutamontes, que é uma coisa importante quando se é protestante, mas ele chama a filosofia de prostituta, portanto ele é um tipo que sente um filósofo à sua maneira, porque ele é um intelectual à sua maneira, mas de facto ele traz uma... Ele quer recuperar uma natureza que é ontológica e que também é antropológica, que é muito mais aquela que já estava no judaísmo, sem qualquer rejeição do Novo Testamento, até porque o Cristianismo sem Novo Testamento não seria Cristianismo. Claro. Mas é verdade que há um regresso nesse sentido à ideia de... À ideia... A uma antropologia mais negativa, por um lado, mas que depois tem um paradoxo, que é, cria sociedades que têm uma antropologia mais negativa porque a figura do pecado, ela é entendida de um modo mais grave do que no contexto do catolicismo. Mas, por outro lado, como acredita que a solução para o problema é a relação com o texto, com o texto sagrado, com o texto revelado. Ele diz, a partir do momento em que tu lês o texto, meu amigo, não deixas que ninguém interfira nisso. Portanto, por um lado, o protestantismo é mais pessimista, antropologicamente, em relação à questão do pecado, mas por um lado ele vai ser, vamos dizer, a nível de cidadania mais otimista nas sociedades que constrói. Eu acho que foi também um bocado à custa destas aparentes contradições que nos deu, o livro que eu nunca li, devia ter lido e devia ser castigado por isso, mas que te dá o Max Weber a escrever
José Maria Pimentel
a ética protestante e o espírito do capitalismo, por exemplo. Sim, embora depois ele tenha sido contrariado, porque o sul da Alemanha, que é católico, per capita até era mais rico do que o Norte, embora há um lado cultural e um lado de prática religiosa que não se sobrepõe necessariamente, ou seja, duvido que o sul da Alemanha católica seja culturalmente análogo ao catolicismo português ou ibérico, ou seja, há um lado cultural desse debate, e o protestatismo está aí se interessando. No fundo, é mais pessimista, antropologicamente é quem é mais pessimista, o que também está associado ao capitalismo, mas dá às pessoas um locus de controle, As armas para elas gerirem a sua própria relação e põe o... Por exemplo, um dos... Estou a dizer isto, de princípio, estamos a falar em day-off que corro risco com estes programas, antagonizar tanta gente e agora fazendo críticas à igreja católica é pior ainda. Portanto, neste momento, resta muito pouca gente, mas mas um dos... Outra das contradições do catolicismo é a fraca relação que têm os crentes com a Bíblia. Uma relação... Acho que era o Pedro Mechia que contava numa sessão que tu organizaste, eu penhei esse vídeo no YouTube, uma amiga qualquer contava que a filha, apanhou a filha a ler a bíblia e, pronto, tu estás com algum problema. Que é uma coisa completamente, isto é para fúria, não é? Quer dizer, A partir da Bíblia é o livro sagrado, é o livro que deve servir de base e que a pessoa deve tentar... É
Tiago Cavaco
verdade, mas não te esqueças que como no caso... E repara, ao dizer isto eu não estou a defender o catolicismo, de certa maneira. Sim, imagino que não, sim. Até estou a dizê-lo para valorizar mais a minha convicção protestante, mas é verdade que, tendo em conta que o catolicismo acredita que a fonte mais segura da autoridade para guiar as almas dos homens é aquilo que a igreja te vai dizer. Portanto, eles vão dizer, sim, sim, lês a Bíblia, tens de ler a Bíblia, mas tens de ler a Bíblia guiado pela igreja, porque é assim que Deus quis, segundo o catolicismo, é isto que o catolicismo acredita. Nesse sentido, há de facto uma visão bastante diferente. O Protestantismo acredita na importância da Igreja também, mas lá está, o Protestantismo acredita que tu... O Cristinismo de facto alimenta, traz uma suspeita que o Velho Testamento já trazia, que o judaísmo já trazia, que não é o facto de tu pertenceres ao povo escolhido que significa que tu estás a ter a relação de vida com o Deus com quem te deverias relacionar. E Vamos dizer, essa suspeita no Velho Testamento, tanto assim é que tu tens ao longo do Velho Testamento, os grandes profetas, eles são geralmente pessoas que têm problemas com o poder político, que era também o, supostamente, era também o poder religioso, no sentido em que o Estado Israel era a comunidade espiritual também. E isso vai ser trazido no século XVI pelo Protestantismo, a dizer assim, tu podes fazer parte da igreja institucional, mas isso não significa que tu sejas... Tu podes estar dentro da comunidade que se diz pertencer a Jesus, mas isso não significa que tu tenhas uma relação com ele. E nesse sentido, lá está, novamente, há aqui de facto uma inquietação, que se vê na história de Lutero, e que continua depois no desenvolvimento de todo o Protestantismo.
José Maria Pimentel
Claro. Há um bocado estávamos a falar da questão de Deus e depois acabámos por divergir um bocadinho para esta parte mais histórica e essa era uma provocação que eu gostava de fazer porque eu... Obviamente que é difícil a um crente transmitir aquilo que tem uma dose substancial de uma experiência que é subjetiva, mas para todos os efeitos tu dizes que eres ipingir.
Tiago Cavaco
Claro, claro.
José Maria Pimentel
Então daquilo que perguntam é o que é que
Tiago Cavaco
tu dizes
José Maria Pimentel
a um crel como eu em relação a... Ou por outro, como é que... Isto é uma discussão longa, mas do ponto de vista objetivo, pelo menos, na medida do possível, como é que tu defines Deus e como é que tu não conseguindo, obviamente, provar a existência, o fazes de uma maneira indireta?
Tiago Cavaco
Bem, não tem sido para mim ao longo... Eu fiz 40 anos no ano passado, não tem sido para mim ao longo do meu caminho pastoral a coisa mais importante, o tipo de discussão apologética em que, imagina, partindo de uma conversa assim, eu me sinta na necessidade de procurar os melhores argumentos para a defesa da existência de Deus. Portanto, não sendo essa a maior preocupação da minha carreira pastoral, não significa que eu estou sempre disponível para essa conversa. Agora, é verdade que há... Deixa-me tentar dar com uma mão e tirar com outra. E isso dependeria depois com o tipo de cristão com que estivesse a conversar. Se fosse um católico podia ser um pouco diferente e depois dependia do católico, assim como depende também do protestante, pois há muitas diferenças. Por um lado, já houve alturas, fases da minha vida em que eu, por exemplo, mesmo no YouTube, picava mais aquelas discussões, eu continuo a achar que um tipo como o William Lane Craig é muito eficaz. Aliás, eu lembro que aqui há uns anos havia um blog de ateus nos Estados Unidos que dizia ninguém está preparado para discutir com ele, ele continua no geral. Por
José Maria Pimentel
acaso é ótimo. Há um debate dele com o Sam Harris, em que eu tenho que dizer que o Sam Harris leva
Tiago Cavaco
um bailo, porque ele usa alguns subterfúgios retóricos, mas o tipo tem o mesmo direito. Eu assisti a um com Christopher Hitchens E achei que o Christopher Hitchens se safava precisamente nos argumentos de ordem emocional, emotiva. E o Hitchens era habilidoso e é um tipo que eu gostava muito de ler. Mas quando íamos para o argumento racional, eu acho que de facto, no geral, naquilo que eu via no William Lane Craig, eu acho que ele... Apas, ia mais bem preparado e pronto.
José Maria Pimentel
Essa é que é a contradição, não é?
Tiago Cavaco
Porque seria demais esperar o contrário, não é? Mas lá está. Portanto, não sendo eu um William Lane Craig, eu diria aquilo que o William Lane Craig e outros grandes apologistas dizem sempre, que... Como é que... Diz que é o argumento cosmológico?
José Maria Pimentel
Sim, cosmológico, sim.
Tiago Cavaco
Eu continuaria a achar que esse continua sempre a ser o... Quer dizer, do nada poder sair alguma coisa, eu acho… Não quero dizer isto com respeito com pessoas que tenham conclusão diferente da minha, mas eu acho uma coisa pouco inteligente. Ou seja, com todas as explicações que possam vir dadas pela evolução, ou com qualquer explicação que tentes explicar isto, vamos dizer, ninguém vive no dia-a-dia com a ideia que assim acontecerá. Portanto as coisas não aparecem do nada e nesse sentido eu continuo a achar que é o argumento racional mais favorável à existência de Deus. De facto, nós existimos, é um facto. Porque é que coisas existem em vez de não existirem?
José Maria Pimentel
Sim, o unmoved mover, a questão do primeiro causador de tudo. Esse é o argumento... E que eu saiba, tu estás mais dentro do
Tiago Cavaco
assunto do que eu, atualmente. Eu não sei se alguém já deu uma grande resposta em que os apologistas da existência de Deus deixassem de usar este argumento, mas eu vejo continuamente a ser usado.
José Maria Pimentel
Existem hipóteses para o surgimento do universo do nada, digamos assim, mas são conjeturas, como é óbvio, e além disso não é realmente um tema que eu domino. Aquilo que... Os limites que eu encontro nesse argumento, e tu puxaste justamente o argumento mais conceptual de todos, aquele que está mais distante da religião prática, é que, por
Tiago Cavaco
um lado... Não necessariamente. Como? Não necessariamente. Ah é? Eu acho que não tem de ser um... Aliás, o que eu disse até foi um pouco puxar... Imagina, para dizer-te a ti, Zé Maria, tu não viverás a tua vida à espera que nas coisas práticas que te acontecem no dia a dia, elas surjam do nada. Portanto, eu até acho que é um argumento com bastante aplicabilidade
José Maria Pimentel
no cotidiano. Ok, então eu percebo que o argumento era diferente, que o argumento era que Deus estava no início de tudo, mas não necessariamente no que nós vemos agora, no fundo. É o construtor,
Tiago Cavaco
mas não necessariamente o... Não, a ideia é que se coisas existem, se tu no dia a dia, quando tens a existência de alguma coisa, faz o caminho de regresso para haver uma razão para isso, portanto é porque tem de haver uma causa. Ok. Bom. O que todos os filósofos daístas desenvolveram. Certo, certo. Tens de ter uma causa última para
José Maria Pimentel
as coisas. Claro, não, exatamente, essa questão do do unmoved mover é uma coisa que já vem do Aristóteles, salvo erro. Se não antes disso. A minha objeção a isso tem a ver com duas coisas. Primeiro, está muito próximo daquilo que se chama, que se convenceu de nós chamar o o God of the Gaps, o Deus dos Passos que vai sobrando, porque se tivéssemos esta discussão com o Lutero, provavelmente ele estaria a invocar argumentos e exemplos que hoje em dia nós sabemos não corresponder, como o facto da grande machadada que o Darwin deu, e a própria origem do universo, e no fundo o que tu tens em termos cosmológicos hoje em dia, é o Big Bang ou o que quer que seja, e de facto o cérebro humano não está feito para perceber que alguma coisa pode ter surgido sem ter algo que o percebeu, não é? Tudo aquilo que existe teve alguma coisa antes e alguma coisa aconteceu antes para aquilo existir. E depois, para
Tiago Cavaco
mim, ainda... Mas isso também pode ser uma forma de feeling the gaps. Quando tu dizes o cérebro humano não está pronto para perceber, também estás a, vamos dizer assim, no gap que pode ser essa incompreensão, diz assim, ok, esta é a melhor explicação possível. Ou seja, em último grau, a própria explicação para que um conceito de Deus possa ser aquilo que tapa aquilo que por enquanto está destapado, também pode ser uma forma de filling the gaps, por quem não acredita. Percebes? Portanto... O
José Maria Pimentel
que eu digo é que essa gap, essa falha, se foi apertando brutalmente nos últimos séculos. Ou seja, quando este argumento começou a ser feito, a falha era enorme, não é? Era desde... Era a Downy Ever, não é? Era aí que começava. E hoje em dia nós sabemos que há uma série dessas coisas que já foram explicadas. Essa para mim é a grande dificuldade, quer dizer, como pessoa racional, quer que isso queira dizer, para mim a grande dificuldade está aí, quer dizer, hoje em dia custa-me a crer que o terreno que já foi ocupado com explicações científicas não seja totalmente ocupado, sendo certo que do nada surgir algo, para mim é completamente incompreensível para um ser humano porque nós não funcionamos dessa forma, tudo funciona assim. Mas isso, se quiser já me respondes, mas só para dar o outro lado. Para mim a resposta Deus, ou por outra, para mim dizer que Deus é a resposta também não é uma resposta perfeita porque continua a ter que haver alguma coisa antes de... Ou Deus surgiu do nada, ou seja, continua a não encaixar na nossa
Tiago Cavaco
mente. Por isso é que precisas, não sei se é o melhor verbo para usar aqui, mas por isso é que Deus existe como de facto a grande causa. Portanto, como uma causa...
José Maria Pimentel
Mas qual foi a causa de Deus?
Tiago Cavaco
Ele existe, ele é autoexistente. Sabes que uma das coisas que eu acho que hoje não ajuda nesta conversa, para quem está mais envolvido nela, mas é que eu acho que às vezes existe, pode haver alguma pressa, sobretudo com um novo advento de um otimismo, vamos dizer assim, epistemológico a partir da ciência. Porque tu repara, se tu fores a ver algumas discussões hoje no campo da filosofia, uma das coisas, e eu vim das chamadas ciências não exatas, portanto, eu vim de ciências de comunicação, que era uma mistura de um curso de comunicação social com filosofia, portanto vê bem o que é possível. Mas se há coisa que acontece nas áreas ditas não... Nas ciências não exatas, é precisamente uma profunda descrença da ciência enquanto uma espécie... Do discurso científico enquanto uma espécie de substituição do discurso religioso. E portanto, imagina, uma das coisas que não ajuda é, para quem vem da área das ditas ciências exatas, e aqui diria eu, este é o prazer de dizer, quando tu és crente tu podes ser cético de algumas coisas. Imagina, as pessoas são céticas da religião, mas uma coisa boa de um religioso é que depois ele pode ser cético de outras coisas que as outras não, nessas não podes mexer. E nesse aspecto sim, se calhar cabe-me aqui o papel de ser eu cético em relação talvez a uma segurança precoce que nós encontramos nas explicações científicas, que são elas bastante provisórias, que é antigamente imagina, sei lá o Darwin, o Darwin no estudo da teologia, portanto ele sabia as categorias clássicas atribuídas à personalidade divina. Tu hoje, imagina, se eu for para a rua e perguntar a um cientista quais são as características, quais são as categorias clássicas que atribuímos a Deus na sua personalidade. Ele nem se calhar nem vai ser capaz de dizer omnisciência, omnipotência, perfeição, qualidades que eram parte fundamental da maneira como ao longo da história as pessoas entendiam razão, não só para o mundo mas para si próprios. De repente o que aconteceu foi uma espécie de... Ai, é óbvio que eu estou caricaturado. Darwin resolveu... Olha, deu a cambalhota. Pessoal, isto deu a cambalhota. Tudo prescreveu, tudo que estava para trás prescreveu. Então o conhecimento religioso ficou tido como uma espécie de coisa que tu só lá vais, pá, com o psiquiatra. Por um sótão tu vas à procura de alguma coisa, um objeto que tu queres guardar na família e tal. Mas que não ajuda à melhor discussão, não ajuda à melhor discussão até intelectual e racional. E só voltando ao exemplo das discussões entre, no YouTube, entre William Lane Craig, é aí que tu vês a surpresa de um William Lane Craig, é que nesse... E eu quero ser justo ao dizer isto, de certa maneira os judaístas, e neste caso o William Lane Craig é mesmo um cristão, e até um cristão evangélico como ele, mas eu acho que nas discussões eles acabam por ser mais respeitadores da tradição filosófica destas discussões antiga, do que os céticos que tendem um bocado a começar apenas, estou a exagerar, mas quase apenas a partir de Darwin.
José Maria Pimentel
Mas eu não acho que isso seja errado, por acaso, ou seja, um cético ou um ateu tem obrigação de conhecer...
Tiago Cavaco
Eu creio que sim, Se tu quiseres ter uma discussão que seja... Imagina, até para perceber o valor que realmente a história tem, imagina, na capacidade de distinguir-te a ti e nós os dois de pessoas que viviam há 500 anos e que por acreditarem, por terem uma mente que pensava coisas diferentes, elas não devem ser entendidas simplesmente como ignorantes, como é o risco de um discurso...
José Maria Pimentel
Concordo, isso concordo. Sim, sim. Filosófico
Tiago Cavaco
que a nível... Que de certa maneira também atribua demasiado ao chamado pensamento científico moderno, que infelizmente, depois opera um ato que no mínimo é de muito pouca gentileza para com todos os outros brutos e ignorantes que viveram lá. Sim, e
José Maria Pimentel
sobretudo faz uma coisa, por isso é que eu dizia há pouco em relação aos debates, que é um formato interessante e que eu acho que nós temos a menos, mas tem um problema. Tu vês um debate, por exemplo, esse debate entre o William Lane Cray e o Sam Harris, ou com o Hitchens, por exemplo, e o que tu vês ali são, à partida, dois polemistas, cada um para o seu lado, em posições completamente antagónicas, das quais cada um está absolutamente certo. Não é a realidade. O crente tem dúvidas e o ateu... Também
Tiago Cavaco
convém que tenha algumas dúvidas. Convém
José Maria Pimentel
que tenha algumas dúvidas e pelo menos estará a graus diferentes de certeza e de virulência nas diferentes opiniões. Mas ali tudo puxa para que isso aconteça dessa forma e obviamente que não é. E daí eu dizer, não sei se agora não me lembro se disse isto em on ou off, mas uma das coisas que me fazem interessar por este tema é a quantidade de pessoas que eu conheço, direto ou indiretamente, e que são pessoas que eu respeito pela inteligência, pela racionalidade, pela informação que têm, e que são crentes e eu penso, elas não podem... Se calhar aquilo é uma sombra delas, é uma possibilidade, mas eu não quero... Nem que seja por uma
Tiago Cavaco
questão de gentileza. Nem que seja por uma questão de gentileza,
José Maria Pimentel
não quero, precipitadamente, tirar a relação de que é isso. Dito isto, aquilo que estavas a dizer, eu não concordo completamente com o que estávamos a dizer, porque eu não acho que uma pessoa, eu não acho que o ateu tenha que conhecer tão bem o cristianismo, vamos supor, por exemplo, de me tentar debater com um cristão, como o cristão conhece para poder debater com ele, porque aquilo que ele está a debater é... Certamente, isso até seria um castigo. Pois, estás a perceber o que eu quero dizer? Não é a primeira vez que eu ouço dizer isso e por acaso não concordo.
Tiago Cavaco
Mas ainda bem que dizes isso para poder clarificar. Eu não defendo, imagina que numa discussão sobre a existência de Deus, a pessoa que acredita que Deus não existe tenha, pobre coitado, de se ter tomado a enteologia. Exato. O que eu acredito que é necessário, e eu acho razoável, seria mais razoavelmente... Era razoável concordarmos, ser uma espécie de consenso como ponto de partida, é que quanto mais nós conhecemos acerca da história, do passado, mais vamos estar impedidos de, por muito convictos que estejamos de alguma ideia de agora, de cometermos o erro que o C.S. Lewis chamava que era chronological snobbery, de facto sermos snobs cronologicamente. E é nesse sentido que tu compreenderás que eu acho de uma grande pobreza para a própria qualidade do diálogo, quando tu estás a falar, imagina, sobre a existência de Deus ou não, que a pessoa que defende que Deus não exista não conheça um mínimo sobre a discussão ao longo da história. E pá, que compre daqueles livros, no outro dia comprei um livro de 50 clássicos da psicologia, para saber, não é? Não preciso ser de ler tudo, pá, mas compra um livro, uma boa história
José Maria Pimentel
sobre o pensamento religioso. Não, e tu vais entrando devagar no tema, eu tenho feito um bocado esse caminho, e o problema lá está. Quando tu ouves alguém falar, Tu ouves o Christopher Hitchens falar, por exemplo, e ele, no fundo, dá-te uma coisa pronta a consumir e que pende para um lado. No caso dele, pende, claramente, para o pendia, para o ateísmo. Mas, por trás daquilo, e ele se calhar não é o melhor exemplo, mas por trás daquilo há um trabalho, o Sam Harry talvez fosse o melhor exemplo nesse aspecto, há ali um trabalho de conhecimento, de investigação, com os enviesamentos cognitivos que todos temos, mas que depois dá aquilo. E o problema de nós consumirmos só, e os debates na internet muitas vezes são pobres a esse nível, e todos nós começamos por, quer dizer, olhar para isto e pensar, não, que estupidez, claro que Deus não existe, acabou. E a verdade é que a conversa tem coisas mais interessantes do que isso, não é? E há um lado de... E quando começas a escavar, começas a perceber que aquilo que eu tenho escavado não me converteu propriamente, mas tem-me feito perceber algumas nuances que existem no nosso entendimento da religião. Aquilo que eu penso, eu tenho sempre esta dúvida, que é... Se calhar falta-me alguma sensibilidade. Ou seja... A mim também. Imagino, mas se calhar falta-te menos, porque o meu exercício de humildade é este, é dizer, eu se calhar sou pouco sensível E falta-me... Porque eu vejo muitas vezes, nos crentes existe muitas vezes uma... E a poesia, por exemplo, está muito presente na Bíblia, e não é por acaso, existe um... Esse lado transcendental da metáfora e da sensibilidade estética. Deus está muito associado à ideia, Deus está muito associado à arte, por exemplo, seja à música, seja, por exemplo, à pintura, e eu várias vezes penso se me faltará essa sensibilidade para... Não, não estou a dizer isto, não
Tiago Cavaco
é gosto. É uma espécie de confissão.
José Maria Pimentel
Estou a falar a sério, eu não acho que falta, atenção, ponho a isso em dúvida, e penso sempre que eu não sinto falta de Deus, ou seja, não sinto falta na minha vida, no dia a dia, nas várias valências, seja na valência da pessoa ter ali um amparo, seja na valência ética ou moral, não sinta essa falta. Há muitas pessoas que dizem isto e parece uma espécie de cabarulice, uma coisa de força. Ah, não preciso dessas coisas, não preciso dessas ajudas, dessa espécie de batotas emocionais. Mas não é nesse sentido que eu digo, até porque eu acho que aquilo que podemos chamar de espiritualidade à falta de melhor palavra, é algo que nem toda a gente tem, é algo que não precisas ter para viver, mas que torna a tua vida mais interessante. É aquela coisa do... Já não sei se era do Sócrates ou do Aristóteles, que a vida não examinada não vale a pena viver. Ou seja, tu podes viver perfeitamente sem falar sobre estes temas, sem analisar a tua própria consciência, sem te maravilhares com as relações entre as pessoas. Tu podes perfeitamente viver e, a certo sentido, pode também ser visto como uma fraqueza, tu estás-te a debruçar sobre isso. E isso é em si mesmo uma forma daquilo que se convenciona de chamar espiritualidade, independentemente de achares que o que está por trás disso, e a consciência é o último, cosmologicamente é o Big Bang, mas antropologicamente é a consciência o último mistério, não é? O derradeiro mistério é a consciência, não é? O
Tiago Cavaco
que é que está por trás desta coisa estranha que nós... E, por exemplo, no caso, tentando pegar aí na consciência, uma coisa que eu estava... Um amigo, o Henrique Raposo, e Ele costuma dizer uma coisa, já o disse-se algumas vezes, e até acho que já o escreveu em alguns dos textos dele no Expresso, que é, tu pegas no Dante, lês o Dante, eu só li a Divina Comédia, portanto, mas... E costuma bastante porque de facto não é fácil de ler. E repara, eu estou habituado a ler coisas antigas, porque a Bíblia é mais antiga que o Dante, naturalmente. Mas o Henrique Raposo diz com razão, assim. Ok, peguem o Dante, peguem a pessoa do século XXI, e óbvio, um grande exercício de simplificação nisto. Quem é que tu achas que psicologicamente é mais denso, mais profundo? E quando tu lês o Dante, sobretudo a parte do inferno, que é a parte mais interessante, mas isso é uma coisa fascinante, estamos a falar do século XIII, coisas que curiosamente, nos últimos cem anos, com o desenvolvimento da psicologia, tu depois regressas a elas com nomes diferentes, com roupa nova, com contexto, vais entendê-las de um modo diferente, mas quando tu te apercebes desse espaço para a complexidade numa obra como a Divina Comédia, só a partir, repara, na parte do inferno, só a partir da questão do pecado, tu depois de pensar, provavelmente aquele pessoal pensava, pelo menos há esta possibilidade, Provavelmente aquele pessoal pensava mais sobre o assunto do que nós hoje estamos a pensar. Ou também pode chegar a uma conclusão que hoje no advento da psicologia e de tentarmos tratar estas coisas não necessariamente à luz da religião, é uma maneira de voltarmos a valorizar coisas que os antigos valorizavam com uma profundidade que nós hoje, e agora meto eu aqui o grão na engrenagem, mas que nós hoje, supostamente iluminados pela objetividade da verdade científica, não chegamos lá. Ou pelo menos não temos uma voz com aquela ressonância que tu, por exemplo, encontras quando lês o Dante e a Divina Comédia. E eu acho que esse é um dos exemplos interessantes, que é, é preciso, e não quero dizer em jeito de polémica, mas repara, é preciso ler muito pouco dos antigos para a pessoa dizer de uma maneira muito galopante que hoje sabemos muito mais. Eu acho que tem mesmo a ver, por exemplo, nos autores cristãos que eu costumo ler, um dos meus pastores preferidos chama-se John Piper e ele diz sempre, nunca leias só apenas pessoas do teu século, Tens de passar a vida sempre a ler pessoas realmente antigas. Porque é como se tivesse... Olha, é como se houvesse um novo Big Bang a acontecer quando os lês, porque tens uma maneira diferente de processar coisas que hoje já são automaticamente processadas na tua cabeça. E isso, por exemplo, é uma coisa que geralmente na polémica existência de Deus, acreditar não acreditar, eu, claro, se calhar encontro ou se calhar tenho encontrado os ateus errados, mas encontro muitas vezes, percebes, tem a ver com isso que tu dizias e com humildade, que eu acho admirável que é, até que ponto é que de facto não há aqui um espaço para a sensibilidade, que por geralmente não ter uma configuração científica, como é que configuras cientificamente a sensibilidade? De facto, se calhar não dá para configurar facilmente. E talvez por não dar para configurar, olha, essa parte nós podemos passar, isso não é relevante para a discussão, mas a verdade é que quando tu ganhas sensibilidade para algumas coisas, a tua maneira de pensar altera-se, portanto, e com isto eu não estou a dizer que é um argumento que vai fazer as pessoas crentes, mas a atenção ao passado impede-nos de alguma arrogância que possa vir quando há a luz de uma qualquer descoberta ou de uma teoria que de repente nós podemos sem querer atropelar a história, como se ela não nos pudesse ensinar aí também.
José Maria Pimentel
Sim. Há um lado de… é aquela questão de quando não sabes nada sobre um tema e lês um livro sobre ele, ou qualquer coisa, tornas-te muito atrevido em relação a ele, mais do que depois de quando leres 10 ou 11, porque percebeste as nuances. E aqui existe claramente esse lado, ou seja, eu acho que é possível...
Tiago Cavaco
Apesar de eu ainda depois quisesse só dizer uma coisa, ainda relacionada com a tua pergunta.
José Maria Pimentel
Ah, então espera aí, só para fazer este ponto. Eu acho que é possível quadrar esse círculo, ou estar nos dois lados, ou seja, eu acho que tu podes ter... E eu quando discutiste com o Ludwig falava dessa questão da humildade, porque ele é pouco humilde e defende bem essa... É pouco humilde, na exceção que ele dá essa palavra, e ele defende isso bem, eu acho que é possível ter... Casar as duas coisas, ou seja, eu acho que tu podes ser enfático, podes ser sincero, sem fazer aquilo que falávamos no início, que é aquele tipo de discurso redondo e não discutir esse tipo de questões, e ao mesmo tempo saberes que haverá sempre nuances que estão a escapar. E a questão, por exemplo, a questão do passado, esse discurso que tu estavas a fazer é algo que em relação a que eu tenho sempre uma relação, uma posição um bocadinho ambivalente porque faz-me um bocadinho de comissão quando ouço porque parece aquela coisa a científica de dizer não, antigamente havia estas... Um bocado que é usado também naqueles tratamentos alternativos Havia esta coisa que os chineses faziam e não sei o quê, e isso resultava e o conhecimento perdeu-se. E muitas vezes é exagerado. Agora, é um facto que quando tu progredes, não há só... Existe um progresso e eu... E essa é uma discussão filosófica, eu nesse campo estou claramente daqueles que acham que existe progresso, que o progresso não é um relativismo, mas é evidente que se perde sempre alguma coisa no progresso, ou seja, não há... No tempo dante, por exemplo, ele sabia, tinha acesso a muito menos informação do que nós temos, e a ausência desses inputs torna impossível que ele pudesse fazer uma obra publicável hoje. Mas isso não quer dizer que com os inputs que ele tinha na altura ele não tenha passado muito mais tempo a cozinhá-los do que nós hoje em dia temos disponibilidade para fazer e que, portanto, não tenha ali insights que vale a pena
Tiago Cavaco
conhecer. Sim, mas depois entramos na questão que eu diria mais de facto ontológica, que é, o que eu diria, o que eu te responderia em relação a isso é que Eu serei mais cético em achar que os maiores triunfos humanos são fundamentalmente triunfos cognitivos. E com esta atenção. Sou um pastor evangélico que abre a bíblia e diz estão a ler, portanto que acredita na importância da função cognitiva, ler, saber, aprender, tudo isso. Mas é verdade que ontologicamente eu não acho que nós sejamos fundamentalmente cognitivos, somos também cognitivos obviamente E aí eu dar-te, só para voltar àquilo que eu te queria dizer, um dos textos mais hostis em relação ao ateísmo é a carta que Paulo escreve aos romanos, onde logo no primeiro e segundo capítulo ele diz assim, a tese é esta, não está dita assim, mas a ideia é esta, as pessoas só não acreditam em Deus porque não querem acreditar em Deus, porque com a criação à volta é prova que Deus existe, é a criação. Eu não estou agora a querer discutir isso contigo, mas o argumento lá, nem é propriamente a discussão hoje à Sam Harris vs. William Lane Craig, mas é o fundamental em nós não é aquilo que nós fazemos com o nosso conhecimento, O fundamental em nós é aquilo que nós fazemos com a nossa vontade. E é a partir daí que tu tens um desenvolvimento, pois muito à custa da Cristinho, mas que tens um desenvolvimento filosófico e uma escola filosófica que privilegia a compreensão e o conhecimento do homem, não tanto pela capacidade intelectual rigorosa que ele tem, mas pelas questões do desejo. E a espiritualidade, eu não gosto do termo espiritualidade, mas aqui esta, de facto, também se aprecia. Depois, se eu também não sou, sou algo melhor, não é?
José Maria Pimentel
Mas a espiritualidade
Tiago Cavaco
agostiniana é fundamental nos protestantes. É por isso que nós também somos mais pessimistas em relação a nós próprios. Porque nós não acreditamos que o conhecimento seja a coisa... Oh, se tivéssemos de estabelecer agora uma dicotomia entre conhecimento e sentimento, eu não sei se ajudará muito, mas nós não acreditamos que o conhecimento é o palco principal da tua vida, da minha vida. Portanto, nós achamos que a vontade, de certa maneira, é mais reveladora da realidade. Ou seja, tentando simplificar aqui coisas que podem ser difíceis, mas se tu queres perceber a realidade a sério, não precisas de... O sítio onde tu deves procurar não é tanto no conhecimento, naquilo que conheces, naquilo que sabes, mas é no teu coração, aquilo que tu fazes diante daquilo que tu sabes. Portanto, isto não é para dizer santa ignorância, não é importante conhecermos coisas, mas é para dizer que a fibra última, a célula última, a nossa célula última enquanto seres humanos não é tanto o que nós fazemos com o conhecimento, mas é aquilo que nós fazemos com o coração a partir também do que sabemos, mas não só do que sabemos. Daí que o apóstolo Paulo diz só não acreditem em Deus porque... Quem não quer? Portanto, nesse sentido ele diz assim, o ateísmo nem sequer é intelectualmente aceitável, de certa maneira. E por isso ele diz, Deus vai pedir contas às pessoas por elas terem decidido não acreditar nele. O que repara, é uma maneira polémica de pegar a
José Maria Pimentel
questão. Mas é, essa, isso tem muito que ver com, é quase existencialista, não é? Essa questão de... É
Tiago Cavaco
porque o ângulo é diferente, de facto o ângulo é diferente.
José Maria Pimentel
Agora, há uma frase do Julequia do Richard Dawkins que ele diz que a grande virtude do Darwin foi ter tornado possível a um ateu ser intelectualmente, ficar intelectualmente preenchido sem ter que ser crente. E claramente isso não era a verdade antes, ou seja, antes essa frase de Paulo compreende-se à luz daquele tempo, quer dizer, eu não tenho dificuldade nenhuma em dizer que seria crente se vivesse no século 2 ou 3.
Tiago Cavaco
Mas não necessariamente, Quer dizer, eu compreendo que tu digas isso, mas não acho que follows, não acho que... Porquê? Significa que a história julgaria um ascendente de uma maneira tal que tu por nasceres num sítio tens de acreditar naquilo. Eu acho que isso desempenha um papel, obviamente. Mas não acho que seja determinante.
José Maria Pimentel
Não sou dizer que seria cristão necessariamente. O que digo é que...
Tiago Cavaco
Até deixe-me dizer-te, só permita-me...
José Maria Pimentel
Isto é giro porque estamos a discutir uma passagem da Bulu
Tiago Cavaco
que é interessante fazer com um postor, que sabe muito mais que eu. Não, mas sabes que uma das coisas que continua a ser dito, aliás, nessas discussões mais iriçadas de existência de Deus, é que as justificações que tu podes dar para enquanto ateu teres uma vida preenchida, que em grande parte elas são... Bem, os mais polêmicos dirão que elas são frutos da tua imaginação. Portanto, tendo em conta que se objetivamente não existe nada, se Deus não existe, portanto o próprio conceito de bem ou mal será um resultado de uma suposta evolução e portanto aí... Essa é uma discussão interessante, sim. E portanto nada, vamos dizer assim, eu lembro uma vez que estava a ter uma conversa numa discussão parecida que ficou assim, era sobre cidade e ter fé e estava eu, o Sheik Munir e o Ricardo Arocho Pereira. E de repente aquilo teve um momento Dawkins, William Lane Craig entre mim e o Ricardo. E é por isso que eu gosto do Ricardo, porque o Ricardo é um ateu mais sério do que parece, apesar de depois, como bom português que é, é um porreiro para toda a gente, e portanto vai falar com toda a gente, e é bem toda a gente, que é uma das desvantagens de ser português. É até, vê lá tu, é até para mim ele é amigo, mas... Descreveu-me muito fácil, mas só para te dizer isso. Em determinada altura ele dizia, e falava, é engraçado que foi antes da adaptação, antes do Scorsese ter feito o filme, porque como, esse é o grande segredo. Aliás, é o nosso grande castigo enquanto país, é que o nosso grande humorista é um grande intelectual, que eu acho que é uma forma de Deus nos castigar. Vocês são tão maus, que eu vos vou dar o melhor humorista é o intelectual, o que não deveria ser assim se calhar, mas pronto, porque de facto o Ricardo é um gajo muito inteligente e é um tipo muito lido. Então, eu estava lá a dizer, olha, há um grande livro de um tipo chamado Shusaku Endo, e na altura ninguém sabia quem era o Shusaku Endo, chamado Silêncio, onde... Eu não sei se viste o filme,
José Maria Pimentel
mas...
Tiago Cavaco
Eu gostei do filme, mas o livro ainda é melhor, apesar de eu gostar muito de Scorsese. Mas... E ele diz... Depois... E o debate do crente diante do disparate do sofrimento. Isto não serve de nada. O que é que é a vida? As pessoas morrerem pela fé? Isto é... E ele estava num momento quase... Estão a ver? Deus não existe diante do problema do sofrimento. E na altura que eu disse ao Ricardo, mas então não podes ter as duas coisas, então não podes ter o... Eu não sei se falei na altura, não sei se dei o exemplo do amor das filhas, mas então também não podes ter o amor pelas tuas filhas, não podes dizer que uma coisa não é objetiva, mas aplicá-la só numa direção. Se tu dizes que morrer pela fé é absurdo, também depois não podes defender, mas o amor que eu sinto pelas minhas filhas é concreto, percebes? Portanto, é nesse sentido que algumas pessoas te vão dizer que tu podes criar com o cérebro que tens, em 2018, nós com o cérebro que temos em 2018, podemos criar as nossas razões de existir, mas se nada disto houver, se não houver eternidade e não houver Deus, é pointless, não é mesmo?
José Maria Pimentel
Então deixe-me dizer-te uma coisa... Duas coisas de sentido contrário em relação a isso. Eu discordo racionalmente dessa tese, para mim essa é uma das grandes dificuldades, eu percebo essa passagem do... Aquilo que tu dizias há pouco, do conhecimento, que no fundo o conhecimento não é o essencial, o essencial é aquilo que nós fazemos, claro, mas eu sinto muito, eu tenho dificuldade, não posso ignorar o conhecimento que tenho, por muito incompleto que seja. E o conhecimento que eu tenho é que nós somos uma espécie de macaco, não é? Evoluído com base na seleção natural, quer dizer, que é mais ou menos conhecido. Somos um animal social e gregário por esses motivos todos e o nosso cérebro tem as limitações e os envelhecimentos cognitivos que são conhecidos. Fomos... Nessa evolução surgiu, por um mistério que tu atribuirás a Deus e eu atribuo à evolução, um fenómeno chamado consciência, que é o único no reino animal e que nos torna capazes de olhar sobre nós próprios. E eu não sinto que... Esta é a tese do Sam Harris, por exemplo, e há um desses debates com o Craig que o ponto, e por isso é que o Craig ganha o debate, é porque o Craig está... O ponto dele é dizer que é essencial existir Deus. Ele não disse que é essencial existir Deus, ele disse, por isso é que ele é muito hábil, ele diz eu não sei se Deus existe ou não, mas para a moralidade ter uma base tem que existir Deus, que era no fundo onde estavas a querer chegar. E o Sam Harris diz que não e eu tendo a concordar, acho que ele é demasiado infático porque não é obviamente tão simples como outros problemas que nós fomos resolvendo com a razão, mas não acho que Deus tenha que existir para nós conseguirmos estabelecer uma moral. Deus, enquanto absoluto das qualidades, digamos assim, tenha que existir para nós termos um referencial para a nossa moral e
Tiago Cavaco
não... Mas significa que a moral que tu encontrarás será sobretudo uma construção tua, subjetiva, com o prazo de validade da tua própria existência.
José Maria Pimentel
Esse é o grande desafio. Outro
Tiago Cavaco
virá e poderá fazer outra coisa qualquer. Esse
José Maria Pimentel
é o ponto interessante.
Tiago Cavaco
Porquê que isso há de ser bom e porquê que não há de ser... É o Dostoyevsky que dizia, a frase conhecida, se Deus não existe, tudo é possível. E eu acho que como crente eu continuo a encontrar razão nessa frase que pode, neste caso, surge como provocação.
José Maria Pimentel
Agora tocaste o ponto mais interessante de todos, que é, julgo, alguém falava disso recentemente, não sei se era o Jóia da Pita, se não que falava disso, que é, e eu reconheço que esse é provavelmente o maior desafio dos ateus, é que uma vantagem que a ecologia tem e o cristianismo tem é, tu tens aquele livro que serve de referencial e é certo que ele será interpretado por pessoas de maneiras radicalmente diferentes, esclavagistas e anti-esclavagistas a basear-se no mesmo livro, para dar um exemplo clássico, mas para todos os efeitos aquilo passa de geração em geração, enquanto a ética familiar ou ética até de um país tem mais dificuldade. Eu reconheço que isso é um desafio. Claramente isso é um desafio e um ateu ignorante pode fazer vista grossa a esse desafio, que é evidente, é aquilo que estás a dizer. Eu posso construir um edifício ético que resulte para mim e para a comunidade em que eu vivo, mas depois como é que ele vai passar para os seguintes? Não é? Quer dizer, no fundo, qual é o referencial que existe para aquilo? Daí eu dizer que é um desafio muito maior do que o Sam Harris faz parecer, Mas eu não acho que seja impossível. Para mim, sobretudo, não há alternativa. Quer dizer, para mim, a religião, para mim, por exemplo, do ponto de vista evolutivo...
Tiago Cavaco
Mas até que ponto é que não se torna naquilo que tu poderás achar mais criticável na própria religião? Se não é verdade, é uma espécie de aceitação de uma coisa que não sendo verdade tem um efeito subjetivo positivo. Como assim? Acaba por ser a mesma coisa. Ou melhor, tu acreditares que pode existir uma moral, não havendo nada absoluto, pode redundar naquilo que tu achas mais criticável na religião. Mas isso te dá tu o que isso te dá? Que é fora daquilo que é facto, fora daquilo que é conhecido e certo, tu crias uma coisa e vives de acordo com ela. Mas em nada à podes fundar, em nada à podes fundar da maneira como...
José Maria Pimentel
Não, tu tens uma tradição cultural na qual podes fundar. Para mim esse não é o principal problema. Percebo isso do ponto de vista conceptual, mas para mim não é o principal problema. O principal problema é, para uma pessoa média, passo à arrogância que está implícita nisto que eu vou dizer agora, mas para uma pessoa média, se não for a religião fazer esse papel, muitas vezes ela não vai ter o julgamento sobre a sua própria vida e não vai pensar os seus valores da melhor forma, com a profundidade de vida.
Tiago Cavaco
Mas aí, repara Zé Maria, aí novamente eu percebo, mas porque tu continuas, deixa-me dizer desta maneira, continuas a apostar as tuas fichas mais importantes no jogo, vamos dizer assim, no conhecimento que a pessoa tem. Portanto, repara, tu estás a partir do princípio que... Estou a dizer... Estou a exagerar, tu não disseste isto, eu estou a distorcer agora, a meter um pedal de distorção para a próxima cena. Mas é um bocado... Quanto mais a pessoa sabe, mais consciente ela se torna. E eu digo, não... Sim, mas não necessariamente. Imagina, uma pessoa que não tem o conhecimento que tu tens, eu acredito que ela, aceitando um princípio religioso, ela possa viver com tanto ou mais consciência do que tu, tendo-te um conhecimento... Mas
José Maria Pimentel
eu não falava de escobinte, Roberto, eu não estava a falar de conhecimento de facto, eu estava a falar de conhecimento e reflexão sobre ti próprio e sobre o destino que queres dar à tua vida, sobre os valores que queres que te guiem, não é? No fundo é isso que eu quero dizer. Eu acho que a grande vantagem da religião, e acho que os ateus muitas vezes ignoram essa vantagem ou não pensam sobre ela é que quando tu falas com as pessoas da tua congregação, não sei qual é a palavra certa, no fundo vocês têm esse diálogo em que estão a examinar cada um as vossas próprias vidas e a fazer um tipo de autoanálise espiritual, lá está a falta de melhor palavra, que a pessoa se não vier aqui se calhar não faz. Para mim o problema é, para mim claramente é um desafio fazer isso fora da religião, é mais difícil e há menos respaldo institucional, digamos assim. O problema da religião, e o Dante era a que fala disto e eu concordo, que é... E tu vais contrariar isto, mas para mim a religião é sempre um teto à razão, ou seja, há sempre terrenos onde a razão não irá, porque para todos os efeitos... Sem
Tiago Cavaco
dúvida, sem dúvida. Isso para mim
José Maria Pimentel
é um grande elogio.
Tiago Cavaco
Estou pronto. Está a ver, é nesse sentido que eu digo que as tuas fichas estão no homocognoscène e alguma coisa assim para dar um ar relativo, dar académica a isto. Nesse sentido, Sim, eu acredito que tu serás mais otimista na medida em que acreditas que... Tu, obviamente, não tens necessidade de exprimir desta maneira, mas de certa maneira, há uma dignidade superior em viver no conhecimento mais objetivo possível das coisas. Certo. Eu não discordei em absoluto, mas eu diria que não é aí que o juízo se faz. E quando uso a palavra juízo, uso-a intencionalmente com toda a carga religiosa que ela tem. Eu acho que o juízo não é fundamentalmente uma questão do conhecimento. Repara que uma das teses hoje em dia, eu acho que é, como o Che Satan dizia, a mais fácil de provar no cristianismo, mas das mais difíceis de acreditar na modernidade ou pós-modernidade, chamemos de preferirmos, que é precisamente a crença no pecado original. Repara que a crença no pecado original é chocante hoje, voltou a ser chocante, porque de facto diz que o problema não tem a ver com aquilo com que tu vais construir com a tua inteligência. Diz que o problema está em ti. Ponto final. Existes, tens o problema contigo. E isso é óbvio que é muito ofensivo, porque retira-nos a possibilidade de nós dizermos, olha, atribua-me um problema se eu de alguma maneira fizer à geneira que mereça que digam que eu fiz um problema. É nesse sentido que o cristianismo, oferecendo importância ao conhecimento, repara, o que é que eu acredito, o que é que eu prego enquanto pastor e agora já é parte de sermão isto, mas de facto aquilo que eu vivo, eu vivo para uma espécie de busca de conhecimento, mas é um conhecimento qualificado pelo facto de que aquilo que eu mais desejo é ver o rosto de Jesus. Aquilo que na linguagem etiológica é a visão beatífica, que é aquilo que os cristãos acreditam que vão ver, finalmente vão ver o rosto de Jesus. E isso é uma maneira de sermos seres para o conhecimento de alguma coisa. Mas é verdade que esse conhecimento é um conhecimento nesse sentido que, vá lá, que invoca a vontade de uma maneira, de um modo que o juízo não opera apenas naquilo que tu construíste a partir de ti mesmo, mas o juízo opera com muito mais além disso. Uma das ideias fortes no Velho Testamento e que o Novo Testamento continua é que David, o salmista, o rei David, diz-me, sonda-me, examina-me, mostra-me o pecado que nem eu sou capaz de conhecer a mim próprio. Percebes? Portanto, é óbvio que tu tens uma função do conhecimento no pensamento religioso judaico e cristão, mas a função dele, repara, é nesse sentido que de facto, nesse sentido eu serei epistemologicamente mais pessimista do que tu, Porque eu direi, epá, se eu sou um ser cognitivo, certamente que sou, mas eu conheço-me tão mal a mim próprio que eu vou ser, que eu provavelmente vou ter pouca vontade de fazer afirmações que sejam depois muito, vá lá, assertivas, além de mim. O que não quer dizer que não tenha dogmas e que não acreditem em coisas e que vá afirmar como absolutos morais e radicais. Mas percebes, a coisa, o juízo não está tanto na construção intelectual que vais fazer sobre ti, mas está precisamente numa construção moral. E o que eu acho difícil é essa moralidade ser fundamentada depois, sobretudo, a partir de uma questão intelectual. E é aí que eu acho mais difícil. Isso é giro, por acaso, nós estamos a tocar no cerne da
José Maria Pimentel
questão em certo sentido. Esse lado epistemologicamente é uma postura diferente. Quer dizer, aquilo, para mim, isso é um caminho. E não é... Lá está, a pessoa não pode ser arrogante ao ponto de achar que conhece tudo e não conhece, e há uma série de sombras, mas se tu fizeres esse caminho por ti próprio não há sala onde não possas entrar ou que não possas construir se quiseres e quando tu fazes sobre um livro que já é a palavra de Deus e está construído, já pré-construído e no fundo está a ensinar como uma autoridade. Para mim essa é a grande dificuldade. É interessante falarmos sobre isso porque isto não tem que ver com a discussão por aí simples da existência de Deus ou não, mas sim quase com a em que medida é que o ser humano é feito ou não para a religião, digamos assim, ou a religião é feita para o ser humano, ou seja, em que medida é que isso faz parte de nós? Já agora deixa-me, vou-te dar uma sugestão, quando estava a pensar sobre isto. Se eu estivesse do teu lado, numa conversa deste janeiro, numa espécie de debate deste janeiro, fazia o seguinte argumento que me ocorreu no outro dia e que eu acho que é verdade e que é muito engraçado e que para mim é um dos melhores argumentos a par dessa questão do Peterson que eu falava, da questão de teres que ter um referencial moral, teres que no fundo ter um absoluto em relação ao qual depois fazes os vários relativos, Que é a questão de que toda a gente, se nós pensarmos nisso, praticamente toda a gente vive implicitamente como se houvesse vida para o lado da morte. Quando eu digo implicitamente, e estou a incluir a mim próprio, se tu perguntares a alguém se lhe é indiferente a memória que fica dela quando ela morre se perguntares a um ateu, se perguntares ao Ricardo Ouropeira, como falávamos há pouco emocionalmente não lhe é indiferente para lá existe um efeito que é o efeito que a memória dele tem sobre a família e os amigos que ficam. Mas vamos controlar para esse efeito, vamos fixar esse efeito e admitir que ele não é alterável e que se trata simplesmente da memória. E nós, como ser humano, estamos programados para agir como se essa memória nos interessasse. Fazemos isso, por exemplo, um exemplo típico. Quando se fala do controle de mandatos presidencial, por exemplo, nos Estados Unidos, também é verdade aqui em Portugal, mas como o poder executivo não está no presidente, não é tão relevante. Mas falas muitas vezes Qual é o incentivo que controla, que no fundo que é o freio para a ambição no primeiro mandato? Ok, isso seria eleito para o segundo. Qual é o incentivo que joga no segundo mandato? É ficar para a história. Ficar para a história pode interessar para o resto do tempo que a pessoa viva, não é? Mas interessa é numa espécie de presunção de imortalidade. E eu acho que qualquer ateu, qualquer pessoa, quer dizer, isso faz parte do nosso ADN, lá está, mas para mim isto não é uma razão para eu me tornar crente, é uma razão para eu perceber as nossas limitações. Mas é muito interessante isso. E por exemplo há uma frase do Woody Allen, ultra engraçada, em que ele diz que I want to achieve immortality through my work, I want to achieve immortality through not dying. Ou seja, eu não quero tornar-me imortal pelo meu trabalho, eu quero é não morrer. E isto é uma ótima piada, mas tem uma camada por baixo desse humor que é isto é altamente contra a natura, não é? Porque realmente o que ela está a pôr a nu é que nós estamos programados para agir, ateus e crentes da mesma forma, como se houvesse eternidade, como se houvesse imortalidade.
Tiago Cavaco
Mas deixa-me só meter-me com o uso da tua expressão dos estamos programados, porque obviamente é uma convicção, tu derivas do teu conhecimento daquilo que é... Por
José Maria Pimentel
isso é que eu digo que isto é um bom argumento, porque tu podes dizer, nós não estamos programados, nós não somos
Tiago Cavaco
assim por acaso. Pois, exatamente. Aliás, repara, a ironia que tu podes, às vezes, pode haver com tudo, imagina, e eu sei que novamente continuo a simplificar coisas que estão muito além da minha capacidade sequer de estudá-las. Sim. Mas quando falamos na ciência, que é de repente a ciência funcionar não como uma libertação, mas como uma espécie de programação. Aliás, a eterna questão, ok? Os sentimentos, são os químicos ou não são? Eu estou a ler, estou a reler já ali há uns anos, o Mano Masiado, o Mano do Nietzsche. E eu acho que de facto nós, como crentes, eu acho que nós temos de ler os ateus fortes. E para todos os efeitos, eu acho que o Nietzsche continua a ser dos ateus fortes. E uma das coisas que ele dizia, sim, ele reconhece, ele está no programa dele de esmagar de uma vez por todas a metafísica, mas ele diz assim, reconheço que um dos problemas que temos, é parecido com aquilo que o Gustavo estava a dizer há pouco, é que...
José Maria Pimentel
Se é parecido, já fico contente. Não, é porque ele dizia,
Tiago Cavaco
a partir do momento em que as pessoas deixam de acreditar na imortalidade, basicamente a tese dele era esta, ele não usava bem estas palavras, mas é muito difícil que lutem por instituições duradouras, porque vão pensar na sua própria existência. Aliás, de um modo geral, esse é um dos problemas que tu tens hoje. Porquê é que as pessoas não acreditam nas instituições? De certa maneira não acreditam em Deus. O que é que eu quero dizer juntar as duas coisas? Não acreditam em nada que não seja imediatamente verificável por elas próprias. Pronto. E tens um problema que é, eu estou aqui mas amanhã não está, não estou. Portanto, a vida são dois dias, o carnaval são três e portanto não vai aqui ficar nada. E é difícil de facto, quando tens uma cultura a fazer um percurso destes, que alguém diga não, não, eu vou dar a minha vida, é o que tu estavas a dizer, por alguma coisa que vai ficar depois de eu partir. E também daí o problema em conseguir fundamentar moralmente uma vida que não acredito num absoluto como Deus ou outro. Portanto, a questão aqui, ela torna-se interessante porque aquilo que num momento pode parecer libertador, sei lá, tudo o que a ciência supostamente agora nos vai mostrar, num outro momento pode ser absolutamente... Não sais daqui, Zé Maria, só vais viver este tempo, não há chance de ir além. E fazer da ciência, não sei até que ponto é o que se faz da ciência, uma espécie de determinismo, até quase de fatalismo. Fatalismo esse, que como tu dizias com razão, não se verifica no cotidiano das pessoas, de grande parte dos ateus. Outro exemplo que eu costumo dar, que eu acho que é a família, é da família do que tu deste, é tu quando, não sei se és pai,
José Maria Pimentel
mas... Estou quase.
Tiago Cavaco
Vai ser pai em breve? Parabéns. Eu acho dificilão de sentires mais religioso quando tens o teu primeiro filho, porque, Bem, tu podes dizer, pois isto foi evolução, é uma programação, é para nos... Só que depois é sempre o ovo e a galinha, não é? Sim ou não, isso pode ser a causa ou pode ser a consequência. Não,
José Maria Pimentel
e atenção, a evolução não nos torna presos a ela. Mas, por exemplo, quando tu estiveres...
Tiago Cavaco
Isto é um cliché e até um cliché um bocado emocionalmente manipulador, mas tu quando estiveres... Já sabes se é um menino ou se é uma menina? Já me fazias estas perguntas todas! Quando tu estás a ver, sempre me respondes, nós somos despodorados, ok. Não interessa. Quando isto for para lá,
José Maria Pimentel
já deve saber, não é? Quando tu
Tiago Cavaco
estiveres com a tua criança na mão, eu acho difícil resistir à tentação do maligno, que é o pensamento religioso, que é o valor da vida desta pessoa vai além de mim próprio, que é uma coisa pouco ateia de pensar, mas na maior... Por isso é que eu dizia ao Ricardo naquela discussão, calma aí, se tu dizes que o sofrimento retira o valor da vida, então também não podes ir buscar o valor da vida à alegria que tens, por exemplo, com as tuas filhas. Não podes escolher quando é que
José Maria Pimentel
aplicas valor e o que é que não é. Não, e esse é o ponto interessante, por isso é que eu acho que os ateus têm a obrigação de ser humildes, é que... E esse era o argumento que eu faria se tivesse desse lado, é toda a gente no fundo acredita um bocadinho em Deus, ou seja, nós estamos de tal forma programados, o que quer que seja para isso, que isso está presente de muitas formas, está nessa relação com os filhos, termos uma vida que foi gerada por nós, não é? Que fica depois de nós, quer dizer, toda a lógica se altera radicalmente, essa questão da imortalidade, no sentido da vida pós-morte. Agora, para mim, isso é ultra interessante e é um desafio, para mim é um desafio adicional, não é uma razão para eu... Quer dizer, é uma razão para ter mais humildade, mas para... Para escavar isso mais...
Tiago Cavaco
Não é para pensar menos, obviamente. Não é para pensar
José Maria Pimentel
menos e é para perceber no fundo como é que tu resolves isso, não é? E a resposta do que falámos há pouco do Sam Harris, por isso é que eu digo, ele, eu acho que ele é taxativo, porque um tipo quando quer vender livros e estar num debate tem que ser taxativo, não pode, tem que ser um ou zero, preto ou branco, não pode estar lá com... Se estiver à europeia, aquele branco... Não pode estar no meu caminho, senão não, exatamente, senão a coisa não... Senão não dá nas vistas. E claramente é um desafio grande, mas não acho que nós não tínhamos as... Por exemplo, o que é que serve muitas vezes de contrapeso a isso? Quando não existe Deus, existe família, por exemplo, ou seja, ou existem relações interpessoais, não é, no fundo, as pessoas que... Sim, mas repara... Mas o que é que te impede, no fundo, o que vais dizer? O que é que impede as pessoas de se comportarem egoisticamente?
Tiago Cavaco
E nós não falámos ainda numa coisa que hoje se calhar é tida como incómoda. No caso, eu acho que nessas espécies dos cristãos evangélicos têm de facto vantagens por serem tão obcecados pela Bíblia. Não estás a falar numa questão que no pensamento tradicional religioso sempre contou, que é a ideia do julgamento, a ideia de que tu és julgado.
José Maria Pimentel
Bom, mas em relação a essa… Que é obviamente uma convicção religiosa. Mas essa por acaso não me cria especial problema. Isto é uma simplificação? Essa é uma conversa antiga? Aquela coisa do Pascal, que eu lhe dizia, da aposta do Pascal. Mas o que eu penso, e acho que faz sentido pensar, é que Deus a existir é omnisciente. E, portanto, sabe aquilo que eu penso, sabe aquilo que tu pensas e prefere alguém que é um ateu convicto e honesto do que um hipócrita que se converte apenas a pensar no juízo final. Por isso é que a aposta do Pascal não faz grande sentido. Concordo contigo, só que lá está. Aí, voltando um pouco atrás
Tiago Cavaco
na conversa, aí também dependerá, vamos dizer assim, do descanso que tu vais encontrar naquilo que atribuis que Deus existindo poderá ser, ou dele poder ser uma coisa bem diferente daquilo que tu contas que ele seja. Por exemplo, se Deus for perfeito, dificilmente um padrão assim mais porreiro chega. Mas aí estamos todos loucos. Eu não sei se já tiveste professores
José Maria Pimentel
muito exigentes. Mas
Tiago Cavaco
quando tens um professor muito exigente, ele não é um professor porreiro, somente. Sim, sim. Ele vai dizer, pá, Zé Maria. Mas é justo. Exatamente. Não, mas precisamente por ser justo. É que há um juízo que se adequa. E, portanto, uma das coisas que eu acho que os antigos, e é grande generalização que eu vou fazer, mas uma das coisas que eu acho que em grande parte os antigos, os antigos ou pelo menos noutro tempo, também não sei porque isto não dá para dividir o tempo. Às vezes eu reconheço que um dos problemas de quem fala da religião dá uma ideia, desneifica assim o passado, como antigamente as pessoas eram muito melhores, acreditavam em Deus, o mundo era mais moral, mas não necessariamente. Aliás, há coisas inacreditáveis que aconteceram com pessoas que acreditavam em Deus e...
José Maria Pimentel
Claro.
Tiago Cavaco
Mas é verdade que uma das coisas que eu acho que era interessante é que as pessoas acreditavam mais, olhavam com mais respeito para a ideia de eu vou ser julgado, Eu se calhar devia pensar nisto com seriedade. E hoje, aliás, porquê é que as pessoas não estão nas igrejas também? Entre várias razões, ou porquê é que as pessoas não acreditam em Deus? Porque deixaram de acreditar na justiça, deixaram de acreditar na necessidade da salvação. Há um pastor que eu gosto muito e ele diz, citando o outro, portanto essa frase não é dele, este pastor chama-se Tim Keller, mas ele dizia, hoje a salvação é a salvação não existir. O Nietzsche é um humano demasiado humano, ele dizia assim, eu acredito que vamos chegar a uma época em que um discurso, em que crenças como o anjo da guarda, ou o pecado original, ou a salvação se vão tornar obsoletas. Eu tenho fé que esse momento vai chegar. Chegou! Nesse aspecto ele era um profeta e escreveu isto há 100 anos. Mas esse momento chegou. A salvação é não existir necessidade de salvação. Mas também podemos dizer, mas será que essa naturalidade com que se passou do tempo que o Nietzsche gostava que chegasse e que efetivamente chegou para o tempo onde ele estava, onde as pessoas ainda acreditavam, aparentemente ainda acreditavam mais nisso, será que isso nos deve inspirar assim tanta segurança? Portanto, será que a possibilidade de eu ser ajuizado não deve entrar ao barulho? E eu, nesse aspecto, eu sou um pregador... Lá está, a vantagem dos evangélicos aqui. Eu acredito no céu e no inferno. Portanto, eu não peço desculpa... Quando tu acreditas em coisas assim, tu não pedes desculpa para pregá-las. Para ti é verdade. Portanto, tu vais dizer, olha, pensa bem porque faz lembrar quando andámos na escola primária, eu via, quem mente vai para o inferno, e na altura acreditávamos todos naquilo, eu continuo a acreditar. Portanto, alguém pode dizer, epá, isso é tática do medo, quantas coisas é que tu na vida não vais ensinar precisamente para livrar as pessoas de perigos. E portanto, isto é uma coisa que entra na equação, que hoje, obviamente, não estou a dizer que entra na equação naquelas discussões entre a existência de Deus ou não, mas que eu acredito que entra para avaliar a questão da própria imortalidade, se há um Deus, se existir um Deus, e se houver uma diferença entre aquilo que é bem e aquilo que é mal, então já está implícito aí algum tipo de juízo a separar uma coisa da outra. E já estará implícito, aceitando, obviamente, aceitando essas permissões, for the sake of the argument, mas já estará implícito a ideia de que poderá haver destinos diferentes.
José Maria Pimentel
Não, a questão é dificilada. O que eu tenho aí é que o juízo final tem essa desvantagem de ser uma espécie de castigo, não é? De ser uma... No fundo não está a focar-se em melhorar-te, mas em fazer-te ter medo de agir mal. Em vez de te fazer pensar de forma diferente, muda sobretudo a maneira como tu ages. Mas também porque estás a
Tiago Cavaco
partir de um princípio mais, naturalmente, mais antropocêntrico, mais centrado de que a pessoa abandonada a si mesmo e à sua razão chegará às conclusões certas. Nesse sentido, novamente, estás a ser, antropologicamente, mais otimista do que eu. Eu acredito que a pessoa abandonada a si própria, ou à melhor reflexão que consiga, não chegará necessariamente às melhores conclusões. Se
José Maria Pimentel
não tinha, provavelmente não.
Tiago Cavaco
Mas daí a pedagogia de tu dizeres, olha, que isto mal pode-te acontecer. Eu não vejo isto mal como pode-te acontecer, como uma violência, se for realidade que pode acontecer. Certo. Imagina, quando tu tens um... Este é um exemplo mais tosco, mas na minha opinião eficaz. Tu tens um miúdo, apá, e há um sítio qualquer perigoso, tu vais dizer, olha, tu que tens cuidado, não... Não vais para ali, há uma ribanceira, podes te magoar. Ai, não, não, vou deixar ele descobrir isso por si próprio. Percebes? Essa é uma... Eu não Sei até que ponto às vezes não será uma espécie de vaidade da ideia, como nós hoje subvalorizamos, a ideia da descoberta pessoal. Achamos que o discurso moral só pode ser permitido desde que ele seja uma descoberta pessoal. Eu sei que agora acabei por tornar isto retorno, mas como se tu tivesse sempre dentro de ti a capacidade para solucionar todas as coisas que estão em jogo. E eu acho que isso é pouco humilde. Não, tu não tens. De facto, às vezes tu precisas de ser assustado, às vezes precisas de… às vezes alguém precisa de te abrir os olhos e tu dizes, epá, não estava a pensar nisso, se não fosse aquela pessoa a avisar-me eu não iria ver. Claro,
José Maria Pimentel
mas as minhas reservas em relação à ética religiosa é que é uma ética, bem, primeiro, com uma variância gigantesca. Porque varia com todas as regiões e mesmo dentro do cristianismo com todas as nominações. E é prescritiva, ou seja, está até por escrever uma receita que pode ser ou não incorreta. Quantas pessoas na história não morreram de consciência semi-tranquila? Quer dizer, se fossem cristãos a sério nunca poderiam estar com a consciência completamente tranquila, mas semi-tranquila a achar que tinham agido bem quando tinham feito um monte de coisas que aos olhos de hoje seriam pecados terríveis ou más ações, não é? E quando tu estás a seguir a Bíblia enquanto... Claro que isto... Falando com alguém que acha que a Bíblia é a palavra de Deus, obviamente que isto, qualquer
Tiago Cavaco
coisa que eu diga, serve muito pouco. Não, não necessariamente. Mas, para, se tiveres um padrão... É verdade que eu acredito nisso, porque a Bíblia assim me revela. Mas se tiveres um padrão de que há um juiz e que ele é justo, isso pode ser tão assustador como tranquilizador. É engraçado que a conversa começou nesta parte, mas porque de certa maneira tu estavas mais tranquilo e eu é que quis-te tirar a tranquilidade.
José Maria Pimentel
Certo. Porque eu acho que as duas
Tiago Cavaco
coisas jogam aí. Tu podes ver um juiz justo, ok, ótimo. Sei que vou ser ajuizado bem, mas o facto de teres um juiz justo não significa que o réu em causa veja tudo bem. O juiz justo diz sobre o juiz, não diz sobre o réu.
José Maria Pimentel
Sim, mas nós não sabemos qual é o critério do juiz. Claro. Tu achas que sabes? No meu caso, exatamente. Eu tenho a vantagem porque
Tiago Cavaco
o juiz revelou-se. Portanto... E daí a tal polémica do apóstolo Paulo na carta aos romanos dizer assim meus amigos, vocês só não acreditam se não quiserem. Eu acho que de facto que o juiz se revelou.
José Maria Pimentel
O equivalente à carta de Paulo é provavelmente nesta espécie de pós-modernidade um lado de complacência moral que eu acho que normalmente os crentes, contra o qual os crentes, ou pronto, que os crentes identificam e contra o qual se insurgem, e eu concordo parcialmente, ou seja, é verdade, acho que nós há uma série de progressos morais que nós fizemos, mas houve se calhar algum retrocesso na autoanálise. Porque no fundo o que havia antes, no fundo o que existe é se eu entrar aqui, se eu entrar lá embaixo na igreja, o que acontece é que tu começas-me a perguntar se vai ser rapaz ou rapariga, ou seja, começas a... No fundo estou-me a abrir e estou a dar a hipótese de que uma autoridade externa faça, no fundo, essa espécie de análise, quase como um psicanalista e um pastor ou um padre que tem esse lado que não é irrelevante. E a pessoa, se não fizer isso, qual o risco de passar a vida inteira sem fazer esse exercício? E essa complacência eu concordo que existe. Agora, qual é o problema? Eu acho que há uma coisa que nós ainda não falámos, eu falei a passando isso há pouco, que para mim é o grande problema de toda esta conversa, porque eu acho a conversa sobre a existência de Deus fascinante, acho a conversa do ponto de vista ontológico interessante, mas sobretudo do ponto de vista antropológico e aquela... A questão de serem em grande medida as religiões que permitem que os princípios éticos passem geracionalmente e a questão de nós estarmos programados para agir na presunção da imortalidade e de muitos dos nossos laços serem construídos dessa forma. Mas depois há aquela frase clássica que eu já não sei quem é que dizia, que é o... Tiago, se tu percebes... Quando tu percebes o motivo porque tu não crees em todas as outras religiões, vais perceber porque é que eu não acredito na tua. Ou seja, qual é a probabilidade de a Bíblia de toda, de todos os livros ou o cristianismo de todas as religiões e sobretudo o cristianismo de denominação
Tiago Cavaco
em geral.
José Maria Pimentel
Especificamente. Essa é a grande dificuldade. Quer dizer, há um lado... Quer dizer, é querível que se tu ou eu tivéssemos nascido a outro lado do mundo fôssemos como somos? Claramente não. Ou seja, há uma história... Para mim o principal problema da religião não é ser antropocêntrico, esse é um problema, mas o principal é ser etnocêntrico, ou seja, é estar centrado numa
Tiago Cavaco
cultura específica e... Sim, deixa-me tentar responder, obviamente falando do cristianismo. Por um lado eu voltaria a uma coisa que disse logo ao início que é, porque tu colocaste, e bem, e bem, e até para espicaçar a pergunta, colocaste em termos de probabilidade. E aí, se calhar só para chatear, eu diria, se calhar a questão é mesmo a improbabilidade, porque por um lado eu também não quero dar-te a ideia de... Há a chamada teologia natural e a teologia... Em linguagem teológica tu chamas a revelação natural e a revelação especial. A revelação natural é o facto de existir um mundo, o tal argumento de Paulo na primeira carta, na carta aos Romanos no capítulo 1, que diz assim, o mundo está aí, tu a partir daquilo que observas consegues chegar à conclusão que Deus existe. E os protestantes aceitam a importância da revelação natural, mas enfatizam a importância da revelação especial, da escritura. Portanto, eles acreditam que a revelação natural só não chega. Se a revelação natural só chegar, são precisáveis de Jesus vir cá para fazer a coisa dele, porque as pessoas percebiam. E nesse sentido, Novamente, em termos da natureza do ser, a nível da antropologia, o protestantismo novamente tende a ser mais pessimista do que o catolicismo, porque o catolicismo hoje consegue abraçar, nas questões da salvação, consegue abraçar que outras pessoas de outras religiões façam parte e o Protestantismo... Também depende do Protestantismo, tens Protestantos liberais que basicamente não acreditam em nada daquilo que está na Bíblia, mas desses não falarei eu, porque não sou dessa família. Mas para te dizer, o campo da revelação especial é um campo onde, de certa maneira, a improbabilidade conta mais do que a probabilidade e que de facto não há respostas para. Porque é que se Deus tem... Porque é que se Deus criou um universo, na perspetiva teísta e na perspetiva cristã, porque é que Deus criou um mundo em que o mal existe? E porquê é que não passou logo para a parte dos novos céus e da nova terra, da perfeição, da eternidade? Há respostas que a Bíblia não se preocupa em dar e quanto vais mais por este caminho tu entras mais no campo da improbabilidade do que propriamente a probabilidade. E até recuperando um católico que gosto muito e que tu já mencionaste, o próprio Pascal, que sublinhava o Deus abescondito, o Deus que se oculta e não tanto o Deus que se mostra, apesar de ele ser um homem da ciência e de acreditar que através da ciência, que era a vida dele também, que isso era um grande, uma grande razão para acreditar em Deus. Mas portanto, isto só aqui para fazer uma questão, que leva a uma coisa que já te disse algumas vezes, que é, por exemplo, para um cristão evangélico, ou pelo menos um cristão como eu, a questão novamente não é aquilo que tu fazes com a informação que te é dada. E voltamos ao choque moderno com a questão do pecado original. Por alguma razão, que eu não sei explicar porque a frase que eu gosto de usar é da Agostinho, porque eu acho que é a melhor frase para explicar uma coisa que a própria Bíblia não se preocupa em explicar, e Agostinho diz assim, está mais de acordo com a natureza de Deus tirar bem do mal do que não permitir que o mal exista. E esta é a frase que eu até aos meus filhos uso sempre para responder quando vêm as questões difíceis. Porquê que Deus permite que haja mal? Porquê que se é o inferno? Porquê que não só se é o céu? Portanto, tudo isso. E de facto, acho que Agostinho percebeu o sumo bíblico e resume-o bem nessa frase. Portanto, de facto, é por isso que por exemplo muitos protestantes, como João Calvino, e Calvino é uma grande influência para mim, porque apesar de eu ser batista, a minha linha teológica é calvinista, eu sou um calvinista. É? Sim. O que depois muda bastante as coisas, porque há evangélicos de todas as formas e efetivos, e nem todos são calvinistas, naturalmente. Mas que, por exemplo, para Calvino, Por causa disto, quando tu olhavas para o mundo, a maneira mais objetiva de olhar para o mundo é dizer assim é um teatro. Não um teatro no sentido do fingimento, mas é um teatro no sentido da história. Aliás, é curioso que quando tu lês o Jordan Peterson no 12 Rules for Life, ele começa com uma afirmação parecida, que nesse sentido é bastante a Calvino, que é isto é um drama, isto é alguma coisa que acontece. E a onda calvinista, lidando com coisas para as quais não temos resposta, mas de facto vai enfatizar mais isto. A maneira mais realista de tu olhares para o mundo, não é necessariamente através daquilo da ciência, embora não despezes a ciência, mas é tu percebes que isto é uma história, há um arco, há aqui uma história que está a ser contada, portanto há aqui um caráter absolutamente dramático, não é dramático, melodramático, um caráter de drama que se tu não aceitas provavelmente ficas mais longe de perceber a realidade como ela é. E é por isso que eu diria, generalizando, mas que nós continuamos a sentirmos atraídos para boas histórias, para arte, para bons filmes, ou seja, para o que for. Para coisas que nos contem algum, que nos dêem algum sentido de finalidade. E também daí que eu acho que seja mais difícil encontrar essa finalidade quando não existem categorias definidas. Pronto, tendo isto em conta, se a questão não for fundamentalmente uma questão de conhecimento, a religião não é mais certa nem mais errada por questões de probabilidade, é de facto mais certa e mais errada por questões de verdade. Claro que eu não te sei responder o que é que eu seria se nascesse nandia, mas isso não inviabiliza. Repara, o facto de poder haver uma verdade não significa que não possa haver 300 mentiras.
José Maria Pimentel
Mas Porque aquela que te calhou é a verdade.
Tiago Cavaco
Agora, a questão é de facto perceber aquela que me calhou. O que eu acredito, claro que depois tu podes, em último grau eu vou sempre dizer, em último grau, aquela que não daria muito mais conversa porque eu diria que é uma questão de fé. Claro. E eu acredito que é de facto uma questão sobrenatural. Eu acredito que é de facto sobrenatural aquilo que Deus faz quando, através do Espírito Santo, te convence que Jesus Cristo, sendo o Filho de Deus, é Deus também e veio fazer uma coisa que foi morrer pelos teus pecados e que nessa morte na cruz há uma transação em que o mal que tu fizeste fica pago. Portanto, isto eu acredito que é uma iluminação
José Maria Pimentel
sobrenatural.
Tiago Cavaco
Agora, também é verdade que ao dizer que isto é uma questão de fé, ou é ou não é, não significa que não há coisas que não possam ser ditas. Quando tu comparas, por exemplo, os livros sagrados, e eu não sou um
José Maria Pimentel
conhecedor
Tiago Cavaco
do Corão, nem sou um conhecedor das religiões orientais, mas daquilo que sei, eu acho difícil tu, diante da Bíblia, não dizeres isto é um bocado de trabalho diferente. A Bíblia tem cerca de 1500 anos de diferença, o intervalo cronológico. Portanto, são muitas vozes a dizerem coisas diferentes que ainda assim, na minha opinião, sem qualquer tipo de susto pós-moderno, te permitem teres uma visão, apesar de depois haver igrejas muito diferentes, mas teres alguma coisa chamada cristianismo. Numa diversidade que tu não vais encontrar em nenhuma outra religião. No caso do Corão, e com respeito pelo Corão, mas é um homem a escrever aquilo do início ao fim. Portanto, essa dimensão...
José Maria Pimentel
Ditado por Alá.
Tiago Cavaco
Ditado por Alá, segundo o Corão acredita. Eu
José Maria Pimentel
relembei esse, não é que... Claro! É o 4º sempre do pressuposto. Claro, está bem, mas
Tiago Cavaco
tu podes comparar objetivamente, quer dizer, por exemplo, quando tu olhas para... Estou a falar até... Tendo em conta que são, vamos dizer, visões em competição da verdade, eu Acho que se pode dizer objetivamente que uma que tem 66 livros, até porque nós temos menos, porque o canón católico mete mais alguns, mas uma que tem 66 livros diferentes, escritos por várias pessoas diferentes, diante de uma que foi escrita só por um, de certa maneira pode conquistar logo a nossa maior admiração, no sentido em que tem uma, vamos dizer assim, tem um lastro, tem uma força que é diferente. Tu dizes, olha, Deus disse-me isso hoje. Também tens isso como hormonismo. O Joseph Smith também acrescentou-te uma coisa. E logo aí eu acho impressionante. Depois há coisas que quando tu lês o relato da Bíblia, claro, e agora estou a falar como um crente, portanto já estou dentro da minha lógica circular, mas que eu acho que são impressionantes. Quando tu tens, por exemplo, deixa-me falar de um texto bíblico em particular. O apóstolo Paulo está a escrever, para a priori, a igreja que existe no Novo Testamento, que é a igreja de Corinto. Pá, que são uns devassos, fornicam uns com os outros. De facto, é uma igreja que tu dirias. Aliás, Corinto era aquilo que o Ocidente está a voltar a tornar-se bem permissivo a nível de moral e tal. Mas aqueles cristãos estavam-se a portar tão mal que até os pagãos, os descrentes, achavam que aquilo era demais. E ainda há assim o apóstolo Paulo está lá a falar, a corrigir, a dizer vocês têm de se portar bem, não sei o quê. Mas a determinada altura, no capítulo 15, há um problema que os corintios estão a levantar, que é aí que realmente Paulo se eriça. O que eu acho que é uma boa fotografia do que o cristianismo é, é quando eles colocam em causa que Jesus ressuscitou. E é aí que tu te apercebes que o cristianismo não é uma religião de moral. Atenção, uma religião da moral é uma consequência, mas não é uma religião que tu salvas pela moral. Porque aquele pessoal andava-se a portar mesmo mal. E Paulo tolera, no sentido de os corrigir, diz-se que vocês têm de se portar bem, mas onde ele diz, olha, não há chance, é quando eles colocam em causa a ressurreição de Jesus. É quando ele diz, se Jesus não ressuscitou, a nossa fé é vã e nós somos os mais miseráveis de todos os homens. Como quem diz, nós estamos aqui, de facto, completamente enganados. E nesse registro, quando ele está a fazer aquela sua tour de força, a dizer assim, a nossa fé não depende daquilo que nós construímos individualmente, mas da convicção que nós temos de factos que nos são exteriores. E isto é bastante humilhante para uma época que se valoriza a partir daquilo que constrói, a partir daquilo que tu, como cidadão, és e contribuis. Nós temos muita dificuldade com a ideia de uma solução vir de fora, resolver por nós uma coisa que nós não conseguimos. É aí que Paulo se eriça e diz assim, se vocês têm dúvidas acerca da ressurreição, olha, há pessoal que viu isto acontecer. E basicamente, eu estou parafrasear, a dar uma tradução muito moderna, mas é o que ele diz, se vocês têm dúvidas vão falar com os testemunhas. O que eu acho um texto incrível, porque está a dizer uma coisa, que é que os cristãos aceitam como um milagre, como uma ação miraculosa de Deus, que é Jesus morreu e ressuscitou, e no entanto o apóstolo Paulo não usa a lógica de ou acreditas ou estás fora. Ele diz, se tens dúvidas, vai falar com as testemunhas. E isso eu acho que é uma coisa incrível que, por exemplo, nas outras religiões, não sendo eu um conhecedor, não existe. Portanto, por um lado, não vou pela questão da probabilidade, mas também por outro, quando vou pensar no Cristianismo, eu encontro nele coisas que eu não encontro em mais lado nenhum.
José Maria Pimentel
Esse exemplo do Paulo é interessante, embora eu o veja um bocadinho ao contrário, porque o enfoque dele na crença indeterminada da moral era exatamente o contrário do que me pareceria bem nesse caso. Ou seja...
Tiago Cavaco
Mas aí está onde o cristianismo é diferente de todos os outros.
José Maria Pimentel
Mas tu achas que é diferente para
Tiago Cavaco
melhor? Claro, porque o cristianismo não mete no céu as pessoas boas, o cristianismo mete no céu as pessoas más. É por isso que é uma religião que se distingue de todos os outros, é uma religião de graça, não é uma religião de tensão. Por um lado, tu vais escolher o que se melhora.
José Maria Pimentel
Mete os que acreditam e não os que
Tiago Cavaco
agiram bem, no fundo é isso que estás a... Repara, religiões que dizem, porta-te bem e tudo corre bem, isso é a forma, vamos dizer, mais primária. E quando digo primária não digo no sentido negativo. Primária é primário, é básico, faz sentido. Todas as religiões têm uma forma de moralismo, não é? Porta-te bem para que depois na vida não te corra mal. Mas o cristianismo não te vem falar nisto. É nesse sentido que eu te falei na dimensão do teatro, na dimensão de Calvino. O fundamental não está propriamente nos factos em si, mas naquilo que os factos estão a construir por estarem num encadeamento, percebes? Portanto, nesse sentido, o que o cristianismo vem dizer não é que tu te salvas por seres bons. A mensagem em choque do cristianismo é que tu podes ser mau, mas se aceitares um sacrifício que é feito por causa dessa tua maldade, tu podes te salvar. É nesse sentido que a palavra graça faz sentido. A graça só faz sentido se houver maldade. Se tu não tiveres maldade não precisas de graça para nada. Aliás, porque é que hoje as pessoas no ocidente no geral não procuram Deus? Porque não acham que há nada de errado com elas. Se tu achas que há alguma coisa intrinsecamente má, tu vais te sentir à rasca e a precisar de algum tipo de simpatia externa. E aí a mensagem do cristianismo é completamente diferente. Deixa-me usar um cliché, que em alguns círculos evangélicos é um clichê, mas a mensagem do Cristianismo nesse sentido, ela é antirreligiosa. Ela não te diz que se tu te portares bem, tudo vai correr bem para ti. Ela diz-te que Nem quando tu te portas bem, essa é logo a parte má, nem quando tu te portas bem tem chance. Isso só não chega porque o padrão de Deus está acima. Mas, depois vem a parte boa, mas Deus é gracioso. Portanto, e Ele trata do assunto para ti. Tu tens de acreditar que ele trata do assunto para ti. Percebes? Portanto, há aqui um paradoxo a acontecer. Por isso é que mesmo na expressão protestante, e agora eu estou a exagerar, isto é a minha maneira, haverá muitos protestantes que não concordarão comigo, mas nós Não temos santos nessa perspectiva, não temos... Para já porque santos são todos aqueles que são crentes, mas não temos heróis porque nós não acreditamos em heróis. De facto, nós... Imagina... Isto se calhar já sou mais eu. Eu não tenho paciência para pessoas boas, ok? Pessoas boas não me interessam porque são chatas, e não precisam de ser salvas. E eu acredito em pessoas que precisam de ser salvas. Eu sou mau mesmo, ok? Eu não me... Agora pode dizer, epá, tu és mau porque te ensinaram isso desde pequeno. Não! José Maria, acredita, eu com a quarentena não sei como vivei comigo. Eu sou ruim mesmo, nas horas. Todos os dias que preciso de ser perdoado de novas coisas, mas que penso ou que faço. Portanto, é nesse sentido que o Cristianismo não é comparável com qualquer outra religião. Com todo o respeito, O islamismo é uma forma de moralismo, as religiões orientais são formas de moralismo, o cristianismo é a única religião que não se limita a ser uma forma de moralismo.
José Maria Pimentel
Esse é um ponto interessante. Para mim a limitação mantém-se completamente, Embora eu reconheça, mas eu acho que também estou a reconhecer isso enquanto ocidental. Quer dizer, a Bíblia é claramente mais interessante, parece-me mais interessante do que o Corão enquanto uma mini-improvisção literária. Não é por acaso que já tenho falado várias vezes no podcast. Embora depois tenha vários problemas, por exemplo, com o Federico Lourenço falava-se disso, da tradução, do que é que entrou no canon, do que é que não entra no canon, e o Mussoumano diria-nos-ia que estávamos completamente enganados porque o Corão era melhor porque é um livro editado diretamente, enquanto a Bíblia resulta de uma série de iterações e há muito mais a produção humana. Agora, o que é facto é que todos eles são diferentes, e não falando sequer aqui das religiões orientais, e depois temos a questão do Antigo Testamento, que no fundo é aquilo, quer dizer, uma versão diferente, não é? Sobre o que se faz é o judaísmo, que dá-te logo uma uma versão diferente. Mas agora eu queria te fazer uma pergunta, para terminar, até porque tens que ir pregar daqui a bocadinho. Eu já estou perdido.
Tiago Cavaco
Uau, tenho mesmo tempo!
José Maria Pimentel
Então vou-te fazer uma última pergunta, respondes rapidamente e depois sugeres o livro, como é hábito agora no final do podcast. E a pergunta é, para ti, os crentes de uma dominação cristã não evangélica, por exemplo, ou seja, um
Tiago Cavaco
católico, E sobretudo os crentes de outra religião, qual é o destino deles no juízo final? Bem, sabes que os protestantes são muito básicos. Nós vamos da Bíblia para o mundo e não do mundo para a Bíblia. Portanto, nós somos tão pessimistas em relação às nossas próprias capacidades que nós achamos que é a Bíblia que tem de dar as lentes para tu olhares para o mundo. Nesse sentido, e eu sei que estou a ser intencionalmente bruto, mas o catolicismo, como dá mais importância à teologia natural, é mais conciliador. Portanto, o catolicismo diz-me, se tu fores cuidadoso, olhares para as coisas com cuidado, vais tirar as conclusões certas. O protestantismo tende a enfatizar, nem assim, nem assim te safas. Portanto, nesse
José Maria Pimentel
sentido... Tens que... Sim,
Tiago Cavaco
É nesse sentido que nós vamos da Bíblia para o mundo e não do mundo para a vida. E é por isso que geralmente somos acusados fundamentalistas e literalistas e por aí fora. Isso se dá para outra conversa. Claro. Bem, mas em primeiro lugar o que eu diria é que aquilo que eu acredito é de facto aquilo que eu acredito, é aquilo que me chega através da verdade, a verdade é essa que eu encontro no texto bíblico. Portanto, tudo aquilo em que eu acredito, eu deposito à luz da Bíblia para poder ser a Bíblia a iluminar, Porque a partir do momento, se eu acreditar, como acredito, que de facto aquilo é a revelação de Deus, aquilo tem primazia sobre qualquer outra perspectiva. A partir daí, tendo em conta o que a Bíblia diz, o que eu acredito é que de facto, que Jesus sendo Deus, sendo o Filho de Deus, Ele próprio diz que não há outro caminho além dEle. Agora, eu acredito, não te esqueças daquilo que também falámos, eu acredito que Deus é um juiz justo, portanto que Ele consegue a juizar bem como nenhum de nós consegue e que Ele não comete injustiças. Não te sei explicar isso, mas eu acredito que quer a existência dos novos céus e da nova terra, quer a existência do paraíso, da nova Jerusalém, quer a existência do inferno, são consequências de Deus ser justo e não de Deus não ser justo. Até porque, reparam, o pastor Tim Keller cita um autor polaco, que eu não sei dizer o nome dele, mas que ele dizia. O Marx disse que a religião é ópio do povo. Parece-me que é mais ópio do povo tu dizeres que podes viver de qualquer maneira, que isso não interessa, que no final vais ter o mesmo fim de um homem bom ou de um homem mau. E de facto, de certa maneira, eu acho que isso é mais sedutor. Tu achas que se nada é existir, qual é a tua diferença entre ti e o Jeffrey Dahmer? Vão os dois acabar os dois inexistentes. Claro. Portanto, eu olho para uma eternidade de comunhão com Deus e uma eternidade de castigo como consequências de haver justiça, de Deus ser justo. E nesse sentido eu acredito naquilo que a Bíblia diz, eu acredito que só há salvação diante da aceitação da própria justiça feita a carne, que é Jesus. E nesse sentido eu acredito, parece-me difícil que a pessoa se possa salvar se não através da verdade. Agora eu não te sei explicar como é que isto acontece no caso das pessoas, até porque eu próprio ainda não passei por esse momento. Mas repara, eu não vou... Eu não... Eu não... Não seria coerente eu dizer, eu acredito na verdade deste texto, mas agora tendo em conta o quão complicado é defender isto num ambiente secular... Não, pá, se tu fores bom toda a gente vai lá parar. Não é isso que eu
José Maria Pimentel
encontro... Não, eu achei-se mais honesto. Não é isso que eu encontro nos Evangelhos.
Tiago Cavaco
Aliás, quando Jesus... Uma das coisas que me toca quando eu leio nos Evangelhos e novamente continuo a simplificar, porque são muitos textos, mas Sempre que há uma divisão entre bons e maus, Jesus coloca-se no lado dos maus, não se coloca no lado dos bons. E hoje em dia uma das coisas irritantes é que tu tens um moralismo antirreligioso, que é às vezes até mais perverso, que é avaliar o juiz por o juiz achar que está no poder de julgar alguém, que é uma maneira um bocado retorcida. Quer dizer, claro que você... É como se disséssemos a Deus, saia lá daí, você não tem... Você não precisa de nada disto. A justiça é isto ser como é e todos nós estamos bem, vá... Aposente-se, faça alguma coisa com a sua vida. E pá, e eu acredito no que o texto bíblico diz, portanto eu acredito que o juiz é justo, que ele é misericordioso. Eu próprio não sei encaixar as duas coisas, porque a Bíblia não se preocupa em encaixá-las, ela apresenta-as. E só para terminar em relação a isto, que é, Essa também é uma das coisas que me fascina, é que a Bíblia não te resolve os problemas. Tu, de facto, és chamado a dar um passo de fé, mas a Bíblia não está a resolver os problemas. Tu vais ter de viver com eles, tu vais ter de viver com textos que às vezes até parecem contraditórios. E isso não tem de ser um impedimento, porque o facto de tu viveres com divisões dentro de ti não é um problema se tu não fores a pessoa que te salva a ti mesmo. Percebes? Se a salvação não estiver dependente de ti e o facto de tu carregares dúvidas, isso não é assim tão problemático. Ou o facto de tu carregares angústias, isso não é problemático. Ou pelo menos não é assim tão problemático.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Vais resolvendo, claro. Livro. Eu vou dar
Tiago Cavaco
um que, pá, porque eu acho que eu voltei a lê-lo agora. Aliás, podia falar de dois, já falei no humano demasiado humano para dar um shout-out aí a todos os ateus e que Eu gosto de ler o Nietzsche porque obriga-me a pensar e ele diz tanta coisa certa, muita coisa certa. Mas dava as confissões do Agostinho, porque eu acho que é... Eu estou a voltar a lê-lo, li-o já há uns anos valentes, e agora estou a voltar a lê-lo e acho que é um livro obrigatório. Claro, it goes without saying, a Bíblia.
José Maria Pimentel
Eu acho que a pessoa tem direito. Tiago, adorei esta conversa. Mas é Maria, eu é que agradeço. Olha, obrigado por teres aceitado. E acho que foi... Falámos aqui de uma série de coisas, foi
Tiago Cavaco
ótima conversa mesmo. Obrigado. É um privilégio ter estado a conversar contigo e fazer parte daquela galeria de gente
José Maria Pimentel
séria que já foi entrevistada. Exatamente. Têm gostado do 45°? Nesse caso não deixem de seguir a página do podcast no Facebook e, se utilizar em iOS, de o avaliar no iTunes. Para além disso, não hesitem em enviar questões ou sugestões de convidados, são sempre bem-vindas e é muito bom saber o que vai na cabeça de quem ouve. Uma última nota para relembrar que podem tornar-se apoiantes deste projeto através do Patreon, no site www.patreon.com.br, 45 graus por extenso. Do Patreon no site www.patreon.com.br. Agradeço desde já o contributo dos patronos João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Mateus, Ricardo Santos e Gustavo Pimenta. Até ao próximo episódio.