#14 João Pedro Marques - Escravatura
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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45 Graus. Neste episódio estou à conversa com João Pedro
Marques, historiador e romancista e um dos maiores especialistas mundiais na história
da escravatura. O modo para a conversa foi o seu livro mais
recente, escravatura, perguntas e respostas, um pequeno grande livro, incrivelmente rico em
informação e cuja leitura vale bem a pena, pois leva-nos a conhecer
o que desconhecíamos e a rever posições pré-concebidas. O tema da escravatura
ou escravidão, de resto, e como explico no início, podendo parecer específico,
acaba por ser uma ponte para uma série de tópicos que extravasam-me
muito a esta questão. Se a isso juntarmos o enorme conhecimento do
convidado sobre este assunto, fica explicado porque é que esta foi uma
das conversas que mais gozo me deram gravar no podcast. Sem mais
demoras, vamos então à conversa com João Pedro Marques. Não sei uma
última nota para vos avisar que podem encontrar, na descrição deste episódio,
links para alguns temas, episódios e personagens históricas referidas na conversa. Vamos
ouvir.
José Maria Pimentel
João Pedro, muito bem-vindo ao podcast. Obrigado. Obrigado por ter aceitado o
convite a este tema. Eu tenho episódios de dois tipos diferentes. Há
episódios em que a conversa segue mais solta e outros episódios, como
é o caso deste, em que há um tema específico, que é
o modo de conversa, e normalmente tem que ver com o livro
que o convidado publicou. Neste caso, é o seu livro sobre a
escravatura, que é um livro até relativamente pequeno, mas cheio de sumo
e que, no fundo, como aliás vem dito na introdução, não tem
como objetivo tanto, nem poderia fazê-lo, contar a história da escravatura, mas
sim clarificar determinadas questões. À boleia disso, eu gostava também de falar
de alguns pormenores que, não estando no livro, são interessantes no meu
ponto de vista. Este tema, aliás, é um tema mais interessante ainda
do que eu achava à partida, não o escolhi por acaso, mas
ainda se revelou mais interessante ainda porque quando a pessoa começa a
descascar o tema, percebe a quantidade de intersecções que existem entre a
questão da escravatura e uma série de áreas diferentes. Desde logo é
um fenómeno que coincide muito com a modernidade civilizacional, da civilização ocidental
e, portanto, interliga uma série de coisas, desde a economia à política,
à própria moral, evidentemente.
José Maria Pimentel
E, Portanto, tem uma série de questões interessantes. Eu, neste caso, gosto,
quando se fala de um livro, eu gosto de fazer no início
da conversa, brevemente, aquilo que eu acharia interessante falar, sobretudo porque é
muito pouco provável que falemos disto tudo. Portanto, assim já fica dito.
José Maria Pimentel
sumário. Uma espécie de sumário, de proto-sumário, de sumário preliminar, sendo que
provavelmente não vamos falar disto tudo, o que não é nada mal
sinal. Significa que falaremos de outras coisas, se calhar até mais interessantes,
e iremos a fundo nalgumas destas. É um guião. É uma espécie
de guião indicativo. Há essencialmente quatro pilares que eu acho interessantes e
tem que ver também com a divisão deste tema numa lógica mais
ou menos cronológica. Em primeiro lugar, aquilo que é que porventura é
menos óbvio para algumas pessoas, que é o facto da escravidão ter
existido sempre ao longo da história, portanto esta escravidão, a escravidão atlântica,
acho que é, ou a escravatura atlântica, acho que é o melhor
termo para denominar. Portanto, a escravatura, o comércio de escravos de África
para as Américas, não é fenómeno único na história da humanidade, pelo
contrário, raros sim foram os casos em que não houve sistemas esclavagistas
e por isso é interessante ter essa noção do que foi existindo
ao longo da história. Em segundo lugar, isto nesta ordem econológica, o
fenómeno propriamente dito da escravatura atlântica, seja na lógica que ele estava
implícito, ou seja, os incentivos económicos, por exemplo, de quem participava e
políticos, fosse dos comerciantes dos cravos, fosse dos próprios chefes tribais africanos
que vendiam os cravos, fosse do outro lado dos colónios, propriamente dito,
nas Américas, e por outro lado, os vários intervenientes neste processo. Os
cravos propriamente ditos e as condições inarráveis por que passavam, que é
o tipo de coisa que faz a impressão só de ler hoje
em dia. Os europeus, o que eu acho praticamente interessante, os europeus
observadores, chamemos-lhes assim, ou seja, os europeus que não participavam diretamente e
que entravam em contato com o fenómeno e a reação que eles
tinham mais ou menos empática, que é sempre interessante de olhar à
distância, e os próprios índios no Brasil, que é outro fenómeno interessante
comparar o tratamento que os índios tiveram face ao tratamento que os
escravos tiveram. Em terceiro lugar, no século XIX, o movimento abolicionista e
tudo o que está por trás dele, seja as origens que ele
teve, as motivações, que não são tão óbvias como possam parecer à
cabeça, têm uma série de nuances. A oposição que houve, o papel
dos escravos, como o ativo foi ou não foi, o caso de
Portugal em particular, que é outro interessante e a nós próprios diz-me
muito respeito porque tem a ver com a nossa memória histórica. E,
finalmente, o quarto pilar, as consequências de todo este fenómeno aos dias
de hoje, que são consequências desde logo do racismo, porque esta escravatura
atlântica, não tendo sido a primeira longe disso, teve particularidades que levaram
a associar-se uma etnia, digamos assim, com determinadas características físicas, à escravidão,
o que levou, o que teve na origem do racismo, que é
um fenómeno que hoje em dia está longe de estar debolado. Depois,
a própria memória histórica dos afrodescendentes, que obviamente não é o caso
nenhum de nós os dois, portanto nunca poderemos saber exatamente o que
é, mas é algo que é difícil de gerir. E finalmente, O
que eu acho, se calhar, destes todos, o mais interessante dos aspectos,
em que medida é que o sistema esclavagista está muito por trás
da falta de desenvolvimento do continente africano aos dias de hoje. Porque,
no fundo, instituiu estados escravistas no próprio continente que depois destruíram instituições
existentes que já não eram especialmente desenvolvidas mas destruíram-as ainda mais e
no fundo impediram ou têm vindo a impedir o desenvolvimento do continente
até aqui. Fica feito o sumário provisório, Não sei de que é
que dissemos falar. O problema é que até começássemos, se calhar, pelo
início, passa a redundância, que é exatamente o facto deste sistema da
escravatura atlântica, digamos assim, não ter sido a primeira ao longo da
história, longe disso. Aliás, existiu praticamente a todo lado, existia no mundo
antigo, nos romanos era evidente que existia, a pessoa lembra-se disso. No
caso europeu, a minha intuição é a seguinte, eu não sei, João
Pedro de Irmiaca, se isto faz sentido, que é, O feudalismo, que
no fundo foi o que surgiu na Europa depois do Império Romano,
digamos assim, com o interregno pelo meio, mas depois no fundo com
o refazer do mundo europeu, era um sistema que de certa forma
dava uma resposta diferente e alternativa à escravidão ao problema da mão
de obra da classe dominante, chamemos-lhe assim para simplificar. E ao dar
essa resposta diferente, porque no fundo a servidão da gleb não era
muito diferente da escravidão, era obviamente melhor e tudo isto é uma
gradação, mas era um sistema de pessoas que estavam presas à terra
e presas ao senhor daquela terra. E essa era uma resposta diferente
que, de certa forma, tornou a escravidão que tinha existido no mundo
antigo menos interessante, desde o advento dos incentivos, e fez com que
depois, quando, comece a estar em escravidão. Mais barata. Como? Muito mais
barata.
João Pedro Marques
Não era preciso comprar. Exatamente. Não era preciso comprar. É uma forma
de relacionamento... Eu interrompi-vos, se calhar. Não, não, contudo, era mesmo para
me interromper. É uma forma de relação de dependência e relação laboral
própria de um mundo muito mais pobre, globalmente falando, e muito mais
desprotegido. Aquela gente que, com o colapso do Império Romano e com
a imprevisibilidade e a dificuldade de relacionamento e até de movimentação de
pessoas e os ataques, não se sabe nunca de onde vem, que
é um quadro que se mantém até o século X, com os
ataques dos vikings e dos maceares e dos sarracenos e por aí
vai. E dos tártaros. Sim, até a Europa Central mantém-se até ao
tempo do Sanxiscã, até o século XIII. Portanto, isso, essa perigosidade do
tempo, o desaparecimento das estradas, tudo isso faz com que as comunidades
se procurem, procurem proteção junto de quem pode protegê-las e, portanto, aceitam
essas relações de dependência que, no fundo, constituem a massa de base
daquilo que se chamou o feudalismo. Mas, e que depois, repare, depois
de ter sido abolida a escravidão, vão ressurgir outras formas de completa
dependência e de exploração desalmada do trabalho, que já não são a
escravidão, mas que são o trabalho forçado, por exemplo, em África. Porque,
no fundo, o problema que se põe sempre é o problema do
trabalho. Como é que eu asseguro controle sobre pessoas que possam produzir?
E na Idade Média isso foi feito dessa forma. Aqueles que lutam
e aqueles que oram, as três ordens, protegem aqueles que laboram, aqueles
que trabalham e criaram-se aqui uma... Não sei se era melhor, é
muito difícil nós avaliarmos isso, a vida de um camponês, de um
servo da gleba é especialmente melhor do que foi... Havia formas de
proteção, que para os escravos muitas vezes não havia. O senhor tinha
um arbítrio completo sobre o escravo, um quais completo, era a sua
propriedade.
José Maria Pimentel
Isso acontece. Para caso, fora da nossa conversa, mas era interessante explorar
isso. Repare, por exemplo, no mundo religioso isso acontece com alguma frequência.
Pega, por exemplo, no São Francisco de Assis, um homem que era
rico. Mas é um caso isolado, não é? É o caso de
uma pessoa. Não, não, há muitos casos desses. Sempre que o mundo
religioso é
João Pedro Marques
É difícil, claro. Não, não é isso. Há sempre aqui um dilema,
que é um dilema que também tem na origem, ou pelo menos
tem na base, uma opção ideológica. Aliás, quando andava na faculdade usava-se
muito a metáfora da árvore e da floresta. Se a gente olha
para a árvore e não vê a floresta, quer dizer, se for
a árvore e não vê a floresta, também não vê a árvore.
Enfim, havia aquele dilema. As pessoas que querem ter uma visão dos
grandes movimentos, macro, como
chamam a
bocado,
muitas vezes essas pessoas perdem as nuances e às vezes algumas dessas
nuances são importantes, são muito importantes. E, portanto, quando se olha, por
exemplo, Eu vejo muitas vezes nestes debates que tenho e nesta troca
de ideias, ver pessoas que, para explicar esta escravatura de que nós
estamos a falar, o tráfico de escravos e a escravidão que se
desenvolveu aqui na Bacia do Atlântico entre o século XV e o
século XIX, Para caracterizarem isso, para explicarem isso, etc., partem daquilo que
foram as relações de trabalho forçado, que se chamava escravatura também, mas
por analogia, que existiram a partir de finais do século XIX e
depois no século XX. Quer dizer, Não é legítimo fazer isso. As
características do que foi a conquista da África, a corrida à África,
e as formas de trabalho e de exploração e de violência que
se ganham, não explicam o que aconteceu antes, nem caraterizam o que
aconteceu antes. Há quem faça um contínuo entre isso tudo. É a
mesma coisa que nós, por exemplo, pensarmos no cristianismo a partir daquilo
que era a igreja no século XII. Quer dizer, Cristo viveu no
século I e a mensagem de Cristo e Aquilo que era o
cristianismo no século I é diferente do que era no século XII.
O facto de se ter pervertido não significa que no origem estivesse
pervertido. As coisas têm uma história, com um trajeto.
José Maria Pimentel
é assim. Eu percebo isso. O marxismo, no caso, como é heliano,
tem aquela tentação de simplificar, quase da estética da simplificação, e, portanto,
ter um modelo muito simples que explique tudo, que não era o
meu objetivo. Há pouco, embora eu possa estar errado na mesma, a
expressão macro que eu usei nesse é mais bem conseguido. É macro
no sentido de não ser necessariamente refutado por casos individuais, mas até
micro porque em termos de movimentos não é das grandes classes, é
no sentido de em cada momento histórico os diferentes intervenientes têm forças
diferentes e essas forças foram causadas por alguma coisa e essa é
a grande questão, porque é que foram causadas? Se foi simplesmente uma
contingência, que é outra maneira de dizer que foi mais ou menos
por acaso, quase um jogo aleatório que deu origem àquele tipo de
situação, mas no fundo vem da história, vem dali. E o que
acontecia na Idade Média, no tempo do feudalismo, é que obviamente havia
uma discrepância enorme entre os senhores e os servos mas havia ali
um jogo de forças e a força dos servos não era nula
era baixa mas não era nula daí eles receberem em troca eles
davam obviamente muito mais aos nossos olhos de hoje em dia do
que recebiam mas recebiam alguma coisa em troca de facto lá está
recebiam proteção e havia-se acordo
José Maria Pimentel
escravos eram, é óbvio que eles recebiam proteção na medida em que
isso interessasse aos donos deles, aos senhores... Não sei qual é o
termo que se costuma usar aos senhores do escravo, mas não era
um acordo entre os escravos, porque eles não iam de moto próprio,
não iam contra as contas. Às vezes iam de moto próprio. Bom,
havia,
algumas
pessoas ofeciam, mas no caso da escravatura atlântica estavam longe de ir
de moto própria. Juro eu. Sim, sim, claro. Eram
João Pedro Marques
vendidos, repare-se, eram vendidos como escravos já. Eram vendidos pelos poderes políticos
africanos ou pelos mercadores africanos, que vendiam aquelas pessoas que vinham às
mãos dos europeus, compradores europeus, já como escravos. O que se debatia
muito na Europa nessa altura, essa era legítima, essas formas como aqueles
escravos tinham sido conseguidos em África, eram legítimas e eram justas. Isso
se debatia-se imenso aqui, No século XVI, XVII, inclusive XVIII. Não sabia
disso. Havia muita gente a dizer. Não, quer dizer, nós sabemos. Há
muitos testemunhos, sobretudo de gente da igreja que estava lá, que dizia
que aquilo era um abuso completo. Algumas daquelas pessoas não eram escravas
de origem, coisa nenhuma. Era um residente que era escravizado e depois
era... Mas como é que vamos saber? Mas em que medida é
que ser
João Pedro Marques
A escravidão que era uma decorrência da guerra justa, por exemplo, era
aceita, era legítima. Era uma alternativa à morte, em certo sentido. Exatamente,
exatamente. Popava-se a vida. Depois isso começou a ser refutado pelos filósofos.
Hutchinson, se não me engano, refutou isso porque foi buscar um pensamento
por analogias e disse, mas que raio, isso não é válido. Porque
as pessoas também devem a vida a cirurgiões, às prateiras e por
aí fora. Parece lógico. Isso não autoriza essas pessoas a ficarem donas
das outras. O assunto era debatido aqui na Europa no século XVIII,
mas já antes os ouro-parixão tiveram, quando eu digo sempre, enfim, deu
um certo desconto. Mas quer dizer, a cultura ocidental, pelo menos desde
os gregos, sempre teve aqui uma tensão e uma incomodidade relativamente à
escravidão. Sempre. E sempre se procurou arranjar uma forma que justificasse aquela
situação prática de uma pessoa possuir outra. Racionalizar, no fundo. No fundo,
tentar racionalizar aquela tensão e aquela... Porque havia ali incoerências, óbvias, não
é? Como é que se trata uma coisa como um objeto, quando
nós nos relacionamos com esse objeto, temos inclusive filhos desses objetos? Tratar
um ser humano como um animal ou como uma coisa, quando nós
na verdade não o tratamos apenas assim. E portanto, houve aqui sempre
uma incomodidade e uma dificuldade de ajustamento que, primeiro, os filósofos gregos
e depois os romanos, os estoicos, por exemplo, tentaram conciliar, tentaram racionalizar
e depois a igreja fez a mesma coisa e sacralizou. Os padres
da igreja sacralizaram um edifício ideológico que justificava a escravidão em termos
quase que de vontade divina.
João Pedro Marques
Antes até disso, essa era uma função útil, uma função útil que
a escravidão teria. É de facto injusta, é brutal, é uma coisa
que corta o coração ver uma coisa daquelas, mas pronto, tem essa
finalidade positiva, que é trazer os pagãos à salvação da luz. Mas
antes mesmo disso, que era um problema que se preocupava o Aristóteles
antes do Cristianismo, que era... O Aristóteles tinha a ideia que havia
desde a origem certas pessoas que nasciam com um defeito na alma,
um defeito inato na alma, que fazia com que elas fossem predispostas
para… eram escravos por nascimento e outros eram livres. Não se podia
distinguir pela aparência. Podia haver enganos, uma situação de guerra podia levar
aquele indivíduo intrinsecamente livre a acabar-se por cair na escravidão. E o
Aristóteles nunca resolveu este problema filosófico, esta dificuldade. Mas os padres da
igreja, o santo Agostinho, os primeiros padres da igreja, resolveram. Tudo isso
acontecia por vontade de Deus. Quer dizer, como toda a gente, como
todo o ser humano era um pecador, existia o pecado original e
o pecado original manchava a alma de toda a gente. Então cabia
a Deus dizer, caberia a Deus dizer quem deveria ser senhor e
quem deveria ser escravo. Com este tipo de racionalizações e de argumentos
a coisa acabou por encaixar, mas foi sempre uma incomodidade. Portanto, aqui
na Europa houve sempre gente a pensar sobre o assunto, a inquietar-se
com as modalidades que o tráfico de escravos assumia, que eram, por
exemplo, injustas e chocantes e a tratar isto. Isto é legítimo, isto
não é legítimo? E o que se discutia muito, para voltar ao
início, era como é que estes escravos que nos são vendidos como
escravos chegaram à posse daqueles senhores africanos que nos vendem. Isto é
justo? Estes escravos são legítimos ou
José Maria Pimentel
não? Isso se discutia-se imenso. Isso é curioso, não sabia disso e
vendo-nos aos olhos hoje em dia é quase contraditório, não é? Porque
se está a questionar a origem, não a escravidão em si, mas
a origem, é quase como aquele tipo de raciocínio do comércio justo
em relação a determinados produtos, de perceber se o café foi produzido
nas condições... Aliás, se o escravo foi originado em condições justas ou
injustas para ele, que é o que é curioso, de facto, e
tem a ver com isso. E aquilo que o João Pedro diz
em relação ao facto de sempre... Isso, de facto, é algo que
eu acho que não é intuitivo para quem vive hoje em dia,
que é perceber que não se trata de uma realidade a preto
e branco, ou binária, que antigamente quase toda a gente era mais
ou menos indiferente ao fenómeno da escravidão e hoje em dia toda
a gente, por omissão, é contra o fenómeno, mas, assim, é algo
que mesmo no mundo antigo e no mundo medieval foi difícil de
lidar. Ainda assim, há uma diferença entre a escravidão no mundo antigo,
e que subsistiu em parte da Idade Média, e esta escravidão atlântica,
não é? Que Havia o facto de, na antiguidade, os escravos tinham
posições sociais de diferença. Por exemplo, na Roma antiga era muito comum
haver escravos tutores, por exemplo, não deixavam de ser escravos. Sim, sim.
Mas era, acho difícil que fossem olhados da mesma forma do que
um escravo negro, por exemplo, era olhado no Brasil em que havia
uma total distinção racial entre quem mandava e quem era mandado.
João Pedro Marques
Sim, há várias diferenças. Mas há várias diferenças. Repare, por exemplo, muitos
escravos, bastante escravos, pelo menos numa determinada fase na Roma antiga, eram
gregos, eram provenientes da Grécia. Os romantes tinham uma admiração enorme pela
cultura grega, que aliás, copiavam em vários aspectos, veneravam. E, portanto, havia
poetas, pedagogos, eram escravos. O facto dessas pessoas serem escravas, atenção, De
facto, eram olhadas com alguma, vamos dizer, atenção, alguma consideração, mas não
obstava que fossem tratados, que pudessem ser tratados como escravos. Eu vou
lhe contar uma situação que é muito esclarecedora acerca do que era
um escravo no mundo romano. É verdade que os escravos podiam ser
libertados. A manomissão era muito comum no mundo romano. Podiam chegar a
posições até relativamente elevadas, como ajudantes, homens de confiança de um imperador,
por exemplo, que tomavam conta do seu escritório, liberto. Isso aconteceu. Mas,
podiam também ser tratados com uma brutalidade extraordinária. Houve um homem da
classe sedatorial, isto não se me engane passa-se no século I d.C.,
chamado Pedânios II, que foi morto por um escravo. E ficou, foi
muito debatido no Senado o que é que se devia fazer. Segundo
a lei, os escravos, todos os seus escravos deviam ser mortos. Porquê?
Porque partia-se do princípio que era a obrigação dos escravos defender a
vida do seu senhor. Se aquelas pessoas não tinham obstrado a que
um dos escravos o tivesse matado, então deviam ser punidos. Discutiu-se imenso
que ele tinha 400 escravos em casa. 400? Discutiu-se imenso isso, e
que considerava-se uma brutalidade inacreditável, mas o que é verdade é que
foram uns 400 crucificados. 400? 400 homens, mulheres e crianças. Portanto, isto
dá bem, por causa do exemplo, isto dá bem uma ideia do
que era a brutalidade do sistema escravista, ou do que podia ser
a brutalidade. Portanto, mesmo que fossem poetas, mesmo que fossem filósofos, mesmo
que fossem músicos, pedagogos, quer dizer, se acontecesse uma coisa desta
João Pedro Marques
perante a lei. E o castigo para um escravo era a crucificação.
Isto aconteceu. O caso famoso é o caso dos homens de Esparta,
dos escravos revoltosos de Esparta, os que sobrevivem à última batalha, 6
mil são crucificados de Capo a Roma, na Via Appia. 6 mil
escravos crucificados. Portanto, isto dá uma ideia de facto da brutalidade. Agora,
o sistema escravista, que era a questão que estávamos aqui a falar,
que nasceu das relações entre África e as recém-descobertas Américas, o sistema
que nasce na Bacia do Atlântico, tem de facto particularidades novas. Por
um lado, é um transporte naval em larga escala. Depois, e como
focou, envolve pessoas com um aspecto físico substancialmente diferente. Não que os
escravos negros fossem novidade absoluta, já existiam no Império Romano. Poucos, porque
ainda não havia as relações trans-sarianas, Porque também a domesticação do camelo
é uma coisa muito mais recente do que a maior parte das
pessoas pensam. Portanto, aquilo ali, o mundo romano do norte de África,
a Líbia, estava separado. Não contatava com o que estava por lá,
exceto pela linha fluvial do Nilo. Os escravos negros que chegavam vinham
da Núbia, dessas regiões que correspondem hoje em dia, grosso modo, ou
à Alta Egito, ou Sudão. Havia alguns, mas não eram muito comuns.
A maior parte dos escravos tinham um aspecto semelhante aos próprios senhores,
eram germânicos, gregos, eram asiáticos, por exemplo, ou da África do Norte,
e portanto, isso em si é uma novidade, vão chegar indivíduos negros.
E depois, o racismo não surge logo aí, Mas de facto há
ali, porque no século XVI e XVII as coisas não se colocam
nesses termos. Mas depois, quando se torna uma monospecialização, quando todo o
trabalho mais pesado é feito por essas pessoas, começa a surgir um
preconceito. O preconceito esse que leva a que, por exemplo, os brancos
não gostem de trabalhar naquilo... Até assim, trabalhar é bom para o
preto. Na língua portuguesa isso ficou assim. O trabalho manual começa a
ser connotado de uma forma depreciativa a nível cromático, a nível da
pele. De facto, isso é uma coisa que surge no sistema escravista
do Atlântico. E sobre isso depois vai erradicar o racismo do século
XIX, que é uma construção pseudo-científica dessa época. Vai, de facto,
erradicar
aí. Agora, já havia preconceitos semelhantes, por exemplo, no mundo muçulmano. Se
pegar nas descrições que faz o Ibn Khaldun, o historiador e viajante
muçulmano do século XIV, se não me engano, A visão que ele
tem sobre os escravos negros que trabalham no mundo muçulmano é extraordinariamente
pejorativa. É uma coisa que, se aquilo fosse feito por um ocidental,
caía o carne-a-treindade. Se aquilo fosse dito por algum, aquilo que ele
diz acerca dos escravos negros, caía o carne-a-treindade. Chamava-se tudo ao homem,
mas ninguém fala nisso. Mas quem tiver curiosidade, eu recomendo
João Pedro Marques
Agora, o que eu queria chamar a atenção era o seguinte, o
racismo que se desenvolve depois no século XIX não é exclusivamente antinegro,
aos dias depois do século XX, não é? Porque, aliás, como se
sabe o que se passa no mundo nazi e por aí fora,
o racismo escalona. Nós muitas vezes utilizamos a palavra racismo e outras
de uma forma talvez demasiado lata e pouco precisa, não é? O
racismo é a ideia, para mim, na minha acessão, é a ideia
de que existem raças humanas, que essas raças estão escalonadas, há uma
superior, outra abaixo e há uma inferior. Sem isto não há racismo
na minha seção. E depois a ideia, que talvez seja central, de
que um indivíduo por pertencer àquela raça, tem obrigatoriamente aquelas características. E
portanto, quer dizer, aquele indivíduo é africano, é negro, então é madrião,
é isto, aquilo, aquilo outro, ah, aquele tipo é amarelo, é oriental,
então é da... Isso é que é no fundo
José Maria Pimentel
o constituinte do racismo. E isso que o João Pedro diz faz
todo sentido e para mim é a maior contradição do racismo porque
até poderia haver, eu tenho a certeza que se dividíssemos os bairros
de Lisboa e fizéssemos um teste que ia às pessoas, a média
era provável que não desse igual. Isto por si só, por exemplo,
não é uma conclusão particularmente alarmante. Porque ninguém são vai daí tirar
a conclusão que qualquer habitante do bairro ficou em último lugar, por
exemplo, ou seja, isto para dizer que mesmo pessoas que tivesse essa
crença baseada naquela pseudociência do racismo, daí tomar a ele a ação,
que todas aquelas pessoas estão condenadas a estar na base da cadeia
é uma coisa que não faz sentido nenhum, mesmo para quem pudesse
acreditar naquela pseudociência. Mas de facto, o que é preciso perceber olhando
para trás, Para alguém que vivesse no século XVI, XVII ou XVIII
e que vivesse naquele tipo de sistema, era preciso uma clarividência muito
grande para contrariar essa tese, que é mais ou menos uma tese
implícita, porque ela via as pessoas, via e depois há uma causalidade,
um reforço... Retroação. Uma retroação, porque se havia uma parte da população
que não era educada, que não tinha acesso à educação, obviamente que
essa parte da educação ia ser menos lotrada que a outra, era
impossível que assim não fosse. Sim, ao feedback positivo. Isso, exatamente, um
feedback loop de uma coisa alimentar a outra, aproximadamente. E isso daí
ter sido difícil reverter a situação. Entretanto, ainda em relação a esta
questão, não tanto do racismo, mas da escravidão, eu achei interessante um
caso que veio no seu livro do Pedro Cláver, que eu não
conhecia, que é um jesuíta catalão, que é um caso incrível, eu
não conhecia o caso dele, já me tinha perguntado várias vezes se
haveria entre a população dessa época, obviamente que havia pessoas a quem
fazia impressão. Quer dizer, havia se calhar três tipos de pessoas. Aqueles
que estavam absolutamente indiferentes faço ao fenómeno, aqueles a quem fazia impressão,
mas que racionalizavam e a humanidade sempre fez isso e continua a
fazê-lo, nós próprios hoje em dia, racionalizamos determinados fenómenos para sermos capazes
de viver com eles, se não ficávamos paralisados. E depois haveria, talvez,
algumas exceções honrosas, como o caso do Pedro Clava, que não só
não o racionalizavam, ou racionalizavam menos e agiam sobre ele. Ele é
um caso incrível para relatar rapidamente, se me quiserem interromper para dar
algum detalhe que eu não esteja a explicar bem, esteja à vontade.
Mas o caso dele, ele era um missionário jesuíta que vai para
o Brasil, está sobretudo no Brasil e ele ia, descia ao convés
dos barcos onde vinham os cravos em condições
que
eu acho que são inimagináveis, são realmente inimagináveis porque é difícil, acho
que foi a pessoa imaginar não tendo passado por eles. Ia falar
com um, acho que dava um
beijo
a cada um deles, não era? E dava-lhes as boas-vindas, dava-lhes roupa
e comida, quer dizer, uma série de coisas que é difícil de
compreender, sobretudo se admitirmos que ali já havia algum racismo emergente. Sobretudo
se admitirmos que já havia algum racismo emergente, então...
João Pedro Marques
Não havia, não havia. Quer dizer, sobretudo nessas pessoas, como por exemplo
o padre António Vieira, que foi tão falado aqui, que também é
jesuíta, e que foi tão falado aqui, e que é um homem,
enfim, de grosso modo da mesma época. Não havia. Eram pessoas que
estavam fechadas dentro de uma explicação religiosa, eram ambos religiosos, achavam que
a escravidão era lamentável, mas fazia parte da construção divina, da grande
ordem das coisas. Aquilo que os ingleses depois chamavam de great chain
of being, quer dizer, todo este todo harmonioso, que se nós tocarmos
numa parte desmorona-se o resto. Portanto, isto é a vontade de Deus,
o melhor
João Pedro Marques
O melhor dos mundos possíveis. E, portanto, eram homens... Temos que olhar
para essas pessoas que são religiosos. O Klaver, sobretudo, essas coisas passam-se
em Cartagena de Lasndias, quando ele está em Cartagena de Lasndias. Todos
os navios carregados de escravos que vêm, ele tem o cuidado, porque
ele percebe que aquela gente vem aterrorizada e justificadamente aterrorizada. Até porque
muitos africanos têm crenças acerca do que é a terra dos brancos,
que na sua visão das coisas corresponde à terra dos mortos. Portanto,
o grande mar que eles atravessam é a viagem para o fim,
na sua perceção. Quer no norte da zona do Congo, no norte
de Angola, quer noutras partes da África Ocidental, há tradições que acham
que ser vendido como escravo aos brancos significa entrar numa máquina de
transformação quase que pré-industrial, digamos assim, para fazer uma analogia com a
nossa, que mata os negros e os converte, converte os seus corpos
em vinho, em queijo, em os seus ossos moídos em pó, em
pólvora, etc. Por aí fora. E, portanto, aquela gente vem completamente apavorada.
Há uma descrição, no final do século XVIII, de um escravo, que
eu refazia isso
João Pedro Marques
Sim, que é o Olaudah Equiano, que é vendido aos brancos. E
quando vê pela primeira vez um homem branco, fica completamente apavorado, nunca
tinha visto. Um navio, nunca tinha visto. O cheiro. O cheiro, exatamente.
O cheiro, quer dizer, um caldeirão, onde estão a cozinhar aquelas papas
que depois lhes davam. E ele acha que é para cozinhar os
cativos. E, quer dizer, chegam à América completamente... Os que chegam à
América, completamente aterrorizados. E o Claverde tem o cuidado de os acolher,
os abraçar e os beijar. Do mesmo modo que o padre António
Fiera, que foi tão atecado neste verão que passou, por gente que
não compreende o que era a maneira de pensar daquele homem e
o que era a maneira de pensar do século XVII,
ficava
impressionadíssimo com os navios que chegavam de Angola, com aqueles desgraçados, nus
e às vezes maltratados por os donos, que eram tipo opulentos e
ricos, mas achava que aquilo fazia parte de um propósito divino. Alguma
finalidade isto tem que ter, que até a viagem de navio era
fácil, com ventos de feição, e portanto isto corresponde à vontade de
Deus. E porquê é que Deus quer que estas pessoas sofram isto.
Então ele procurava encontrar uma explicação dentro daquilo que ele pensava que
era a vontade de Deus. E quando fazia sermões aos escravos e
outros negros da Irmandade do Rosário, o que ele tentava era que
eles aceitassem espiritualmente aquela situação que o Vieira estava longe de considerar
que devia-se acabar, porque
João Pedro Marques
os... Até é, porque isto radica, inclusive, na filosofia estoica. O António
Vieira refere-se explicitamente ao Seneca. O Tocquey? Sim, o Tocquey não era
nenhum burro. Não, claro que não era. O Seneca, os estoicos em
geral, achavam que A escravidão era uma norma social, não era conforme
com a natureza. Os estoicos potencialmente eram contra a escravidão, mas achavam
que, no fundo, tinha uma importância relativa. Porque para os estoicos, aquilo
que verdadeiramente... A verdadeira liberdade, os estoicos pensavam ser para a escravidão
em confronto com a ideia de liberdade, que aliás é uma coisa
que nós também devemos continuar a pensar. O que é a escravidão
e o que é a liberdade em cada momento? Pode haver situações
em que não há escravidão, mas também não há liberdade. Portanto, os
textos pensavam isso assim e achavam que de facto aquilo que era
importante era a verdadeira liberdade. E o que era a verdadeira liberdade?
Era o indivíduo ir levar-se acima da sua condição humana. Era não
ser escravo do pecado, do vício. E para isso, para um indivíduo
conseguir subir acima dessas tentações da vida quotidiana, tanto dava-se escravo como
ser livre. Havia homens livres que eram mais escravos do pecado e
da má ação e do vício e da mentira do que escravos.
O estoico relativizava as coisas e tinham inclusive uma dualidade corpo-alma. O
que interessava era se os cristãos depois vão absorver na íntegra. E,
portanto, é nesta ideia estoica, que é por exemplo escrita e desenvolvida
pelo Séneca, que o António Vieira estrutura o seu pensamento, explicitamente, não
é uma interpretação minha, eu próprio refero o Seneca. Há uma alma
e há um corpo, não interessa tanto se o corpo está cativo,
o que interessa é que a alma seja livre. E se calhar,
para ter uma alma livre e mais próxima de Deus, os escravos,
se calhar, desse ponto de vista, estão em melhor posição. São cativos,
mas têm apenas uma meia escravidão. Se eles se mantiverem puros e
dentro da igreja que está cumprida as normas, etc, etc, se calhar
é esta a finalidade de Deus. Então tem um homem cheio de
dúvidas que se interroga e que procura explicar dentro do seu quadro
de pensamento. Claro,
José Maria Pimentel
pois, o problema nesse caso é que o quadro, como ele, nenhum
membro da igreja, questiona o quadro de pensamento, como o quadro de
pensamento propunha, que aquilo, supunha, perdão, que para aquilo existir é porque
era a vontade divina, jamais questionaria o próprio sistema esclavagista, não é?
Pois. E, portanto, a melhor pessoa dentro desse quadro, como era o
exemplo do Clavert, podia fazer todo aquele tipo de atos que nós
hoje em dia consideramos de uma abnegação incrível mas não estava a
questionar o sistema em si. Não, mas ninguém questionava o sistema em
João Pedro Marques
enquadramento físico. Era qualquer coisa que as pessoas achavam... Talvez simplificando em
excesso, a forma como eu costumo explicar estas coisas é a seguinte,
houve sempre gente que se incomodou, que se inquietou, que se preocupou
e que lamentou a existência da escravatura de todas as cores. Neste
caso que estamos a falar, da escravatura negra que se desenvolve a
partir do século XV para as Américas. Só que consideravam que era
impreciso nível para desenvolver as Américas. É interessante pensar o seguinte, mesmo
um filósofo anti-escrevidão, anti-escrevista, como era por exemplo Montesquieu. Montesquieu considerava em
meados do século XVIII, 1760 se não me engano, o Esprit de
Loire, acho que é dessa data, considerava que em certas circunstâncias a
escrevidão podia ser justificada. Os
João Pedro Marques
Pois, exato, os países quentes. Nas zonas onde os homens só seriam
levados ao trabalho pelo receio do castigo, se calhar não havia outro
remédio. E é Esse pensamento que o Montesquieu exprime assim, que esteve
cá sempre, entre aqueles que contestavam a escravatura, que lamentavam, mas não
temos alternativa. Tudo isso muda, de facto, por razões várias, mas quando
se divulga e se difunde na população instruída a convicção de que
há outra alternativa. E essa outra alternativa vem associada ao desenvolvimento do
liberalismo e das teorias do Adam Spieth e por aí fora. Quer
dizer, a convicção de que o trabalho livre é mais produtivo, teoricamente
será mais produtivo do
José Maria Pimentel
que o tropar de escravos. É filho do iluminismo, digamos assim, e
depois também tem muito a ver com o progresso técnico. Eu ouvi
no outro dia um programa com o J. Nogueira Pinto e ele
dizia uma coisa que eu achei interessante, embora provocadora, que se não
tivesse havido a revolução industrial não tinha havido o fim da escravatura.
Talvez tivesse havido, mas teria sido de certeza diferente. Mas vamos que
isso é até uma questão interessante. A propósito do Montesquieu, lembrei-me de
um caso engraçado, engraçado isto é, curioso, do Thomas Carlyle, escritor escocese,
que ele é conhecido por ter sido a pessoa que cunhou um
termo que hoje em dia é várias vezes utilizado para falar da
economia e da ciência, que é a de Dismal Science, a ciência
pessimista. E é um termo que pegou porque dá muito jeito de,
de vez em quando, usar essa expressão para algumas previsões económicas que,
de facto, parecem cumprir, não é só as previsões, mas o próprio
modelo em relação ao comportamento humano, a visão da economia de mercado
em relação ao comportamento humano, que é uma visão relativamente pessimista e
daí, por supor que é preciso ser o mercado a funcionar e
não é possível que as pessoas, por sua própria boa vontade, sozinhas
cheguem a produzir um resultado eficiente, no fundo pegando no Adam Smith.
Mas a razão por que ele usou esse termo, de dismal science,
a propósito da economia, não era por essa visão, mas sim porque
ele se opunha à visão do... Ele achava muito pessimista a visão,
pessimista do ponto de vista dele, a visão do Stuart Mill, do
John Stuart Mill, porque o Stuart Mill dizia que era, claro está,
que era possível com os iniciativos certos e com o salário certo
que os então escravos se tornassem homens livres e trabalhassem de uma
maneira produtiva e ele cara lá achava que não e aquilo do
ponto de vista dele era altamente pessimista porque ele achava que a
escravidão era uma delas que devia continuar porque caso contrário as pessoas
não iam trabalhar. É um caso engraçado porque o termo de dismal
science colou, mas com um significado completamente diferente do que ele estava
a usar na altura e hoje em dia pouca gente sabe que
ele estava a usar para defender o sistema esclavagista da altura.
João Pedro Marques
É muito engraçado porque isto que se passa aqui relativamente à abolição,
primeiro do tráfico de escravos e depois da escravidão, é qualquer coisa
que de facto é… tem várias razões do ponto de vista filosófico,
do ponto de vista religioso, do ponto de vista moral, mas as
razões que têm a ver com o pensamento económico e com a
expectativa económica são de uma ponta de vista importantíssima. Esta é que
é a variável que faz mudar aqui o plano. A crença de
que o homem livre e remunerado, o trabalhador livre e remunerado, produzirá
mais do que um trabalhador escravo. Que é uma crença errada, ou
melhor, que naquelas condições específicas das colónias americanas da época se veio
a verificar que era completamente errada. Mas o que é interessante é
que esta convicção foi motivadora e levou, de facto, ou ajudou muito,
a que se abolisse a escravidão. E ajudou a tal ponto, ajudou
a tal ponto que mesmo depois, quando as pessoas percebem que aquilo
não estava a funcionar como estava planeado, que os escravos libertados não
estavam nada a produzir mais do que os escravos escravos escravizados, de
Cuba ou do Brasil, que mantiveram até mais tarde a escravidão, ainda
assim o peso, A força moral da abolição... Faz com que não
volte atrás. Não se pode voltar atrás. Não se pode voltar atrás.
E toda a gente que aboliu, não apenas aqui no mundo ocidental,
mas no mundo muçulmano, no Japão, na China, tomavam como modelo o
caso inglês, sobretudo, os países ocidentais, mas sobretudo o caso inglês. A
carga, a vantagem, a força moral que tinha daquela movimentação. Houve um
bispo anglicano, sim, Na altura em que os ingleses aboliram em 33
e depois havia um período de transição que foi encurtado, a lei
é de 33 e a abolição efetiva é em 38, nas colónias
inglesas. Depois de jubileus, celebraram o acontecimento. E houve nessa altura, logo
em 38, ou pouco tempo depois, um bispo escocês, que disse uma
coisa que se revelou profética. Ele disse que o mundo vai nos
imitar. The world will be shamed. Toda a gente vai ficar envergonhado
e terá que fazer a mesma coisa que nós. E foi o
que aconteceu.
Mas
José Maria Pimentel
isso é muito engraçado porque mostra que a história e o caminho
do progresso é tortuoso muitas vezes. E ali houve um fenómeno, ou
por outra, havia uma decisão que moralmente era inegablemente correta, que se
vestiu com uma roupagem de benefício econômico que na prática não existia,
ou por outra, não existia no curto prazo. A longo prazo existia,
hoje em dia é evidente. Curto, médio prazo. Exatamente. Porque a própria
inovação das economias, uma economia para crescer tem que inovar e a
inovação é completamente incompatível com a escravidão. Mas, no curto-médio prazo, acabou
por não se revelar a verdade. Ou seja, a produtividade diminuiu no
imediato depois da abolição da escravidão. Portanto, aquela roupagem económica que, à
partida, não teria sido necessária, mas na prática foi, porque por caso
contrário provavelmente não teria tido o rumo que teve, acabou por ruir,
mas entretanto o fenómeno já tinha passado e ficou o que
João Pedro Marques
é. Exatamente. Foi da bola de neve em movimento. Exatamente. E depois
era impossível pará-la, ainda que se soubesse que as razões económicas que
tinham estado na origem da explosão e do arranque, do take-off, não
se tinham confirmado. Também é verdade que a produção depois repegou, adiante
na Jamaica, repegou, mas repegou também à custa de uma coisa que
nós vivemos atualmente e vemos muitas vezes no mundo económico, que é
de chamar trabalhadores livres, mas de zonas muito pauparizadas e que vêm
ganhar uma miséria. As Reclâneas inglesas deitaram a mão nisso, madeirenses, por
exemplo, foram imensos madeirenses para as Américas nessa altura, aceitando trabalhar em
condições muito difíceis para baixar os salários, puxar os salários para baixo
e, de facto, assim a coisa reclou. E
José Maria Pimentel
houve, em muitos sítios, houve a substituição de escravidão por uma aparência
de trabalho por conta de outrem, mas que na prática era em
condições... Próximas da escravidão. Exatamente, aconteceu em vários sítios. Aliás, há o
caso que eu me lembrei a preparar esta gravação do romance do
Miguel Sousa Tavares, do Equador, que é sobre o caso de São
Tomé, numa altura em que a escravidão já estava abolida, mas o
que continuava a haver no fundo não era muito longe da escravidão.
Depois aquilo também tinha alguma, pelo menos, alguma hipocrisia do lado britânico,
porque lá estava para tirar um benefício económico, estava a tentar que
se fizesse lá aquilo que eles próprios não faziam noutros locais, que
é sempre o problema disto, mas é... Isto para dizer que a
escravidão, ao ser abolida, isso nem sempre significa que a situação passa
a ser... Surgem outras formas de expulsação. Até aos dias de hoje.
Exatamente, até aos dias de hoje. E, aliás, eu tentava me lembrar
há pouco, às vezes a pessoa pode se perguntar para que é
que serve estudar histórias, para que é que serve olhar para o
passado. E o grande benefício é a pessoa reanalisar o presente. Sim,
exatamente. É um instrumento para o presente. É o grande benefício da
história. Por vezes não é óbvio, por vezes pode ser simplesmente alimentar
uma curiosidade que a pessoa tem. Mas neste caso, por exemplo, se
a pessoa olhar para trás, aquilo que falávamos há pouco, e perceber
que nos séculos XV, XVI, XVII, toda a gente praticamente sem exceção,
mesmo aqueles a quem faziam o fenómeno racionalizavam a escravidão, percebe-se porque
é que eles o faziam, porque eles achavam que o mundo ruiria
se deixasse... As colónias americanas. Exatamente, se deixasse haver... A vários níveis
o mundo ruiria e, portanto, era melhor um mundo mau do que
um mundo nenhum. No entanto, veio-se a revelar que, pelo menos a
prazo, o mundo não ruiu com a abolição da escravidão. Há muitas
coisas que nós hoje em dia racionalizamos, e eu acho que é
impossível viver sem racionalizar algumas coisas, a pessoa fica paralisada, tanto individualmente
como sociedade. E uma delas é exatamente a questão das condições de
trabalho. É evidente, só o tópico é que acha que é possível,
no constelar dos dedos, mudar em todo o mundo esses casos que
existem. Mas é evidente que também é preciso fazer alguma coisa em
relação a eles. O ponto de equilíbrio é que é difícil. Quando
a pessoa compra um telemóvel, por exemplo, que... E há imensos casos,
hoje em dia, estou a dar um exemplo fácil, é uma peça
de roupa, e se prova que aquilo foi... E a pessoa sabe
ou tem noção de que aquilo foi produzido, se não com trabalho
forçado, pelo menos com trabalho muito precário, pois é difícil tomar uma
decisão em relação a que a pessoa faz e não faz.
João Pedro Marques
E sabe uma coisa engraçada? Esse tipo de dilema, de problemática e
de dilema, também se pôs nesta época, nos anos 40, em 1840.
Já alguma vez ouviu falar no sugar bill? Não. Aprovado nessa altura
no Parlamento Inglês. Tem que ver com isso que estamos a falar,
que é o seguinte, os abolicionistas acabaram com a escravidão, ingleses, acabaram
com a escravidão nas suas colónias nos anos 30, libertaram mais de
800 mil escravos, deram minimização aos seus proprietários, que equivalia a quase
50% do orçamento do Estado. É uma coisa, 20 milhões de libras,
uma coisa inacreditável. Bom, na expectativa de que a produção
se subisse
por aí acima. Não aconteceu nada e tal. E quando chega a
meados dos anos 40, há aqui um problema sério, que é o
seguinte, o açúcar que vem da Jamaica, das Guianas, etc., vem a
preços muito mais elevados do que o açúcar que chega vindo do
Brasil ou de Cuba. E como é que faz o governo inglês?
Protege aquele açúcar das suas colónias, lançando taxas sobre os outros. Mas
por isso é que há um problema, para um governo liberal isto
é legítimo. E então há ali uma disputa enorme, em interior, o
que é que nós fazemos perante esta situação? Então resolvem, de facto,
deixar de proteger o açúcar interno. E aprovam o Sugar Bill, quer
dizer, que corta as taxas que se lançavam sobre o açúcar de
produção estrangeira. Os abolicionistas de raiz fizeram uma gritaria inacreditável. Mas o
governo inglês, que tem lá muitos abolicionistas, achou que o interesse do
consumidor local era esse. Portanto, tomaram uma medida que no fundo ia
beneficiar os Estados escravocratas do Brasil e a colónia, ainda a colónia
espanhola, de Cuba, mas que para proteger o cidadão inglês não havia
outro remédio. Portanto, vive-se aqui… Os pontos de equilíbrio, os dilemas e
como se solucionam são sempre coisas… São dilemas morais tramados. Tramados.
José Maria Pimentel
E mesmo do ponto de vista do consumidor britânico, é evidente que
essa era a decisão acertada. Mas mesmo do ponto de vista dos
escravizados, Não é certo qual seria a melhor, porque mesmo do ponto
de vista deles, em que medida é que deixar de comprar produtos
de lá vai beneficiar aqueles que estão a ser escravizados? Pois, são
dilemas terríveis. É muito difícil, e mesmo em relação a economias emergentes
é essa a questão, o que é que a pessoa faz? Nós
sabemos que um determinado produto está a ser produzido com trabalho precário,
mas se os países ocidentais deixarem de comprar de lá, aquelas pessoas
vão ficar desempregadas. Ou seja, é um dilema muito difícil. É um
dilema difícil, como todos os dilemas, não tem uma resposta certa ou
óbvia e que a pessoa pode ficar mais esclarecido fazendo paralelos com
isto. Mas voltando àquilo que falávamos há pouco, do início do movimento
abolicionista, que eu acho interessante para comparar com o caso português. Eu
partilho dessa visão de que, como falávamos há pouco, de que houve
ali, no fundo, o casamento entre um imperativo moral e um imperativo
económico, ou pelo menos aquilo que se queria ser um imperativo económico,
que é, na maior parte deste movimento, o que acontece. Mas com
algumas nuances. O imperativo moral vinha do iluminismo, o imperativo económico, a
minha intuição é que também tem alguma coisa a ver com, lá
está, a repartição de forças e o facto de, entre as elites
britânicas, haver provavelmente uma sobrerepresentação de pessoas a quem o esclavagismo não
dizia especialmente. Ou seja, os principais benefícios beneficiários do esclavagismo estavam nas
colónias, estavam se calhar no mundo rural e não tinham provavelmente o
peso político... Não é que não tivessem peso político, daí não teria
sido nada fácil, mas porventura terão ficado aquém do peso político, não
só da população urbana, como das elites ilustradas, chamemos-lhes assim, que depois
acabaram por fazer aquilo passar. Ou por outras palavras, esta nuance da
representação política das várias vontades também é capaz de ter tido alguma
influência, não
João Pedro Marques
Bastante. A lei que acaba com o tráfico de escravos, as várias
leis, porque são várias que são aprovadas entre 1805 e 1807, no
caso em inglês, que acabam com o tráfico de escravos, passam por
razões que têm a ver também com o contexto de guerra que
se vivia na altura, não é? A guerra contra o Leão Bonaparte,
por exemplo. E há ali várias forças em jogo, muitas delas estratégicas.
Mas a lei que põe fim à escravidão, a lei de 1933,
passa porque, também passa porque, ali é uma coisa que já vem
de trás, mas também passa porque em 1930 há uma reforma do
Parlamento inglês. Até então não teria sido possível porque a nobreza terratenente
estava muito representada no Parlamento e a nobreza terratenente tinha medo de
mexer no problema da propriedade. Os escravos, como bem não esquecer que
era uma forma de propriedade. Propriedade dos plantadores das colónias, porque tinha
medo que isso viesse a ter repercussões na sua própria propriedade em
Inglaterra. E, portanto, fez sempre ali... No tempo do Wellington e tal,
quando o Wellington fez sempre ali e o Wellington estava no governo,
uma frente contra o avanço dessas medidas.
José Maria Pimentel
E essa nobreza mais rural, digamos assim, mais do countryside inglês, também
tinha lá próprias interesses e também tinha lá próprias posição económica às
colónias. Também, em muitos casos, sim. Minha intuição é essa, é que
tinham menos, ao contrário, tinham mais posição económica essas colónias, porque lá
está, tinham estado na origem do colonialismo, dos descobrimentos, no caso inglês
mais à frente, do que a população urbana mais académica, digamos assim,
portanto com menos interesses aí, porque o lado dos interesses está sempre
presente, o lado dos interesses de cada um. E isso leva-nos ao
caso de Portugal, que é interessante. Portugal tem uma série de particularidades.
Formalmente, como vem referindo no seu livro, foi o primeiro país a
abolir, através dos alvarás do Marquês de Pombal. Mas que isso foi
apenas formal, até foi muito cedo, foi na década de 70. Aqui
para Portugal não foi formal, acabou mesmo. Pois, em Portugal acabou, mas
já havia muito pouco. Sempre foi, muito pouco. Sim, quase desde o
início, o que também ajuda a explicar a
João Pedro Marques
é um problema internacional. Claro. Atravessa o Sul Atlântico, portanto é um
problema. E mais, Portugal estava obrigado, já de acordo com a Inglaterra,
no Tratado de 1810, a certo tipo de coisas. Tinha contraído uma
série de obrigações relativamente a esse problema. E, portanto, a Inglaterra teve
ali uma alavanca para exercer pressão enorme, enorme pressão, que depois levou
inclusive a que a Inglaterra tivesse legislado para Portugal. O chamado Bill
de Palmerston, os ingleses, como Portugal não acede a assinar um contrato,
assinar um tratado, desculpe, acabam por ser, o Parlamento Inglês legisla, diz,
autoriza a Royal Navy a apresar navios portugueses com escravos ou preparados
para receber escravos. Isto é uma coisa ao nível do ultimato. Exato.
Depois do final do século há um levantamento aqui de brigos nacionais
inflamados, já que a gente quer declarar a guerra em Inglaterra e
por aí fora. Agora, no que diz respeito à abolição da escravidão,
não, a Inglaterra já não tem nenhum compromisso. Portugal não se colocou
numa posição de obrigatoriedade, não houve nenhuma promessa relativa, É um problema
puramente interno. A Inglaterra aconselha,
faz,
enfim, sugere, faz, tem lá o consul inglês, por exemplo, em Cabo
Verde, faz uns relatórios. Mas, Quer dizer, a Inglaterra já não tem
meios para oporcionar diretamente Portugal para abolir a escravidão. Aqui, no que
diz respeito à abolição da escravidão, é uma questão puramente,
José Maria Pimentel
eu já estou a perceber o que o João Pedro está a
dizer, a questão do tráfico de escravos é uma questão multilateral e
a questão da escravidão é no máximo uma questão bilateral. No máximo
é uma questão bilateral entre Portugal e Inglaterra, mas não...
Exato.
A Inglaterra interessaria que Portugal abolisse a escravidão. Nas colónias que, por
exemplo, lá está, estão a exportar açúcar para a Inglaterra e a
fazer concorrência desleal com outras colónias inglesas ou com as colónias, no
caso americana, mas só de parte da América. Mas não havia um
interesse multilateral, tirando, obviamente, o interesse humanitário na abolição da escravidão. Mas
pode haver
João Pedro Marques
mas isso foi muito tempo ainda antes da… Mas é que quando
os ingleses obtiveram promessas e compromissos da parte de Portugal, que foi
em 1807, materializadas no tratado, que era para ser assinada em 1809,
mas depois por questões várias acabou por ser assinada em 1810, o
problema da poluição das escravidão não se punha ainda para os ingleses.
Era só o problema do tráfico de escravos, que o senhor acabou
de abolir em 1807. E, portanto, foi essa parte que ficou consignada.
Os ingleses se pressionaram fundamentalmente sobre isso. Depois também houve outro tipo
de pressões sobre o problema da escravidão, mas já não por via
oficial. Foi como quando o Livingstone, por exemplo, começou a atravessar a
África de um lado para o outro e depois começou a fazer
conferências sobre o que era, o que se passava lá no interior
da África e o papel dos portugueses como promotores da
escravidão,
José Maria Pimentel
não é? E aí começavam a surgir pressões de outros órgãos. Claro.
Aí já estamos quase nos primórdios da Corrida África, exatamente, que foi
mais na segunda metade do século.
Mas
para terminar o caso português, há aqui duas razões para o nosso
atraso, digamos assim, na irrelutância e na abolição do tráfico. Uma delas,
obviamente, tem que ver com algum atraso civilizacional, ou seja, com o
facto de as elites serem menos ilustradas, para usar este termo aqui
em Portugal, mas também, obviamente, ao lado dos... Menos ilustradas? Ao outro
lado? Do que a Inglaterra? Ah, acha? Eu diria que sim, tendo
em conta que não fomos nós que contribuímos não só para o
movimento que teve por trás da abolição da escravidão, mas para o...
Desde o iluminismo até o liberalismo no século... No início do século
XIX, mas pode me refutar isso perfeitamente. Estou a refutar? Estou a
refutar?
João Pedro Marques
sério, não se trata de menorizar, nem eu estou aqui naquele papel
do nacionalista, coisa que quer defender os verboríos e das nossas quinas.
Não, não é isso. Eu, antes de me dedicar ao estudo desta
problemática, e do século XIX, sabia pouco de tudo isto. História Contemporânea
de Portugal foi mesmo a pior nota que eu tive na faculdade.
A sério? A sério. Mas quando fui para o centro de estudos
africanos e asiáticos, acabei por ter que estudar umas coisas da história
contemporânea, século XIX, interessei-me por esta questão e eu não percebia nada
disto e isso era uma enorme confusão, porque Cada uma daquelas pessoas
tinha três e quatro nomes, não é? Era o conde Vila Flor,
mas depois era o do Terceiro e depois tinha o nome próprio
dele.
José Maria Pimentel
outro e que tinha que ver com o que eu ia dizer
a seguir, mas é interessante darmos esta conversa. Porque o nosso problema...
Diz-se muitas vezes, e no fundo era isso que eu estava aqui
a transparecer, que há uma crítica comum que dizia que o problema
de Portugal está nas elites. E, na verdade, eu não concordo com
essa crítica, embora o que eu estava a dizer há pouco, no
fundo, refletisse essa perceção. Aquilo que eu acho ser o problema em
Portugal, e era um problema que era muito visível nessa altura, no
início do século XIX e quando começa, e no início do liberalismo
em Portugal, não é tanto das elites do topo que sempre estiveram
mais ou menos ilustradas, para usar essa palavra de novo, mas sim
numa falta de respaldo, depois numa espécie de uma sociedade civil, que
nunca era obviamente transversal naquela época, mas que no fundo era o
que permitia que houvesse democracia. Na altura, o João Pessoa sabe isso
muito melhor do que eu. Aliás, até lido isso na origem que
eu não fiz. Estou de acordo. Era muito falado na altura, entre
as... Eles debatiam muito o facto de, em Portugal, não ser possível,
do ponto de vista deles, construir uma democracia à inglesa ou mesmo
à francesa porque não havia... Não havia analfabetismo emgraçado, etc. O que
também era uma
João Pedro Marques
da forma como ecoava aqui das nossas elites e como elas procuravam
adaptá-las às nossas circunstâncias. Pois, um dos problemas do senador Bandeira, por
exemplo, que no fundo é o grande, quase que o único, é
a força de expressão, mas aquele que teve, à maneira inglesa, com
zelo, atuante, com pressão, com atividade, com iniciativas parlamentares e tal, é
sobretudo o Sá da Bandeira, o nosso abolicionista. Teve sempre uma grande
dificuldade porque o que existia depois por baixo dele mesmo no parlamento
era ou não adesão, ou não compreensão, ou resistência.
João Pedro Marques
Estava longe, porque a ideia de que Lisboa, até quando se falou
agora do memorial, Lisboa é grande capital no tráfico negreiro. Quer dizer,
o tráfico negreiro português, quer dizer, Lisboa tem algum papel no tráfico
inicial, mas quando o tráfico negreiro se converte numa coisa de facto
de grande dimensão, que é a partir dos meados do século XVII,
depois no século XVIII e depois no século XIX. Lisboa tem um
papel diminuto ou nenhum, porque todo esse tráfico que se faz entre
a costa da África e o Brasil é negociado, é feito, os
navios, os transportadores, é brasileiro, e tudo isso são iniciativas do Brasil,
de São Salvador, do Rio de Janeiro, Pernambuco, etc. Com a Angola,
com a Holanda, com a Costa da Mina, a Lisboa não é
tida nem achada. Aquela ideia que ensinam na escola do tráfico triangular,
isso é ficcional, isso aplica-se ao caso inglês ou ao caso francês.
Ao caso português, Muito pouco. É um tráfico linear. Brasil-Angola, Brasil quase
todo o ambiente. Lisboa controlava a distância até à independência do Brasil.
Controlava a distância tentando impor umas regras que não eram cumpridas. Ou
que se fossem muito coisas, os brasileiros, logo, vão dar uma volta.
Quando, por exemplo, os portugueses estabelecem uma ligação comercial, os portugueses do
Brasil estabelecem uma ligação comercial com São João Batista, aquilo que se
chamava São João Batista da Judá, no Golfo de Guiné, e o
Idá, toda aquela zona, tudo o que percebe daquela zona, Nigéria, Gana,
por aí. Isso aconteceu numa altura em que os holandeses ocuparam Angola
e já tinham ocupado o Brasil e ocuparam Angola. Quando os ingleses
foram expulsos de Angola, escrato-me a alongar aqui, porque as
coisas
não interessam nada, Quando foram expulsos de Angola, o poder central aqui
em Lisboa disse aos comerciantes da Baía que agora podem voltar a
comprar as cravas em Luanda e tal. E os tipos disseram que
não, não estamos nada interessados nisso. Nós vendemos para a costa da
mina tabaco de terceira qualidade, o chamado refugo, que os africanos adoravam.
Aquele era envolvido em molassos e os africanos só queriam aquele, não
queriam o de primeira qualidade. Queriam aquele. Portanto, uma coisa que para
nós não tem, que é um subproduto para deitar fora, nós encontramos
um escoador comercial para ali. Se não podemos continuar a fazer comércio
para ali e comprar escravos a troco de tabaco de refugio, nós
deixamos de produzir tabaco. O rei teve que meter a viola no
saco e deixar que aquele negócio continuasse à revelia dos interesses da
Coroa. Portanto, o poder de intervenção de Lisboa sobre esses circuitos era
escassíssimo.
João Pedro Marques
direito, por exemplo, a fazer contrabando. Se a gente estava todo interessado
a ir negociar a certas zonas, por exemplo, a ajudar, para além
do interesse do tabaco, era o interesse do contrabando, porque como havia
lá comerciantes franceses, ingleses ou holandesas, dava a possibilidade de promotar coisas
à revelia das taxas que se pagavam à coroa.
Por
isso é que esses circuitos comerciais... E não era possível acabar com
eles porque, de facto, imediatamente retaliavam os produtores e os comerciantes. Ah,
não é? Não podemos ir ali? Então está bem, não fazemos mais.
Não há mais tabaco.
João Pedro Marques
Aqui há, não sei, há uns dois anos, talvez falou-se muito aí
na imprensa, de umas coleiras que se encontraram num navio naufragado, umas
coleiras para escravos. Aquilo foi qualquer coisa de benevolente. Aquelas coleiras o
que eram? Eram formas de tentativa de substituição da marca na pele
com ferro em brasa, que era uma coisa aterradora, não é? Então,
por razões humanitárias, no princípio do século XIX, o poder central proibiu
que se marcassem os escravos dessa forma desumana e que substituíssem essas
marcas por umas coleiras, onde estava o nome do proprietário, da pessoa
que tinha comprado aqueles escravos. Só que isso esteve em vigor cinco
ou seis anos, muito pouco tempo, porque dava direito a todas as
estraforíces. O escravo morria. O dono do escravo, imagino que o dono
do escravo era o comandante do navio. Tirava. Substituía a coleira por
um escravo bom. E dizia que o escravo morto era propriedade de
outra pessoa. E, portanto, isto deu origem a tantas aldarvizes que o
poder central teve que meter a sua medida humanitária no bolso e
reverter para as formas antigas.
Claro, faz
João Pedro Marques
um grupo que depois vai lastrando... Mas É logo de início, porque
a igreja daí tem um papel central. É logo de início de
massas, é? É. Curioso, pensei que tivesse começado... Ou competições assinadas por
milhares de pessoas logo desde o início. Manchester, por exemplo, é um
movimento de massas desde o início, estimulado pelos Quakers, por gente de
Quaker que depois está ligada à finan�a, como por exemplo os Barclays,
os Lloyds, que depois tornam origem dos bancos, e que promovem esse
tipo de coisas, gastam dinheiro nesse tipo de coisas, criam jornais, tomam
iniciativas, fazem… fabricantes, Wedgewood, se não me engano, já não me lembro
exatamente do nome, que fazem louças alusivas à escravidão, porcelana, emblemas, selos,
meias, roupas… Quer dizer, é uma… Uma campanha política… A primeira grande
campanha, exatamente, é essa. Em Inglaterra, nos Estados Unidos, isso pega muito
menos. E depois virá a haver um movimento de massas semelhante ao
inglês no Brasil no final do século XIX quando a escravidão é
abolida. Mas até então tinha sido caso único porque em França, em
Espanha, em Portugal é um movimento de gabinetes. De cima para baixo?
De cima para baixo, inteiramente de cima para baixo, uma coisa de
gabinetes. Há pouco eu dizia que a população exige que os candidatos
às eleições parlamentares se comprometam formalmente com a sua posição relativamente à
escravidão. Isso é até uma exigência do povo.
José Maria Pimentel
Isso é interessante, eu não tinha noção que fosse um fenómeno... Eu
tinha noção que ele se tinha tornado um fenómeno de massas, mas
não que tinha sido um fenómeno de massas de imediato. Isso é
interessante, no fundo revela que havia ali uma vontade latente, já, da
população, que não estava ainda a ser refletida...
Politicamente. Politicamente,
que é O que é interessante. E aquilo que eu gostava de
terminar, aquilo que eu ia falar há pouco, a propósito das condições
dos escravos, que eu acho que temos que passar por isso, porque
é essencial a pessoa ter noção disso para perceber o fenómeno de
que se está a falar. No seu livro vinha um número que
eu achei impressionante. Ele chegou impressionante quase por duas razões contraditórias, que
tinha que ver com, são obviamente estimativas, mas a percentagem dos escravos
recolhidos no interior da África, ou até na contra-costa da África, isto
é, na costa este, que depois...
João Pedro Marques
quarto. Isto foi uma estimativa feita por um historiador americano muito bom
chamado Joseph Miller. Os únicos dados certos, ou enfim, muito fiáveis, são
os que dizem respeito ao transporte, ao tráfico, porque os navios têm
um levantamento para as companhias de seguros e tudo mais, e depois
os que entram lá, que pagam impostos nas Américas, e isso aí
é mais ou menos o que se fala. O resto, aqueles que
teriam morrido na altura da captura, em guerra no interior da África,
os que tinham morrido até a chegada aos supermercados do interior, onde
são vendidos, e depois no transporte até à costa.
José Maria Pimentel
E eles iam a pé, não era? Centenas de quilómetros. De Angola,
não é? De Angola, que eram, em alguns casos, de Spandalunda e
as nascentes dos Ambeze. E depois há aqui um parênteses rápido, é
que Angola é muito maior do que parece nos mapas, por causa
do Mercator, que é o mapa mais comum, que distorce o tamanho
dos conteúdos. E Angola, aliás, é um exercício interessante a pessoa ver
o tamanho real da África no globo terrestre, porque é significativamente maior
do que parece. Um caminho do centro de África, ou no limite
da contra-costa, a pé, até à costa ocidental, é uma coisa inconcebível.
João Pedro Marques
Inconcebível. Ah, mas depois foi feito, não é? Como? Depois foi feito
pelos exploradores. Sim, mas em condições diferentes. Em condições diferentes, não é?
Em condições diferentes. Mas, sim, porque ali aquilo era muito pernoso, não
é? Aliás, morriam muitos por caminho. Sim, em grande parte, aliás, achei
isso muito curioso. Mas isto é o caso de Angola, não é?
Porque, em outros casos, a captura e a dente era mais próxima
da costa.
João Pedro Marques
Mas nos Estados Unidos, os Estados produtores, como por exemplo a Virgínia,
produziu uns cravos para depois vender para o Deep South, para o
Mississippi, da Louisiana, chegaram a ter perto de 4 milhões, por alturas
da guerra da Seção tinham cerca de 4 milhões, porque foi também
muito estimulado com a produção, com a invenção do cotton gene, aquele
mecanismo que permite descaroçar o algodão, e depois com a procura do
algodão por parte da Europa Industrial e do Norte Industrial, e os
escravos que eram para aí 900 mil no final do século XVIII,
chegaram a perto de 4 milhões 60, 70 anos depois.
João Pedro Marques
portanto, o segundo romance que Eric Bidgerstow fez sobre isso, que é
um romance que em Portugal foi pouco conhecido, o cabelo do Pai
Tomás foi logo publicado cá, em Folhetim. Ah, é? Engraçado. Na Revolução
de Setembro, que era um dos jornais mais importantes da época. Logo,
passado um ano, no máximo, se não me engano, se chamava Cabeira
do Tio Tomás, que é o título original. Uncle Tom's Cabin. É
João Pedro Marques
Mas o segundo romance que ela escreveu, que se chama Dread, já
tem um outro tipo, o herói negro já é um outro tipo
de homem, é um revoltado, é um homem que quer fomentar uma
revolta escrava, que quer matar os brancos todos, por causa desta crítica
que lhe foi feita logo de que simbolizava ali o escravo negro
como um indivíduo amoroso, pacífico, passivo. Sempre houve esta questão, que hoje
em dia se tem muito. Já havia naquela altura, no tempo da
Guerra Civil. E gente a dizer que no fundo tudo aquilo tinha
acontecido por causa dos negros que se tinham revoltado e que se
tinham combatido. E que de facto combateram na Guerra Civil. Isto já
é uma percepção antiga. E é engraçado ver que mesmo esta ideia,
que no fundo foi a revolta dos escravos no Haiti que desencadeou
tudo isto. É uma ideia que o Frederick Douglass, que é um
ex-escravo, abolicionista americano e que vai ter um papel importante na América,
foi desencantar quando esteve como representante oficial americano do Haiti. Ele estava
a dizer, ah, espera aí lá, nós andamos aqui... Ah, mas que
é... Os responsáveis por isto tudo são estes homens aqui do Haiti,
eles é que fizeram uma revolta e tal, isto teve um peso
determinante no que viria a acontecer. Eu não partilho nada dessa ideia.
Acho que a revolta do Haiti foi de facto uma coisa... São
domingos depois viria a ser o Haiti. Foi de facto uma coisa
enorme, com consequências grandes e tal, mas o peso da revolta no
Haiti foi muitas vezes contraproducente, foi no sentido contrário, foi aquilo que
não deve ser feito. Até pelas implicações, há pouco falávamos de 80
mil brancos mortos. Toda a Europa ficou arrepiada com aquela situação. O
que se queria era que se chegasse a uma libertação, mas de
uma forma pacífica. Portanto, a revolta do Activo foi um desincentivador
José Maria Pimentel
das abolições, de um ponto de vista, e não um incentivador. Sim,
no fundo, no movimento abolicionista, independentemente de nos poder parecer ao contrário,
vendo agora esta distância, no movimento abolicionista aquilo não foi algo que,
não seria algo que o fizesse avançar, mas assim algo que o
faria recuar, até porque geraria entre os europeus receio de estar a
abrir uma caixa de Pandora. Exatamente, e gerou. E, portanto, as pessoas
falam, ah, não, mas aquilo os ingleses foram,
José Maria Pimentel
mais de trás e era muito mais abrangente do que simplesmente aquele
fenómeno. Exatamente. O caso de… eu não queria terminar sem falar de
uma questão que eu acho importante, que é o caso de… nós
falámos no início do impacto da escravatura enquanto origem de parte do
racismo contemporâneo, que sobretudo teve impacto ali na viragem do século, mas
que por si só hoje em dia continua a ser um desafio
social. Mas há outro efeito que eu acho igualmente importante, obviamente é
um efeito menos visível na pele, mas é um efeito igualmente visível
aos dias de hoje e com consequências tão más, que é o
facto de estar ali muito da origem do subdesenvolvimento da África, que
é um problema que persiste até hoje. Não há continente com um
problema, mesmo a América Latina, é um continente que tem tido uma
história de relativamente maior sucesso do que a África nas últimas décadas.
A África é um problema de sempre. E grande parte desse problema
tem a ver com a escravatura. É evidente que as instituições que
existiam na altura... Este é um postulado seu? Como? É um postulado
meu que eu vou explicar agora. Para ver se o João Pedro
concorda que é possível que não. É evidente que as instituições que
existiam na altura... Ou, por outro lado, é argumentável dizer que elas
estavam atrasadas face às que existiam na Europa, na ordem de progresso
que hoje em dia a pessoa entende, que não é necessariamente a
quanto estava. E a escravatura sobre isso criou uma série de efeitos
perniciosos. Primeiro criou estados esclavagistas. O Congo, por exemplo, foi o exemplo
inicial. Já eram esclavagistas. Não, eles já eram esclavagistas, mas tornaram-se quase
especializados no tráfico de escravos, que é diferente apesar de tudo, não
é? E a lógica interna subverteu-se completamente e passou a haver quase
uma especialização daquele continente na geração de escravos para comércio, de tal
forma, este é um fenómeno curioso, que... Eu vi esta informação citada
naquele livro que eu falava há pouco, que não sei se o
João Pedro partilha, mas de que a escravidão no século XIX foi
abolida, mas em África, pelo contrário, aumentou. Até em algum caso... Claro,
claro. E porque lá está, porque havia uma indústria interna, uma especialização
na geração de escravos, se eles não são comerciados, se eles não
são exportados, passam a ser usados internamente. Até se foi um efeito.
E a nível de instituições isto é devastador, não é? Porque estados
que se tornam especializados na produção, na geração de escravos, não tem
qualquer semente para um desenvolvimento sustentável. E depois outro tipo de efeitos.
A população teve um impacto grande pelo tráfico de escravos, porque houve
dezenas de milhões de pessoas que saíram da África, verdadeiramente da Inglaterra,
como falávamos há pouco. Depois o tecido social do huihu foi desmembrado,
houve famílias separadas. No seu livro, aliás, vem referido o facto de
serem exportados, estava o erro, mais homens do que mulheres, não é?
Ficavam até quase numa lógica de criação, não é? Das mulheres ficarem
em África porque lá estavam à luz mais crianças e os homens,
esses dinheiros. Portanto, a própria pirâmide demográfica fica completamente destrupada e tudo
isso não é difícil, longe do meu ponto de vista, entender daí
uma causalidade para o desenvolvimento do continente no geral, obviamente com uma
série de matizes, há países como Botsuana, por exemplo, ou África do
Sul, que são casos de exceção, mas o grosso da África subsariana
tem um problema desenvolvimento aos dias de hoje e que parece pelo
menos ter uma relação grande com o colonialismo na parte, sobretudo, da
escravidão, embora fosse evidente que a escravidão já lá existia internamente. Pois,
esse é um problema difícil de... E que
João Pedro Marques
não se compadece com uma resposta simples. A questão é altamente debatida,
altamente politizada, altamente estudada e há opiniões para todos os gostos. Enfim,
opiniões para todos os gostos é um bocadinho mal da de milha.
Mas, quer dizer, houve gente que chamou a atenção, por exemplo, e
a mim parece-me uma coisa importante, para o seguinte, o tráfico de
escravos teve uma importância muito grande, mas tirando ali casos especiais, é
um problema da orla costeira africana. Mas
João Pedro Marques
Sim, mas… Isto não prova nada, obviamente, não é claro? Não. O
problema aqui é o seguinte, quer dizer, por um lado nós tomamos
o nosso padrão, nós tomamos o nosso estadio, não é? Como padrão
do desenvolvimento. E o problema do desenvolvimento é um problema, por exemplo,
importante para os economistas, mas para um historiador a coisa… por supor
que é um desenvolvimento unilinear, é difícil. As várias regiões, as várias
culturas têm histórias e têm caminhos e rotas diferentes. Mas, isso por
um lado. Por outro lado, se nós pegarmos das zonas de chegada
dos escravos, nós vemos que certas regiões que tiveram escravidão muito desenvolvida
e séculos de escravidão, não estão todas
João Pedro Marques
Há quem, por exemplo, as Caraíbas, que se falava há pouco, são
particularmente reivindicativas, tradicionalmente reivindicativas. As Caraíbas tiveram uma exploração escravista acentuada nos
séculos XVII, XVIII, XIX, mas houve outras regiões que tiveram, que não
têm os problemas económicos que as Caraíbas têm. Portanto, há muitos outros
fatores a entrar nesta história e a mim, pessoalmente, custa-me, ou melhor,
a mim, pessoalmente, essa explicação pouco linear, tráfico sob desenvolvimento, isto causa
aquilo, para mim não colhe. Não colhe. Há muitos outros elementos na
história, há muitas outras variáveis a julgar aqui. Deixo-me fazer um paralelo,
se calhar um bocadinho abusivo, mas que ilustra aquilo que eu quero
dizer. Nós podemos olhar para a situação em que Portugal está hoje
em dia e dizer que a culpa desta porcaria toda, porcaria em
traspas, do nosso estado de debilidade económica e por aí fora, são
as invasões francesas.
As
invasões francesas, os franceses vieram, arrasaram o país, roubaram imensa coisa e,
sobretudo, fizeram com que o rei fosse para o Brasil. O Brasil
com o rei lá, tudo não se independente, houve revoltas aqui por
causa do Brasil estar independente, 30 anos de guerra civil, etc, etc,
etc, por aí fora, até à troca...
João Pedro Marques
meu livro foi que havia uma lógica econômica africana, que é muito
diferente da nossa, e que essa lógica económica, entre aspas, havia uma
racionalidade económica da parte de... Exatamente, em termos de economia política, da
parte dos africanos, que os levava a produzir pessoas, produzir, entre aspas,
também, para corresponder aos desejos daquele novo parceiro comercial que surgia ali.
Quer dizer, não foram, o que eu quero dizer é que não
foram meramente passivos, havia uma racionalidade naquela forma de comportamento. Agora, aquilo
desembocou numa coisa perversa e sem saída, quando os europeus se retiraram
do circuito, daquele circuito perverso, os africanos, como disse há pouco e
muito bem, ficaram... Sobrabados com o mestério, com o excesso de... Exatamente,
continuaram a produzir escravos, à cadência antiga, e de um momento para
o outro tinham, e os grandes depósitos de escravos do final do
século XIX são do centro de África, aplicados à cultura, porque tinham
uma lógica de responder, o Miller utiliza mesmo a expressão que é
que funcionou como injeção de capital. Se chegava aquela gente ali que
queria pessoas, nós não queremos vender pessoas, mas para obtermos isso, nós
especializamos-nos na produção de pessoas. Quer dizer, olhar para os africanos como
parceiros passivos e vitimizados
José Maria Pimentel
é um erro. Mas isso é importante porque eu posso, eu admito
que aquilo que eu estava a explicar há pouco possa ser interpretado
como uma espécie de culpabilização da Europa e Portugal em particular nesse
aspecto, que não é e eu nem acho que isso tenha grande
interesse. Acho que esse tipo de revisitação da história para nos culpabilizar
não tem nem interesse porque as decisões são tomadas, salvo em casos
extremos, como o nazismo, por exemplo, que claramente é uma coisa que,
no caso da Alemanha, força a que se pense sobre como redefinir
o país depois daquele desastre. Mas, neste caso, havia um grande contexto
histórico em que tudo isto surgiu e que era um contexto global
ou pelo menos era um contexto do mundo europeu. Global, global. Global,
no caso. Agora, isso não quer dizer, portanto, isto não tem por
objetivo culpabilizar o Ocidente por aquilo. Agora, é um facto que eu
valia um fenómeno e eu concordo, obviamente, que não é a única
explicação e é uma tentação, se calhar, de economista estar à procura
do... Não, mas sabe aquela coisa
José Maria Pimentel
não foi tão sangrado. Sim, e não é evidente que esteja necessariamente
melhor do que o outro. Exatamente. Sim, concordo. Há muitos outros fatores
em jogo. Sim, e assim, o raciocínio que eu estava a enunciar
atrai-me. Eu acho que tem um poder explicativo razoável, mas não acho
que tenha interesse nenhuma pessoa sobre simplificar explicações, porque não há... E
sobretudo o João Pedro, obviamente, que tem estudado muito mais do que
eu. Aquilo é um bocado o ponto de vista economista a tentar
explicar o desenvolvimento daquele continente. Mas terminamos por aqui, acho que apesar
de tudo conseguimos falar de uma série de coisas. Sim, foi um
prazer, eu cá continuava.