#14 João Pedro Marques - Escravatura

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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45 Graus. Neste episódio estou à conversa com João Pedro Marques, historiador e romancista e um dos maiores especialistas mundiais na história da escravatura. O modo para a conversa foi o seu livro mais recente, escravatura, perguntas e respostas, um pequeno grande livro, incrivelmente rico em informação e cuja leitura vale bem a pena, pois leva-nos a conhecer o que desconhecíamos e a rever posições pré-concebidas. O tema da escravatura ou escravidão, de resto, e como explico no início, podendo parecer específico, acaba por ser uma ponte para uma série de tópicos que extravasam-me muito a esta questão. Se a isso juntarmos o enorme conhecimento do convidado sobre este assunto, fica explicado porque é que esta foi uma das conversas que mais gozo me deram gravar no podcast. Sem mais demoras, vamos então à conversa com João Pedro Marques. Não sei uma última nota para vos avisar que podem encontrar, na descrição deste episódio, links para alguns temas, episódios e personagens históricas referidas na conversa. Vamos ouvir.
José Maria Pimentel
João Pedro, muito bem-vindo ao podcast. Obrigado. Obrigado por ter aceitado o convite a este tema. Eu tenho episódios de dois tipos diferentes. Há episódios em que a conversa segue mais solta e outros episódios, como é o caso deste, em que há um tema específico, que é o modo de conversa, e normalmente tem que ver com o livro que o convidado publicou. Neste caso, é o seu livro sobre a escravatura, que é um livro até relativamente pequeno, mas cheio de sumo e que, no fundo, como aliás vem dito na introdução, não tem como objetivo tanto, nem poderia fazê-lo, contar a história da escravatura, mas sim clarificar determinadas questões. À boleia disso, eu gostava também de falar de alguns pormenores que, não estando no livro, são interessantes no meu ponto de vista. Este tema, aliás, é um tema mais interessante ainda do que eu achava à partida, não o escolhi por acaso, mas ainda se revelou mais interessante ainda porque quando a pessoa começa a descascar o tema, percebe a quantidade de intersecções que existem entre a questão da escravatura e uma série de áreas diferentes. Desde logo é um fenómeno que coincide muito com a modernidade civilizacional, da civilização ocidental e, portanto, interliga uma série de coisas, desde a economia à política, à própria moral, evidentemente.
João Pedro Marques
Àquilo que depois passou a chamar-se de direitos humanos. Exatamente.
José Maria Pimentel
E, Portanto, tem uma série de questões interessantes. Eu, neste caso, gosto, quando se fala de um livro, eu gosto de fazer no início da conversa, brevemente, aquilo que eu acharia interessante falar, sobretudo porque é muito pouco provável que falemos disto tudo. Portanto, assim já fica dito.
João Pedro Marques
Nós chegamos a este
José Maria Pimentel
sumário. Uma espécie de sumário, de proto-sumário, de sumário preliminar, sendo que provavelmente não vamos falar disto tudo, o que não é nada mal sinal. Significa que falaremos de outras coisas, se calhar até mais interessantes, e iremos a fundo nalgumas destas. É um guião. É uma espécie de guião indicativo. Há essencialmente quatro pilares que eu acho interessantes e tem que ver também com a divisão deste tema numa lógica mais ou menos cronológica. Em primeiro lugar, aquilo que é que porventura é menos óbvio para algumas pessoas, que é o facto da escravidão ter existido sempre ao longo da história, portanto esta escravidão, a escravidão atlântica, acho que é, ou a escravatura atlântica, acho que é o melhor termo para denominar. Portanto, a escravatura, o comércio de escravos de África para as Américas, não é fenómeno único na história da humanidade, pelo contrário, raros sim foram os casos em que não houve sistemas esclavagistas e por isso é interessante ter essa noção do que foi existindo ao longo da história. Em segundo lugar, isto nesta ordem econológica, o fenómeno propriamente dito da escravatura atlântica, seja na lógica que ele estava implícito, ou seja, os incentivos económicos, por exemplo, de quem participava e políticos, fosse dos comerciantes dos cravos, fosse dos próprios chefes tribais africanos que vendiam os cravos, fosse do outro lado dos colónios, propriamente dito, nas Américas, e por outro lado, os vários intervenientes neste processo. Os cravos propriamente ditos e as condições inarráveis por que passavam, que é o tipo de coisa que faz a impressão só de ler hoje em dia. Os europeus, o que eu acho praticamente interessante, os europeus observadores, chamemos-lhes assim, ou seja, os europeus que não participavam diretamente e que entravam em contato com o fenómeno e a reação que eles tinham mais ou menos empática, que é sempre interessante de olhar à distância, e os próprios índios no Brasil, que é outro fenómeno interessante comparar o tratamento que os índios tiveram face ao tratamento que os escravos tiveram. Em terceiro lugar, no século XIX, o movimento abolicionista e tudo o que está por trás dele, seja as origens que ele teve, as motivações, que não são tão óbvias como possam parecer à cabeça, têm uma série de nuances. A oposição que houve, o papel dos escravos, como o ativo foi ou não foi, o caso de Portugal em particular, que é outro interessante e a nós próprios diz-me muito respeito porque tem a ver com a nossa memória histórica. E, finalmente, o quarto pilar, as consequências de todo este fenómeno aos dias de hoje, que são consequências desde logo do racismo, porque esta escravatura atlântica, não tendo sido a primeira longe disso, teve particularidades que levaram a associar-se uma etnia, digamos assim, com determinadas características físicas, à escravidão, o que levou, o que teve na origem do racismo, que é um fenómeno que hoje em dia está longe de estar debolado. Depois, a própria memória histórica dos afrodescendentes, que obviamente não é o caso nenhum de nós os dois, portanto nunca poderemos saber exatamente o que é, mas é algo que é difícil de gerir. E finalmente, O que eu acho, se calhar, destes todos, o mais interessante dos aspectos, em que medida é que o sistema esclavagista está muito por trás da falta de desenvolvimento do continente africano aos dias de hoje. Porque, no fundo, instituiu estados escravistas no próprio continente que depois destruíram instituições existentes que já não eram especialmente desenvolvidas mas destruíram-as ainda mais e no fundo impediram ou têm vindo a impedir o desenvolvimento do continente até aqui. Fica feito o sumário provisório, Não sei de que é que dissemos falar. O problema é que até começássemos, se calhar, pelo início, passa a redundância, que é exatamente o facto deste sistema da escravatura atlântica, digamos assim, não ter sido a primeira ao longo da história, longe disso. Aliás, existiu praticamente a todo lado, existia no mundo antigo, nos romanos era evidente que existia, a pessoa lembra-se disso. No caso europeu, a minha intuição é a seguinte, eu não sei, João Pedro de Irmiaca, se isto faz sentido, que é, O feudalismo, que no fundo foi o que surgiu na Europa depois do Império Romano, digamos assim, com o interregno pelo meio, mas depois no fundo com o refazer do mundo europeu, era um sistema que de certa forma dava uma resposta diferente e alternativa à escravidão ao problema da mão de obra da classe dominante, chamemos-lhe assim para simplificar. E ao dar essa resposta diferente, porque no fundo a servidão da gleb não era muito diferente da escravidão, era obviamente melhor e tudo isto é uma gradação, mas era um sistema de pessoas que estavam presas à terra e presas ao senhor daquela terra. E essa era uma resposta diferente que, de certa forma, tornou a escravidão que tinha existido no mundo antigo menos interessante, desde o advento dos incentivos, e fez com que depois, quando, comece a estar em escravidão. Mais barata. Como? Muito mais barata.
João Pedro Marques
Não era preciso comprar. Exatamente. Não era preciso comprar. É uma forma de relacionamento... Eu interrompi-vos, se calhar. Não, não, contudo, era mesmo para me interromper. É uma forma de relação de dependência e relação laboral própria de um mundo muito mais pobre, globalmente falando, e muito mais desprotegido. Aquela gente que, com o colapso do Império Romano e com a imprevisibilidade e a dificuldade de relacionamento e até de movimentação de pessoas e os ataques, não se sabe nunca de onde vem, que é um quadro que se mantém até o século X, com os ataques dos vikings e dos maceares e dos sarracenos e por aí vai. E dos tártaros. Sim, até a Europa Central mantém-se até ao tempo do Sanxiscã, até o século XIII. Portanto, isso, essa perigosidade do tempo, o desaparecimento das estradas, tudo isso faz com que as comunidades se procurem, procurem proteção junto de quem pode protegê-las e, portanto, aceitam essas relações de dependência que, no fundo, constituem a massa de base daquilo que se chamou o feudalismo. Mas, e que depois, repare, depois de ter sido abolida a escravidão, vão ressurgir outras formas de completa dependência e de exploração desalmada do trabalho, que já não são a escravidão, mas que são o trabalho forçado, por exemplo, em África. Porque, no fundo, o problema que se põe sempre é o problema do trabalho. Como é que eu asseguro controle sobre pessoas que possam produzir? E na Idade Média isso foi feito dessa forma. Aqueles que lutam e aqueles que oram, as três ordens, protegem aqueles que laboram, aqueles que trabalham e criaram-se aqui uma... Não sei se era melhor, é muito difícil nós avaliarmos isso, a vida de um camponês, de um servo da gleba é especialmente melhor do que foi... Havia formas de proteção, que para os escravos muitas vezes não havia. O senhor tinha um arbítrio completo sobre o escravo, um quais completo, era a sua propriedade.
José Maria Pimentel
E o escravo ia até vender... Eu gosto de... Isto é obviamente de um amador, mas gosto de normalmente olhar para essas coisas ao contrário, que é aquilo que depois dá origem, por exemplo, a uma moral e a determinados princípios éticos e no caso da sociedade contemporânea, tem na sua origem um jogo de forças. Sim. É normalmente o jogo de forças que dá origem a isso. Não é pela boa vontade, não foi pela boa vontade das elites que se gerou a democracia. A democracia surgiu por um jogo de forças. Mas também
João Pedro Marques
foi. Atenção.
José Maria Pimentel
Um alimentou o outro, mas a minha intuição é que na origem tal... Não, eu não acho que a luta de
João Pedro Marques
classes explique toda a história da
José Maria Pimentel
humanidade. Mas não é necessariamente luta de classes.
João Pedro Marques
Ou luta de interesses explica toda a história. Há de facto momentos da história em que há concessões, há pessoas que estão numa posição de domínio e que aceitam prescindir, por razões várias, dessa sua posição do domínio. Aceitam partilhar, ou pelo menos parte disso, ceder a outros.
José Maria Pimentel
Isso acontece. Para caso, fora da nossa conversa, mas era interessante explorar isso. Repare, por exemplo, no mundo religioso isso acontece com alguma frequência. Pega, por exemplo, no São Francisco de Assis, um homem que era rico. Mas é um caso isolado, não é? É o caso de uma pessoa. Não, não, há muitos casos desses. Sempre que o mundo religioso é
João Pedro Marques
um mundo diferente na atual ms. Há muitos casos desses no mundo religioso, muitos casos desses de gente que abdica do que tem e segue uma outra via.
José Maria Pimentel
Mas como fenómeno macro, por causa do caso individual, é evidente que sim, não é? No caso individual deste caso podia haver, e houve casos com escravos, por exemplo, de donos de escravos que deram liberdade aos seus escravos por motivos que é difícil de classificar de outra maneira, que não por motivos altruístas, mas eram casos isolados. O fenómeno global pode obedecer a esse tipo de…
João Pedro Marques
É difícil, claro. Não, não é isso. Há sempre aqui um dilema, que é um dilema que também tem na origem, ou pelo menos tem na base, uma opção ideológica. Aliás, quando andava na faculdade usava-se muito a metáfora da árvore e da floresta. Se a gente olha para a árvore e não vê a floresta, quer dizer, se for a árvore e não vê a floresta, também não vê a árvore. Enfim, havia aquele dilema. As pessoas que querem ter uma visão dos grandes movimentos, macro, como chamam a bocado, muitas vezes essas pessoas perdem as nuances e às vezes algumas dessas nuances são importantes, são muito importantes. E, portanto, quando se olha, por exemplo, Eu vejo muitas vezes nestes debates que tenho e nesta troca de ideias, ver pessoas que, para explicar esta escravatura de que nós estamos a falar, o tráfico de escravos e a escravidão que se desenvolveu aqui na Bacia do Atlântico entre o século XV e o século XIX, Para caracterizarem isso, para explicarem isso, etc., partem daquilo que foram as relações de trabalho forçado, que se chamava escravatura também, mas por analogia, que existiram a partir de finais do século XIX e depois no século XX. Quer dizer, Não é legítimo fazer isso. As características do que foi a conquista da África, a corrida à África, e as formas de trabalho e de exploração e de violência que se ganham, não explicam o que aconteceu antes, nem caraterizam o que aconteceu antes. Há quem faça um contínuo entre isso tudo. É a mesma coisa que nós, por exemplo, pensarmos no cristianismo a partir daquilo que era a igreja no século XII. Quer dizer, Cristo viveu no século I e a mensagem de Cristo e Aquilo que era o cristianismo no século I é diferente do que era no século XII. O facto de se ter pervertido não significa que no origem estivesse pervertido. As coisas têm uma história, com um trajeto.
José Maria Pimentel
Se eu explicar ao contrário, a última análise. É retroativo. A
João Pedro Marques
explicação retroativa que eu vejo de muita gente, sobretudo as pessoas de esquerda, que têm um esquema de pensamento, o marxismo também é retroativo e depois teleológico. Acabam por prescindir dos detalhes, prescindir da história mesmo. Têm grandes esquemas mentais de explicação. E, portanto, aquilo que não encaixa ali, que é micro, não interessa, risca-se e deita-se fora. Nem sempre
José Maria Pimentel
é assim. Eu percebo isso. O marxismo, no caso, como é heliano, tem aquela tentação de simplificar, quase da estética da simplificação, e, portanto, ter um modelo muito simples que explique tudo, que não era o meu objetivo. Há pouco, embora eu possa estar errado na mesma, a expressão macro que eu usei nesse é mais bem conseguido. É macro no sentido de não ser necessariamente refutado por casos individuais, mas até micro porque em termos de movimentos não é das grandes classes, é no sentido de em cada momento histórico os diferentes intervenientes têm forças diferentes e essas forças foram causadas por alguma coisa e essa é a grande questão, porque é que foram causadas? Se foi simplesmente uma contingência, que é outra maneira de dizer que foi mais ou menos por acaso, quase um jogo aleatório que deu origem àquele tipo de situação, mas no fundo vem da história, vem dali. E o que acontecia na Idade Média, no tempo do feudalismo, é que obviamente havia uma discrepância enorme entre os senhores e os servos mas havia ali um jogo de forças e a força dos servos não era nula era baixa mas não era nula daí eles receberem em troca eles davam obviamente muito mais aos nossos olhos de hoje em dia do que recebiam mas recebiam alguma coisa em troca de facto lá está recebiam proteção e havia-se acordo
João Pedro Marques
os escravos também, os escravos também. Os
José Maria Pimentel
escravos eram, é óbvio que eles recebiam proteção na medida em que isso interessasse aos donos deles, aos senhores... Não sei qual é o termo que se costuma usar aos senhores do escravo, mas não era um acordo entre os escravos, porque eles não iam de moto próprio, não iam contra as contas. Às vezes iam de moto próprio. Bom, havia, algumas pessoas ofeciam, mas no caso da escravatura atlântica estavam longe de ir de moto própria. Juro eu. Sim, sim, claro. Eram
João Pedro Marques
vendidos, repare-se, eram vendidos como escravos já. Eram vendidos pelos poderes políticos africanos ou pelos mercadores africanos, que vendiam aquelas pessoas que vinham às mãos dos europeus, compradores europeus, já como escravos. O que se debatia muito na Europa nessa altura, essa era legítima, essas formas como aqueles escravos tinham sido conseguidos em África, eram legítimas e eram justas. Isso se debatia-se imenso aqui, No século XVI, XVII, inclusive XVIII. Não sabia disso. Havia muita gente a dizer. Não, quer dizer, nós sabemos. Há muitos testemunhos, sobretudo de gente da igreja que estava lá, que dizia que aquilo era um abuso completo. Algumas daquelas pessoas não eram escravas de origem, coisa nenhuma. Era um residente que era escravizado e depois era... Mas como é que vamos saber? Mas em que medida é que ser
José Maria Pimentel
escravo de origem ou não muda as coisas? Também é uma pergunta...
João Pedro Marques
Não, é que para os europeus nessa altura havia formas justas ou injustas de
José Maria Pimentel
escravidão.
João Pedro Marques
A escravidão que era uma decorrência da guerra justa, por exemplo, era aceita, era legítima. Era uma alternativa à morte, em certo sentido. Exatamente, exatamente. Popava-se a vida. Depois isso começou a ser refutado pelos filósofos. Hutchinson, se não me engano, refutou isso porque foi buscar um pensamento por analogias e disse, mas que raio, isso não é válido. Porque as pessoas também devem a vida a cirurgiões, às prateiras e por aí fora. Parece lógico. Isso não autoriza essas pessoas a ficarem donas das outras. O assunto era debatido aqui na Europa no século XVIII, mas já antes os ouro-parixão tiveram, quando eu digo sempre, enfim, deu um certo desconto. Mas quer dizer, a cultura ocidental, pelo menos desde os gregos, sempre teve aqui uma tensão e uma incomodidade relativamente à escravidão. Sempre. E sempre se procurou arranjar uma forma que justificasse aquela situação prática de uma pessoa possuir outra. Racionalizar, no fundo. No fundo, tentar racionalizar aquela tensão e aquela... Porque havia ali incoerências, óbvias, não é? Como é que se trata uma coisa como um objeto, quando nós nos relacionamos com esse objeto, temos inclusive filhos desses objetos? Tratar um ser humano como um animal ou como uma coisa, quando nós na verdade não o tratamos apenas assim. E portanto, houve aqui sempre uma incomodidade e uma dificuldade de ajustamento que, primeiro, os filósofos gregos e depois os romanos, os estoicos, por exemplo, tentaram conciliar, tentaram racionalizar e depois a igreja fez a mesma coisa e sacralizou. Os padres da igreja sacralizaram um edifício ideológico que justificava a escravidão em termos quase que de vontade divina.
José Maria Pimentel
Salvação das almas, não é?
João Pedro Marques
Antes até disso, essa era uma função útil, uma função útil que a escravidão teria. É de facto injusta, é brutal, é uma coisa que corta o coração ver uma coisa daquelas, mas pronto, tem essa finalidade positiva, que é trazer os pagãos à salvação da luz. Mas antes mesmo disso, que era um problema que se preocupava o Aristóteles antes do Cristianismo, que era... O Aristóteles tinha a ideia que havia desde a origem certas pessoas que nasciam com um defeito na alma, um defeito inato na alma, que fazia com que elas fossem predispostas para… eram escravos por nascimento e outros eram livres. Não se podia distinguir pela aparência. Podia haver enganos, uma situação de guerra podia levar aquele indivíduo intrinsecamente livre a acabar-se por cair na escravidão. E o Aristóteles nunca resolveu este problema filosófico, esta dificuldade. Mas os padres da igreja, o santo Agostinho, os primeiros padres da igreja, resolveram. Tudo isso acontecia por vontade de Deus. Quer dizer, como toda a gente, como todo o ser humano era um pecador, existia o pecado original e o pecado original manchava a alma de toda a gente. Então cabia a Deus dizer, caberia a Deus dizer quem deveria ser senhor e quem deveria ser escravo. Com este tipo de racionalizações e de argumentos a coisa acabou por encaixar, mas foi sempre uma incomodidade. Portanto, aqui na Europa houve sempre gente a pensar sobre o assunto, a inquietar-se com as modalidades que o tráfico de escravos assumia, que eram, por exemplo, injustas e chocantes e a tratar isto. Isto é legítimo, isto não é legítimo? E o que se discutia muito, para voltar ao início, era como é que estes escravos que nos são vendidos como escravos chegaram à posse daqueles senhores africanos que nos vendem. Isto é justo? Estes escravos são legítimos ou
José Maria Pimentel
não? Isso se discutia-se imenso. Isso é curioso, não sabia disso e vendo-nos aos olhos hoje em dia é quase contraditório, não é? Porque se está a questionar a origem, não a escravidão em si, mas a origem, é quase como aquele tipo de raciocínio do comércio justo em relação a determinados produtos, de perceber se o café foi produzido nas condições... Aliás, se o escravo foi originado em condições justas ou injustas para ele, que é o que é curioso, de facto, e tem a ver com isso. E aquilo que o João Pedro diz em relação ao facto de sempre... Isso, de facto, é algo que eu acho que não é intuitivo para quem vive hoje em dia, que é perceber que não se trata de uma realidade a preto e branco, ou binária, que antigamente quase toda a gente era mais ou menos indiferente ao fenómeno da escravidão e hoje em dia toda a gente, por omissão, é contra o fenómeno, mas, assim, é algo que mesmo no mundo antigo e no mundo medieval foi difícil de lidar. Ainda assim, há uma diferença entre a escravidão no mundo antigo, e que subsistiu em parte da Idade Média, e esta escravidão atlântica, não é? Que Havia o facto de, na antiguidade, os escravos tinham posições sociais de diferença. Por exemplo, na Roma antiga era muito comum haver escravos tutores, por exemplo, não deixavam de ser escravos. Sim, sim. Mas era, acho difícil que fossem olhados da mesma forma do que um escravo negro, por exemplo, era olhado no Brasil em que havia uma total distinção racial entre quem mandava e quem era mandado.
João Pedro Marques
Sim, há várias diferenças. Mas há várias diferenças. Repare, por exemplo, muitos escravos, bastante escravos, pelo menos numa determinada fase na Roma antiga, eram gregos, eram provenientes da Grécia. Os romantes tinham uma admiração enorme pela cultura grega, que aliás, copiavam em vários aspectos, veneravam. E, portanto, havia poetas, pedagogos, eram escravos. O facto dessas pessoas serem escravas, atenção, De facto, eram olhadas com alguma, vamos dizer, atenção, alguma consideração, mas não obstava que fossem tratados, que pudessem ser tratados como escravos. Eu vou lhe contar uma situação que é muito esclarecedora acerca do que era um escravo no mundo romano. É verdade que os escravos podiam ser libertados. A manomissão era muito comum no mundo romano. Podiam chegar a posições até relativamente elevadas, como ajudantes, homens de confiança de um imperador, por exemplo, que tomavam conta do seu escritório, liberto. Isso aconteceu. Mas, podiam também ser tratados com uma brutalidade extraordinária. Houve um homem da classe sedatorial, isto não se me engane passa-se no século I d.C., chamado Pedânios II, que foi morto por um escravo. E ficou, foi muito debatido no Senado o que é que se devia fazer. Segundo a lei, os escravos, todos os seus escravos deviam ser mortos. Porquê? Porque partia-se do princípio que era a obrigação dos escravos defender a vida do seu senhor. Se aquelas pessoas não tinham obstrado a que um dos escravos o tivesse matado, então deviam ser punidos. Discutiu-se imenso que ele tinha 400 escravos em casa. 400? Discutiu-se imenso isso, e que considerava-se uma brutalidade inacreditável, mas o que é verdade é que foram uns 400 crucificados. 400? 400 homens, mulheres e crianças. Portanto, isto dá bem, por causa do exemplo, isto dá bem uma ideia do que era a brutalidade do sistema escravista, ou do que podia ser a brutalidade. Portanto, mesmo que fossem poetas, mesmo que fossem filósofos, mesmo que fossem músicos, pedagogos, quer dizer, se acontecesse uma coisa desta
José Maria Pimentel
seriam envolvados no pacote. E não eram cidadãos, não estavam protegidos minimamente perante a lei. Exatamente, não estavam protegidos
João Pedro Marques
perante a lei. E o castigo para um escravo era a crucificação. Isto aconteceu. O caso famoso é o caso dos homens de Esparta, dos escravos revoltosos de Esparta, os que sobrevivem à última batalha, 6 mil são crucificados de Capo a Roma, na Via Appia. 6 mil escravos crucificados. Portanto, isto dá uma ideia de facto da brutalidade. Agora, o sistema escravista, que era a questão que estávamos aqui a falar, que nasceu das relações entre África e as recém-descobertas Américas, o sistema que nasce na Bacia do Atlântico, tem de facto particularidades novas. Por um lado, é um transporte naval em larga escala. Depois, e como focou, envolve pessoas com um aspecto físico substancialmente diferente. Não que os escravos negros fossem novidade absoluta, já existiam no Império Romano. Poucos, porque ainda não havia as relações trans-sarianas, Porque também a domesticação do camelo é uma coisa muito mais recente do que a maior parte das pessoas pensam. Portanto, aquilo ali, o mundo romano do norte de África, a Líbia, estava separado. Não contatava com o que estava por lá, exceto pela linha fluvial do Nilo. Os escravos negros que chegavam vinham da Núbia, dessas regiões que correspondem hoje em dia, grosso modo, ou à Alta Egito, ou Sudão. Havia alguns, mas não eram muito comuns. A maior parte dos escravos tinham um aspecto semelhante aos próprios senhores, eram germânicos, gregos, eram asiáticos, por exemplo, ou da África do Norte, e portanto, isso em si é uma novidade, vão chegar indivíduos negros. E depois, o racismo não surge logo aí, Mas de facto há ali, porque no século XVI e XVII as coisas não se colocam nesses termos. Mas depois, quando se torna uma monospecialização, quando todo o trabalho mais pesado é feito por essas pessoas, começa a surgir um preconceito. O preconceito esse que leva a que, por exemplo, os brancos não gostem de trabalhar naquilo... Até assim, trabalhar é bom para o preto. Na língua portuguesa isso ficou assim. O trabalho manual começa a ser connotado de uma forma depreciativa a nível cromático, a nível da pele. De facto, isso é uma coisa que surge no sistema escravista do Atlântico. E sobre isso depois vai erradicar o racismo do século XIX, que é uma construção pseudo-científica dessa época. Vai, de facto, erradicar aí. Agora, já havia preconceitos semelhantes, por exemplo, no mundo muçulmano. Se pegar nas descrições que faz o Ibn Khaldun, o historiador e viajante muçulmano do século XIV, se não me engano, A visão que ele tem sobre os escravos negros que trabalham no mundo muçulmano é extraordinariamente pejorativa. É uma coisa que, se aquilo fosse feito por um ocidental, caía o carne-a-treindade. Se aquilo fosse dito por algum, aquilo que ele diz acerca dos escravos negros, caía o carne-a-treindade. Chamava-se tudo ao homem, mas ninguém fala nisso. Mas quem tiver curiosidade, eu recomendo
José Maria Pimentel
que leia. É, mas estou gostando de acreditar que em qualquer cenário em que há uma parte da população com características físicas distintivas que está numa posição abaixo da restante parte da população, isso é a essência do racismo. A partir daí é só deixar fermentar para fazer expressão. Exato, exato.
João Pedro Marques
Agora, o que eu queria chamar a atenção era o seguinte, o racismo que se desenvolve depois no século XIX não é exclusivamente antinegro, aos dias depois do século XX, não é? Porque, aliás, como se sabe o que se passa no mundo nazi e por aí fora, o racismo escalona. Nós muitas vezes utilizamos a palavra racismo e outras de uma forma talvez demasiado lata e pouco precisa, não é? O racismo é a ideia, para mim, na minha acessão, é a ideia de que existem raças humanas, que essas raças estão escalonadas, há uma superior, outra abaixo e há uma inferior. Sem isto não há racismo na minha seção. E depois a ideia, que talvez seja central, de que um indivíduo por pertencer àquela raça, tem obrigatoriamente aquelas características. E portanto, quer dizer, aquele indivíduo é africano, é negro, então é madrião, é isto, aquilo, aquilo outro, ah, aquele tipo é amarelo, é oriental, então é da... Isso é que é no fundo
José Maria Pimentel
o constituinte do racismo. E isso que o João Pedro diz faz todo sentido e para mim é a maior contradição do racismo porque até poderia haver, eu tenho a certeza que se dividíssemos os bairros de Lisboa e fizéssemos um teste que ia às pessoas, a média era provável que não desse igual. Isto por si só, por exemplo, não é uma conclusão particularmente alarmante. Porque ninguém são vai daí tirar a conclusão que qualquer habitante do bairro ficou em último lugar, por exemplo, ou seja, isto para dizer que mesmo pessoas que tivesse essa crença baseada naquela pseudociência do racismo, daí tomar a ele a ação, que todas aquelas pessoas estão condenadas a estar na base da cadeia é uma coisa que não faz sentido nenhum, mesmo para quem pudesse acreditar naquela pseudociência. Mas de facto, o que é preciso perceber olhando para trás, Para alguém que vivesse no século XVI, XVII ou XVIII e que vivesse naquele tipo de sistema, era preciso uma clarividência muito grande para contrariar essa tese, que é mais ou menos uma tese implícita, porque ela via as pessoas, via e depois há uma causalidade, um reforço... Retroação. Uma retroação, porque se havia uma parte da população que não era educada, que não tinha acesso à educação, obviamente que essa parte da educação ia ser menos lotrada que a outra, era impossível que assim não fosse. Sim, ao feedback positivo. Isso, exatamente, um feedback loop de uma coisa alimentar a outra, aproximadamente. E isso daí ter sido difícil reverter a situação. Entretanto, ainda em relação a esta questão, não tanto do racismo, mas da escravidão, eu achei interessante um caso que veio no seu livro do Pedro Cláver, que eu não conhecia, que é um jesuíta catalão, que é um caso incrível, eu não conhecia o caso dele, já me tinha perguntado várias vezes se haveria entre a população dessa época, obviamente que havia pessoas a quem fazia impressão. Quer dizer, havia se calhar três tipos de pessoas. Aqueles que estavam absolutamente indiferentes faço ao fenómeno, aqueles a quem fazia impressão, mas que racionalizavam e a humanidade sempre fez isso e continua a fazê-lo, nós próprios hoje em dia, racionalizamos determinados fenómenos para sermos capazes de viver com eles, se não ficávamos paralisados. E depois haveria, talvez, algumas exceções honrosas, como o caso do Pedro Clava, que não só não o racionalizavam, ou racionalizavam menos e agiam sobre ele. Ele é um caso incrível para relatar rapidamente, se me quiserem interromper para dar algum detalhe que eu não esteja a explicar bem, esteja à vontade. Mas o caso dele, ele era um missionário jesuíta que vai para o Brasil, está sobretudo no Brasil e ele ia, descia ao convés dos barcos onde vinham os cravos em condições que eu acho que são inimagináveis, são realmente inimagináveis porque é difícil, acho que foi a pessoa imaginar não tendo passado por eles. Ia falar com um, acho que dava um beijo a cada um deles, não era? E dava-lhes as boas-vindas, dava-lhes roupa e comida, quer dizer, uma série de coisas que é difícil de compreender, sobretudo se admitirmos que ali já havia algum racismo emergente. Sobretudo se admitirmos que já havia algum racismo emergente, então...
João Pedro Marques
Não havia, não havia. Quer dizer, sobretudo nessas pessoas, como por exemplo o padre António Vieira, que foi tão falado aqui, que também é jesuíta, e que foi tão falado aqui, e que é um homem, enfim, de grosso modo da mesma época. Não havia. Eram pessoas que estavam fechadas dentro de uma explicação religiosa, eram ambos religiosos, achavam que a escravidão era lamentável, mas fazia parte da construção divina, da grande ordem das coisas. Aquilo que os ingleses depois chamavam de great chain of being, quer dizer, todo este todo harmonioso, que se nós tocarmos numa parte desmorona-se o resto. Portanto, isto é a vontade de Deus, o melhor
José Maria Pimentel
dos mundos, não é? Exato. Quem dizia isso? Era o Leibniz, não era?
João Pedro Marques
Não sei, o
José Maria Pimentel
Voltaire que o fizeram no Candido.
João Pedro Marques
O melhor dos mundos possíveis. E, portanto, eram homens... Temos que olhar para essas pessoas que são religiosos. O Klaver, sobretudo, essas coisas passam-se em Cartagena de Lasndias, quando ele está em Cartagena de Lasndias. Todos os navios carregados de escravos que vêm, ele tem o cuidado, porque ele percebe que aquela gente vem aterrorizada e justificadamente aterrorizada. Até porque muitos africanos têm crenças acerca do que é a terra dos brancos, que na sua visão das coisas corresponde à terra dos mortos. Portanto, o grande mar que eles atravessam é a viagem para o fim, na sua perceção. Quer no norte da zona do Congo, no norte de Angola, quer noutras partes da África Ocidental, há tradições que acham que ser vendido como escravo aos brancos significa entrar numa máquina de transformação quase que pré-industrial, digamos assim, para fazer uma analogia com a nossa, que mata os negros e os converte, converte os seus corpos em vinho, em queijo, em os seus ossos moídos em pó, em pólvora, etc. Por aí fora. E, portanto, aquela gente vem completamente apavorada. Há uma descrição, no final do século XVIII, de um escravo, que eu refazia isso
José Maria Pimentel
no livro. Sim, sim, exatamente. Depois faz uma biografia, uma autobiografia.
João Pedro Marques
Sim, que é o Olaudah Equiano, que é vendido aos brancos. E quando vê pela primeira vez um homem branco, fica completamente apavorado, nunca tinha visto. Um navio, nunca tinha visto. O cheiro. O cheiro, exatamente. O cheiro, quer dizer, um caldeirão, onde estão a cozinhar aquelas papas que depois lhes davam. E ele acha que é para cozinhar os cativos. E, quer dizer, chegam à América completamente... Os que chegam à América, completamente aterrorizados. E o Claverde tem o cuidado de os acolher, os abraçar e os beijar. Do mesmo modo que o padre António Fiera, que foi tão atecado neste verão que passou, por gente que não compreende o que era a maneira de pensar daquele homem e o que era a maneira de pensar do século XVII, ficava impressionadíssimo com os navios que chegavam de Angola, com aqueles desgraçados, nus e às vezes maltratados por os donos, que eram tipo opulentos e ricos, mas achava que aquilo fazia parte de um propósito divino. Alguma finalidade isto tem que ter, que até a viagem de navio era fácil, com ventos de feição, e portanto isto corresponde à vontade de Deus. E porquê é que Deus quer que estas pessoas sofram isto. Então ele procurava encontrar uma explicação dentro daquilo que ele pensava que era a vontade de Deus. E quando fazia sermões aos escravos e outros negros da Irmandade do Rosário, o que ele tentava era que eles aceitassem espiritualmente aquela situação que o Vieira estava longe de considerar que devia-se acabar, porque
José Maria Pimentel
ele pensava aquilo como uma vontade de Deus. Achava que não era sequer questionado, do ponto de vista dele, se Deus tinha decidido assim, lá está, era o melhor de todos
João Pedro Marques
os... Até é, porque isto radica, inclusive, na filosofia estoica. O António Vieira refere-se explicitamente ao Seneca. O Tocquey? Sim, o Tocquey não era nenhum burro. Não, claro que não era. O Seneca, os estoicos em geral, achavam que A escravidão era uma norma social, não era conforme com a natureza. Os estoicos potencialmente eram contra a escravidão, mas achavam que, no fundo, tinha uma importância relativa. Porque para os estoicos, aquilo que verdadeiramente... A verdadeira liberdade, os estoicos pensavam ser para a escravidão em confronto com a ideia de liberdade, que aliás é uma coisa que nós também devemos continuar a pensar. O que é a escravidão e o que é a liberdade em cada momento? Pode haver situações em que não há escravidão, mas também não há liberdade. Portanto, os textos pensavam isso assim e achavam que de facto aquilo que era importante era a verdadeira liberdade. E o que era a verdadeira liberdade? Era o indivíduo ir levar-se acima da sua condição humana. Era não ser escravo do pecado, do vício. E para isso, para um indivíduo conseguir subir acima dessas tentações da vida quotidiana, tanto dava-se escravo como ser livre. Havia homens livres que eram mais escravos do pecado e da má ação e do vício e da mentira do que escravos. O estoico relativizava as coisas e tinham inclusive uma dualidade corpo-alma. O que interessava era se os cristãos depois vão absorver na íntegra. E, portanto, é nesta ideia estoica, que é por exemplo escrita e desenvolvida pelo Séneca, que o António Vieira estrutura o seu pensamento, explicitamente, não é uma interpretação minha, eu próprio refero o Seneca. Há uma alma e há um corpo, não interessa tanto se o corpo está cativo, o que interessa é que a alma seja livre. E se calhar, para ter uma alma livre e mais próxima de Deus, os escravos, se calhar, desse ponto de vista, estão em melhor posição. São cativos, mas têm apenas uma meia escravidão. Se eles se mantiverem puros e dentro da igreja que está cumprida as normas, etc, etc, se calhar é esta a finalidade de Deus. Então tem um homem cheio de dúvidas que se interroga e que procura explicar dentro do seu quadro de pensamento. Claro,
José Maria Pimentel
pois, o problema nesse caso é que o quadro, como ele, nenhum membro da igreja, questiona o quadro de pensamento, como o quadro de pensamento propunha, que aquilo, supunha, perdão, que para aquilo existir é porque era a vontade divina, jamais questionaria o próprio sistema esclavagista, não é? Pois. E, portanto, a melhor pessoa dentro desse quadro, como era o exemplo do Clavert, podia fazer todo aquele tipo de atos que nós hoje em dia consideramos de uma abnegação incrível mas não estava a questionar o sistema em si. Não, mas ninguém questionava o sistema em
João Pedro Marques
si, não é? Exatamente. Ninguém questionava o sistema em si. Eu só conheço um pensador que questionou o sistema em si. Pode haver outros, mas eu só conheço um. Mas é interessante. É o Jean Maudin, um teórico político francês, no final do século XVI, é a única pessoa. Mas como eu escrevi num artigo agora recentemente no público, mas o Jean Maudin também acreditava em bruxas e também achava que as bruxas deviam ser tiradas aos poços e se flutuassem a penhoagem do demónio. Se fossem ao fundo, é porque eram puras.
José Maria Pimentel
Ah é? É como se faz com os ovos. Exatamente.
João Pedro Marques
E portanto, quer dizer, o século XIII era um mundo diferente.
José Maria Pimentel
Claro, e quando a pessoa faz uma espécie de... Que às vezes chama-se cherry Picking, que é ir buscar aquilo que determinado autor diz e que nos parece fazer completo sentido, mas depois se a pessoa for ver tudo o que esse autor escreveu, se calhar que foi quase um acaso no meio de... Ainda assim é um caso interessante, não é, Dalguém? Claro que o enquadramento mental é completamente diferente do
João Pedro Marques
enquadramento físico. Era qualquer coisa que as pessoas achavam... Talvez simplificando em excesso, a forma como eu costumo explicar estas coisas é a seguinte, houve sempre gente que se incomodou, que se inquietou, que se preocupou e que lamentou a existência da escravatura de todas as cores. Neste caso que estamos a falar, da escravatura negra que se desenvolve a partir do século XV para as Américas. Só que consideravam que era impreciso nível para desenvolver as Américas. É interessante pensar o seguinte, mesmo um filósofo anti-escrevidão, anti-escrevista, como era por exemplo Montesquieu. Montesquieu considerava em meados do século XVIII, 1760 se não me engano, o Esprit de Loire, acho que é dessa data, considerava que em certas circunstâncias a escrevidão podia ser justificada. Os
José Maria Pimentel
países quentes, não é?
João Pedro Marques
Pois, exato, os países quentes. Nas zonas onde os homens só seriam levados ao trabalho pelo receio do castigo, se calhar não havia outro remédio. E é Esse pensamento que o Montesquieu exprime assim, que esteve cá sempre, entre aqueles que contestavam a escravatura, que lamentavam, mas não temos alternativa. Tudo isso muda, de facto, por razões várias, mas quando se divulga e se difunde na população instruída a convicção de que há outra alternativa. E essa outra alternativa vem associada ao desenvolvimento do liberalismo e das teorias do Adam Spieth e por aí fora. Quer dizer, a convicção de que o trabalho livre é mais produtivo, teoricamente será mais produtivo do
José Maria Pimentel
que o tropar de escravos. É filho do iluminismo, digamos assim, e depois também tem muito a ver com o progresso técnico. Eu ouvi no outro dia um programa com o J. Nogueira Pinto e ele dizia uma coisa que eu achei interessante, embora provocadora, que se não tivesse havido a revolução industrial não tinha havido o fim da escravatura. Talvez tivesse havido, mas teria sido de certeza diferente. Mas vamos que isso é até uma questão interessante. A propósito do Montesquieu, lembrei-me de um caso engraçado, engraçado isto é, curioso, do Thomas Carlyle, escritor escocese, que ele é conhecido por ter sido a pessoa que cunhou um termo que hoje em dia é várias vezes utilizado para falar da economia e da ciência, que é a de Dismal Science, a ciência pessimista. E é um termo que pegou porque dá muito jeito de, de vez em quando, usar essa expressão para algumas previsões económicas que, de facto, parecem cumprir, não é só as previsões, mas o próprio modelo em relação ao comportamento humano, a visão da economia de mercado em relação ao comportamento humano, que é uma visão relativamente pessimista e daí, por supor que é preciso ser o mercado a funcionar e não é possível que as pessoas, por sua própria boa vontade, sozinhas cheguem a produzir um resultado eficiente, no fundo pegando no Adam Smith. Mas a razão por que ele usou esse termo, de dismal science, a propósito da economia, não era por essa visão, mas sim porque ele se opunha à visão do... Ele achava muito pessimista a visão, pessimista do ponto de vista dele, a visão do Stuart Mill, do John Stuart Mill, porque o Stuart Mill dizia que era, claro está, que era possível com os iniciativos certos e com o salário certo que os então escravos se tornassem homens livres e trabalhassem de uma maneira produtiva e ele cara lá achava que não e aquilo do ponto de vista dele era altamente pessimista porque ele achava que a escravidão era uma delas que devia continuar porque caso contrário as pessoas não iam trabalhar. É um caso engraçado porque o termo de dismal science colou, mas com um significado completamente diferente do que ele estava a usar na altura e hoje em dia pouca gente sabe que ele estava a usar para defender o sistema esclavagista da altura.
João Pedro Marques
É muito engraçado porque isto que se passa aqui relativamente à abolição, primeiro do tráfico de escravos e depois da escravidão, é qualquer coisa que de facto é… tem várias razões do ponto de vista filosófico, do ponto de vista religioso, do ponto de vista moral, mas as razões que têm a ver com o pensamento económico e com a expectativa económica são de uma ponta de vista importantíssima. Esta é que é a variável que faz mudar aqui o plano. A crença de que o homem livre e remunerado, o trabalhador livre e remunerado, produzirá mais do que um trabalhador escravo. Que é uma crença errada, ou melhor, que naquelas condições específicas das colónias americanas da época se veio a verificar que era completamente errada. Mas o que é interessante é que esta convicção foi motivadora e levou, de facto, ou ajudou muito, a que se abolisse a escravidão. E ajudou a tal ponto, ajudou a tal ponto que mesmo depois, quando as pessoas percebem que aquilo não estava a funcionar como estava planeado, que os escravos libertados não estavam nada a produzir mais do que os escravos escravos escravizados, de Cuba ou do Brasil, que mantiveram até mais tarde a escravidão, ainda assim o peso, A força moral da abolição... Faz com que não volte atrás. Não se pode voltar atrás. Não se pode voltar atrás. E toda a gente que aboliu, não apenas aqui no mundo ocidental, mas no mundo muçulmano, no Japão, na China, tomavam como modelo o caso inglês, sobretudo, os países ocidentais, mas sobretudo o caso inglês. A carga, a vantagem, a força moral que tinha daquela movimentação. Houve um bispo anglicano, sim, Na altura em que os ingleses aboliram em 33 e depois havia um período de transição que foi encurtado, a lei é de 33 e a abolição efetiva é em 38, nas colónias inglesas. Depois de jubileus, celebraram o acontecimento. E houve nessa altura, logo em 38, ou pouco tempo depois, um bispo escocês, que disse uma coisa que se revelou profética. Ele disse que o mundo vai nos imitar. The world will be shamed. Toda a gente vai ficar envergonhado e terá que fazer a mesma coisa que nós. E foi o que aconteceu. Mas
José Maria Pimentel
isso é muito engraçado porque mostra que a história e o caminho do progresso é tortuoso muitas vezes. E ali houve um fenómeno, ou por outra, havia uma decisão que moralmente era inegablemente correta, que se vestiu com uma roupagem de benefício econômico que na prática não existia, ou por outra, não existia no curto prazo. A longo prazo existia, hoje em dia é evidente. Curto, médio prazo. Exatamente. Porque a própria inovação das economias, uma economia para crescer tem que inovar e a inovação é completamente incompatível com a escravidão. Mas, no curto-médio prazo, acabou por não se revelar a verdade. Ou seja, a produtividade diminuiu no imediato depois da abolição da escravidão. Portanto, aquela roupagem económica que, à partida, não teria sido necessária, mas na prática foi, porque por caso contrário provavelmente não teria tido o rumo que teve, acabou por ruir, mas entretanto o fenómeno já tinha passado e ficou o que
João Pedro Marques
é. Exatamente. Foi da bola de neve em movimento. Exatamente. E depois era impossível pará-la, ainda que se soubesse que as razões económicas que tinham estado na origem da explosão e do arranque, do take-off, não se tinham confirmado. Também é verdade que a produção depois repegou, adiante na Jamaica, repegou, mas repegou também à custa de uma coisa que nós vivemos atualmente e vemos muitas vezes no mundo económico, que é de chamar trabalhadores livres, mas de zonas muito pauparizadas e que vêm ganhar uma miséria. As Reclâneas inglesas deitaram a mão nisso, madeirenses, por exemplo, foram imensos madeirenses para as Américas nessa altura, aceitando trabalhar em condições muito difíceis para baixar os salários, puxar os salários para baixo e, de facto, assim a coisa reclou. E
José Maria Pimentel
houve, em muitos sítios, houve a substituição de escravidão por uma aparência de trabalho por conta de outrem, mas que na prática era em condições... Próximas da escravidão. Exatamente, aconteceu em vários sítios. Aliás, há o caso que eu me lembrei a preparar esta gravação do romance do Miguel Sousa Tavares, do Equador, que é sobre o caso de São Tomé, numa altura em que a escravidão já estava abolida, mas o que continuava a haver no fundo não era muito longe da escravidão. Depois aquilo também tinha alguma, pelo menos, alguma hipocrisia do lado britânico, porque lá estava para tirar um benefício económico, estava a tentar que se fizesse lá aquilo que eles próprios não faziam noutros locais, que é sempre o problema disto, mas é... Isto para dizer que a escravidão, ao ser abolida, isso nem sempre significa que a situação passa a ser... Surgem outras formas de expulsação. Até aos dias de hoje. Exatamente, até aos dias de hoje. E, aliás, eu tentava me lembrar há pouco, às vezes a pessoa pode se perguntar para que é que serve estudar histórias, para que é que serve olhar para o passado. E o grande benefício é a pessoa reanalisar o presente. Sim, exatamente. É um instrumento para o presente. É o grande benefício da história. Por vezes não é óbvio, por vezes pode ser simplesmente alimentar uma curiosidade que a pessoa tem. Mas neste caso, por exemplo, se a pessoa olhar para trás, aquilo que falávamos há pouco, e perceber que nos séculos XV, XVI, XVII, toda a gente praticamente sem exceção, mesmo aqueles a quem faziam o fenómeno racionalizavam a escravidão, percebe-se porque é que eles o faziam, porque eles achavam que o mundo ruiria se deixasse... As colónias americanas. Exatamente, se deixasse haver... A vários níveis o mundo ruiria e, portanto, era melhor um mundo mau do que um mundo nenhum. No entanto, veio-se a revelar que, pelo menos a prazo, o mundo não ruiu com a abolição da escravidão. Há muitas coisas que nós hoje em dia racionalizamos, e eu acho que é impossível viver sem racionalizar algumas coisas, a pessoa fica paralisada, tanto individualmente como sociedade. E uma delas é exatamente a questão das condições de trabalho. É evidente, só o tópico é que acha que é possível, no constelar dos dedos, mudar em todo o mundo esses casos que existem. Mas é evidente que também é preciso fazer alguma coisa em relação a eles. O ponto de equilíbrio é que é difícil. Quando a pessoa compra um telemóvel, por exemplo, que... E há imensos casos, hoje em dia, estou a dar um exemplo fácil, é uma peça de roupa, e se prova que aquilo foi... E a pessoa sabe ou tem noção de que aquilo foi produzido, se não com trabalho forçado, pelo menos com trabalho muito precário, pois é difícil tomar uma decisão em relação a que a pessoa faz e não faz.
João Pedro Marques
E sabe uma coisa engraçada? Esse tipo de dilema, de problemática e de dilema, também se pôs nesta época, nos anos 40, em 1840. Já alguma vez ouviu falar no sugar bill? Não. Aprovado nessa altura no Parlamento Inglês. Tem que ver com isso que estamos a falar, que é o seguinte, os abolicionistas acabaram com a escravidão, ingleses, acabaram com a escravidão nas suas colónias nos anos 30, libertaram mais de 800 mil escravos, deram minimização aos seus proprietários, que equivalia a quase 50% do orçamento do Estado. É uma coisa, 20 milhões de libras, uma coisa inacreditável. Bom, na expectativa de que a produção se subisse por aí acima. Não aconteceu nada e tal. E quando chega a meados dos anos 40, há aqui um problema sério, que é o seguinte, o açúcar que vem da Jamaica, das Guianas, etc., vem a preços muito mais elevados do que o açúcar que chega vindo do Brasil ou de Cuba. E como é que faz o governo inglês? Protege aquele açúcar das suas colónias, lançando taxas sobre os outros. Mas por isso é que há um problema, para um governo liberal isto é legítimo. E então há ali uma disputa enorme, em interior, o que é que nós fazemos perante esta situação? Então resolvem, de facto, deixar de proteger o açúcar interno. E aprovam o Sugar Bill, quer dizer, que corta as taxas que se lançavam sobre o açúcar de produção estrangeira. Os abolicionistas de raiz fizeram uma gritaria inacreditável. Mas o governo inglês, que tem lá muitos abolicionistas, achou que o interesse do consumidor local era esse. Portanto, tomaram uma medida que no fundo ia beneficiar os Estados escravocratas do Brasil e a colónia, ainda a colónia espanhola, de Cuba, mas que para proteger o cidadão inglês não havia outro remédio. Portanto, vive-se aqui… Os pontos de equilíbrio, os dilemas e como se solucionam são sempre coisas… São dilemas morais tramados. Tramados.
José Maria Pimentel
E mesmo do ponto de vista do consumidor britânico, é evidente que essa era a decisão acertada. Mas mesmo do ponto de vista dos escravizados, Não é certo qual seria a melhor, porque mesmo do ponto de vista deles, em que medida é que deixar de comprar produtos de lá vai beneficiar aqueles que estão a ser escravizados? Pois, são dilemas terríveis. É muito difícil, e mesmo em relação a economias emergentes é essa a questão, o que é que a pessoa faz? Nós sabemos que um determinado produto está a ser produzido com trabalho precário, mas se os países ocidentais deixarem de comprar de lá, aquelas pessoas vão ficar desempregadas. Ou seja, é um dilema muito difícil. É um dilema difícil, como todos os dilemas, não tem uma resposta certa ou óbvia e que a pessoa pode ficar mais esclarecido fazendo paralelos com isto. Mas voltando àquilo que falávamos há pouco, do início do movimento abolicionista, que eu acho interessante para comparar com o caso português. Eu partilho dessa visão de que, como falávamos há pouco, de que houve ali, no fundo, o casamento entre um imperativo moral e um imperativo económico, ou pelo menos aquilo que se queria ser um imperativo económico, que é, na maior parte deste movimento, o que acontece. Mas com algumas nuances. O imperativo moral vinha do iluminismo, o imperativo económico, a minha intuição é que também tem alguma coisa a ver com, lá está, a repartição de forças e o facto de, entre as elites britânicas, haver provavelmente uma sobrerepresentação de pessoas a quem o esclavagismo não dizia especialmente. Ou seja, os principais benefícios beneficiários do esclavagismo estavam nas colónias, estavam se calhar no mundo rural e não tinham provavelmente o peso político... Não é que não tivessem peso político, daí não teria sido nada fácil, mas porventura terão ficado aquém do peso político, não só da população urbana, como das elites ilustradas, chamemos-lhes assim, que depois acabaram por fazer aquilo passar. Ou por outras palavras, esta nuance da representação política das várias vontades também é capaz de ter tido alguma influência, não
José Maria Pimentel
é?
João Pedro Marques
Bastante. A lei que acaba com o tráfico de escravos, as várias leis, porque são várias que são aprovadas entre 1805 e 1807, no caso em inglês, que acabam com o tráfico de escravos, passam por razões que têm a ver também com o contexto de guerra que se vivia na altura, não é? A guerra contra o Leão Bonaparte, por exemplo. E há ali várias forças em jogo, muitas delas estratégicas. Mas a lei que põe fim à escravidão, a lei de 1933, passa porque, também passa porque, ali é uma coisa que já vem de trás, mas também passa porque em 1930 há uma reforma do Parlamento inglês. Até então não teria sido possível porque a nobreza terratenente estava muito representada no Parlamento e a nobreza terratenente tinha medo de mexer no problema da propriedade. Os escravos, como bem não esquecer que era uma forma de propriedade. Propriedade dos plantadores das colónias, porque tinha medo que isso viesse a ter repercussões na sua própria propriedade em Inglaterra. E, portanto, fez sempre ali... No tempo do Wellington e tal, quando o Wellington fez sempre ali e o Wellington estava no governo, uma frente contra o avanço dessas medidas.
José Maria Pimentel
Ou seja, achavam que podia ser um precursor de limitação à própria propriedade deles. E o precedente que havia
João Pedro Marques
depois por refletir. Isto mudou quando a composição do parlamento inglês mudou. Se não me engano, nas eleições de 32 mudou a composição do parlamento e, portanto, houve muita gente. Aliás, as próprias eleições os abolicionistas exigiam que os candidatos dissessem à partida qual seria a sua posição futura perante esse problema, compromete-se com os eleitores. Claro. Assumidamente, é um compromisso. E portanto, mudou a composição do Parlamento e foi isso que permitiu que a lei fosse aprovada.
José Maria Pimentel
E essa nobreza mais rural, digamos assim, mais do countryside inglês, também tinha lá próprias interesses e também tinha lá próprias posição económica às colónias. Também, em muitos casos, sim. Minha intuição é essa, é que tinham menos, ao contrário, tinham mais posição económica essas colónias, porque lá está, tinham estado na origem do colonialismo, dos descobrimentos, no caso inglês mais à frente, do que a população urbana mais académica, digamos assim, portanto com menos interesses aí, porque o lado dos interesses está sempre presente, o lado dos interesses de cada um. E isso leva-nos ao caso de Portugal, que é interessante. Portugal tem uma série de particularidades. Formalmente, como vem referindo no seu livro, foi o primeiro país a abolir, através dos alvarás do Marquês de Pombal. Mas que isso foi apenas formal, até foi muito cedo, foi na década de 70. Aqui para Portugal não foi formal, acabou mesmo. Pois, em Portugal acabou, mas já havia muito pouco. Sempre foi, muito pouco. Sim, quase desde o início, o que também ajuda a explicar a
João Pedro Marques
diferença. Não, mas na plantação, não é? Na economia de plantação tropical. Claro, foi tudo para
José Maria Pimentel
as colónias. Ou seja, isto para dizer que teve pouco impacto. Depois foi Muito por pressão inglesa, como o resto dos outros países. Muito por pressão inglesa, a abolição do tráfico de escravos. A abolição da escravidão, não. Pois, há uma nuância entre as duas coisas, exatamente. Porque, repara, primeiro foi a abolição do tráfico e depois a escravidão. Porque o tráfico
João Pedro Marques
é um problema internacional. Claro. Atravessa o Sul Atlântico, portanto é um problema. E mais, Portugal estava obrigado, já de acordo com a Inglaterra, no Tratado de 1810, a certo tipo de coisas. Tinha contraído uma série de obrigações relativamente a esse problema. E, portanto, a Inglaterra teve ali uma alavanca para exercer pressão enorme, enorme pressão, que depois levou inclusive a que a Inglaterra tivesse legislado para Portugal. O chamado Bill de Palmerston, os ingleses, como Portugal não acede a assinar um contrato, assinar um tratado, desculpe, acabam por ser, o Parlamento Inglês legisla, diz, autoriza a Royal Navy a apresar navios portugueses com escravos ou preparados para receber escravos. Isto é uma coisa ao nível do ultimato. Exato. Depois do final do século há um levantamento aqui de brigos nacionais inflamados, já que a gente quer declarar a guerra em Inglaterra e por aí fora. Agora, no que diz respeito à abolição da escravidão, não, a Inglaterra já não tem nenhum compromisso. Portugal não se colocou numa posição de obrigatoriedade, não houve nenhuma promessa relativa, É um problema puramente interno. A Inglaterra aconselha, faz, enfim, sugere, faz, tem lá o consul inglês, por exemplo, em Cabo Verde, faz uns relatórios. Mas, Quer dizer, a Inglaterra já não tem meios para oporcionar diretamente Portugal para abolir a escravidão. Aqui, no que diz respeito à abolição da escravidão, é uma questão puramente,
José Maria Pimentel
substancialmente interna. Mas não tem meios ou não tem interesse em fazê-lo?
João Pedro Marques
Não, interesse tem. Interesse
José Maria Pimentel
tem, não é? Porque é concorrência deslegal em termos de comércio, não é aquilo que falávamos há pouco? Sim, interesse tem, e até por razões humanitárias e tudo mais, e políticas,
João Pedro Marques
interesse tem, mas não tem como. É um problema do interior de Portugal, é um problema das colónias portuguesas. Mas o facto de… o que eu não estou a perceber é
José Maria Pimentel
o facto de ele ser... Por outras palavras, porquê que a Inglaterra tem menos com que pressionar Portugal no caso da abolição da escravidão do que tinha no caso da abolição do tráfico?
João Pedro Marques
Porque Portugal prometeu que iria abolir. Em 1810 assinou o mesmo tratado, que é o Tratado de Comércio, famoso Tratado de Comércio, tão lesivo para os interesses portugueses, 1810, que tinha uma cláusula pela qual o rei, o regente, na altura, virá a ser D. João VI, se comprometia a abolir
José Maria Pimentel
a... Ah, pelo facto de haver um tratado assinado,
João Pedro Marques
ok. É um tratado e depois, em Viena, em 1815, Portugal voltou a comprometer-se, comprometeu-se sucessivamente a abolir e prometendo que assinaria um tratado com a Inglaterra para esse fim E no que diz respeito à abolição da escravidão, Portugal não tinha nenhum compromisso internacional. Ok,
José Maria Pimentel
eu já estou a perceber o que o João Pedro está a dizer, a questão do tráfico de escravos é uma questão multilateral e a questão da escravidão é no máximo uma questão bilateral. No máximo é uma questão bilateral entre Portugal e Inglaterra, mas não... Exato. A Inglaterra interessaria que Portugal abolisse a escravidão. Nas colónias que, por exemplo, lá está, estão a exportar açúcar para a Inglaterra e a fazer concorrência desleal com outras colónias inglesas ou com as colónias, no caso americana, mas só de parte da América. Mas não havia um interesse multilateral, tirando, obviamente, o interesse humanitário na abolição da escravidão. Mas pode haver
João Pedro Marques
interesse e não haver elementos e razões, do ponto de vista até jurídico e político, para exigir pressão e uma pressão séria. De facto, a Inglaterra, no caso da abolição da escravidão, reconhece que é um problema interno do Império Português. O problema anteriormente do tráfico bom atravessa o Sul Atlântico. Quem é que manda no Atlântico? Claro. Sim,
José Maria Pimentel
está assim no mar internacional.
João Pedro Marques
E há compromissos assumidos por Portugal relativamente a isso, quanto à abolição da escravidão, assunto puramente
José Maria Pimentel
interno. Claro, podiam ter assumido compromissos. Elas estão no âmbito dos direitos humanos,
João Pedro Marques
mas isso foi muito tempo ainda antes da… Mas é que quando os ingleses obtiveram promessas e compromissos da parte de Portugal, que foi em 1807, materializadas no tratado, que era para ser assinada em 1809, mas depois por questões várias acabou por ser assinada em 1810, o problema da poluição das escravidão não se punha ainda para os ingleses. Era só o problema do tráfico de escravos, que o senhor acabou de abolir em 1807. E, portanto, foi essa parte que ficou consignada. Os ingleses se pressionaram fundamentalmente sobre isso. Depois também houve outro tipo de pressões sobre o problema da escravidão, mas já não por via oficial. Foi como quando o Livingstone, por exemplo, começou a atravessar a África de um lado para o outro e depois começou a fazer conferências sobre o que era, o que se passava lá no interior da África e o papel dos portugueses como promotores da escravidão,
José Maria Pimentel
não é? E aí começavam a surgir pressões de outros órgãos. Claro. Aí já estamos quase nos primórdios da Corrida África, exatamente, que foi mais na segunda metade do século. Mas para terminar o caso português, há aqui duas razões para o nosso atraso, digamos assim, na irrelutância e na abolição do tráfico. Uma delas, obviamente, tem que ver com algum atraso civilizacional, ou seja, com o facto de as elites serem menos ilustradas, para usar este termo aqui em Portugal, mas também, obviamente, ao lado dos... Menos ilustradas? Ao outro lado? Do que a Inglaterra? Ah, acha? Eu diria que sim, tendo em conta que não fomos nós que contribuímos não só para o movimento que teve por trás da abolição da escravidão, mas para o... Desde o iluminismo até o liberalismo no século... No início do século XIX, mas pode me refutar isso perfeitamente. Estou a refutar? Estou a refutar?
João Pedro Marques
Não, quero é que repare.
José Maria Pimentel
Eu não sou nada aquele tipo de pessoa que gosta de menorizar a nossa história, mas, neste caso, parece-me evidente. Não, a
João Pedro Marques
sério, não se trata de menorizar, nem eu estou aqui naquele papel do nacionalista, coisa que quer defender os verboríos e das nossas quinas. Não, não é isso. Eu, antes de me dedicar ao estudo desta problemática, e do século XIX, sabia pouco de tudo isto. História Contemporânea de Portugal foi mesmo a pior nota que eu tive na faculdade. A sério? A sério. Mas quando fui para o centro de estudos africanos e asiáticos, acabei por ter que estudar umas coisas da história contemporânea, século XIX, interessei-me por esta questão e eu não percebia nada disto e isso era uma enorme confusão, porque Cada uma daquelas pessoas tinha três e quatro nomes, não é? Era o conde Vila Flor, mas depois era o do Terceiro e depois tinha o nome próprio dele.
José Maria Pimentel
O Sada Bandeira tem o nome enorme. Exatamente.
João Pedro Marques
O Sada Bandeira, que depois era Fiscondo, depois era Marquês. Era uma baralhada que ninguém se entendia. Mas a minha, Comecei a conhecer isto muito mais a fundo e muito melhor quando comecei a lê-los. Quando comecei a ler os jornais... Da época que li massivamente, não é? Percorri cronologicamente tudo. E Depois quando comecei a ler os debates parlamentares, e quando comecei a ler os debates parlamentares eu fiquei com uma admiração extraordinária para estas pessoas. Não tem qualquer semelhança com o que é hoje em dia. Eram tipos de uma altíssima caveira. Altíssima caveira. Um duque de Palmela, por exemplo. Ou um Rodrigo Afonso. Eram homens cultos. Muito sabedoras. Não acho que ficassem atrás dos ingleses. Tinham relações, aliás, internacionais enormes. Se calhar o problema até é
José Maria Pimentel
outro e que tinha que ver com o que eu ia dizer a seguir, mas é interessante darmos esta conversa. Porque o nosso problema... Diz-se muitas vezes, e no fundo era isso que eu estava aqui a transparecer, que há uma crítica comum que dizia que o problema de Portugal está nas elites. E, na verdade, eu não concordo com essa crítica, embora o que eu estava a dizer há pouco, no fundo, refletisse essa perceção. Aquilo que eu acho ser o problema em Portugal, e era um problema que era muito visível nessa altura, no início do século XIX e quando começa, e no início do liberalismo em Portugal, não é tanto das elites do topo que sempre estiveram mais ou menos ilustradas, para usar essa palavra de novo, mas sim numa falta de respaldo, depois numa espécie de uma sociedade civil, que nunca era obviamente transversal naquela época, mas que no fundo era o que permitia que houvesse democracia. Na altura, o João Pessoa sabe isso muito melhor do que eu. Aliás, até lido isso na origem que eu não fiz. Estou de acordo. Era muito falado na altura, entre as... Eles debatiam muito o facto de, em Portugal, não ser possível, do ponto de vista deles, construir uma democracia à inglesa ou mesmo à francesa porque não havia... Não havia analfabetismo emgraçado, etc. O que também era uma
João Pedro Marques
desculpa conveniente, mas é um facto que… Estou de acordo, estou de acordo. Agora, as elites, lá mesmo a Nata, eram tipos de alto valor. Claro que as elites depende do
José Maria Pimentel
que a pessoa… de como é que a pessoa define, no sentido mais lato, implica qualquer pessoa envolvida no… Sim, eu estava a pensar nas elites políticas,
João Pedro Marques
naqueles que geravam, no fundo, a
José Maria Pimentel
expressão política.
João Pedro Marques
Parlamentares, claro. Os parlamentares. A gente estava nas cortes, de uma maneira geral, que liam os ingleses, eram tipos informados. O Moraes Charmento, por exemplo, Alexandre Moraes Charmento, estava perfeitamente a par. Lia o que se passava lá, estava por dentro.
José Maria Pimentel
E até é curioso porque a causalidade é a inversa. O estímulo para... Para essa... O incentivo para levar por diante determinadas ideias mais progressistas, digamos assim, não vinha debaixo de uma espécie de pressão social para que elas surgissem, mas da inspiração de um estrangeiro. Exatamente. E
João Pedro Marques
da forma como ecoava aqui das nossas elites e como elas procuravam adaptá-las às nossas circunstâncias. Pois, um dos problemas do senador Bandeira, por exemplo, que no fundo é o grande, quase que o único, é a força de expressão, mas aquele que teve, à maneira inglesa, com zelo, atuante, com pressão, com atividade, com iniciativas parlamentares e tal, é sobretudo o Sá da Bandeira, o nosso abolicionista. Teve sempre uma grande dificuldade porque o que existia depois por baixo dele mesmo no parlamento era ou não adesão, ou não compreensão, ou resistência.
José Maria Pimentel
E ainda na sociedade civil ele lida. Claro. E indiferença também, porque há muitos casos.
João Pedro Marques
Era uma questão que lhe interessava. Claro. Estava longe ainda por cima. Longe. Sempre esteve longe, porque isso era uma das coisas que é uma ideia sempre, desde o século XVIII e do século final.
José Maria Pimentel
Ou até antes, provavelmente.
João Pedro Marques
Estava longe, porque a ideia de que Lisboa, até quando se falou agora do memorial, Lisboa é grande capital no tráfico negreiro. Quer dizer, o tráfico negreiro português, quer dizer, Lisboa tem algum papel no tráfico inicial, mas quando o tráfico negreiro se converte numa coisa de facto de grande dimensão, que é a partir dos meados do século XVII, depois no século XVIII e depois no século XIX. Lisboa tem um papel diminuto ou nenhum, porque todo esse tráfico que se faz entre a costa da África e o Brasil é negociado, é feito, os navios, os transportadores, é brasileiro, e tudo isso são iniciativas do Brasil, de São Salvador, do Rio de Janeiro, Pernambuco, etc. Com a Angola, com a Holanda, com a Costa da Mina, a Lisboa não é tida nem achada. Aquela ideia que ensinam na escola do tráfico triangular, isso é ficcional, isso aplica-se ao caso inglês ou ao caso francês. Ao caso português, Muito pouco. É um tráfico linear. Brasil-Angola, Brasil quase todo o ambiente. Lisboa controlava a distância até à independência do Brasil. Controlava a distância tentando impor umas regras que não eram cumpridas. Ou que se fossem muito coisas, os brasileiros, logo, vão dar uma volta. Quando, por exemplo, os portugueses estabelecem uma ligação comercial, os portugueses do Brasil estabelecem uma ligação comercial com São João Batista, aquilo que se chamava São João Batista da Judá, no Golfo de Guiné, e o Idá, toda aquela zona, tudo o que percebe daquela zona, Nigéria, Gana, por aí. Isso aconteceu numa altura em que os holandeses ocuparam Angola e já tinham ocupado o Brasil e ocuparam Angola. Quando os ingleses foram expulsos de Angola, escrato-me a alongar aqui, porque as coisas não interessam nada, Quando foram expulsos de Angola, o poder central aqui em Lisboa disse aos comerciantes da Baía que agora podem voltar a comprar as cravas em Luanda e tal. E os tipos disseram que não, não estamos nada interessados nisso. Nós vendemos para a costa da mina tabaco de terceira qualidade, o chamado refugo, que os africanos adoravam. Aquele era envolvido em molassos e os africanos só queriam aquele, não queriam o de primeira qualidade. Queriam aquele. Portanto, uma coisa que para nós não tem, que é um subproduto para deitar fora, nós encontramos um escoador comercial para ali. Se não podemos continuar a fazer comércio para ali e comprar escravos a troco de tabaco de refugio, nós deixamos de produzir tabaco. O rei teve que meter a viola no saco e deixar que aquele negócio continuasse à revelia dos interesses da Coroa. Portanto, o poder de intervenção de Lisboa sobre esses circuitos era escassíssimo.
José Maria Pimentel
Era muito lógico, claro. Aliás, como se viu em outros fenómenos, como o ouro, por exemplo, se perdia um porcentagem. Escassíssimo. Sim. Aliás, dava
João Pedro Marques
direito, por exemplo, a fazer contrabando. Se a gente estava todo interessado a ir negociar a certas zonas, por exemplo, a ajudar, para além do interesse do tabaco, era o interesse do contrabando, porque como havia lá comerciantes franceses, ingleses ou holandesas, dava a possibilidade de promotar coisas à revelia das taxas que se pagavam à coroa. Por isso é que esses circuitos comerciais... E não era possível acabar com eles porque, de facto, imediatamente retaliavam os produtores e os comerciantes. Ah, não é? Não podemos ir ali? Então está bem, não fazemos mais. Não há mais tabaco.
José Maria Pimentel
Isso é algo que muitas vezes Não se tem noção, não é? Que com o precário era o controlo
João Pedro Marques
da metrópole. Muito precário. Tentavam, de facto, ajustar e tal, aconchegar, tentar convencer a ir por Limas. Pouco
José Maria Pimentel
mais. Claro, estava muito longe. Pouco mais.
João Pedro Marques
Aqui há, não sei, há uns dois anos, talvez falou-se muito aí na imprensa, de umas coleiras que se encontraram num navio naufragado, umas coleiras para escravos. Aquilo foi qualquer coisa de benevolente. Aquelas coleiras o que eram? Eram formas de tentativa de substituição da marca na pele com ferro em brasa, que era uma coisa aterradora, não é? Então, por razões humanitárias, no princípio do século XIX, o poder central proibiu que se marcassem os escravos dessa forma desumana e que substituíssem essas marcas por umas coleiras, onde estava o nome do proprietário, da pessoa que tinha comprado aqueles escravos. Só que isso esteve em vigor cinco ou seis anos, muito pouco tempo, porque dava direito a todas as estraforíces. O escravo morria. O dono do escravo, imagino que o dono do escravo era o comandante do navio. Tirava. Substituía a coleira por um escravo bom. E dizia que o escravo morto era propriedade de outra pessoa. E, portanto, isto deu origem a tantas aldarvizes que o poder central teve que meter a sua medida humanitária no bolso e reverter para as formas antigas. Claro, faz
José Maria Pimentel
sentido.
José Maria Pimentel
E a lógica comercial por trás, a lógica da metrópole para essa medida, mais ou menos incontestável. Claro. Coisa que faz todo sentido. Era isso que há pouco falávamos a propósito
João Pedro Marques
do macro e do micro. Sim. Está a ver? Às vezes quando se olha de uma forma macro, a pessoa perde uma série de nuances. Claro que sim, claro. O meu
José Maria Pimentel
ponto de vista macro há pouco é por uma lógica que eu acho ter um grande poder explicativo, que é a lógica do jogo de forças, que estava, por exemplo, presente naquilo que falávamos ainda há uns minutos, do facto de não haver sociedade civil em Portugal e, portanto, por muito que houvesse algumas pessoas ilustradas que queriam fazer avançar determinados movimentos progressistas, o facto de aquilo não ter um respaldo da sociedade civil fazia com que eles não...
João Pedro Marques
Sim, ou que fosse muito lento.
José Maria Pimentel
Exatamente. E no fundo é isso que acontece e o facto de ele ter... A maneira como eu vejo as coisas é que, em Inglaterra, por exemplo, o abolicionismo não foi uma causa direta do esclarecimento da população por si só, mas foi a junção de boas ideias e a necessidade de as levar por diante e a organização das pessoas que levou a que se construísse uma força com um número suficientemente grande de pessoas e com pessoas influentes que levasse o movimento por diante e não apenas as ideias mais progressistas em relação à abolição da escravidão, caso contrário,
João Pedro Marques
isso teria sido suficiente em Portugal também. Eu aí não estou inteiramente de acordo consigo, porque a Inglaterra é mesmo o único... Depois, no final do século, no Brasil também, mas a Inglaterra é o único sítio onde o abolicionismo É um movimento de massas. É o primeiro grande campanha de propaganda é campanha contra a escravidão. Mas é isso que eu
José Maria Pimentel
estou a dizer, exatamente. Ou seja, forma-se
João Pedro Marques
um grupo que depois vai lastrando... Mas É logo de início, porque a igreja daí tem um papel central. É logo de início de massas, é? É. Curioso, pensei que tivesse começado... Ou competições assinadas por milhares de pessoas logo desde o início. Manchester, por exemplo, é um movimento de massas desde o início, estimulado pelos Quakers, por gente de Quaker que depois está ligada à finan�a, como por exemplo os Barclays, os Lloyds, que depois tornam origem dos bancos, e que promovem esse tipo de coisas, gastam dinheiro nesse tipo de coisas, criam jornais, tomam iniciativas, fazem… fabricantes, Wedgewood, se não me engano, já não me lembro exatamente do nome, que fazem louças alusivas à escravidão, porcelana, emblemas, selos, meias, roupas… Quer dizer, é uma… Uma campanha política… A primeira grande campanha, exatamente, é essa. Em Inglaterra, nos Estados Unidos, isso pega muito menos. E depois virá a haver um movimento de massas semelhante ao inglês no Brasil no final do século XIX quando a escravidão é abolida. Mas até então tinha sido caso único porque em França, em Espanha, em Portugal é um movimento de gabinetes. De cima para baixo? De cima para baixo, inteiramente de cima para baixo, uma coisa de gabinetes. Há pouco eu dizia que a população exige que os candidatos às eleições parlamentares se comprometam formalmente com a sua posição relativamente à escravidão. Isso é até uma exigência do povo.
José Maria Pimentel
Isso é interessante, eu não tinha noção que fosse um fenómeno... Eu tinha noção que ele se tinha tornado um fenómeno de massas, mas não que tinha sido um fenómeno de massas de imediato. Isso é interessante, no fundo revela que havia ali uma vontade latente, já, da população, que não estava ainda a ser refletida... Politicamente. Politicamente, que é O que é interessante. E aquilo que eu gostava de terminar, aquilo que eu ia falar há pouco, a propósito das condições dos escravos, que eu acho que temos que passar por isso, porque é essencial a pessoa ter noção disso para perceber o fenómeno de que se está a falar. No seu livro vinha um número que eu achei impressionante. Ele chegou impressionante quase por duas razões contraditórias, que tinha que ver com, são obviamente estimativas, mas a percentagem dos escravos recolhidos no interior da África, ou até na contra-costa da África, isto é, na costa este, que depois...
João Pedro Marques
Chegam à América. Chegam à América e... Sobrevivem. Sobrevivem
José Maria Pimentel
e era 23 ou 28... 28 em 100. 28 em 100. O que é um número incrível, não é? Ser de um
João Pedro Marques
quarto. Isto foi uma estimativa feita por um historiador americano muito bom chamado Joseph Miller. Os únicos dados certos, ou enfim, muito fiáveis, são os que dizem respeito ao transporte, ao tráfico, porque os navios têm um levantamento para as companhias de seguros e tudo mais, e depois os que entram lá, que pagam impostos nas Américas, e isso aí é mais ou menos o que se fala. O resto, aqueles que teriam morrido na altura da captura, em guerra no interior da África, os que tinham morrido até a chegada aos supermercados do interior, onde são vendidos, e depois no transporte até à costa.
José Maria Pimentel
E eles iam a pé, não era? Centenas de quilómetros. De Angola, não é? De Angola, que eram, em alguns casos, de Spandalunda e as nascentes dos Ambeze. E depois há aqui um parênteses rápido, é que Angola é muito maior do que parece nos mapas, por causa do Mercator, que é o mapa mais comum, que distorce o tamanho dos conteúdos. E Angola, aliás, é um exercício interessante a pessoa ver o tamanho real da África no globo terrestre, porque é significativamente maior do que parece. Um caminho do centro de África, ou no limite da contra-costa, a pé, até à costa ocidental, é uma coisa inconcebível.
João Pedro Marques
Inconcebível. Ah, mas depois foi feito, não é? Como? Depois foi feito pelos exploradores. Sim, mas em condições diferentes. Em condições diferentes, não é? Em condições diferentes. Mas, sim, porque ali aquilo era muito pernoso, não é? Aliás, morriam muitos por caminho. Sim, em grande parte, aliás, achei isso muito curioso. Mas isto é o caso de Angola, não é? Porque, em outros casos, a captura e a dente era mais próxima da costa.
José Maria Pimentel
Angola foi, do resto do país, de que... Pelo menos as estimativas que eu vi, isto até foi no outro livro que eu li aqui há uns tempos. E Angola isto é, aquilo que hoje em dia corresponde à Angola foi a zona da África de onde saíram mais escravos.
João Pedro Marques
Os grandes depósitos
José Maria Pimentel
portadores.
João Pedro Marques
E aquilo que viria a ser o grande depósito de escravos é uma coisa que pouca gente sabe. Muitas vezes pensamos que é o Brasil. Mas aquilo que viria a ser o grande depósito de escravos em toda a história desta escravatura atlântica, foram os Estados Unidos. Os Estados Unidos chegaram a ter perto de 4 milhões de escravos no século XIX, Porque começaram a fazer uma coisa que foi única, aquilo que os americanos chamavam de breeding, que é a criação interna de escravos, que só ali deu, porque todas as outras colónias os escravos tinham retração no que dizia respeito à reprodução biológica, o que se compreende, obviamente.
José Maria Pimentel
Porque, até, muitas famílias tinham sido separadas. Claro, evidente. Quem é que quer ter
João Pedro Marques
filhos que seguindo são
José Maria Pimentel
vendidos?
João Pedro Marques
Mas nos Estados Unidos, os Estados produtores, como por exemplo a Virgínia, produziu uns cravos para depois vender para o Deep South, para o Mississippi, da Louisiana, chegaram a ter perto de 4 milhões, por alturas da guerra da Seção tinham cerca de 4 milhões, porque foi também muito estimulado com a produção, com a invenção do cotton gene, aquele mecanismo que permite descaroçar o algodão, e depois com a procura do algodão por parte da Europa Industrial e do Norte Industrial, e os escravos que eram para aí 900 mil no final do século XVIII, chegaram a perto de 4 milhões 60, 70 anos depois.
José Maria Pimentel
Numeríquemente, como é que eles... Qual foi o
José Maria Pimentel
segredo
José Maria Pimentel
do sul dos Estados Unidos para conseguirem quadrar esse círculo, de conseguir que os escravos que lá estavam se reproduzissem. Eu já subi-se e já me esqueci. Não é que seja especialmente interessante, não é? Mas é, mas... Mas, quer dizer, eu acho que
João Pedro Marques
passava por darem-nos condições de reprodução e de relativo bem-estar.
José Maria Pimentel
Pois, exatamente.
João Pedro Marques
Relativo bem-estar. Aliás, isso é engraçado. Isso apanha-se num extraordinário romance que é A Cabana do Pai Tomás. Apanha-se isso. Quer dizer, o Pai Tomás é um homem que é bem tratado pelo seu Dodo original. Só que esse homem tem dívidas, tem ali uma dificuldade económica e o que é que faz? Vende
José Maria Pimentel
aquele escravo, independentemente de saber... Mas está, era aquilo que nós falávamos à propósito da antiguidade, não é? Exato. Ele podia ser até bem tratado, mas ele não deixava de ser
João Pedro Marques
propriedade. Vulnerável, aquilo que define a escravidão é de facto a posição de vulnerabilidade. Aquele homem é a propriedade de outra pessoa. E portanto, mesmo que tenha uma posição quase no topo e que seja muito bem tratada, de um momento para o outro aquilo pode ir embora. Ele pode ser vendido e pode ser vendido por situações muito penosas, como aconteceu
José Maria Pimentel
ao pai Tomás no romance. Exato. Foi o romance mais... Foi o livro mais vendido do século XIX, não é? Que é capaz de engracer. E agora acho que é... Acho que de sempre é o segundo livro mais vendido no século XIX. Ah é? Eu estava a pensar que era o primeiro. A Bíblia, pois, coloca sempre em primeiro lugar. Por muito que possa ter
João Pedro Marques
sido mais vendido do que... Mas romances, romances. Ah, romances, sim, sim. Acho que romances ainda é aquilo. O Lincoln dizia, meia a brincar, meia a sério, a Harriet Beecher Stowe. Também apanha isso, sim. Mas
José Maria Pimentel
diga, diga que eu... Que ela, a conhecida por causa dela, tinha a vida guerra... Há quem diga que essa frase é apócrifa. Pois, sim. Mas é boa, quer dizer, eu acho que a pessoa não se deve preocupar demasiado com quantos chafrás for boas. Claro. É como aquelas situações... Mas
João Pedro Marques
isto simboliza, de facto, o peso que aquilo teve.
José Maria Pimentel
Claro. E, no entanto, hoje é muito mal visto, por causa das palavras que são usadas e que lá está refletindo a realidade da época e, portanto, um romance que... É muito mal visto por quem? É mal visto pelos... Pelos politicamente corretos? Sim, pelos politicamente corretos e pelo movimento identitário que agora está ao longo dos Estados Unidos.
João Pedro Marques
Sim, e foi logo ali uma corrente que não gostou que a figura do pai Tomás fosse um negro passivo, compassivo.
José Maria Pimentel
Porque viram-no como correspondendo ao estereotipo do... Exatamente. E,
João Pedro Marques
portanto, o segundo romance que Eric Bidgerstow fez sobre isso, que é um romance que em Portugal foi pouco conhecido, o cabelo do Pai Tomás foi logo publicado cá, em Folhetim. Ah, é? Engraçado. Na Revolução de Setembro, que era um dos jornais mais importantes da época. Logo, passado um ano, no máximo, se não me engano, se chamava Cabeira do Tio Tomás, que é o título original. Uncle Tom's Cabin. É
José Maria Pimentel
engraçado, pois, exato, tem razão, é verdade. Depois é que ficou cristalizado como Pai Tomás.
João Pedro Marques
Mas o segundo romance que ela escreveu, que se chama Dread, já tem um outro tipo, o herói negro já é um outro tipo de homem, é um revoltado, é um homem que quer fomentar uma revolta escrava, que quer matar os brancos todos, por causa desta crítica que lhe foi feita logo de que simbolizava ali o escravo negro como um indivíduo amoroso, pacífico, passivo. Sempre houve esta questão, que hoje em dia se tem muito. Já havia naquela altura, no tempo da Guerra Civil. E gente a dizer que no fundo tudo aquilo tinha acontecido por causa dos negros que se tinham revoltado e que se tinham combatido. E que de facto combateram na Guerra Civil. Isto já é uma percepção antiga. E é engraçado ver que mesmo esta ideia, que no fundo foi a revolta dos escravos no Haiti que desencadeou tudo isto. É uma ideia que o Frederick Douglass, que é um ex-escravo, abolicionista americano e que vai ter um papel importante na América, foi desencantar quando esteve como representante oficial americano do Haiti. Ele estava a dizer, ah, espera aí lá, nós andamos aqui... Ah, mas que é... Os responsáveis por isto tudo são estes homens aqui do Haiti, eles é que fizeram uma revolta e tal, isto teve um peso determinante no que viria a acontecer. Eu não partilho nada dessa ideia. Acho que a revolta do Haiti foi de facto uma coisa... São domingos depois viria a ser o Haiti. Foi de facto uma coisa enorme, com consequências grandes e tal, mas o peso da revolta no Haiti foi muitas vezes contraproducente, foi no sentido contrário, foi aquilo que não deve ser feito. Até pelas implicações, há pouco falávamos de 80 mil brancos mortos. Toda a Europa ficou arrepiada com aquela situação. O que se queria era que se chegasse a uma libertação, mas de uma forma pacífica. Portanto, a revolta do Activo foi um desincentivador
José Maria Pimentel
das abolições, de um ponto de vista, e não um incentivador. Sim, no fundo, no movimento abolicionista, independentemente de nos poder parecer ao contrário, vendo agora esta distância, no movimento abolicionista aquilo não foi algo que, não seria algo que o fizesse avançar, mas assim algo que o faria recuar, até porque geraria entre os europeus receio de estar a abrir uma caixa de Pandora. Exatamente, e gerou. E, portanto, as pessoas falam, ah, não, mas aquilo os ingleses foram,
João Pedro Marques
naquela altura, ficaram com a coisa e a França foi forçada a abolir, pronto, está bem, mas quer dizer, o problema não são os ingleses e a França, quer dizer, todos os países aboliram. Onde é que está o peso da Revolução haitiana no caso da abolição portuguesa? Ou espanhola? Ou dinamarquesa? Ou sueca? Era um movimento muito maior, no fundo. Vinha
José Maria Pimentel
mais de trás e era muito mais abrangente do que simplesmente aquele fenómeno. Exatamente. O caso de… eu não queria terminar sem falar de uma questão que eu acho importante, que é o caso de… nós falámos no início do impacto da escravatura enquanto origem de parte do racismo contemporâneo, que sobretudo teve impacto ali na viragem do século, mas que por si só hoje em dia continua a ser um desafio social. Mas há outro efeito que eu acho igualmente importante, obviamente é um efeito menos visível na pele, mas é um efeito igualmente visível aos dias de hoje e com consequências tão más, que é o facto de estar ali muito da origem do subdesenvolvimento da África, que é um problema que persiste até hoje. Não há continente com um problema, mesmo a América Latina, é um continente que tem tido uma história de relativamente maior sucesso do que a África nas últimas décadas. A África é um problema de sempre. E grande parte desse problema tem a ver com a escravatura. É evidente que as instituições que existiam na altura... Este é um postulado seu? Como? É um postulado meu que eu vou explicar agora. Para ver se o João Pedro concorda que é possível que não. É evidente que as instituições que existiam na altura... Ou, por outro lado, é argumentável dizer que elas estavam atrasadas face às que existiam na Europa, na ordem de progresso que hoje em dia a pessoa entende, que não é necessariamente a quanto estava. E a escravatura sobre isso criou uma série de efeitos perniciosos. Primeiro criou estados esclavagistas. O Congo, por exemplo, foi o exemplo inicial. Já eram esclavagistas. Não, eles já eram esclavagistas, mas tornaram-se quase especializados no tráfico de escravos, que é diferente apesar de tudo, não é? E a lógica interna subverteu-se completamente e passou a haver quase uma especialização daquele continente na geração de escravos para comércio, de tal forma, este é um fenómeno curioso, que... Eu vi esta informação citada naquele livro que eu falava há pouco, que não sei se o João Pedro partilha, mas de que a escravidão no século XIX foi abolida, mas em África, pelo contrário, aumentou. Até em algum caso... Claro, claro. E porque lá está, porque havia uma indústria interna, uma especialização na geração de escravos, se eles não são comerciados, se eles não são exportados, passam a ser usados internamente. Até se foi um efeito. E a nível de instituições isto é devastador, não é? Porque estados que se tornam especializados na produção, na geração de escravos, não tem qualquer semente para um desenvolvimento sustentável. E depois outro tipo de efeitos. A população teve um impacto grande pelo tráfico de escravos, porque houve dezenas de milhões de pessoas que saíram da África, verdadeiramente da Inglaterra, como falávamos há pouco. Depois o tecido social do huihu foi desmembrado, houve famílias separadas. No seu livro, aliás, vem referido o facto de serem exportados, estava o erro, mais homens do que mulheres, não é? Ficavam até quase numa lógica de criação, não é? Das mulheres ficarem em África porque lá estavam à luz mais crianças e os homens, esses dinheiros. Portanto, a própria pirâmide demográfica fica completamente destrupada e tudo isso não é difícil, longe do meu ponto de vista, entender daí uma causalidade para o desenvolvimento do continente no geral, obviamente com uma série de matizes, há países como Botsuana, por exemplo, ou África do Sul, que são casos de exceção, mas o grosso da África subsariana tem um problema desenvolvimento aos dias de hoje e que parece pelo menos ter uma relação grande com o colonialismo na parte, sobretudo, da escravidão, embora fosse evidente que a escravidão já lá existia internamente. Pois, esse é um problema difícil de... E que
João Pedro Marques
não se compadece com uma resposta simples. A questão é altamente debatida, altamente politizada, altamente estudada e há opiniões para todos os gostos. Enfim, opiniões para todos os gostos é um bocadinho mal da de milha. Mas, quer dizer, houve gente que chamou a atenção, por exemplo, e a mim parece-me uma coisa importante, para o seguinte, o tráfico de escravos teve uma importância muito grande, mas tirando ali casos especiais, é um problema da orla costeira africana. Mas
José Maria Pimentel
eles vinham de dentro, não é? Eles vinham, era aquilo que falavam. No caso
João Pedro Marques
da Angola. Para a norte, menos. No caso da Angola, para a norte, muito menos. Mas, ainda que depois as ordens que confinavam com o mundo musulmano tivessem todo esse problema de exportação para o norte e para o leste. É difícil, houve zonas internas que não foram tocadas pelo tráfico de escravos. Sabe qual foi? Desculpa interrompê-lo. Diga. A zona, no
José Maria Pimentel
mapa que eu vi, aquele onde a Angola aparecia como o país onde tinham saído mais escravos, o espaço correspondente ao estado atual onde tinham saído menos escravos era o Botsuan, curiosamente, que é um dos países mais desenvolvidos de…
João Pedro Marques
Sim, mas… Isto não prova nada, obviamente, não é claro? Não. O problema aqui é o seguinte, quer dizer, por um lado nós tomamos o nosso padrão, nós tomamos o nosso estadio, não é? Como padrão do desenvolvimento. E o problema do desenvolvimento é um problema, por exemplo, importante para os economistas, mas para um historiador a coisa… por supor que é um desenvolvimento unilinear, é difícil. As várias regiões, as várias culturas têm histórias e têm caminhos e rotas diferentes. Mas, isso por um lado. Por outro lado, se nós pegarmos das zonas de chegada dos escravos, nós vemos que certas regiões que tiveram escravidão muito desenvolvida e séculos de escravidão, não estão todas
José Maria Pimentel
no mesmo plano.
João Pedro Marques
Há quem, por exemplo, as Caraíbas, que se falava há pouco, são particularmente reivindicativas, tradicionalmente reivindicativas. As Caraíbas tiveram uma exploração escravista acentuada nos séculos XVII, XVIII, XIX, mas houve outras regiões que tiveram, que não têm os problemas económicos que as Caraíbas têm. Portanto, há muitos outros fatores a entrar nesta história e a mim, pessoalmente, custa-me, ou melhor, a mim, pessoalmente, essa explicação pouco linear, tráfico sob desenvolvimento, isto causa aquilo, para mim não colhe. Não colhe. Há muitos outros elementos na história, há muitas outras variáveis a julgar aqui. Deixo-me fazer um paralelo, se calhar um bocadinho abusivo, mas que ilustra aquilo que eu quero dizer. Nós podemos olhar para a situação em que Portugal está hoje em dia e dizer que a culpa desta porcaria toda, porcaria em traspas, do nosso estado de debilidade económica e por aí fora, são as invasões francesas. As invasões francesas, os franceses vieram, arrasaram o país, roubaram imensa coisa e, sobretudo, fizeram com que o rei fosse para o Brasil. O Brasil com o rei lá, tudo não se independente, houve revoltas aqui por causa do Brasil estar independente, 30 anos de guerra civil, etc, etc, etc, por aí fora, até à troca...
José Maria Pimentel
Sim, conseguimos encontrar uma causalidade entre esse evento e... E podemos encontrar uma causalidade. Podemos, e outros, e outros. Não é?
João Pedro Marques
Agora, quer dizer, há muitos outros fatores aqui em jogo. E quando eu atribuo o estado em que certas partes da África estão atualmente ao tráfico de escravos, estou a passar por cima de muitos outros elementos que também desempenharam o seu papel.
José Maria Pimentel
Claro. Isso é evidente, eu acho importante esse aspecto. Uma coisa que eu procurei acentuar no
João Pedro Marques
meu livro foi que havia uma lógica econômica africana, que é muito diferente da nossa, e que essa lógica económica, entre aspas, havia uma racionalidade económica da parte de... Exatamente, em termos de economia política, da parte dos africanos, que os levava a produzir pessoas, produzir, entre aspas, também, para corresponder aos desejos daquele novo parceiro comercial que surgia ali. Quer dizer, não foram, o que eu quero dizer é que não foram meramente passivos, havia uma racionalidade naquela forma de comportamento. Agora, aquilo desembocou numa coisa perversa e sem saída, quando os europeus se retiraram do circuito, daquele circuito perverso, os africanos, como disse há pouco e muito bem, ficaram... Sobrabados com o mestério, com o excesso de... Exatamente, continuaram a produzir escravos, à cadência antiga, e de um momento para o outro tinham, e os grandes depósitos de escravos do final do século XIX são do centro de África, aplicados à cultura, porque tinham uma lógica de responder, o Miller utiliza mesmo a expressão que é que funcionou como injeção de capital. Se chegava aquela gente ali que queria pessoas, nós não queremos vender pessoas, mas para obtermos isso, nós especializamos-nos na produção de pessoas. Quer dizer, olhar para os africanos como parceiros passivos e vitimizados
José Maria Pimentel
é um erro. Mas isso é importante porque eu posso, eu admito que aquilo que eu estava a explicar há pouco possa ser interpretado como uma espécie de culpabilização da Europa e Portugal em particular nesse aspecto, que não é e eu nem acho que isso tenha grande interesse. Acho que esse tipo de revisitação da história para nos culpabilizar não tem nem interesse porque as decisões são tomadas, salvo em casos extremos, como o nazismo, por exemplo, que claramente é uma coisa que, no caso da Alemanha, força a que se pense sobre como redefinir o país depois daquele desastre. Mas, neste caso, havia um grande contexto histórico em que tudo isto surgiu e que era um contexto global ou pelo menos era um contexto do mundo europeu. Global, global. Global, no caso. Agora, isso não quer dizer, portanto, isto não tem por objetivo culpabilizar o Ocidente por aquilo. Agora, é um facto que eu valia um fenómeno e eu concordo, obviamente, que não é a única explicação e é uma tentação, se calhar, de economista estar à procura do... Não, mas sabe aquela coisa
João Pedro Marques
da história conjetural. Exatamente. O que é que seria a África se... Não se esqueça que a África já estava sujeita ao tráfico de escravos há séculos. Tráfico de escravos para o mundo muçulmano, desde o século 8. E já tinha o seu próprio esquema escravistas.
José Maria Pimentel
E não era desconhecida a África. A América era desconhecida, mas a África não era desconhecida.
João Pedro Marques
E os próprios africanos internamente produziam, entre aspas, criavam e vendiam escravos. Agora, nós podemos sempre pensar o que seria a África se não tivesse havido o tráfico de escravos? Não
José Maria Pimentel
sabemos, claro. Quem sabe? É evidente, claro. Mas também é a verdade que a África foi o país mais macerado pelo colonialismo. Foi durante séculos com o tráfico de escravos, depois do tráfico de escravos, aquilo que falámos há pouco da... Eu não chamo colonialismo a isso. Como?
João Pedro Marques
Eu não chamo. Colonialismo, para mim, é as relações de ocupação e de exploração que se desenvolvem no último terço do século XIX, com a ocupação dos espaços.
José Maria Pimentel
Até lá não era bem colonialismo porque era uma relação comercial. Sim, eu percebo, e faz sentido. É uma relação mutuamente benéfica por muito
João Pedro Marques
que o nosso país seja... O colonialismo já não, já foi uma coisa completamente desequilibrada, com ocupação militar, com assassina de povos inteiros. Mas,
José Maria Pimentel
no fundo, a lógica disto é que o colonialismo, aquilo que o João Pedro está a chamar colonialismo, eu concordo que é aquilo que depois surgiu com a corrida à África, também decorreu da forma que decorreu porque o continente já estava estragado, digamos assim, pelos eventos que se tinham passado nos séculos anteriores. Não sei, veja o caso da África do
João Pedro Marques
Sul. A África do Sul não tinha estado sujeita a essa sangria de tráfego.
José Maria Pimentel
E teve um destino diferente dos outros países, de facto.
João Pedro Marques
Também, sim. Mas tudo isto eu concordo
José Maria Pimentel
com o que diz, e acho que não... Mas
João Pedro Marques
repara, pega no caso de Moçambique. Moçambique só entrou no circuito de escravistas na parte final do século XVIII. Porque só então é que a procura era tanta que justificava... O processo de sair era mais caro e mais longo. Claro. Estava na outra costa. Exatamente, é que justificava ir lá buscar. Portanto,
José Maria Pimentel
não foi tão sangrado. Sim, e não é evidente que esteja necessariamente melhor do que o outro. Exatamente. Sim, concordo. Há muitos outros fatores em jogo. Sim, e assim, o raciocínio que eu estava a enunciar atrai-me. Eu acho que tem um poder explicativo razoável, mas não acho que tenha interesse nenhuma pessoa sobre simplificar explicações, porque não há... E sobretudo o João Pedro, obviamente, que tem estudado muito mais do que eu. Aquilo é um bocado o ponto de vista economista a tentar explicar o desenvolvimento daquele continente. Mas terminamos por aqui, acho que apesar de tudo conseguimos falar de uma série de coisas. Sim, foi um prazer, eu cá continuava.
José Maria Pimentel
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