#7 Carlos Quevedo - Religião - Cristianismo, Judaísmo, Islão

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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45°. Neste episódio estou à conversa com Carlos Quevedo, ou numa pronúncia mais adequada, Carlos Quevedo, visto que o convidado é um jornalista argentino a viver em Portugal há 40 anos. Carlos Quevedo é autor do programa E Deus Criou o Mundo na Antena 1, promove o diálogo inter-religioso e que recentemente deu origem a um livro, que foi precisamente o modo para a nossa conversa. No livro, o jornalista aborda as diferenças e semelhanças entre as três chamadas religiões abrahâmicas, judaísmo, cristianismo e islão. Anteriormente, Carlos Quevedo esteve ligado a alguns momentos marcantes do jornalismo português. Foi, por exemplo, um dos fundadores da revista Kappa, que marcou o final dos anos 90. Nesta conversa falámos da história, fé e práticas dos três credos, mas também do papel da religião, quer historicamente quer ainda hoje em dia. Aliás, num mundo hoje essencialmente laico, e por bons motivos, em que a religião passou praticamente a cingir-se à esfera da vida privada, pode perguntar-se que interesse tem em compreender este tema. A verdade é que não é possível compreender totalmente a história da humanidade, e da civilização ocidental em particular, a vida em sociedade, as várias culturas humanas, ou mesmo os dilemas do que é ser humano sem olhar para a resposta que as várias religiões tentaram dar. Um europeu e um português em particular, mesmo um como eu agnóstico, partilha inevitavelmente grande parte da chamada cultura judaico-cristã, católica, no caso, e se muitas crenças e práticas destas religiões nos parecem agenacrónicas, outros valores, e sobretudo as questões que são levantadas, mantêm-se inegavelmente atuais. Mas chega deste entroito, que não vos quero cansar, para ouvir uma conversa que é longa. A propósito, não temam, porque a vantagem do podcast é precisamente que pode ser ouvido um pouco de cada vez. Uma última nota apenas para realçar a simpatia do convidado, que alinhou na conversa e que não só me recebeu na própria casa, como insistiu que o tuteasse, como se diz em espanhol, isto é, que o tratasse por tu. Sem mais de longas, vamos então conversar com Carlos Quevedo. Carlos, bem-vindo. Obrigado por ter aceitado o convite. Obrigado, Leo. Eu estava a vir para cá, estava a pensar na nossa conversa e ocorreu-me, antes de começarmos a falar daquilo que nos traz aqui, que é o seu livro, ocorreu-me falar, era perder uma oportunidade, que a pessoa não tem todos os dias, de falar com um argentino que está radicado em Portugal, sobre esse facto, o que eu acho interessante. Eu acho sempre interessante, e já em episódios anteriores tenho falado disso, acho sempre interessante as questões culturais, das culturas diferentes entre diferentes países, por exemplo. E no caso, quer dizer, a Argentina e Portugal têm algumas parecenças, são ambos países latinos, são ambos países católicos e, portanto, e em que mesmo quem não é católico, e já vamos falar sobre isso, mas quem não... Mesmo quem não é católico tem obviamente essa matriz, não é? Em Portugal, uma pessoa pode ser ateia, mas tem essa matriz católica, mas de outro lado há diferenças, não é? Argentina é um país muito mais recente do que Portugal, é um país com uma história muito diferente e depois tem outras coisas interessantes, por exemplo, há um aspecto que eu acho que é pouco conhecido, que é que a Argentina, no início do século XX, era um bocado a coqueluche da economia mundial. Que é a que tem muita piada, era chamada o celeiro do mundo, se alguém lembra. E era quase como... O nível era um bocadinho diferente, mas é quase como a China é hoje ou como o Japão era nos anos 80. Era o país da grande economia emergente, depois teve uma série de problemas, de altos e baixos até aqui, mas tudo isto, quer dizer, por uma razão ou por outra, parece-me pouco provável que não tenha havido, quando viaste para Portugal, um choque cultural com a cultura de cá.
Carlos Quevedo
Sim e não. Para lá. Na Argentina, que era antes o virrenato do Rio de la Plata, até
José Maria Pimentel
1806,
Carlos Quevedo
era um lugar esquecido pela coroa espanhola porque não havia ouro. Descobriram que o ouro estava em Peru, os minerais em Bolívia. Então, desde o século XVII, foi abandonado, mais ou menos, o Vieira e o Reynat. E então muitos portugueses, uma imigração portuguesa que era já bastante fluida para o Brasil, depois foi ocupando também o Uruguai e a Argentina. E se pode dizer que quando a Argentina, na independência, no século XIX, 1810, já havia uma mix de nação com portugueses. Muitas palavras criolas argentinas, ou seja, argentinismo, muitos argentinismos vêm de palavras portuguesas. Ou seja, que há um grande clube, ou havia um grande clube, que era o Clube Lusitano, na Argentina, que é uma coisa monstruosa, enorme, ao redor do rio. Bom, a questão é que não me foi a lei a existência de Portugal. E na literatura também. Na minha adolescência, já sabia da existência de pessoas, de Queiroz e Camões. As três figuras que havia comprado a cultura argentina. Para mim, Portugal existia antes. Eu nunca imaginei que minha vida ia passar na Argentina. Cheguei aqui com 26 anos, agora já passaram os 60 e estou aqui. Meus grandes amigos são portugueses, minha vida é em Portugal. Acho que não houve uma adaptação à Portugal, mas houve, digamos, um acompanhamento do crescimento do Portugal. Quando eu cheguei em 1978, Lisboa era completamente diferente, Portugal era completamente diferente. Uma ressaca da revolução. Uma podia estacionar enunciado em frente à Brasileira sem problemas, não havia carros, não havia esses problemas de
José Maria Pimentel
trânsito. Muito diferente do atual. Bom, avancemos para o tema da religião que está relacionado com o seu livro, que é um livro muito interessante porque faz a comparação entre as três chamadas religiões abrahâmicas, porque tem Abraão como patriarca comum e esse é um tema, eu acho que o tema da religião era um tema que eu já queria trazer ao podcast há algum tempo porque eu acho um tema muito relevante e muito interessante mesmo para um agnóstico porque é essencial para perceber uma série de coisas, pelo menos por três coisas. Em primeiro lugar, estas religiões abrahâmicas refletem, são consequência do percurso que a civilização foi fazendo desde a Mesopotâmia até aquela data, até aquele período. E também ajudam a explicar muito do que veio a ocorrer a seguir, ou seja, ajudam obviamente a explicar muito da história do mundo ocidental, que muitas vezes se fez tendo como pano de fundo a religião, e até quando ela começou a perder protagonismo, até quando Nietzsche ditou que Deus tinha morrido, mesmo isso teve as suas consequências com o extremismo que existiu durante o século XX. Disse-te, em primeiro lugar. Em segundo lugar, a religião, a religião no geral, mas estas três religiões em particular, refletem muito daquilo que é o ser humano e muito daquilo que é ser humano. Há muitos dilemas morais, a questão da morte, a questão da relação entre as pessoas e a necessidade de estabelecer um tecido social, quer dizer, tudo isso são dilemas que existiram e existem e estão presentes na religião, depois podem estar mais ou menos bem resolvidos, mas estão lá. E em terceiro lugar, sem querer ser demasiado estruturado, mas isto era aquilo em que eu estava a pensar, Em terceiro lugar, a religião, embora tenha perdido muito terreno nos últimos anos, em parte pelo ateísmo, mas o ateísmo contemporâneo já vem desde o século XVIII, desde Voltaire e afins, mas até mais pelo aquilo que o Carlos chama, se há erro, o apataismo, que é mais passivo, o que é normal, que é no fundo não ter essa necessidade. Mas se é verdade que tem por aí desse terreno, também são verdade pelo menos duas coisas. Um, que não deixa de existir, ou seja, não deixam de existir crentes de livre vontade, não é? Não só por fenómenos familiares. E, por outro lado, a um nível mais micro, se é verdade que a religião tem vindo a perder aderentes, digamos assim, Também é verdade que se começa a haver em algumas bolsas um ressurgir de interesse de algumas pessoas para a religião, o que mostra que há alguma vitalidade ali, independentemente de se analisar cada religião em particular ou independentemente da pessoa sentir necessidade disso, mas mostra que há lá qualquer coisa. Ou seja, pelo menos estas três razões para mim são suficientes para ser um tema interessante. E o caso no livro compara as três religiões, no fundo fazendo aqui um elencar rápido daquilo que é tratado no livro. O livro é de leitura muito fácil, faz o... Compara as três religiões, compara o judaísmo, que é mais antigo, com o cristianismo católico, o protestante acaba por ficar de fora, por acaso também gostava de falar sobre isso, e depois finalmente o islão, e depois acaba por pegar uma série de temas que são transversais a todos eles e no fundo perceber como é que eles lidam, quais são os desafios contemporâneos. Começando pelo judaísmo, apenas, quer dizer, por ser a mais antiga, mas também porque eu tive a Esther Mouzunic como convidada e, na verdade, nem falámos muito da religião, falámos mais do ponto de vista do judaísmo enquanto... Mais dos judeus enquanto povo do que da religião em si. Mas acabámos por falar também de uma série de coisas ligadas com a religião e que são interessantes. Por exemplo, uma delas tem que ver com o facto do rabino, por exemplo, ser muito diferente de um padre. Há pelo menos duas diferenças. O padre é o intermediário com Deus, por um lado, pelo menos no catolicismo, no cristianismo protestante é diferente, e depois o sacerdote é nomeado enquanto no... O que ela explicava, que eu achei engraçado, e não sei se acerto a experiência também, falando com os judeus para este livro, que é a relação com o rabino é muito mais de um contrato, quase um serviço que o rabino está a prestar. O rabino é um sábio, é mais um sábio do que propriamente uma autoridade religiosa como sacerdote. E o que ela dizia que eu achei engraçado é que se a comunidade que contratou o rabino, se algo não estiver contente com ele, despecha-o. Enquanto que o padre é mais ou menos impensável fazer isso, se não caso extrema não é diretamente.
Carlos Quevedo
O rabino tem uma preparação religiosa, mas, sobretudo, tem estudos bíblicos e talmudicos. Isso significa que o rabino é a referência cultural e jurídica, como religiosa, para a comunidade judia. Há uma espécie de código civil judeu, com suas próprias leis, que, por exemplo, o casamento, o casamento é o contrato que também se faz na Igreja Católica, o rabino é mais um notário, porque especifica o contrato feito entre ambas partes, assina e com as testemunhas provam que este é um casamento legítimo segundo a lei judaica. No caso do catolicismo, o pai é apenas uma testemunha. Ele nem é notário, é apenas uma testemunha. O casamento é o único sacramento que é independente do pai. Duas pessoas católicas juram ante Deus que vão viver a vida juntos, para bem, para mal, etc. Toda essa fórmula e estão casados. No judaísmo, para que esse casamento religioso seja religioso, seja legitimamente religioso, legitimamente judaico, tem que ser diante de um rabino. E o rabino, e aí, nesse contrato se pode prever muitas coisas. A questão das tarefas, a questão do dinheiro, a questão de quanto dinheiro se vai dar à mulher durante o casamento. Em caso de morte, tudo se pode escrever nesse contrato. É indo hoje em dia? Sim, agora, hoje em dia, há mais ou menos um formulário estándar que difere de acordo com as diferentes comunidades judaicas, porque o judaísmo português e espanhol, que são mais parecidos, mesmo assim já tem algumas diferenças, já nem falar com o judaísmo askenazim, de Europa Oriental, etc, etc, E esses contratos podem ser diferentes, contraditórios, mas simplesmente diferentes, com preocupações diferentes, ou com prioridades diferentes. Ou seja, esse tema está claro. Ah, com a escolha do rabino. A comunidade judaica contrata esse rabino e o rabino pode se cansar dessa comunidade ou a comunidade pode se cansar desse rabino e pronto, há uma separação e tem que procurar outro revino. Aqui na Sinagoga de Lisboa há um problema porque há 15 anos que não há um revino, porque não se põem de acordo, não se põem de acordo com o revino. Houve um que ficou por muito pouco tempo, ficou um par de anos, depois se foi embora. Agora estão em contratações com outros. Mas sim, é uma escolha da comunidade. A questão aqui em Lisboa é que a comunidade judaica não é tão, digamos, unida ou militante como outras comunidades judaicas. É mais complicado aqui. Já os judios, por ser de acordo, é muito difícil entre eles. Quando ainda por cima sabem pouco, tm menos contactos entre eles, então aí a coisa é muito mais difícil.
José Maria Pimentel
Eu achei piada porque o Eustero Muzunico contou-me umas anedotas judaicas com piada e há uma também no seu livro com piada que eu não conhecia que era, se estava a ver era qualquer coisa deste género. Dois rabinos estavam a discutir a tentar interpretar uma passagem da Torá e acera na altura há uma intervenção divina, Deus intervém e diz algo do género. Estão ambos errados e eles dizem, cala-te que não percebo nada disso.
Carlos Quevedo
O estudo rabinico, as regras de como se consegue conceber uma pessoa sábia. A partir desse momento, há toda uma espécie de registro de todos os problemas que acontecem no dia a dia e no cumprimento da lei, porque uma vez que não existia mais o segundo templo e a diáspora começou, havia coisas que tinha que resolver, porque todo o culto judeu em Israel, na época de Cristo e antes de Cristo, estava relacionado com o templo. E depois ficaram sem templo. E aí começa toda uma transformação das tradições judaicas. Claro, e as sinagogas, no princípio, eram a casa de uma das pessoas, depois em um lugar que alugavam, e depois, pouco a pouco, se torna uma sinagoga como templo, e que não é um templo no sentido que era o templo de Jerusalém. Ou seja, as sinagogas, depois do século III, século IV d.C., são lugares de reunião para rezar e para fazer algumas cerimónias, mas não fazem nem a décima parte das cerimónias que eram feitas no templo, porque era só no templo que estava regulamentada. Sacrifícios de animais, festas, rituais que só se podiam fazer no templo.
José Maria Pimentel
Isso é engraçado porque outra das coisas que o Esther falava era que uma sinagoga... Eu nunca entrei numa sinagoga, tenho-me prometido a mim mesmo desde
Carlos Quevedo
a conversa que nós tivemos. Porque vemos que é um lugar escondido ainda, se mantém essa coisa. Depois, as placas de agradecimento, a última vez que Ravi, antes de ser assassinado, estava em Lisboa. É uma placa que marca esse acontecimento e meses depois foi assassinado em Israel. É muito, muito emotivo.
José Maria Pimentel
É algo que... Tenho quase vergonha disso, mas a pessoa tem que admitir aquilo porque não faz sentido nenhum. É uma experiência que deve valer a pena. Mas isto para dizer, eu não estou a falar de experiência, mas daquilo que ela contou, que eu achei graça, que uma sinagoga é muito diferente de uma igreja, porque é um espaço muito menos solene do que é uma igreja, é um espaço muito mais brilhante, é mais um espaço convivial, as pessoas estão a falar, estão a discutir, estão a... Enquanto que uma igreja, uma igreja em Portugal, mesmo numa aldeia, é um espaço soleno, é um espaço onde não se fala alto, é um espaço até com uma disposição das coisas que tudo aquilo remete para a solenidade. Eu achei interessante ela dizer isso. E uma característica interessante do judaísmo é que o judaísmo parece ser, e do seu livro eu já tinha essa impressão, e do seu livro transparência, também é que parece ser das três religiões abrâmicas a mais interpretativa, não é? Aquela em que a hermeneútica tem um peso maior, o que também lhe dá uma grande flexibilidade. Por exemplo, o islão parece ter o problema oposto, porque o problema é, como o álcool não é a palavra de Deus, o que eles creem é que aquilo foi ditado por Deus, a Malmé ou pelo anjo Gabriel, mas na prática, vindo direto ou praticamente diretamente de Deus, o espaço para a hermeneútica é muito menor, enquanto que no judaísmo há um espaço enorme para a hermeneútica, para a interpretação, e aquilo é quase... A vitalidade do judaísmo está muito aí, não é? Sim, mas não só
Carlos Quevedo
na sinagoga. Nas sinagogas poderão discutir, sim, sem dúvida, que pode ser um sítio barulhento, mas a discussão primeiro é entre rabinos. Essa é a discussão, quando a discussão passa a... Intelectual. Não é intelectual, é o mesmo ritual, o mesmo... Pequenas coisas, pequenas decisões justamente da justiça religiosa. Tal pessoa me roubou tal coisa e não me quer devolver, mas me pode pagar, mas eu não quero que me devolva. Coisas
José Maria Pimentel
assim. Jurídicas. Jurídicas. É que o judaísmo é muito jurídico, não é?
Carlos Quevedo
Na Babilônia ou no Egito, eles próprios tinham que tratar de suas próprias leis. E então, pouco a pouco, se foram fazendo essas leis. E os famosos, os 10 mandamentos, que são como 300, Sim, sim, sim, na Torá. Na Torá, na... Há uma quantidade de regulamentações, de distâncias, de medidas, de coisas, que depois pouco a pouco se foram adaptando, obviamente. E não só foram adaptando por causa que os tempos mudam, mas também adaptando-se porque nessa diáspora, como eu tinha dito antes, as populações judaicas na Europa Oriental, na Rússia, eram diferentes das sefarditas na Península Ibérica e no Norte de África, e diferentes, ao mesmo tempo, mais do Oriente Leste, onde também havia comunidades... E para a Sul da África, exatamente. Claro, e então tudo vai em discussão.
José Maria Pimentel
E Israel, hoje em dia, continua a ter alguns problemas por causa disso. É difícil integrar comunidades que tinham se cindido há largas centenas de anos.
Carlos Quevedo
Por exemplo, a poligamia não é abolida na Bíblia. O que acontece é que, por causa do uso e das boas costumes, a monogamia está instalada, mas só se proibiu a poligamia em Israel nos anos 70. E isso era porque com os etíopes, que vinham do Oriente com muita poliedade, a coisa já começava a ser... Não tinha discreção, digamos. É difícil, é difícil. É muito difícil. E é a questão da vida... Como é que se chama? A interculturalidade. A interculturalidade, alguém diz, é dos muçulmanos e cristãos, ou o que for, mas dentro da própria religião há interculturalidade. Os cristãos conseguiram uma solução simples, que é a autoridade papal. Agora, com o judaísmo, você só tem um livro. Então, quando falta alguma coisa em um livro, tem que discutir. E isso é um dos elementos que encontramos em um tal Mood que são centenas de livros onde se falam de todas as discussões que tiveram e uma coisa que puse no livro que me fascinou que quando perde, há uma proposta, não é votada, não ganha a discussão, fica registrada qual foi a proposta que perdeu, que é como uma espécie de respeito à residência. Não se pode fazer como diz aquele senhor que diz tal coisa e tal outra. Se faz de tal maneira, mas se põe aquilo que não foi aprovado, que é um pouco como uma memória futura. Isso, se calhar algum dia, nos pode servir.
José Maria Pimentel
O que eu acho fascinante é que é extremamente contemporâneo.
Carlos Quevedo
Claro, é a coisa de quando foi Mahomet que começou a falar da religião do livro, ou pelo menos se supõe que foi a primeira pessoa que definia o judaísmo como a religião do livro. E o que é certo é que a discussão, A reflexão sobre os textos sagrados é indissociável da tradução judaica. E foram eles. Nos inícios do cristianismo existe a mesma tradução. Quando, depois da morte de Cristo, São Paulo começa a organizar a coisa, e depois há imensas dissidências. E todos os séculos, os três primeiros séculos do cristianismo, é uma história assim, por vezes sanguinária, por vezes de uma subtileza intelectual surpreendente, porque se discutia tudo. Porque é a coisa de como é ser um bom religioso. Os judeus encontraram que a maneira de ser um bom judeu é cumprindo a lei do livro, e quando há dúvidas, discutirlas, ser discutida por os sábios. Em os primórdios do cristianismo, a autoridade papal não era tal, não existia tanta autoridade papal E se discutia coisas como se a Virgem Maria, sendo humana, podia ser a Mãe de Deus. E isso trouxe cismas. Era um problema, porque um ser humano não pode ser. Ou ser os dois coisas ao mesmo tempo. Claro. E o mesmo com Jesus. Jesus foi Deus desde que nasceu, mas se era homem... Então, isso tudo se discutia muito no princípio. E isso, eu acho que também tem a ver com as origens judaicas, de discutir para saber como se cumpre melhor a palavra de Deus, que é uma boa intenção que pode dar para o desastre.
José Maria Pimentel
E o cristianismo, a Bíblia demorou largos séculos... A Bíblia, aqui falo no Novo Testamento, naquilo que eu distingo do judaísmo, Demorou largos séculos a ser compilada, não é porque a Bíblia, o Novo Testamento é uma espécie de antologia de textos, é uma compilação de textos que deixa alguns de fora, integra outros, não é isso?
Carlos Quevedo
Porque não só por minha ignorância, mas porque há muitas dúvidas que se põem. Por exemplo, agora está muito de moda a tradução da Bíblia de Frederico Lorenzo. Agora, o que ele está a fazer? Ele está a fazer a Septuaginta, que são os livros traduzidos do Hebreu ao Latim, os Evangelhos em Grégo, Não, não, sim, sim, sim, mas tudo estava em grego, desculpe-me. Tudo, do hebreu ao grego, os livros da Torá e o resto, e os evangelhos. Agora, se bem que nos livros judaicos há uma antiguidade que mais ou menos os certifica, ou lhes dá uma característica, uma propriedade de autenticidade, com a questão dos evangelhos é muito mais complicada, porque muitas coisas foram escritas como as epístolas de São Paulo, mas há muitas coisas que foram escritas dois séculos depois de Cristo, como os
José Maria Pimentel
evangelhos... E há vários
Carlos Quevedo
relatos da mesma coisa. E isso é muito complicado. Acho que a Igreja Católica fez bem de dizer que basta, não se discute mais quais são os textos honestos e se acabou. Porque senão era uma discussão eterna.
José Maria Pimentel
Não, mas é, mas e essa, aquilo que dizias à pouco, essa discussão existiu no início, depois deixou de existir, embora, embora continue a haver também grande interpretação teológica no cristianismo e no catolicismo em particular e alguma tentativa de encontrar ali alguma flexibilidade, mas voltando àquilo que estávamos a falar há pouco, fazendo agora a ponto para o Islão, o judaísmo tem esse lado fascinante, desse lado interpretativo e quase jurídico, como nós falávamos há pouco, que é interessante porque, entre outras coisas, aquilo está a criar e é aquilo, uma das coisas que é onde explicar como é que um povo quando consegue sobreviver, manter uma cultura na diáspora durante quase 2.000 anos, é que aquilo vai criar instituições, não é? Eu digo que é muito contemporâneo porque as instituições são exatamente aquilo que dá corpo às sociedades avançadas. As sociedades avançadas são aquelas que têm maiores instituições. Isso é algo que eu acho muito interessante. Relativamente a essa questão da flexibilidade dos textos em que se baseia, o Islão parece, aquilo que eu falava há pouco, é ser um texto muito mais rígido, lá está, porque é a palavra de Deus. E isso, embora também no islão existam interpretações flexivas e mesmo e mesmo aqueles versículos mais polémicos dá para contextualizar, há aquele muito conhecido da relação do homem com a mulher, que diz que o homem, no fundo, por linguagem simples, se ela se portar mal, ele lhe deve bater, mas depois a palavra usada também tem muitas traduções, mas como aquilo é a palavra de Deus, é difícil fugir disso, embora haja algum trabalho nesse sentido. Mas também é fácil de perceber, do lado do Alcorão, é fácil perceber onde é que está a origem do extremismo, por exemplo. Porque enquanto o judaísmo tem quase intrinsecamente essa interpretação, no islão ela não está dessa maneira tão arraigada e, portanto, pode haver comunidades, como existem, que interpretam o Alcorão literalmente, e ao interpretá-lo literalmente e ao adaptar aos dias de hoje algo que foi escrito há 1400 anos, 1500 anos já, dá aso a esse tipo de extremismo. Aliás, há uma coisa que eu... Este é um episódio, um talho com piada. Eu não sei se alguma vez ouviste isso, mas eu apanhei isto num programa americano do Farid Zakaria, que é um jornalista americano. Ele tem um programa que se chama GPS, Global Public Square, acho que é o nome do programa. O programa americano é sobre assuntos internacionais, sempre na perspectiva americana. Ele tinha lá uma pessoa que se chama Irshad Manji, não sei como é que se escreve, mas que é uma escritora, uma escritora canadiana reformista, mas muçulmana. E ela falava de uma coisa com muita piada, que é aquele mito que a pessoa já ouviu em todo lado dos jihadistas, que o desejo deles é ao se oferecerem pela religião o anseio é que chegando ao céu depois vão ter 70 virgens ou queira uma coisa desse género. E o que ela diz, baseado num trabalho de um sábio-muçulmano, Primeiro, isso não está no Alcorão em lado nenhum, isso não está em lado nenhum no Alcorão, de todo. As promessas que existem no Alcorão, aliás, isso é no seu livro, é de um ambiente paradisíaco, depois da morte, mas não, mas nenhuma descrição das 70 virgens. E o que está em alguns escritos e que foi traduzido, que pessoas traduziram erradamente como virgens, originalmente não era virgens, mas sim passas. Passas de uvas. Era? Passas de uvas. Passas de uvas. Porque não tem nada a ver, não é?
Carlos Quevedo
Morrer por 70 passas de uvas...
José Maria Pimentel
Parece pouco, não é? Parece uma coisa pequena, não é? Eu não
Carlos Quevedo
sei se é verdade ou não, mas achei. Eu sei que no Corão estão os 70 pássaros, estão em outros textos. Depois há comentários, está o Hadith, que é o livro jurídico musulmano, e também a vida do profeta, que são as testemunhas sobre a vida do profeta, onde há muitas coisas que é um olim, mas há muitas coisas que são utilizadas tiradas desses livros. Agora, o que é certo é que a discussão é menor, e que no Corão há uma parte, digamos, de apelo ao belicismo e outra parte que é mais ou menos mais pacífica.
José Maria Pimentel
Mas essa parte, desculpe interromper, mas o apelo ao belicismo que existe no Alcorão é maior ou é comparável ao que existe nas outras religiões? A minha intuição é que é maior, mas não tenho certeza disso. Não, não,
Carlos Quevedo
não. É maior, mas também tem que contextualizar. Porque Israel se forma, digamos, em um mundo pagano,
José Maria Pimentel
não? Exato.
Carlos Quevedo
Mas sem inimigos religiosos. Eram inimigos políticos, ou inimigos de territórios.
José Maria Pimentel
A concorrência
Carlos Quevedo
religiosa. Ou seja, que tem que lutar contra os filisteus, porque querem tirar tal coisa, mas não é uma questão teológica ou religiosa. O cristianismo não começa a lutar contra a religião mágica, que seria o judaísmo, mas até nas primeiras décadas, no primeiro século, as sinagogas eram usadas para encontrar os cristianos. E aí está a revolução do cristianismo, que já há uma exigência pacífica. Não se pode amar a Deus se não for pacífico. Amar o próximo. E então, de repente, pode haver metáforas ou analogias guerreiras, mas não há uma palavra que possa dizer que mesmo apela à violência. O islã, quando aparece, tem vários inimigos. Um inimigo que seria a tal interculturalidade, porque estava rodeado de cristãos e de judeus. E, por outro lado, estava rodeado de inimigos declarados, que eram todas as tribos politeístas, e se tinham que defender. Então, essas tribos politeístas tinham seus territórios, e então não aceitavam que entrassem os seguidores de Mahoma a esses territórios. Ou seja, havia um estado de
José Maria Pimentel
violência. Sim, tinha que conquistar os seus países. Claro.
Carlos Quevedo
Depois, há uma teoria que eu gosto muito, que diz que Mahoma escreveu parte do Corão em Medina, e aí era uma zona pacífica e que não havia nenhuma ameaça imediata. Mas quando foi a Meca, aí estavam os inimigos que não queriam que ele se instalasse e se instalasse e seus seguidores. E então a parte, digamos, a parte violenta do Corão está toda escrita pensando no perigo imediato e presente daquela altura, que eram as tribos politeístas, as invasões e a territorialidade. E a coisa interessante, ou interessante, ou que complica mais tudo isso, é que, assim como na Bíblia, temos uma sequência mais ou menos cronológica dos acontecimentos, Gênesis, sexos, levíticos, e depois estão os evangelhos. Puxa, um crono. Sim, um crono. O Corão está em ordem de maior a menor. Os maiores textos são os primeiros e os textos mais curtos são os últimos. Ou seja, não temos essa cronologia, então não podemos, com nenhum tipo de referência, fazer uma cronologia de sequência, sobretudo, de sequência em que esses textos foram escritos. Por aí os últimos foram os primeiros.
José Maria Pimentel
Você não sabe, claro.
Carlos Quevedo
Não se sabe. Suponho eu que deve haver estudiosos, mas isso já é impenetravel.
José Maria Pimentel
Sim, mas é assim, é sempre probabilístico. A pessoa não tem a certeza. O que dificulta isto é que enquanto as outras duas religiões não acreditam que nos seus livros sagrados está escrita diretamente a palavra de Deus, o Islão acredita que sim e a partir do momento... Esta contextualização que estavas a dar, para mim faz todo sentido, mas se eu fosse musulmano seria difícil, se eu fosse um musulmano ortodoxo seria difícil de ser persuadido disso porque para mim é cada livro sagrado que tem a palavra de Deus. E se ele for ortodoxo, passar a ultra ortodoxo, vai tomar à letra tudo que lá está. Esse é o grande problema, não é? Porque o que eu acho nisto é, este é um tema sempre, o tema do, não tanto em Portugal, porque por causa da nossa homogeneidade étnica, mas por exemplo nos Estados Unidos é um problema grande. É muito difícil discutir este tema porque há duas perspetivas opostas. Há a perspectiva trampiana, que é a perspectiva de que os tipos são todos uns terroristas porque são muçulmanos, e depois há outra perspectiva, que é a perspectiva politicamente correta de dizer que ser muçulmano não tem nada a ver com isso. E para mim há algo no meio que tem alguma razão de ser, que é? Há claramente o facto do livro ser editado por Deus e de ter este contexto leva a que um ultra-ortodoxo o possa interpretar literalmente. E ao
Carlos Quevedo
interpretar literalmente... Muito aos próprios muçulmanos de não ser mais insistentes com as novas em educação islâmica sobre a importância, ou melhor dito, o relativismo que existe nas afirmações violentas. Mas isso não é, se você pensar, os primeiros movimentos muçulmanos muito fortes que houve nos Estados Unidos, como se chamava, anteriores a Black Panther. Malcolm X? Exato, exato. Já eles tinham uma atitude... E o seguidor. E depois de Malcolm X, houve outro tipo que era, inclusive, um bocadinho mais extremista que o Marco, que não me lembro do nome, Elia, Elia, ou não sei quanto. Aproveitavam um pouco o apelo, não o apelo à luta, mas o apelo a se sentirem perseguidos e discriminados e que havia que lutar contra a corrupção exterior, é utilizada para a comunidade preta americana como uma forma de unidade dentro de um islam americanizado com problemas de negros, com problemas de discriminação racial. Identificar a discriminação racial com a discriminação musulmana foi uma invenção musulmana americana. Porque as comunidades, há muitas comunidades musulmanas americanas, já havia naquela altura, que eram completamente pacíficas, não tinham nada a ver com isso. É por isso que eu acho que é a comunidade islâmica que mais deveria discutir qualquer interpretação que tenha a ver com a violência ou com uma autodiscriminação, com respeito, ou diabolização dos vizinhos. Os vizinhos que acreditam no crucificado ou que são judeus são inimigos de nosso povo. E isso foi, em algum momento, conjunturalmente, e por questões políticas ou por questões de fanatismo, mas isso já, por amor de Deus, com tanta informação tem que servir para alguma coisa. Onde estão as redes sociais quando precisamos delas? Exatamente. E a religião
José Maria Pimentel
nos Estados Unidos, o movimento dos direitos civis, ali sursou-se muito na religião. Martin Luther King, por exemplo, era um pastor protestante. Claro,
Carlos Quevedo
protestante e aí... E era pacifista. Era pacifista. Mas também havia não-pacifistas cristãos. Claro, claro, claro. Mas aí, tem que dar também a violência, com que existia a segregação racial nos anos 60 nos EUA, nos anos 50 e 60. Ou antes, com o Ku Klux Klan, que foi no início dos anos 1900.
José Maria Pimentel
Sim, no início do século... Sim, ou
Carlos Quevedo
fim do século 19,
José Maria Pimentel
não importa.
Carlos Quevedo
Isso provoca uma reação, obviamente. E aí não se pode, digamos, culpabilizar as pessoas perseguidas de responder com violência à violência. Mas isso é um caso
José Maria Pimentel
muito claro. O difícil era
Carlos Quevedo
o contrário. Por isso o que é notável no que ele fez foi isso. Exato, que Luther, quem seja pacifista, em meio de tanta barbárie, mostra uma dimensão maravilhosa. Ele percebeu
José Maria Pimentel
que aquilo tinha o seu quinto estratégico. Era difícil, mas não era errado mesmo do ponto de vista estratégico, porque ele sabia que para ter a opinião pública, que era branca, que era fundamental, ser sensibilizado ao lado dele tinha que ser pacifista, mas não era nada fácil e não foi nada fácil, mas esse é outro tema fascinante. Voltando aqui àquilo que falámos há pouco, das três religiões, há uma que ainda não falámos curiosamente, ainda não falámos em tanto detalhe, que é o Cristianismo e o Catolicismo em particular. Como eu tinha dito há pouco, o livro, também por estar escrito em Portugal, toma deliberadamente a matriz do cristianismo católico, antes das outras, o que eu até percebo, porque o protestantismo depois também é tão heterogêneo que seria difícil para ela, embora seja interessante. E uma das diferenças, há várias diferenças entre o livro, no fundo dedica-se muito a isso, a explorar a semelhança de diferença entre os três credos, e há uma diferença do catolicismo, do cristianismo, é ser de longe aquele que é menos prescritivo em termos de hábitos, por exemplo, de alimentação e desse tipo de restrições, o que é engraçado. Eu não sei se tens alguma intuição em relação à explicação que está por trás disso. Porque há muitas explicações, a explicação mais lógica para as proibições, tanto no Islãm como no Judaísmo, tem a ver com quase uma questão de saúde pública, não é? Que está associada... Sim, mas isso o negam.
Carlos Quevedo
É dizer, digamos, a ortodoxia judia nega que haja uma relação entre saúde pública ou utilitarismo, digamos, na dieta judia. Eles Dizem que não tem nada a ver com isso. A coisa de coxer ou coxer tem a ver simplesmente com disciplina e limitação. E de nenhuma maneira associa isso à saúde pública. Se você faz com qualquer rabino, qualquer sujeito, ah, não comem porco porque tem medo da tênia, não é isso? Não, não é isso. É porque se proíbe uma coisa que é saborosa, que está perto e não se deve comer. E isso está no Levítico, de não comer carne de porco, e não há nenhum tipo de relação com a saúde pública. Se isso, originalmente, originalmente, estou falando de 4 mil anos atrás, não? Mais de 4 mil anos atrás, estamos no ano 2000, 5 mil anos atrás. Se há 5 mil anos atrás era assim, que Era porque houve alguém que ficou doente comendo uma ostra, ou comendo um cangrejo ou um porco, e aí se decidiu proibir. Ninguém sabe. Não me surpreenderia que uma coisa pudesse trazer a outra. Mas, de uma maneira ortodoxa, religiosa, clara, é que não tem nada a ver. Isto é assim porque está escrito. E se está escrito, nós cumprimos. E não é por nosso bem, é por nossa disciplina e por nossa pureza.
José Maria Pimentel
Aquilo que uma... O ceticismo em relação a essa explicação, mas que se calhar é ignorante, é que a disciplina na religião normalmente está na limitação e não na proibição. Ou seja, a proibição é para aquilo que é considerado capital, não é? Portanto, errado absolutamente. Não,
Carlos Quevedo
mas aqui é o mesmo. Aqui está proibido, é um verdadeiro sujeito, não pode comer isso e é mais que uma limitação, é mesmo
José Maria Pimentel
uma proibição. Uma das funções da religião é disciplinadora. E o catolicismo hoje em dia está muito difuso, mas há uma série de práticas, como joar, não comer carne na sexta-feira, uma série de práticas, mas que são limitativas, não são proibitivas, que é no fundo para a pessoa se conseguir disciplinar e para valorizar, em certo sentido, quando nos dizem que pode fazê-lo. A proibição, intuitivamente, parecer-me a ter outra outra razão de ser, porque é proibir de todo. Porque um tipo que nunca come carne de porco também não vai saber que a carne de porco é boa, não é? Claro. Não é? É como a moral sexual da igreja, por exemplo. É toda aquela parte do suposto de que a pessoa sabe o que está a perder, não é? Se a pessoa não souber o que está a perder, não adianta, não é? Pois, mas aí há duas coisas. Uma, por exemplo, no caso do cristianismo, porquê se pode comer tudo? De quem sabe o que está perdendo, e quem não sabe o que está perdendo.
Carlos Quevedo
Não adianta, né? Isso foi uma decisão feita pelos cristãos que tem a ver com o desprendimento da tradição judaica. Quer dizer, os primeiros cristãos eram os judeus. Então, a partir de ser cristiano, havia que romper com os laços anteriores do judaísmo. Um desses laços era terminar com a circuncisão. Um cristão não precisa ser circuncidado, que era uma coisa própria do judaísmo. Depois, as comidas, se perguntavam o que podemos comer e São Paulo diz que não somos cristãos, podemos comer tudo e pronto. E depois fala de moderação, depois fala dos excessos, como um verdadeiro cristiano não comete excessos em nada.
José Maria Pimentel
Como de resto das outras duas religiões. Como? Como nas outras duas religiões, não é? A moderação e o comedimento fazem parte das três, ou não?
Carlos Quevedo
Não, sim, não, não. A moderação é defendida por as três religiões. O que acontece é que tanto no Islã como no Judaísmo estão escritas nos livros sagrados. Nos evangélicos não temos essas limitações. Essas limitações, ou essas dietas, ou essas resoluções foram dadas nos primórdios do cristianismo, independentemente dos livros sagrados. Já são os, digamos, o grande organizador a partir de São Paulo, e depois os papas que começam a consagrar, que é o que fica dessa tradição iniciada com o Cristianismo. E acho que foi o Papa Gregório, no século VI, não, VII e VIII, Papa Gregório, que fez a limpeza do que é e do que não é, para que não tivesse mais dúvidas. A questão da circuncisão, por exemplo, é outra. Não sei qual é
José Maria Pimentel
o consenso entre os rabinos em relação a isso, mas é um excluindo, para o propósito do debate intelectual que não vem diretamente de Deus, excluindo essa via prescritiva direta e portanto indo para explicações como a questão da saúde pública e não sei o quê. Essa é uma explicação, mas não há grande consenso em relação a isso, porque é um hábito um bocado bizarro e que lá se está e depois não passou para o cristianismo, não é uma coisa como piada. Não,
Carlos Quevedo
mas no Islãm se conservou, depois houve alguns setores islâmicos que não se circuncidam, outros que sim. É um tema que no Islãm, naquela época, era um pouco circunciso. E
José Maria Pimentel
depois deixaram de fazer.
Carlos Quevedo
Depois disso, de ser obrigatório.
José Maria Pimentel
Algumas comunidades sim, outras não. Sim.
Carlos Quevedo
Agora, a coisa da circuncisão começa com Abraão e que é dessa maneira que se cela o pacto com Deus porque de onde vem essa ideia estranha, não tenho a menor ideia. E acho que ninguém sabe porque a circuncisão se tornou, na prova, que era uma pessoa do povo escolhido. É bizarro. Existe... Tatuagens existiam naquela altura. Podia dizer, agora todos têm que se tatuar. Não sei. Claro, claro. É bizarro.
José Maria Pimentel
Claro. Uma das explicações é essa da saúde pública. Outra das explicações é ser quase um ritual de iniciação, como existe muito nos antropólogos que estudam isso, e há muitas tribos...
Carlos Quevedo
Sim, claro, mas quem foi o primeiro primate que se lhe ocorreu fazer a circuncisão? É
José Maria Pimentel
que é bizarro, não é?
Carlos Quevedo
É... Enfim, são mistérios, isso não tenho a pretensão de que tenha uma explicação. Não, E ninguém sabe. Mas que funciona, não? É uma coisa de mesmo diferenciadora. É dizer, diferenciadora aqui na Europa, porque nos Estados Unidos, em uma época, todo mundo era circunciso, mesmo os cristãos.
José Maria Pimentel
Ah, exatamente, exatamente.
Carlos Quevedo
Bom, mas naquela altura era mesmo uma identificação clara. É engraçado.
José Maria Pimentel
Mas o cristianismo quando surge tem, e isso é outro aspecto interessante, que às vezes hoje em dia, eu acho que nem sempre as pessoas se lembram disto, mas é inegável que quando o cristianismo surgiu foi revolucionário em larga medida. Por um lado, partiu do judaísmo, que ele próprio já tinha sido revolucionário, mas tem uma série de valores, da mensagem de Jesus. Abstraímos da questão religiosa, do ponto de vista filosófico, do ponto de vista comportamental. É algo que, se hoje em dia pode parecer um agnóstico que é, que é um bocado, que tem muitos anacronismos, que é datada, na altura tinha uma série de coisas que eram revolucionárias, a questão do amor ao próximo, mesmo o papel da mulher, por exemplo, isso veio no livro, o papel da mulher, a questão da Maria Magdalena, por exemplo, mas o papel da mulher na Bíblia e no Novo Testamento é diferente e é melhor, não é? Mais agradecido e mais igualitário do que a sociedade que existia na altura e até do que aquela que veio a existir depois, criada até pela própria igreja
Carlos Quevedo
já. Não é? Que eu acho um fenômeno fascinante. Não, a igualidade é assim... Quando falamos que a civilização ocidental é judeocristã, e é verdade, é judeocristã, e às vezes eu acho incrível como a amnésia de muita gente querendo tirar os símbolos, não se pode fazer isto, não se pode mencionar santos. Quando toda a civilização foi construída, de uma maneira, vamos ver se consigo dizer isso claramente, Os problemas filosóficos que os gregos dedicaram três séculos maravilhosos a tentar defini-los e solucionar-los, muitos deles ficaram absolutamente resolvidos com a aparição do monoteísmo. O monoteísmo dá respostas que a filosofia
José Maria Pimentel
não consegue dar. Mas era interessante dar-te alguns exemplos desses problemas que ficaram resolvidos pelo
Carlos Quevedo
monoteísmo. Não, não, por exemplo, o porquê que estamos aqui. Quando se fala que há uma criação divina, o mundo começa por um ser superior, um espírito organizador. Depois vemos se é um Deus pessoal, um Deus com as características próprias da prática religiosa. Mas em termos filosóficos, estamos dando um princípio em um ser superior, um princípio ao mundo e um fim, que é voltar a esse ser superior que nos criou em um dia final onde, atenção final, não porque se termina o mundo, mas porque muda o mundo. Sobretudo no caso do judaísmo, ele explica muito bem que é um novo avenir, não é uma vida sobrenatural. O cristianismo é mais espiritual, e mais espiritual não, digamos, é mais abstrato e fala simplesmente de uma espiritualidade que participa do ser de Deus, uma coisa assim. Ser de Deus, não uma coisa assim.
José Maria Pimentel
É, o judaísmo é como se... No fundo, a ideia daquilo, pelo que eu percebi do livro, é a pessoa... Um judeu quando morre é como se ficasse guardado num armário, salvo seja, para depois
Carlos Quevedo
sair no dia do juízo final, voltar... Para quando está na segunda vinda de Cristo e em... E em lá já há outra condição mais, a chegada do Messias e outras condições, e depois há uma nova vida, um novo avenido. Não se fala que... E depois eles fazem a distinção de que podem ser As almas com os corpos também. A história da ressurreição dos corpos não é uma invenção cristã, mas é uma coisa judia também, que os cristãos continuam. O que faz sentido, de alguma maneira. Mas Essa é uma das respostas que a religião, a filosofia, nos dá. E a outra coisa é a preocupação de como fazer uma vida boa, filosófica. Como ser correto, como ser um homem de bem. Isso que em filosofia é importante, que Aristóteles põe as virtudes, que são virtudes, assim, de heróis, praticamente. O cristianismo e o judaísmo, o cristianismo mais que o judaísmo, torna a coisa muito mais simples, com a humildade, a bondade, a caridade e a preocupação do outro. O judaísmo é mais complexo, tem muitas coisas em comum, mas é mais complexo. No judaísmo não há caridade, mas partilhas, outras coisas.
José Maria Pimentel
Sim, mas esse é... Já agora, fazendo um parênteses, já voltamos a isso, mas a questão da caridade no judaísmo é outro ponto que eu achei muita piada, porque a caridade, por exemplo, em Portugal nós vemos isso muitas vezes no debate, que A esquerda, por exemplo, critica muitas vezes a caridade do ponto de vista do católico e, a meu ver, critica a impacto justamente porque a caridade, é evidente que a caridade tem um lado positivo, no negar isto, parece-me uma imbecilidade pura, mas a caridade também, historicamente, criou uma relação E o que eu achei muito interessante no judaísmo, havia aqueles níveis do Maimonides, o filósofo judeu, que ele estabelecia vários níveis
Carlos Quevedo
de caridade e o que ele estava implícito. Ele tem outro nome.
José Maria Pimentel
É, eu sei outra palavra, mas que é traduzida como... Se adacar. Sim. Se adacar, não é? Exatamente.
Carlos Quevedo
Que é... Que não é a caridade no sentido católico de dar, mas... É uma partilha, não é mais... É uma partilha
José Maria Pimentel
ou
Carlos Quevedo
uma dívida que se cumpre. Porque tenho uma dívida com essa pessoa que é pobre, porque eu posso
José Maria Pimentel
dar-lhe. A questão de o judaísmo viver bem e isso é, por exemplo, algo que é comum com o protestantismo, eu lembro de me aperceber disso quando estava a falar com o Costelmo dos Unidos sobre isso, que é ver com bons olhos o enriquecimento. Por exemplo, o catolicismo tem uma má relação com o enriquecimento, o judaísmo não. Ou seja, a pessoa faz bem em enriquecer, em ganhar dinheiro. Mas depois o outro lado disso, que é interessante e que é diferente da caridade, é que a pessoa deve ganhar dinheiro para o distribuir e depois nesses níveis, nessa ascensão de pureza do Maimónides, O que é interessante disso é que a preocupação dele, que eu acho ultra contemporânea, não diria sequer, não sei, é universal, não é sequer contemporâneo, é que a pessoa mais pura é aquela que dá preservando a dignidade daquela que recebe. E o máximo é, o penúltimo nível de salva-verga é aquele que dá sem a outra pessoa saber quem deu e sem saber a quem deu. E o último nível dá antes do outro precisar, que é uma espécie de
Carlos Quevedo
super súmido. Sim. Agora, em defesa do cristianismo, tenho que dizer que a caridade é uma palavra que tem mais pressa agora porque acho eu que, sobretudo a esquerda, que fala que isso é caridade, o Estado tem que cumprir sua obrigação e não dar caridade, etc. Esse tipo de discurso que acho absolutamente ridículo, porque se vamos à história europeia, o germe da segurança social, da assistência gratuita, tudo começa, os conventos e tudo começa com o cristianismo, quando abrem os leprosários, em tempos de guerra os conventos se cenavam de feridos, quando havia doenças, os que ficavam eram naufragos, e que me metiam. Quer dizer, há uma quantidade de coisas que os cimentos do que é o serviço de saúde gratuito e assistido começa com as pequenas comunidades cristãs na Europa. Em tempo de crise, e não só. E isso, pouco depois, foi começando a ser compartilhado por alguns príncipes, mais generosos, outros que não, e depois, pouco a pouco, chegamos ao século XIX, onde se descobre que o Estado tem obrigações para os cidadãos, sejam eles quem forem. Também isso da palavra caridade é algo horroroso que a despreziguem, como o voluntarismo, o voluntariado e a caridade. São duas coisas importantíssimas dentro do cristianismo e são virtudes absolutamente independentes de ser cristiano ou não. Ser uma boa pessoa é ajudar também a nós.
José Maria Pimentel
A questão da caridade, eu acho a crítica que os partidos de esquerda fazem exagerada, mas eu acho que há algo ali que está correto, que é a caridade muitas vezes cria uma relação de dependência em que uns estão em cima, outros estão em baixo, é o lugar de cada um deles, os pobrezinhos lá em baixo, aqueles com posses cá em cima e havia uma frase conhecida de uma pessoa, uma fêmea tradicional, que dizia que nas férias brincava aos pobrezinhos e falava nisso. É obviamente descontextualizado, mas isto para dizer, para mim essa crítica está parcialmente certa. Agora, é evidente que o modelo que nós... O Estado Social Europeu, por exemplo, resulta de... É a confluência de duas vias e uma delas é esta, que é a via que depois deu origem à chamada democracia cristã. A outra via, e igualmente importante, é a via da socialdemocracia, que no fundo partiu do socialismo, depois o moderou e teve essa preocupação mais niveladora de mudar a cidade. Eu acho que ambas são importantes e eu discordo, quer dizer, sem ter aqui também uma posição muito magnânima, mas discordo tanto da crítica a uma como da crítica à outra, quer dizer, claramente a caridade por si não chegava e eu percebo a crítica nesse sentido, mas é evidente que está ali algo de bom, não é? E quando alguns praticavam caridade havia outros que não faziam nada. E ao estar a criticar quem pratica a caridade está-se a tratá-lo por igual daquele que não faz nada. Claro. Daquele que está quieto e que está a gastar dinheiro ou o que seja, não é? Isso não faz sentido nenhum. Mas enfim, mas Falaste num ponto interessante a questão dos gregos e no fundo de todos aqueles temas sobre os quais os filósofos gregos tinham debruçado e que a religião no
Carlos Quevedo
fundo resolveu. Resolveu, deu uma solução.
José Maria Pimentel
Exato, deu uma solução.
Carlos Quevedo
Mas é uma solução que funciona, porque há esperança. Não digo que a resposta aos problemas filosóficos seja dada pela religião, mas que a religião ajude e dê uma proposta prática. De repente, saber como é que se vive para saber que se tem uma vida boa. Então, se cumpre as leis, vai à mesa e faz isto, faz aquilo e faz outro. E isso é um sonho. Ter uma guia de como saber de ser uma pessoa boa e cumprir-la é uma grande ajuda, coisa que a filosofia não consegue dar porque há tantas dimensões, desde a própria vontade, o poder dos sentidos, a credibilidade dos sentidos, enfim, é assim, há muitas coisas. É,
José Maria Pimentel
e a maior, eu acho que havia várias escolas filosóficas, mas não tinham, não conseguiam ter o peso de uma religião, o que é, O que é interessante, olhando para trás, isto é uma análise muito superficial, mas o que me parece é que quando surgiram estas religiões monotaístas abrahâmicas, que no fundo estão na matriz do mundo ocidental, no sentido lato, aqui incluindo o Islão, portanto excluindo no fundo o mundo oriental, que é outra realidade completamente diferente. Elas fizeram, para mim, fizeram uma coisa boa e uma coisa má. Fizeram uma coisa boa porque deram essa resposta e, no fundo, criaram uma moral que incutiu nas pessoas princípios, que obviamente nem toda a gente seguia e não eram... Tiveram muito longe de ser seguidos por todos e ser bem seguidos muitas vezes, mas foram essenciais para uma moral que nós hoje em dia partilhamos e reconhecemos como boa. E que lá está, não existia... No período clássico havia várias filosofias, mas nenhuma delas se tornou dominante dessa forma, não é? E cada uma delas tinha as suas conclusões e tinha o seu memório de Estado, mas não se tornou dominante. Mas, por outro lado, ao dar essas respostas, claro que era uma resposta, mas ao dar respostas, fechou muitos campos de diálogo, não é? Que só voltaram a abrir-se, voltaram a abrir-se, exceto com uma ou outra personalidade fora de série, voltaram a abrir-se na altura do iluminismo. E até aí tiveram mais ou menos fechados porque já estavam respondidos, não é? Eram questões que já estavam respondidas. Era exatamente o que eu ia falar. São exceções...
Carlos Quevedo
Temos assim, pensadores terríveis, sobretudo pela época em que vivia. Onde havia um monopólio
José Maria Pimentel
católico... Mas nós, hoje em dia, olhamos para eles como pessoas excepcionais e que... À frente do seu tempo, mas a influência deles na altura não foi suficiente para...
Carlos Quevedo
O planteismo e uma espécie de Deus somos todos de alguma maneira, uma coisa assim, muito difícil, mas muito sofisticada ao mesmo tempo. E depois está Santo Tomás de Quino que
José Maria Pimentel
faz
Carlos Quevedo
Essa pirueta maravilhosa de colocar Aristóteles para se encaixar com o cristianismo, ou o cristianismo encaixar com
José Maria Pimentel
Aristóteles,
Carlos Quevedo
que pode ser não o suficientemente rigoroso, mas, sem dúvida, fascinante. Porque consegue colocar a tradição grega dentro da nova era cristiana. E
José Maria Pimentel
é isso que dá... Que abre a grande porta, não é? Que estava fechada até aí,
Carlos Quevedo
não é? E depois havia outros que também foram grandes pensadores, Jordano Bruno, que morreu na fogueira. Eu
José Maria Pimentel
gosto muito da estátua dele que está em Roma, por acaso. Acho que tem uma carga muito grande. Ainda por cima está virada para o Vaticano. Até desafiadoramente foi a ideia deles quando fizeram isso. Como estás a dizer?
Carlos Quevedo
Não, não, quero dizer que esse iluminismo traz, desperta muitas pessoas, e põe a filosofia a tratar de assuntos com menos medo que antes. Porque era difícil falar de outra coisa que não fosse... Ter um discurso fora do catolicismo, fora do Vaticano, naquela altura, Era uma coisa muito... Perigosa, claro. Claro, era perigosa, mas isso é o problema de quando os pensamentos hegemónicos têm poder e pronto, e é assim.
José Maria Pimentel
Depois fecham, não é? No fundo uma ponteira é essa, que depois fecham a conversa. Falar em fechar, E se fizéssemos aqui uma pausa? Não querendo fazer, agora parece que estou em minha casa. Não, vou. Estilético. Bom, fizemos aqui uma pausa estratégica para beber um gin. Não sei se pode dizer isso, agora nestes tempos ascéticos, que ajuda a conversa também. Não lembro exatamente, não íamos há pouco, mas há uma... Mas estávamos, pelo menos, a falar, ou tínhamos estado a falar, daquela questão da filosofia, da religião, enquanto respostas para a filosofia. Há um tipo chamado Jordan Peterson, que é um canadiano, que tem estado muito na guerra, não provavelmente em Portugal, mas tem tido... Ele já é um tipo de meia-idade, mas de repente tornou-se uma espécie de personalidade da moda, sobretudo naquela zona do globo, nos Estados Unidos e no Canadá. A formação dele é Psicologia Clínica, mas ele estuda muito de uma perspectiva quase antropológica os temas ligados à religião. A tese dele, que eu acho interessante, embora não partilhe de algumas coisas, também não a conheço tão a fundo assim, é que a religião, nomeadamente estas religiões, incorporam muito, era aquilo que eu falava no início, ou seja, incorporam muito daquilo que é essencial da condição humana, dilemas morais, a questão da morte e por aí em diante. E ele chama atenção a um ponto importante que é dão ordem ao caos, ou seja, a vida é caótica, a vida de qualquer pessoa é caótica, hoje em dia é menos caótica, o que também ajuda a explicar as pessoas serem menos religiosas, mas continuam a ter muito caos, sobretudo caos interior, não é qualquer pessoa. Metaforicamente é fácil de perceber e as religiões têm esse papel de dar ordem a esse caos, através das respostas que trazem. E depois há outro lado interessante que é, porém, que chama a atenção, que é, ele fala muito em arquétipos comportamentais e muito ligados a estes desafios e ele diz que o corpos doutrinário das religiões têm embutido muitos arquétipos do que é ser humano, da cultura humana e, por exemplo, ele fala dos heróis, por exemplo, ele diz que Jesus, ele chama-lhe um meta-herói, sabe o que é? Para ele a personalidade de Jesus é como se fosse, como se nós tivéssemos tirado o melhor de todos nós e depois desse melhor ainda fôssemos tirar o melhor por cima disso, não é? Quase, fazendo aqui a metáfora curge, quase aquela questão de destilar as bebidas, de ir tirando, purificando cada vez mais. E ele fala, temos a figura de Jesus e há outras figuras desse género, como com esse lado de, no fundo, o herói depurado, que enfrenta os dilemas de todos os seres humanos e que os resolve da maneira certa e da maneira que depois cria o exemplo para o que as
Carlos Quevedo
outras pessoas devem fazer. Sim, não sei, meteru, é interessante. Mas... Sim, é
José Maria Pimentel
um conceito que não é... Sim. Quer dizer,
Carlos Quevedo
não é... Não, não, peraí, não é interessante. O que é certo, é dizer, a intromissão de Jesus na história é realmente uma modificação muito grande na concepção de Deus. Quer dizer, o Deus personalizado, o Deus bom, um Deus justo, a santidade como modelo de vida, Isso é uma intromissão de Jesus na vida cotidiana universal, no mundo. De repente, há um modelo, ou mais do que um modelo, uma espécie de cirurgismo que funciona em todo momento. Amar os outros como a ti próprio e amar a Deus. Com essas duas coisas, primeiro se reconhece a autoridade, o origem e o fim da vida, e amar os outros torna todo o relacionamento pacífico, dialogal, de convívio e de solidariedade. Com isso, esse siloísmo de pronto responde ao problema filosófico de uma vida boa. Uma vida boa qual é? Aquela que ajuda a você. E de pronto, você pode pensar que uma coisa assim, quase hippie, de pronto é uma coisa inaplicável, ou de uma dificuldade terrível. Impraticável, não é? Terrível.
José Maria Pimentel
Impraticável, não é? Sim, exato,
Carlos Quevedo
impraticável. Mas aproximarmos-nos o máximo possível a isso, dá a sensação de que seria um mundo feliz. Mesmo que se consiga fazer o 30% de esse... Se execute, não? É a
José Maria Pimentel
questão do herói, não é? Os heróis são muito isso, não é? Até os heróis mais corriqueiros, não é? Da Marvel, não é? Claro,
Carlos Quevedo
mas eu chego na cabeça, tenho os heróis gregos... Claro, eu sei! Para mim, o monopólio é o que têm os gregos. Mas uns são inspirados nos outros, claro. Os heróis do faroeste são gregos. Que subiram disso.
José Maria Pimentel
Que eram quase heróis parcelares, em certo sentido, não é? Ou seja, tinham virtudes, mas eram virtudes... Estou a conjeturar aqui, não é? Mas tinham virtudes específicas daquela situação, não é?
Carlos Quevedo
Não só cita muito, que é a história das tentações, quando vai ao deserto e tem três tentações, o demônio aparece e o tenta com três coisas, a Jesus. As coisas que lhe propõe o demônio são, será dono de tudo isto, todo mundo te vai amar e te te obedecer e outro todo mundo vai te reconhecer. São todas coisas da sociedade de espetáculo, de pronto, e da riqueza. E Jesus diz não, não, não às três. Claro. Agora, o engraçado disso é que essas tentações são aplicáveis ainda. Exato, sim. Não? De pronto, são as tentações do poder de reconhecimento e de obediência, não? Que é como uma fantasia maléfica que todo mundo gostaria de provar alguma vez, não? Claro,
José Maria Pimentel
exato assim, se ninguém é imuno a isso, né?
Carlos Quevedo
Mas Jesus foi provido. Agora, eu queria uma coisa no princípio que mencionaste e que eu expliquei brevemente porque não havia escrito no livro que era sobre os protestantes, que é uma coisa que me deu muito apena incluir-la porque não tinha tempo para conhecer a fundo um universo que é muito, muito, muito complexo. E atrogêneo. Exato. E, Por outro lado, como podia eu meter-me num mundo onde nem eles próprios concordam? Agora, o que é fascinante, isso sim, são as primeiras figuras do Protestantismo, não? Calvino, Lutero... Mas Lutero é que... Eu gostaria, se tivesse uma oportunidade, de me meter no mundo de Lutero. Eu acho, por exemplo, que este livro faz um trabalho muito
José Maria Pimentel
meritório e tinha muito por onde ser estendido. Ou fazer outro diferente, que, por exemplo, fosse sobre o Protestantismo. Mas há ali muito para onde estender e explorar outras coisas, juntando o Protestantismo, juntando outras dimensões. E o Lutero é uma personagem fascinante. Aliás, agora fez 500 anos que está a voer, desde que ele privou
Carlos Quevedo
as teses. É muito engraçado que dizem que não poderiam ter sido todas ao mesmo tempo. Porque
José Maria Pimentel
aí eu não era...
Carlos Quevedo
Porque são muitas e só se podia escrever de um certo tamanho, Acho que eram 37 ou 33. Agora não me acordo, não é certo, mas sim. Para pôr todas, iam abrir todas as duas portas. Ou seja, também ter posto uma um dia, outra outro dia.
José Maria Pimentel
É fascículo, não é? Tipo novela. O Luther, acho que é um personagem fascinante. Eu tive esta... Aliás, é engraçado que eu estou aqui a retomar um raciocínio que me surgiu exatamente a gravar o podcast com a Esther Mouzenich, quando ela falava do judaísmo e de repente ela disse duas ou três coisas que me fizeram lembrar do Protestantismo. Na altura fiquei a pensar, isto obviamente muito superficialmente, mas fiquei a pensar se aquilo faria algum sentido ou se era simplesmente uma coincidência. Agora, o Protestantismo, se calhar por ir às raízes
Carlos Quevedo
do Cristianismo, vai ao Judaísmo. É próximo ao Judaísmo, não é? Exato. E o cristianismo, para separar-se do judaísmo, vai para os gregos. Assim como o protestantismo vê com outros olhos o judaísmo para formar sua própria tradição, o cristianismo, para separar-se do judaísmo, vê os gregos para reformular ou para formular, digamos, todo o cano. E por isso, não é por acaso que Santo Tomás, quase mil anos depois de São Paulo, se preocupa com Aristóteles.
José Maria Pimentel
Mas é engraçado, nunca tinha pensado nisso. O cristianismo tem
Carlos Quevedo
sangue grego. Mas
José Maria Pimentel
não desde sempre. O que estás a dizer é que essa busca surgiu na altura da Contra-Reforma, não é? Aquilo que falávamos do Frederico Lourençal, traduzido do grego.
Carlos Quevedo
Exato. E São Paulo era cidadano romano e não foi a Itália. Ou foi a Itália e voltou, ou morreu na Itália.
José Maria Pimentel
Mas ele era cidadano Romano, mas... Mas essa é uma concepção... Há uma concepção errada. Eu próprio lembro-me de me ter apercebido disso, porque a pessoa, quando fala da igreja, fala-se da igreja católica romana, a pessoa sabe o peso do catolicismo no mundo ocidental e pensa no catolicismo e no cristianismo como tendo surgido no ocidente, quando na verdade, no início do cristianismo, eu estava era no oriente, ao contrário. A igreja ficou em Roma, por acaso, e teve muito a ver com a questão da herança do imperador Constantino e por aí em diante, mas o centro nevrálgico do Cristianismo não estava em Roma, estava no Oriente. Exatamente, e só mudou mais tarde.
Carlos Quevedo
A mudança à Roma foi até o século V, Constantinopla era o centro do Cristianismo. 5, 6.
José Maria Pimentel
O protestantismo com o judaísmo é, por exemplo, a questão da relação com Deus. Uma das características do catolicismo é que o sacerdote é o intermediário, não é? Portanto, nada... Não é nada se faz, porque as pessoas rezam, mas é um elemento fulcral a intermediação do sacerdote. No protestantismo e no judaísmo é bem assim, e por exemplo, isso explica que em ambos os casos, isso tem contribuído para... Contribuiu historicamente para que países com essas comunidades tivessem desenvolvido mais, as pessoas eram incentivadas a ser letradas, a aprender a ler e a escrever, para poder ler os textos, interpretá-los e receber a mensagem de Deus diretamente e interagir com ele diretamente. E, por exemplo, uma coisa que continua a ser gritante para mim, por exemplo, o que eu noto mesmo em Portugal, com pessoas católicas, é isto, não é minimamente transversal como é lógico, mas há um desconhecimento grande muitas vezes da Bíblia, porque não há aquela... Embora também, por exemplo, nos Estados Unidos, eu lembro de ver um artigo sobre isso, também havia muitos americanos que não eram capazes de citar nenhuma parte da Bíblia, mas o protestantismo, há aquele cliché, um tipo vai a um hotel nos Estados Unidos e tem a bíblia na mesa de cabeceira. Há esse cliché, não é? Em
Carlos Quevedo
todos os hotéis obrigatório tem
José Maria Pimentel
um... Exatamente, exatamente. Aqui é diferente, um católico pode passar a vida inteira sem nunca abrir a bíblia. Perfeitamente, porque vai à igreja, o padre lê e há esse quase paternalismo e esse lado indireto que eu acho que é uma desvantagem que o catolicismo... Se
Carlos Quevedo
Lutero tivesse existido, que seja, 80 anos antes, se calhar não teria tido repercussão porque Gutenberg ainda não...
José Maria Pimentel
Exatamente, pois, exatamente.
Carlos Quevedo
E se Lutero aparecesse agora com tanta informação na internet, seria mais um? Ou
José Maria Pimentel
não, pois não sei, de repente sim. Também poderia ser mais um com a imprensa, né?
Carlos Quevedo
Podia ter mais repercussão. Mas, há um livro que eu falo que é maravilhoso que é o livro de Kingsley Amis onde o que passaria se Lutero tivesse negociado, o Vaticano tivesse negociado com Lutero e isso é uma grande... Sim, é especulativo mas é uma pergunta interessante para fazer em relação a
José Maria Pimentel
qualquer revolucionário, digamos assim. Quase sempre dá para fazer essa pergunta, que é, e se o outro lado tivesse negociado? Para o bem ou para o mal? Isso era uma coisa interessante. A Igreja Católica, entretanto, tem duas particularidades, isto é, face ao protestantismo e face às outras, embora com cambiantes, mas há duas características principais do catolicismo que colidem, digamos assim, com o mundo moderno. Uma é o facto de... É o celibato, por exemplo, no protestantismo, na maior parte das igrejas protestantes, os ministros, como se chama, podem ter filhos. E por outro lado, a questão de não ordenação das mulheres. São duas coisas daquelas clichés que colidem muito com o zeitgeist, com o espírito do tempo de hoje em dia. E em relação a isto, o que eu acho, isto é, no livro, o que eu não consigo ainda explicar em relação a isto, é que à partida, a minha intuição seria achar que estaríamos mais perto de ter a ordenação de mulheres do que de terminar com o celibato, porque não haver ordenação de mulheres é uma coisa que parece fazer muito pouco sentido à alusa dos nossos valores de hoje em dia. O celibato, para todos os efeitos, tem um trade-off embutido, ou seja, percebes a origem do celibato. Podes concordar, podes achar um exagero, eu acho um exagero, mas percebo que lá está. Mas se a pessoa ouvir aquilo que vem oficialmente da Igreja, tendencialmente, sistematicamente, é de que a estarmos mais perto de algum, estamos mais perto do fim do celibato, e não da ordenação das mulheres. O que é estranho, quer dizer, por que tem que ser um homem é bizarro, para mim, não sei, se calhar estou a ver isto mal.
Carlos Quevedo
Está mal começada a frase. Tem que ter em conta que a questão dos direitos das mulheres é uma coisa recente. Muito recente e muito mais recente do que se pensa, porque não foi por ter direito a voto na Inglaterra a princípios do século XX que se mudou a posição da mulher na sociedade. Isso foi um direito conquistado, bem conquistado, mas isso não muda a condição feminina ao ponto de poder penetrar em uma tradição milenar. Tenho certeza que isso vai mudar. Seguilhar não durante os anos que me restam de vida, nem sequer os teus, que te restam muitos mais, Mas há coisas que se mudam. Porque tem que pensar também que o tempo da Igreja, no caso da Igreja Católica, mas também no Judaísmo, as mudanças que se aceitam, têm um tempo muito diferente do tempo mundano, não é? O tempo normal. Insinuadovelmente, claro. E esse decalage... Mas eu acho que...
José Maria Pimentel
Eu percebo isso, mas acho que isso não explico. Por exemplo, há outra questão que é a questão dos homossexuais, por exemplo, que é abordada também no livro. Aliás, deixei muita piada porque tem um capítulo próprio.
Carlos Quevedo
Sim, sim, sim. Porque é delicado, é
José Maria Pimentel
delicado. Tem muita piada, tem um capítulo próprio. Esse é um tema, eu acho um tema interessante porque é... Eu não encontro nenhum fenómeno em relação ao qual a opinião pública tenha evoluído tão rapidamente, ao meu ver, e acho que é a opinião dos dois no sentido certo, do que na questão da homossexualidade. É que não há outro. É inacreditável a velocidade com que se passou de uma sociedade maioritariamente conservadora para uma sociedade maioritariamente liberal neste tema, na maior parte do mundo ocidental. É incrível? É boa?
Carlos Quevedo
Isso prova que sempre houve homossexuais e que sempre houve muitos e que de pronto quando se lhes dá voz, de pronto aparecem e de pronto se defendem. E de pronto têm os seus projetos e suas exigências.
José Maria Pimentel
É certo, mas durante quase 2 mil anos era coronado e era ilegal numa série de países, mesmo que no Reino Unido deixe de ser ilegal nos anos 70, se eu não me engano. Sim, sim. Foi uma evolução rápida e hoje em dia é um assunto perfeitamente resolvido, quer dizer, não há ninguém que até quase se torna tabu, ninguém pode dizer o contrário, não é? E aquilo tem direito a um capítulo próprio e o Papa Francisco, por exemplo, tem tido uma série de intervenções inclusivas em relação, não propriamente revendo, quer dizer, jamais, não é acrível que possa existir matrimónio entre dois homens, o que aliás se percebe, e isto tem uma razão, sempre que o matrimónio é diferente do casamento civil, mas a atitude da igreja é muito diferente e o Papa Francisco tem dado uma série de passos em relação a isso. Portanto, a homossexualidade está claramente encaminhada no sentido de ser resolvido dentro da igreja. A questão do celibato não está minimamente no mesmo ponto, mas ainda agora houve um tipo, um padre que teve um filho... Sim,
Carlos Quevedo
mas é muito mais normal do que...
José Maria Pimentel
É, é um tema... Um celibato tem o peso e a igreja não está longe de abrir mão disso, mas é um tema em relação ao qual tem sido feita uma intervenção. Em relação às mulheres, as declarações que eu tenho visto são de que isso não está minimamente perto de acontecer. O que é estranho, quer dizer, é estranho porque devia ser mais fácil de todos, não é?
Carlos Quevedo
E vai ser obrigatório. Agora, tem que pensar que tem que haver duas gerações, pelo menos, de obispos e cardenais que têm que morrer. Porque os obispos e cardenais são todos maiores de 70 anos, conservadores, só os novos sacerdotes têm esse contato com o ativismo feminino, não feminista, o ativismo, a vida das mulheres, que é cada vez mais importante, de todas as maneiras, não só como feministas, mas como decisoras, como membros ativos da sociedade, quando antes, até há 50 anos, elas tinham que ficar em casa. E esse era o papel normal e absolutamente aceitável até por próprias mulheres. Mas isso vai mudar. Agora, o que acho mais importante que isso, que acho que é uma questão que tem mais que ver com costumes e usos, é Quando eu falo em um livro da homossexualidade, do transgênero, estou a falar uma coisa que é importante, que é que não há escolha. Não há escolha de ser homossexual. E é uma coisa que, há muito pouco tempo, se falava da homossexualidade como uma perversão, como seria o fetichismo. A pedofilia, por exemplo. Exatamente. Que estão escondidas, como a pedofilia, o sadomasoquismo, o boilerismo, o exibicionismo, etc. Agora, a homossexualidade é uma coisa que já está comprovada que não é uma escolha.
José Maria Pimentel
É genético, sim.
Carlos Quevedo
Que depois ou floresce, digamos, ou é o mesmo. Ainda que não seja uma palavra, digamos, se exibe, se enorgulhece disso, ou se esconde e se assusta, e outro medo. Agora, quando existe a unanimidade na Igreja, dizer, bom, isso não é uma escolha, O conceito de pecado aqui, que é a transgressão a Deus, se torna completamente fora de órbita. Porque se não há escolha, Não se trata de livre alvítrio, ou livre alvetrio, que é dizer, eu escolho ser tal coisa, eu cometo mal ou escolho ir à escola das meninas e abrir a gabardine, para satisfazerme. Isto é uma coisa muito mais estrutural, mais decisiva, e aí uma pessoa por ser homossexual, não pode ser condenada. Sim,
José Maria Pimentel
porque não tem escolha sobre isso.
Carlos Quevedo
Exato. Então a Igreja, e sobretudo dentro da linha de Francisco, da Mercédico-Córdova, da compreensão e da aceitação da individualidade, que são as coisas mais importantes do papado de Francisco, isso vai ter que entrar também. E vai chegar a um ponto onde a homossexualidade, esta história de proibir homossexuais em Nucleiro vai ir à vida. Sim,
José Maria Pimentel
até porque é quase uma contradição em termos. Claro, claro. Se eu sou celibatário qual é a diferença? Claro, que não faz sentido. Claro, duas coisas que eu não queria me embora sem falar, duas coisas importantes. A primeira é a questão da morte, que é referida no livro e tem muita piada porque a pessoa quase pode entender de um certo ponto de vista que a morte é o que dá vida a Deus, digamos assim. Deus enquanto é concepção de Deus. Ou seja, aliás, tu referes isso no livro que algumas daquelas religiões, que não são mais religiões orientais como o Budismo, por exemplo, que não têm Deus, vêm a morte não cometendo uma vida após a morte, mas com uma reencarnação. Ou seja, é em certo sentido a vida depois da morte que justifica a existência de Deus, porque é quando a pessoa encontra Deus. Ali está a chave, em certo sentido. Se não houvesse a vida depois da morte, a força da ideia de Deus... Não me refiro depois à outra parte doutrinária, à parte comportamental e à parte filosófica, digamos assim, por trás da religião. Mas a força da Igreja de Deus diminuiu muito. Eu acho que... A minha intuição é que o ponto neurálgico das religiões abrahâmicas está na morte. Que no fundo é o receio que nós todos temos. Por exemplo, o Ricardo Urus Pereira, de quem nós falávamos há bocado em Ofler, em intervalo para hoje, ele tem um livro engraçado, que eu sou recentemente, e ele fala da questão da morte, por exemplo, e do humor enquanto bálsamo para a morte, e há uma série de... Outra coisa de que ele fala e é muito conhecido, são aqueles ditos quando a pessoa está no leito de morte. Por exemplo, há um do... Há vários. Há um do Voltaire que eu acho muita piada, que ele estava a morrer e o padre... O padre, vamos supor, diz-lhe qualquer coisa do género. É agora, o talha da astra emulsão, por suponho, ou algo do género, não sei se contra a vontade dele ou ou aceite, renuncia a Satanás. E Voltaire diz, bom, não parece que seja a altura certa para fazer inimigos. Eu tenho-te a piada, embora tu me dissestes há bocado no intervalo que Voltaire na verdade, ele era crente, era assim, anti-clerical. Pode ser apócrifo, mas tem muita piada. Há uma do Buster Keaton, humorista americano, que ele estava no leito de morte, há um amigo que pensa que ele está a morrer, que ele já estará a morrer, e o outro diz, toque-lhe nos pés, que os pés ficam frios quando a pessoa morre. E ele diz, o José Joana d'Arc não. Que não se melora o moro negro neste caso. Portanto, a morte tem aqui um peso enorme, e parece ser a principal pedra basilar da ideia de Deus, do Deus Abraâmico. Eu não sei o que é que achas em relação
Carlos Quevedo
a isto. Se tenta fazer da morte uma coisa natural. Ou acreditar que a morte... Puf... Há uma... Aqui é muito complicado porque... Isto
José Maria Pimentel
é injusto porque eu fiz uma sugestão reflectiva numa conversa que nós estamos a ter. Isto merecia pensar durante muito mais tempo, não é? Sim. Alguma pessoa não tem, de repente...
Carlos Quevedo
Sim. No Islam, a morte é liberadora. Agora, no Cristianismo, a morte é um... Espera, como te posso explicar isto? Porque no Judaísmo se vê a morte quase como um castigo. É algo assim como que Deus não foi o suficientemente generoso como dar-nos a eternidade. Então, de repente, é como um castigo. Mas ninguém tem eternidade. Claro, claro, Deus tem. Deus tem, no princípio. Agora, no caso do cristianismo, o que é certo é que se vê a morte como um corolário. Por isso, Pedro Bacilar daria a sensação de que estamos a fundar a religião para justificar a morte. E não é assim. A morte ninguém consegue justificar. É dolorosa em qualquer fé. O que acontece é que em alguma, como no Islam, morrer por Alá é uma coisa boa. E se morre heroicamente, se tem passagem direta ao Paraíso. Em parto do Islam, é uma... Não, não, isso é todo Islam. Se morre por Alá... Mas está no peão? Isso sim, isso sim. Isso tem passagem direto ao paraíso. Em parte do Islam, isso é uma... Não, não, isso é tudo Islam. Se morre por um lado... Mas está no peão? Isso sim, sim, sim. Isso tem passagem direto. Porque se não, depois da morte, o Islam e o Judaísmo têm uma coisa similar. A pessoa é morte e fica à espera... Não é um limbo, tem outro nome. O limbo foi eliminado. Tem outro nome que eu não me lembro. Não, não, não. Fica à espera. Fica à espera do julgamento final. Ou seja, que venha o Messias. O julgamento final é para o Islã e o Cristianismo. Para o Judaísmo é o tempo vindouro. O tempo vindouro é aquele que aí vem o Messias e acontecem duas ou três coisas mais, e então todos ressuscitamos, e os judeus vão para o paraíso, e os não-judeus que tiveram uma vida boa também poderão entrar, não no paraíso, mas nesse mundo novo. Sim. Atenção, é diferente,
José Maria Pimentel
é diferente. É um mundo novo. O paraíso é um conceito mais abstrato. E aqui estamos a falar da realidade na mesma. Exato.
Carlos Quevedo
No caso do cristianismo, se morre e diretamente se vai para o paraíso ou para o inferno, ou se é castigado por as obras feitas em vida. E depois vem o julgamento final, onde as almas retomam os corpos. E essa é a resurreção dos mortos que vem no dia do julgamento. Para sintetizar, o Islam tem duas coisas. Uma é a questão do judaísmo, que é a questão da
José Maria Pimentel
espera.
Carlos Quevedo
No caso do Islam, é até que venha o caos absoluto, e aí aparecerá Jesus e dirá que é o dia do juízo, do julgamento final. O judaísmo fica à espera da segunda vinda do Messias e dessas outras coisas para que venham os tempos vindouros e ele diz que é a medida do cristianismo a questão do paraíso e do inferno porque o judaísmo não tem inferno
José Maria Pimentel
o judaísmo é mais binário, ou está dentro ou está fora, ou ressuscita de certa forma ou não ressuscita. Eu digo aquilo porque... Obviamente uma conjetura, não é? Mas se nós... Vamos assumir uma... Um universo paralelo em que as pessoas eram imortais. Imortais naquele sentido não de serem imunos a terem um acidente, mas no sentido...
Carlos Quevedo
De encarnar-se? Não, no sentido
José Maria Pimentel
de não envelhecerem, não morrerem, portanto não terem a morte como um destino natural. É muito mais difícil entender a existência de Deus num universo desse género, porque grande parte da doutrina cristã está relacionada com o facto de a pessoa irter com Deus depois de morrer, e do dia do juízo final, e daquela questão se vai para o inferno, se vai para o paraíso, ou se fica naquele límbito como purgatório. Claro.
Carlos Quevedo
E... É dizer, a imortalidade traria muitos problemas,
José Maria Pimentel
para já ser... Não, traria imensos, claro.
Carlos Quevedo
É dizer, em um mundo de imortais, deveríamos... A reprodução deveria ser limitada... Exatamente, sim. Não? De uma maneira, pero drástica, porque senão já não havia lugar. Imagina toda a gente que... Tinha uma série de implicações.
José Maria Pimentel
Tinha implicações terríveis. Eu não sei se lê-se... Por... Diz. Não, fazendo aqui ao aparelho, eu não sei se és fã do Tolkien. Não. Do Senhor dos Anéis. Ele tem... Quando era miúdo era um grande fã do Tolkien e há um livro que ele tem que, no fundo, é daquele universo do Senhor dos Anéis, mas antes disso, que chamam-se Ilmarillion, que é do, no fundo, é umas eras antes do Senhor dos Anéis, e há uma realidade que ele retrata que é exatamente de pessoas, que na prática eram deuses ou semi-deuses, que não morriam, que eram imortais. E há uma série de implicações daquilo, que na altura me lembro de pensar que aquilo tinha uma meta interpretação, tinha uma interpretação para o lado daquilo, e que era exatamente as dificuldades trazidas pela imortalidade, porque a morte também te liberta em certo sentido, ou seja, a morte permite a renovação e as gerações novas têm valores diferentes e a sociedade vai evoluindo pelas gerações novas. E se as pessoas não morressem, isso era impossível. Eu estava a dar o exemplo de não existir morte para, no fundo, criar uma espécie de realidade estilizada onde não existisse a necessidade de morte.
Carlos Quevedo
A identidade é das animais. Porque uma formiga agora é a mesma formiga que há 200 anos estava neste chão. Era igual, as mesmas reações. Os tigres são iguais aos tigres há 200 anos. Não só a memória, mas que têm a mesma atitude, a mesma existência e é como o mesmo tigre. Não
José Maria Pimentel
tem memória coletiva. Exatamente, sim. A causa, por exemplo, a reencarnação é muito isso e há aquele lado dos... Nós não falámos, obviamente em um país que era um outro tema diferente, das religiões orientais, mas, por exemplo, no Japão eles têm... Pegando esse lado do tigre ser o mesmo tigre, mas por serem tigres diferentes, fazendo aqui uma ponta que pode não ser completamente direta, mas no Japão, por exemplo, eles têm um fenómeno engraçado, eles constroem determinado monumento em madeira, normalmente. E o que eles fazem? Ao contrário de nós que os construímos em madeira. Foram há vidas, construímos em pedra, continuam e, portanto, continuamos. E nós valorizamos muito aqueles que sobreviveram, como as igrejas antigas, ou as pirâmides indo mais para trás, ou os templos gregos. E eles o que fazem é... Há um templo, vamos supor, que é construído em madeira, e o que eles fazem é voltar a construí-lo periodicamente. E é o mesmo templo. Mas depois aquilo cria um dilema que é aquele templo, é o templo com mil anos que foi reconstruído 20 vezes ou é o templo com 50 anos que foi construído há apenas 50 anos. É difícil, não é? Se calhar é um bocado essa metáfora do Borges com o outro. Só para terminar, há uma coisa que eu não queria deixar de falar contigo, que eu acho interessante, é algo que eu sinto, que eu enquanto pessoa fundamentalmente agnóstica sinto, e acho um fenómeno muito interessante da contemporaneidade. Houve uma altura, e é nesse sentido a altura do Voltaire, é uma coisa que vai e vem, em que havia um ateísmo, o ateísmo surge e ele é militante. E nós também temos isso hoje em dia. Richard Dawkins, por exemplo, é o chamado neo-ateísmo, neo-ateus, portanto é um ateísta militante desse sentido, de discutir a questão da existência de Deus, por exemplo, ou discutir uma série de preceitos.
Carlos Quevedo
Esse outro tipo de religião. Sim, é certo. De Richard Dawkins, essa outra religião.
José Maria Pimentel
Ele por acaso teve uma afirmação recente que eu achei graça que ele descrevesse como um cristão laico. Está bem. Eu achei graça a isso, por acaso. Achei piada a isso, até porque uma das coisas que eu falava, por exemplo, com o Esther Mouzonic era o judaísmo é diferente nisso, o judaísmo, um judeu é sempre um judeu mesmo, que seja um judeu laico ou até um judeu ateu, é uma diferença, mas isto tem relação ao ateísmo. O que eu noto hoje em dia que é muito engraçada é que a questão da religiosidade passou de um plano público para um plano particular e o que nós temos hoje em dia é que há uma espécie de respeito tácito pela religiosidade de cada um e não é questionável e até é quase um tábuo em certo sentido e o que acontece é a pessoa pode ter uma conversa, eu posso estar a ter uma conversa com uma pessoa que é crente, estamos a falar de religião, no fundo, esta conversa que nós tivemos, toda esta conversa, é possível ser tido entre um crente e um não crente interessado no tema, sem nunca se perceber qual é, se algum daqueles é crente ou não. Ou seja, não há necessidade disso e isso não é trazido, não é expectável que nenhum traga isso à superfície, o que a partir da parece um contrassense. E depois, também outra coisa que acontece, que está relacionada com esta, é que se de alguma forma vem à baile e a pessoa diz eu de facto sou católico, vamos ser católicos porque vivemos em Portugal, mas podíamos ser outra religião qualquer, quase que gera um silêncio desconfortável porque não há bem uma resposta para aquilo. Ou seja, hoje em dia, implicitamente, parece-me que o consenso que existe, quase um acordo tácito entre ateus e... Ou agnósticos e crentes, é que é um tema... É um tema de cada um, é um tema que nós não tocamos, é um tema subjetivo, que diz respeito ao terreno das emoções e portanto que não é para ser discutido à mesa. E eu acho isso engraçado porque houve tempos em que se discutia seriamente. As pessoas quase se chateavam porque eu sou ateu e tu és crente ou vice-versa e quase como a política. Não, claro, exatamente como a política. Em uma altura se discutia como se fosse política e incluso ter uma religião implicava estar em um certo sector político. Como a política, não é?
Carlos Quevedo
Mas agora não.
José Maria Pimentel
Mas continua a ter uma certa relação com o... Há pessoas do, por exemplo, o Jair Manuel Pureza, Sávão Hegra é católico e há do bloco de esquerda, por exemplo. E há ateus
Carlos Quevedo
à direita. E antes era
José Maria Pimentel
impensável isso. E há ateus à direita. O Pacheco Pereira, por exemplo, estava a ver também ateu e... Bem, agora não está tão à direita, mas originalmente estava. Não conta. Pacheco Pereira não conta. Exatamente. Mas é inegável que continue a... Há uma correlação entre a disposição no espectro político e a disposição no espectro do ateu crente. Mas o assunto deixou de ser falado, não é discutido, é quase como estarmos a meter na vida dos outros. Claro, sim. O assunto é que os ateus
Carlos Quevedo
têm mais pudor agora. Exatamente. Porque ser católico não é estar a falar do catolicismo o tempo todo e os judeus também não falam do judaísmo o tempo todo, a não ser para fazer uma piada. Mas... Exatamente. Mas, em uma época, os atuais faziam questão de... Ah, eu não vou nessa treta. E tu, se vas nessa treta, é porque tá, tá, tá, tá, tá,
José Maria Pimentel
tá.
Carlos Quevedo
Acho que é natural. E, de todas as maneiras, também acho que o nível de convicção... Mesmo os ateus estão menos convictos do seu próprio ateísmo, e há muitos cristãos que
José Maria Pimentel
também. É menos militante, não é? Claro. O exemplo do Dóquines, por exemplo, é um exemplo raro, não é? Não é uma coisa que exista
Carlos Quevedo
muito... Claro, porque foi uma moda que começou nos anos 70 e que eu acho que morreu a princípio do ano 2000, porque já não há tanta gente que saia tão desenfreadamente a atacar o Papa ou a atacar as religiões. Até porque
José Maria Pimentel
a minha intuição é que houve aqui uma espécie de acordo tácido. Entre quem e quem? Entre os crentes e os ateus, não organizado, daí isso é tácito. É o respecto da língua. Não, mas é um acordo, eu acho que é um acordo implícito, que é, no caso português, por exemplo, os crentes não se... É aquela questão do Deus é que é de Deus, a César é o que é de César, não é? Portanto, os crentes não se... Os crentes deixaram-se... A Igreja deixou de se meter tanto nos assuntos civis, digamos assim, tirando aqueles como o aborto, por exemplo, que tocam em pedras basileiras. E do lado dos ateus, Há o outro lado desse acordo que é respeitar a crença de cada um e não estar sempre a atacar a pessoa. No fundo é como se a pessoa, no limite por absurdo, é como se eu falo com alguém que diz que é crente, eu digo, mas crente como? Mas achas que Deus existe? E dava uma série de... E depois é um assunto que... O assunto é a existência de Deus. Eu reconheço que é um assunto que não pode bem ser discutido apenas no terreno do racional. Porque no terreno do racional é um debate perdido à partida. Não faz sentido.
Carlos Quevedo
Claro. A parte de... É dizer, se pode discutir religião entre pessoas religiosas, em realidade, não? O resto é mesmo uma conversa interessante para conhecer as perspectivas, que é diferente. Eu sou um mago católico. Minha formação foi extremamente católica e, ah, outra coisa importante, o catolicismo varalhou as cartas quando nos anos 60 começou o movimento da teologia da libertação da libertação. E então, de pronto, os católicos não estavam no poder, digamos, mas contra o poder. E eu vivi isso muito de perto, porque toda... A coisa... Se vivia muito de perto isso quando se era católico na Argentina, nos anos 70, onde... 60, 70, onde os pais, os trabalhadores, onde havia movimentos, protestos católicos, manifestação feita por trabalhadores católicos da metalurgia. Pum! Escucham isso! Claro, sim! O catolicismo de esquerda, não é? E aí se baralharam, não é? Sim,
José Maria Pimentel
até o dia da libertação tem muita graça nesse sentido porque baralha completamente as contas.
Carlos Quevedo
Sim, e ainda existe, e em Sudamérica ainda existem os padres soberanos. É dizer, padres soberanos, padres que só insistem em trabalhar em as zonas marcinais. Coisa que não é... Em Europa isso não é um problema, no sentido de que não são tão enormes, tão grandes, tão enormes as zonas fabélicas, que são chamadas de vilas-vilas-misérias, são enormes e pronto, e aí estão os pais a lutar e a sentir os problemas mesmos, que são Problemas irresolúveis, porque quando se fala de pobres não se percebe que há uma vida de pobres que não tem solução. Quer dizer, ser filho de pobres e ser pai de pobres e ser pobre, porque ainda não existe a verdadeira democracia. Quer dizer, todos temos uma oportunidade, não é? Caramba! Claro, claro, claro. Não há oportunidade. E nisso a religião é importante para que isso seja uma integração, de pronto, católico-pobre, católico-rico têm coisas em comum. Sim,
José Maria Pimentel
Exatamente. Eu vou terminar aqui, que acho que já estou farto de nos ouvir. Mas o que é, e acho que é um bom ponto para terminar, algo que é inegável é que parece-me, se calhar estou a ser demasiado etnocêntrico, mas isso parece-me ser especialmente verdade no cristianismo, é que está ali algo que serve de inspiração a realidades muito diferentes, ou seja, aquilo serviu de inspiração aos primeiros cristãos no Médio Oriente, serviu de inspiração aos cristãos na Roma, serviu de inspiração aos cristãos na Península Ibérica, aos cristãos nos Estados Unidos, seja cristãos brancos, seja os cristãos negros que lutar pelos direitos civis e serve de inspiração na América Latina, tanto à direita como à esquerda, como neste caso a trilogia da Libertação, o que é incrível a partir do mesmo livro. Obviamente que a pessoa pode argumentar e é fácil perceber que há ali também alguma dose de, no fundo, criar lá aquilo que não está, mas está lá algo que as pessoas estão a se correr e isso mostra, eu acho que é inegável, que aquele livro é especial. Isso é incrível. Carlos, muito obrigado, foi uma conversa impecável. Eu gostei muito e fazemos o turno à parte 2 daqui a uns meses. Isso era o batom. Olha que Isto está a gravar ainda, agora ficou prometido em ONU. Não, não. Tenham gostado dos últimos episódios? Se ainda não o fizeram, subscrevam o 45° na vossa aplicação de eleição, no vosso smartphone, tablet, etc. Se gostarem mesmo do podcast, convido-vos também a partilhá-lo com amigos e a avaliá-lo no iTunes. É também importante para mim saber o que vai na cabeça de quem ouve o podcast desse lado. Por isso são muito bem-vindos, feedback, críticas e sobretudo sugestões de temas e convidados futuros. Obrigado e até ao próximo episódio!