#2 José Milhazes - Rússia

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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45°. Neste episódio estreio a conversa com José Melhazes para tentar compreender a Rússia. Especificamente vamos falar da história do país, da geografia, da União Soviética também e mais recentemente das políticas de Vladimir Putin E vamos de alguma forma oscilar entre um tipo de análise que se centra naquilo que eram os condicionantes históricas que sempre existiram e que de alguma forma se podem manter e, por outro lado, aquilo que são as políticas mais recentes e que, na opinião de José Melhazes, se devem essencialmente a más decisões da parte do governo Putin nos últimos largos anos. José Melhazes, que todos conhecemos pela sua imponente barba, que é a inveja apóstoma de Rasputin, é um convidado excepcional para compreender a Rússia. Por um lado, tem formação académica em História da Rússia, com doutoramento concluído em 2008. Por outro viveu no país desde 1977, sendo que desde o início dos anos 90 foi correspondente em Moscovo de vários órgãos de comunicação social e inicialmente do público. Na Rússia José Milhaço foi testemunha primeira mão do regime soviético, inicialmente, com o qual se foi progressivamente desencantando, e posteriormente da queda da Cortina de Ferro, a transição para a Rússia e mais recentemente das políticas de Vladimir Putin. O mote para a nossa conversa foi a leitura de dois livros que o jornalista historiador publicou, um deles um ensaio histórico chamado Rússia e Europa, uma parte do todo, o outro um misto de uma autobiografia e de uma peça jornalística na primeira pessoa chamada As Minhas Aventuras no país dos sovietos, uma referência com alguma nota de humor a um livro do Tintim. Milhazes está de resto numa senda criativa, visto que só em 2017 já leva três livros publicados, sendo que falámos deste último durante a nossa conversa. Finalmente fica à nota para que foi o próprio José Milhazes que amavelmente sugeriu que eu usasse apenas o apelido, visto que esse é o modo como é normalmente tratado. Sem mais demoras, vamos então conversar com o José Milhazes. Viva José Milhazes, Bem-vindo ao podcast, obrigado por ter aceito o convite. Obrigado, eu? Havia o... Este é um episódio especial de certa forma para mim, como eu já lhe disse isto em off, que eu tinha... O José Melhazes deu-me uma ajuda de certa forma não intencional, mas parte do... Ou resultante do trabalho que tenho com o blog, num trabalho que eu fiz na faculdade e que foi dos trabalhos que eu mais gostei de fazer, ainda por cima, na altura sobre a questão da relação entre a Rússia e a Europa e a Europa, lá e a União Europeia, e na altura tinha muito a ver com a questão energética que estava na ordem do dia. Portanto, desde aí pelo menos que eu sigo o seu trabalho. Já agora, antes de começarmos, também dou uma nota adativa ao que estávamos a falar antes, que é o do livro que vai sair agora em outubro, o pensamento geopolítico e filosófico da Rússia entre o século IX e o século XXI. Exatamente. Portanto, para sair em outubro. Agora, em relação à Rússia, esta conversa tem... O Milhado está aqui enquanto, por um lado, especialista na história da Rússia, porque é alguém que tem um doutoramento em História Rússia, por outro lado, como alguém que viveu na Rússia durante 38 anos e isso é uma experiência única, não diria única, mas pelo menos especial e que dá uma vivência dentro que um ocidental, um europeu não russo, tem muita dificuldade em mimetizar porque é uma experiência de viver as coisas dentro, não é? E a pessoa de fora nunca tem essa vivência por dentro. Eu começava por uma questão, analisando a Rússia do ponto de vista mais macro, quer dizer, olhando de trás. A sensação com que eu fico, e acho que não é, que é comum a outras pessoas que observam a Rússia, é que quando a pessoa analisa determinado período da história da Rússia ou até a contemporaneidade da Rússia, mais do que uma determinada conjuntura, há elementos estruturais que estão sempre presentes, ou seja, há elementos estruturais que vêm desde sempre e se mantém até à atualidade e continuam a ditar a ação dos líderes russos, sejam eles czares, sejam eles soviéticos ou da Rússia contemporânea. Aquilo que me ocorreu a pensar sobre este tema foi dividir em três vertentes. Uma delas tem que ver com a geografia, que é particularmente importante na Rússia, é importante em todos os países, mas na Rússia é especialmente importante. Outra tem que ver com a história, com as condicionantes históricas da Rússia, e obviamente estão interligadas. E uma terceira, que tem que ver, e que também está obviamente interligada com as outras, que tem que ver com uma cultura russa que é muito particular, muito sui generis e muito diferente da cultura ocidental. O que desde logo torna difícil, como eu dizia aos ocidentais, entendamos, europeus do Ocidente e Centro-Europeu e Norte-Europeu perceber devidamente a Rússia e aquilo que está em jogo. Havia aliás uma frase do Henry Kissinger, o secretário de Estado americano durante a Guerra Fria, que ele dizia que do Pedro Grande a Putin as circunstâncias mudaram mas a cadência tem se mantido quase inalterada ao longo dos séculos. E é um bocadinho essa a sensação que eu tenho. Começando pela geografia, eu gostava muito de saber a sua opinião em relação a isto. Dentro deste, identifica pelo menos três fatores geográficos que são muito importantes. Um tem a ver com a ausência de fronteiras fixas, exceto no Norte e no Leste, exceto as oceânicas, as marítimas. E essa, e isto liga com o segundo fator, essa ausência de fronteiras fixas é sobretudo, cria sobretudo uma fragilidade no Ocidente, a Ocidente de Moscou, visto é no chamado grande planalto norte-europeu, criar ali uma espécie de campo por onde a Rússia sente que pode ser invadida a qualquer momento.
José Milhazes
Isso do... Se olharmos do ponto de vista histórico, a Rússia sempre se sentiu entre o Ocidente e o Oriente. Exato. E uma pressão fortíssima, hora de um lado, hora de outro. Pressão não só militar, mas também em termos de cultura, de modo de vida, porque a Rússia é um continente, não é? É
José Maria Pimentel
um país.
José Milhazes
Alguns dizem que continua a ser um império, os russos acham que não, mas... Os russos acham que não? Não.
José Maria Pimentel
Isso é curioso.
José Milhazes
Os russos, quer dizer, eu quando falo dos russos falo da maioria da mentalidade, da mentalidade e dos homens que estão no poder, eles não consideram que a Rússia seja um império, eles consideram que a Rússia é um país formado por diversos povos, mas de forma voluntária.
José Maria Pimentel
Harmoniosa. Exatamente. Porque eu pensei que estivesse a usar império no sentido de potência, mas claro, império no sentido de outros povos conquistados. Exato. Tanto é que alguns historiadores
José Milhazes
e na era soviética e mesmo agora, e pensadores, dizem que a Rússia não conquistava, aderiam à Rússia. Na era soviética, lembro-me que havia sempre um paradoxo muito interessante, é que na época em que eu estudei, os anos 70, 80, se celebraram uma série de centenários da adesão voluntária do casacoistão, da kirguísia do esvaiquistão à Rússia. E então nós, os historiadores, e não só, e as outras pessoas que têm alguma cultura, ríamos-nos porque Lenin dizia que o Império Russo era a prisão dos povos, ou seja, os povos entravam voluntariamente
José Maria Pimentel
na prisão.
José Milhazes
Ora, havia aqui um contracenso. Mas, neste momento, e isso é também fundamental, é que Nós não podemos analisar a geografia da Rússia como se estivéssemos a analisá-la antes do aparecimento da bomba atómica e dos mísseis, quer dizer, porque as formas de ataque e de defesa mudaram completamente e transformaram completamente o fator geográfico. Nós não podíamos dizer que neste momento seria possível, embora todas as invasões da Rússia falharam e em guerras com o emprego de armas convencionais falham sempre por um motivo, a carroça é muito grande e não pode ser conquistada.
José Maria Pimentel
E demora a chegar lá, não é? Por terra demora? Sim, mas pode... Demorava, sobretudo? Napoleão conquistou Moscou, no Adente, ou coisa nenhuma.
José Milhazes
Quer dizer, acabava... Se o Hitler tivesse conquistado Moscou, acontecia-lhe a mesma coisa. Iria ter, certamente, problemas logo a seguir. Daí que, neste momento, é outro tipo de, digamos, de guerra que eu espero que não aconteça, que é o emprego de mísseis que podem demorar minutos a chegar a Moscou ou de Moscou a uma cidade qualquer da União Europeia. Nesse sentido, são geografias completamente diferentes. Mas acho, isso é
José Maria Pimentel
engraçado, porque esta questão da geografia recolheste um livro interessante, que aliás cuja tradução em português chegou há pouco tempo, do Tim Marshall, que se chama Prisioneiros da Geografia, e o que ele faz, e é interessante por ser contraintuitivo, é trazer, relevar a questão geográfica que normalmente está mais ou menos implícita nas análises que são feitas, mas muitas vezes não está explícita. E o argumento dele é justamente, em certa sensida, o argumento contrário. Não é bem contrário, mas ele põe algum pendor na questão geográfica e o que ele diz é que mesmo com, em última análise, com a bomba nuclear, como é evidente, mas mesmo com mísseis de longo alcance e com drones e tudo mais, a questão geográfica continua a ser relevante, ou seja, continua a ser relevante aquilo que está próximo e aquilo para onde se pode enviar homens e aquilo onde se pode agir diretamente. Quer dizer, eu não estou de acordo com essa tese porque eu não estou a imaginar uma guerra de se que
José Milhazes
a guerra se vai fazer antes de se começar. E esse esquema seria bom, se por exemplo, seria bom se aos seis...
José Maria Pimentel
Sim, seria válido.
José Milhazes
Seria válido, exato. Se, por exemplo, os dirigentes da NATO se juntassem com a Rússia e dissessem, olha, nós vamos combater, mas só com armas convencionais. Quer dizer, nós não estamos nessa fase. E nós não estamos... Basta olhar, basta olhar para o problema da Coreia do Norte. Quer dizer, onde um país pequeno se transforma... Numa ameaça. Numa ameaça absolutamente desconhecida, que não se sabe bem. É uma ameaça muito maior do que todos os exércitos convencionais da NATO.
José Maria Pimentel
Mas a bomba atómica, muda as regras do jogo, mas a bomba atómica, apesar de tudo já cá está há largas décadas e a guerra não deixou de continuar de outras formas mais tradicionais, socorrendo-se de alguns mecanismos modernos, e lá está, de mísseis de longo alcance, mas mantendo a guerra nuclear fora do ponto de jogo, sabendo-se que, obviamente, isso implicaria provavelmente o fim de ambos os lados. Exato, mas até que ponto? Porque
José Milhazes
no caso da Europa e da União Europeia e da Rússia, E eu não estou a ver qual será o fundamento para, digamos, o início de uma guerra de grandes dimensões, mesmo convencional. Porque... A Europa não
José Maria Pimentel
tem exército, desde logo, portanto seria
José Milhazes
difícil. Seria anato, porque desde logo seria uma guerra que teria um poder de destruição gigantesco e atiraria a Rússia e a Europa para o underground, para o submundo, não era para o terceiro mundo ou para o quarto mundo, em termos de desenvolvimento. Isto é a primeira coisa que... E depois, Quer dizer, não há motivos, até porque existem armas de contenção, não há motivos para que essa guerra exista. Há políticas que tornam ou que chegam a determinados pontos perigosos, mas é tal linha vermelha que não deve ser ultrapassada. Agora, imaginar uma guerra convencional e entre a Rússia e a Europa, eu não estou porque ela vai acabar por se transformar numa guerra com o emprego de armas de destruição em massa.
José Maria Pimentel
Mas aqui tão importante como poder haver guerra é a ameaça dela, ou uma escalada militar que pode nunca se chegar a concretizar, mas vai medindo as forças entre ambos os lados. Em relação à questão geográfica, aquilo... A última coisa que eu lhe queria perguntar em relação a isso, fazendo da advogada o diabo em relação ao argumento que o Milhardo estava a dar, é a questão da maneira como a Rússia tem reagido à aproximação do Oceano, nomeadamente à aproximação dos Estados Unidos. E não me parece ser indiferente ou não parece ser igual à Rússia os Estados Unidos ter um arsenal em casa ou ter um arsenal noutros países e esse mesmo arsenal estar na Polónia ou chegar à Ucrânia, por exemplo. O que me parece ter acontecido é que, e aí a geografia de facto teve um papel importante, é que a Rússia sentiu-se ameaçada quando a NATO começou a aproximar, a roer os calcanhares para essa expressão da Rússia e aproximar-se do ocidente da Rússia cada vez mais, a partir do momento em que está na Polónia, a partir do momento em que está na Ucrânia e começa a tentar fazer a Ucrânia aproximar-se do Ocidente. Sendo que, na próxima Ucrânia, e essa é uma outra questão interessante, a base, o território humano da Rússia, porque a civilização russa começou em Kiev.
José Milhazes
Eu não diria que a civilização russa começou em Kiev, Isso é uma questão muito complicada. Uma parte do mundo eslavo, ou os chamados eslavos orientais, tem o início da sua civilização em Kiev. Mas eu queria lembrar uma coisa. No tempo da Guerra Fria, os Estados Unidos tinham mísseis na Turquia, que está pertíssimo da União Soviética. Assim como a União Soviética chegou a ter, em determinado momento, a ter
José Maria Pimentel
mísseis em Cuba. Justamente, estavam a cada um a retaliar o que faça ao outro.
José Milhazes
Exato. O problema aqui, e eu penso que é uma situação em que a direção russa está a cair num erro. Foi o mesmo erro que caiu a União Soviética. E o mais incrível é que, de forma tão evidente, que não se consegue compreender às vezes como é que estas coisas sucedem. Ora, repara uma coisa, a União Soviética, uma das formas, ou uma das vias que levou ao fim da União Soviética, foi a corrida aos armamentos. Mikhail Gorbachev, quando chegou ao poder, uma das primeiras regulações que fez foi, nós em armamentos gastamos 40% do orçamento de Estado. Quer dizer, é um absurdo. Os Estados Unidos hoje gastam 10% e já é muito. Um baile nos deus. Isso adiantou alguma coisa à União Soviética? Não, porque a União Soviética era uma grande potência, mas com os pés de barro. E os pés de barro eram o petróleo e o gás. O que tiraram era a economia em geral. Tinha uma economia muito fraca, tinha um desenvolvimento humano muito aquém do europeu ou do norte-americano. E são todos estes fatores que levam à queda da União Soviética e que logo agora volta-se a colocar o mesmo problema. A Rússia tem dinheiro para manter uma corrida aos armamentos? A Rússia tem dinheiro para manter uma guerra de grandes dimensões e durante muito tempo? Isso são tudo questões que se devem colocar.
José Maria Pimentel
Porque a última análise é o que importa, e o PIB russo é cerca de 10% do PIB americano.
José Milhazes
Por exemplo, agora vamos imaginar que é possível a tal guerra entre a NATO e a Rússia. Quer dizer, não se vai pensar, mesmo pensando no... Os russos podem chegar até onde quiserem, mas o esforço de guerra para eles vai ser incomportável. Além disso, eles sabem também que o problema não é a Europa, o problema é a China. Esse é que vai ser o grande problema
José Maria Pimentel
para a Rússia.
José Milhazes
Claro que é esse tipo de retórica, muitas das vezes agressiva, militarista, por parte da Rússia, é uma espécie de complexo de inferioridade que continua a existir. Continua a existir porquê? Porque quando Putin chega ao poder e tem o petróleo a subir a preços nunca vistos, O lógico seria pegar nesse dinheiro e investir na modernização do país. Não foi. Modernizaram as forças armadas, sem dúvida, mas as infraestruturas e a criação de grandes alta tecnologia não se vê. Ou se vê, ou se ela existe, está fechada no sector militar. Acontece a mesma coisa
José Maria Pimentel
que na União Soviética. Na indústria pesada, na indústria do armamento.
José Milhazes
Exatamente. É que ninguém imagina, nem pode imaginar, que os fogotões soviéticos voavam para o espaço sem existir um computador. Eles tinham um computador. E se calhar, eles só não tiveram primeiro computadores do que o Ocidente, porque a cibernética foi uma ciência proibida por Stalino. Considerava a cibernética e a genética duas pseudociências. E claro que se via que na União Soviética existia um grande potencial científico, não há dúvida, mas esse potencial ficava todo no setor militar, pouco dele saía para o sector civil. E esta também é uma das causas que levava a que os soviéticos tivessem um nível inferior de vida aos europeus e ao descontentamento das pessoas. Por isso, cada aventura em que Putin se envolve em termos de política externa é uma machadada na Rússia. Vamos supor que a Rússia é uma árvore e Putin está a dar machadadas na árvore. Ou está a cortar o ramo onde a Rússia está sentada. Porquê? Porque uma das razões é exatamente essa. Por exemplo, a guerra na Síria, o Assad com a ajuda dos russos pode vencer. Mas vencer como? Como? Aqueles grupos todos vão desaparecer todos? E mesmo que desapareçam, quem é que vai reconstruir a Síria? Isto são tudo perguntas que às vezes as pessoas não pensam, pensam só nos êxitos militares. Claro,
José Maria Pimentel
uma vitória de Pirro, não é? Exato,
José Milhazes
exato. Como foi o Afeganistão. O Afeganistão foi uma das causas da morte da União Soviética, a Guerra Civil em Angola, por exemplo. Era o
José Maria Pimentel
Vietname da União Soviética. Exato.
José Milhazes
Como lhe chamou o Brzezinski, por exemplo, aquele politólogo famoso americano. Mesmo a guerra civil em Angola, os soviéticos forneciam armamentos grátis. Quer dizer, isso, juntando estes conflitos todos, levou a que a União Soviética não tinha pernas para andar e caiu. E é isso que eu receio que neste momento está a acontecer outra vez.
José Maria Pimentel
Aconteça de novo. E a história se repita. O que é engraçado com o Putin e leva-nos a outra particularidade russa, parece poder justificá-lo, é que ele tem essa política, que é uma política fácil de analisar externamente, ou seja, é fácil, a pessoa tem a partir de quase tudo na mesa de que precisa para fazer um julgamento em relação a essa política e, porém, ele parece ter níveis de popularidade extremamente elevados, por muito que seja difícil por muito que seja difícil confiar nos dados, a verdade é que tudo indica que sim. E me parece, vendo-o de fora, os humilhados conhecem isso muito melhor do que eu, porque conhecem-o por dentro, o que me parece estar por trás disso é o facto dele apelar ao patriotismo russo que se mantém desde sempre e que gosta, no fundo, de o ver a jogar o jogo dos reis.
José Milhazes
É uma pseudo-grandeza. É uma pseudo-grandeza. Isso leva a Putin tentar, recorrendo à linguagem de futebol, a tentar querer jogar na primeira divisão com uma equipa de segunda. Exato. Esse é que é o problema. Porque neste momento, neste momento, há duas superpotências. Chamas uma China e a outra Estados Unidos. A Rússia só é superpotência, ou só é grande potência, chamamos-a assim, porque tem armas de destruição e em tanta quantidade que destrói mesmo tudo se és empregado.
José Maria Pimentel
E porque está no Conselho de Segurança da ONU.
José Milhazes
Exato, e pronto. Mas, até que ponto, e isso para uma grande parte dos russos, aqueles que veem televisão, veem muita televisão, ficam todos contentes, às vezes É um pouco como na Coreia do Norte, que as pessoas ficam todas maravilhadas porque nós lançamos um míssil e então a televisão mostra o míssil e cria-se uma realidade um pouco enganosa. Porque, por exemplo, a geração mais nova russa já começa a ter outro tipo de olhar. A geração antiga, a geração da televisão, exatamente tem essas ideias. A geração mais nova, a geração da internet, já começa a ter um olhar mais diferente em relação a essa política. Claro que Putin tem grande popularidade, e eu não diria quanto, diria mais de 50%, agora os 80% acho exagero. Mas o problema aqui vai ser é quando as pessoas começarem a ver a situação em que o país se encontra. Esse é que é o problema que se coloca e que sempre se colocou. Porque quando se tratou da União Soviética, a União Soviética também era a melhor, era a melhor no espaço, tinha o melhor bailado do mundo, etc., por aí fora, e depois veio-se saber que por trás daquilo... Quer dizer, sabia-se, só que a propaganda que se fazia que está tudo fantástico. E além disso, aqui na Rússia há uma componente que na União Soviética existia mas em dimensão muito menor, que é a corrupção. A Rússia, neste momento, tem um dos países mais corruptos do mundo. Sim,
José Maria Pimentel
é a economia avançada, mas...
José Milhazes
Mais corrupta do mundo. Quer dizer, Não há negócio que não se faça sem luvas. E isso aí também contribui para o enfraquecimento da própria Rússia. Claro que as pessoas ficam todas felizes quando o Putin mete um oligarca na cadeia. Mas
José Maria Pimentel
é um oligarca dos outros.
José Milhazes
Dos outros! Por que os amigos dele continuam. E continuam a viver a grande e a francesa e a roubar. E isso ai não contribui de forma a que o país avance e se desenvolve. E esse é aquele grande problema que eu acho que está a acontecer hoje na Rússia. A Rússia está a perder o comboio da modernidade. Está a perdê-lo muito rapidamente. A questão é se tem percepção que isso está a acontecer, não é? Há pessoas que têm. Há pessoas que têm. O poder, as pessoas no poder, acho eu, já estão numa das fases de sobrevivência. Tentarem aguentarem o mais possível... Contenção
José Maria Pimentel
de perdas.
José Milhazes
Exato. E tentarem manter-se o mais possível no poder para aguentar, digamos, as suas riquezas e os seus privilégios. Mas até quando aqui isto será possível? Nós não sabemos. Há pessoas que dizem que isto pode demorar muito tempo, há pessoas que dizem que pode demorar menos tempo, que há sempre um fator que é muito importante na política russa, que a política russa é uma pirâmide invertida. Tudo se centra, na parte de baixo, no Putin. Se tirar o Putin, o que é que vai acontecer à pirâmide? Rui. Exatamente. E de que forma vai ruir? Qual será o futuro? Porque Putin é uma pessoa como outra qualquer, ele vai morrer como outra pessoa qualquer, morre. Claro.
José Maria Pimentel
Embora ele seja relativamente novo ainda.
José Milhazes
Tem 64 anos, mas se for para um novo mandato e ele já vai sair de lá, já vai sair? Não, porque ele pode prolongar eternamente.
José Maria Pimentel
Tem seis anos, não é, os mandatos?
José Milhazes
Não, presidenciais têm sete. Sete,
José Maria Pimentel
exatamente, é isso.
José Milhazes
No fim do próximo mandato, se ele se recandidatar, o que é muito provável, ele vai ser mais velho do que o Gorbachev e mais velho do que o Yeltsin. Vai ser o presidente mais velho desde 1985. E o que neste momento nós temos é um período de estagnação. Claro, não se pode excluir a possibilidade de Putin mudar de rumo e começar a tomar outro tipo de política quando vir que a situação está má.
José Maria Pimentel
Mas é improvável até porque é difícil. Há um comprometimento já com uma determinada filosofia que é difícil desdizer
José Milhazes
nesta fase. Sim, mas aqui há uma coisa, o Putin evolui. Eu falei-lhe naquela antologia que nós vamos publicar. Exato. Eu diria que o autor mais prendado, que tem direito a mais textos, é Putin. Ah, sim? É. Putin tem direito a quatro textos, que são todos fundamentais. É um, desde que ele logo chegou ao poder, uma conversa com intelectuais escoceses, onde ele diz que a Rússia é a Europa, e aqui não há dúvida absolutamente nenhuma. E eu debaixo, por baixo daquele discurso, assinava e apoiava. Depois vem o famoso discurso de Munique, 2007, onde ele põe em causa a Ordem Nacional, depois vem os discursos da Cribeia. Ou seja, nós temos aqui vários Putins com vários programas em termos de política externa. E no início do mandato, o que alguns pensavam era que ele primeiro ia pôr ordem na casa e depois tentar recuperar algum do papel internacional que a Rússia tinha, que a União Soviética tinha. Mas não é isso que está a acontecer. E não é isso que está a acontecer, porque, exatamente, há uma falsa aqui. A Rússia está a tentar mostrar uma política externa, forte, mas que não é realizável. Não tem
José Maria Pimentel
sustentação. Não tem
José Milhazes
sustentação. Eles podem dizer aquilo que querem.
José Maria Pimentel
É uma política de bluff em certo sentido e as democracias lidam muito mal com ameaças belicistas normalmente. Os Estados Unidos estão de certa forma preparados para isso, por um lado têm uma cultura diferente mas também estão habituados, mas isso viu-se por exemplo na Segunda Guerra, que é como quem diz, antes da Segunda Guerra, a ameaça do Hitler demorou muito tempo a ser levada a sério pelas democracias porque há uma espécie de angústia da guerra, não é? As democracias
José Milhazes
normalmente não gostam... Não gostam da guerra. Pois, isso é verdade. E eu estou perfeitamente convencido que se Hitler não atacasse Staline, Staline acabava por atacar Hitler. Embora tivesse uma aliança. Hã? Embora tivesse uma aliança. Bem, mas as alianças... Claro. Isto... Os tratados e alianças são todos escritos em papéis. Exato. E os papéis podem servir para os mais diversos fins. Claro. Nomeadamente para serem rasgados e lançados para o caixa de lixo.
José Maria Pimentel
E naquele caso foi provavelmente nenhuma das partes assinou genuinamente.
José Milhazes
Exato, cada um tinha os seus objetivos. Um interesse pontual que voa a ser... Claro, claro, sem dúvida.
José Maria Pimentel
Mas em relação a Putin nesta fase atual da Rússia, eu fiz aquela pergunta em relação à cultura russa porque eu acho, e se calhar pode ser um enviesamento meu e de eucincrasia, e estar errado, mas eu tendo a achar que percebendo o eleitor médio de determinado país, é possível perceber porque é que determinada política é apoiada. E o que me parece, vendo de fora, é que o cidadão médio russo tem uma cultura, tem uma cultura no sentido de uma maneira de olhar para o mundo muito diferente, por exemplo, da nossa. Obviamente Portugal é um país pequeno e mesmo quando foi uma potência marítima, territorialmente sempre foi um país pequeno e em termos de população sempre foi um país pequeno, portanto é difícil imaginarmos enquanto nação atacante e belicista nas últimas poucas centenas de anos. No caso da Rússia é um pouco diferente, mas o que para ser mim é muito difícil que um português se sentisse enamorado por esse tipo de discurso, mas na Rússia claramente aquilo ressoa junto de alguma população, diria provavelmente a população mais velha, mas não sei se será verdade, mas existe, existe, a cultura russa é muito particular, há uma frase do, o Churchill tem aquela frase conhecida de que a Rússia é uma charada, envolta em mistério dentro de um enigma,
José Milhazes
é uma frase que é muito citada.
José Maria Pimentel
Sim, sim. E Na continuação dessa frase ele diz, estou convencido de que não há nada que os russos admirem mais do que a força e não há nada porque tenham menos respeito do que a fraqueza.
José Milhazes
Isso é verdade. E isso é muito específico. Isso sem dúvida. Fazer figura de fraco, e aí eu dou um exemplo recente, que foi a quando da guerra entre a Rússia e a Georgia em 2008, que a União Europeia, nessa altura dirigida por Duran Barroso e Sarkozy, tentam muito rapidamente pôr fim ao conflito. Mas essa rapidez com que foi feita foi de tal forma desastrosa que eles não deram conta, ou se deram conta, e pior ainda, de que estavam a ceder à Rússia de uma forma incrível, que foi a questão dos observadores. Quando se chega a um acordo sobre o Cesar de Fogo, a questão que se coloca é observadores e tem que se determinar onde vão ficar esses observadores. Durão Barroso e Sarkozy estavam tão ansiosos, com tanta pressa de assinar o papel, que se esqueceram desse promenor. E quando se lembraram, e vieram a dizer, olha, nós vai haver observadores do lado da fronteira geogiana e do lado da região separatista que é apoiada pela Rússia, Ossétia do Sul. E a Rússia disse, não, não, isso não está lá no papel. Vai haver observadores russos no lado de Ossétia do Sul, mas observadores estrangeiros na Ossétia do Sul não está previsto. E isto o que é que permitiu? Isto foi uma das formas que levou, em 2014, Putin a fazer aquilo que fez na Crimea. Se ele tivesse tido outro tipo de resposta em 2008, certamente, talvez ele não tivesse feito aquilo que fez na Crimea. Já não quero falar de sanções e isso, porque isso aí é uma coisa mais complicada.
José Maria Pimentel
E aproveitou e tem sabido aproveitar a desorganização europeia, não é? Europa não tem uma política externa comum.
José Milhazes
Absolutamente. Absolutamente. Isso é outro ponto forte da Rússia. Que a Rússia tenta, e com algum êxito, dividir a União Europeia. Mas, no fim de contas, isto não vai levar ao fortalecimento da Rússia, mas ao enfraquecimento. A Rússia só será forte quando decidir de uma vez por todas que é um país europeu e que o lugar da Rússia é na Europa. Não digo na União Europeia, porque, como você sabe, quer dizer, não se pode meter um elefante dentro de uma garrafa. Exato. É impossível. Agora, pode, o que pode acontecer, e o que estava a acontecer antes da Crimea era isso, era a criação de toda uma série de corredores de recuperação em vários níveis, desde nível humanitário na questão de facilitação da passagem dos vistos, até o grande incremento de relações económicas entre a União Europeia e a Rússia e etc. Só assim é que a Rússia se poderá transformar num país moderno e digamos, e forte no verdadeiro
José Maria Pimentel
sentido. E relevante. Exato. Relevante a longo prazo.
José Milhazes
Porque a chamada viragem, a chamada viragem para o Oriente, para a China, vai significar o quê? Nós vamos ter uma viragem, mas vamos ter um gigante em termos econômicos e em grande parte em termos militares e vamos ter o tal gigante mas com pés de barro, que tem armas, mas não tem economia. Claro. E
José Maria Pimentel
Não vai haver relações de igualdade. Quando muito pode haver um simulacro de igualdade, mas não sustentável.
José Milhazes
Exato. Mas isso vê-se os briques, por exemplo, os briques estão a ser utilizados pela China claramente. Não é a Rússia que dá cartas, Não é a Rússia que investe, é a China que tem o dinheiro. Claro, claro.
José Maria Pimentel
A China é que tem o dinheiro para...
José Milhazes
Para emprestar e para construir e tudo isso. A Rússia faz o quê? A Rússia vende armas, mais nada. Bem, agora começaram há uns anos para cá a exportar cereais, o que é muito bom, mas não é suficiente e também não é suficiente também exportar gás e petróleo só. É preciso muito mais. Isto liga
José Maria Pimentel
a uma questão interessante que é, os grandes países têm sempre uma tendência para se verem como providenciais, como tendo uma espécie de desígnio histórico a cumprir. Eleitos por… Exatamente, isso acontece com, obviamente, com os Estados Unidos, acontecia com a Inglaterra e com o Reino Unido, acontecia com a França, acontecia obviamente com a Alemanha.
José Milhazes
Acontecia obviamente com a União Soviética. Acontecia com a União Soviética, justamente. A libertadora dos pobres. Exatamente. E acontece agora com a Rússia, que vai buscar a tal teoria medieval da Terceira Roma, quer dizer, uma espécie de Constantinopla ou de Nova Constantinopla.
José Maria Pimentel
Exatamente. Mas o que é engraçado aí é que há países que souberam fazer essa transição. O Reino Unido soube fazê-lo. O Reino Unido era um país que na viragem do século XIX para o século XX era a grande potência mundial e depois, a algures entre esse início do século e final da Segunda Guerra Mundial, perdeu esse estatuto e soube ganhar um novo lugar no mundo. A França, obviamente, soube fazê-lo também. A Alemanha teve um processo muito mais difícil, mas a última análise foi muito bem e hoje em dia parece ter a questão bem resolvida. A Rússia não fez essa transição. Exato. O que é engraçado, não é? O que é que poderia ter acontecido diferente para essa transição ter ocorrido?
José Milhazes
Eu acho que aqui há vários componentes. Primeiro, não houve uma descomunização do aparelho de Estado. Não
José Maria Pimentel
houve. E o que é que era preciso ter acontecido para ter havido? Outro tipo de...
José Milhazes
Era preciso que tivessem aparecido dirigentes capazes de realizar esse processo, o que não aconteceu. Um dos, digamos, dos grandes males da Rússia foi ter como primeiro presidente, e ele disse que era uma pessoa fraca no sentido político. Sim,
José Maria Pimentel
era perfeitamente inepto enquanto político.
José Milhazes
Inepto, exatamente. E isso foi fatal para a Rússia e é uma das origens do putinismo, digamos, a de bem, da fraqueza do regime.
José Maria Pimentel
Claro, um vazio de poder que havia quando ele entrou no fundo. Exato,
José Milhazes
exato. Isto por um lado. Por outro lado, nós, no fim da União Soviética, temos um Ocidente em euforia, completamente uma paranoia, o que eu chamaria de uma paranoia total, cujo, digamos, ponto alto é a famosa teoria do fim da história.
José Maria Pimentel
Exato, Vukujemy.
José Milhazes
Ridícula completamente. A história não acabou ali, estava a começar se calhar ali, que pensavam que a Rússia se iria desintegrar, enfraquecer, pronto, iria tornar-se um país absolutamente controlável pelo Ocidente. Ia deixar absorver pelo Ocidente, em certo sentido, não é? Exato, exato. E O que o Ocidente não fez nessa altura e devia fazer, penso eu, era uma espécie de plano Marshall para toda aquela região. Tentar ganhar a Rússia, não humilhá-la, mas tentar ganhá-la para o lado ocidental. Não permitir, por exemplo, que corruptos estejam no poder, porque são os nossos corruptos, ou os nossos filhos da mãe, como dizia, parece que era o Eisenhower que dizia em relação ao presidente do Panamá, é um filho da mãe, mas não é o nosso filho da mãe. E foi um pouco isto que aconteceu. Quer dizer, o Ocidente não soube ajudar a Rússia a encontrar o seu caminho. E aí tem sérias, sérias, digamos, sérias culpas. A chamada terapia de choque na economia nos anos 90, que lançou milhões de pessoas para a pobreza. A pilhagem da propriedade pública, sem qualquer tipo de, digamos, ficava quem tinha força. E
José Maria Pimentel
ele, de maneira, ao invés de criar uma economia concorrencial, criou uma oligarquia. Exatamente. Virou-se completamente contra as intenções iniciais.
José Milhazes
Exatamente, exato. Isso infelizmente, infelizmente, foi feito em grande parte com as mãos do Ocidente.
José Maria Pimentel
Nomeadamente no tempo de Yeltsin, não
José Milhazes
é? Sim. O que faz com que hoje uma grande parte dos russos deteste tudo que seja liberal ou que seja democrático. Essas palavras são palavrões. Embora gostem de vir descansar, os que têm dinheiro, prefiram vir descansar ao Mónaco ou ao Algarve do que à
José Maria Pimentel
Crimea. Isso também é verdade. Mas... Já agora, fazendo aqui um parênteses rápido, todas as sanções que o Ocidente impôs à Rússia, aquela que fez Putin agir, foi a sanção que impedia os oligarcas russos de gastarem o dinheiro deles no ocidente, o que é engraçado, porque no fundo tocou na corda sensível. Sim, é
José Milhazes
porque na questão das sanções, eu acho que há um problema que foi, as sanções, se para darem resultado, têm que ser sanções, a sério, não podem ser meias sanções, ou um quarto de sanções. Ou se vai para uma política de sanções, que é uma política extremamente arriscada, sem dúvida, por exemplo, não sou grande adepto, mas com a Rússia era tal fim. E o fim o que era? Congelar as contas de todos os oligarcas e corruptos russos que estão no Ocidente, por exemplo. Agora fala-se com este conflito diplomático entre a Rússia e os Estados Unidos, fecham embaixadas, expulsam-se diplomatas, etc. Que a situação pode chegar ao ponto de os Estados Unidos, por exemplo, congelarem as contas da Rússia nos Estados Unidos. Claro que isto aqui joga a favor de Putin. Putin vai ter eleições em março de 2018 e não é por acaso que ele mudou as eleições de dezembro de 2018 para março. Porquê? Porque Foi em março que a Crimea foi ocupada. Então no dia da ocupação da Crimea vão ser as eleições presidenciais. É no dia certo? Exatamente. Exatamente. Ora, isto é muito importante. Este tipo de política joga a favor de Putin. Joga porque há muitos russos que dizem que ele tem razão porque os americanos fazem isto, os americanos fazem aquilo, fazem aquilo outro. E neste momento temos um grande paradoxo, que eu acho que foi dos erros que Vladimir Putin maiores cometeu na sua carreira política, que foi apostar em Trump para presidente. Quer dizer, isto como se está a ver, foi uma espécie de tiro, eu não diria na perna, mas talvez um bocadinho renta a cabeça. Jogou mal, claramente. E nós neste momento estamos com esse grande problema que temos nos Estados Unidos, que não sabemos o que querem. Temos uma Rússia em que o Presidente Putin pode tomar determinado tipo de posições internacionais, algumas delas em que não pode haver reação militar. E este clima também dificulta outra questão, que é a questão da solução do problema na Península da Coreia, onde a Rússia, em conflito com os Estados Unidos, é empurrada delicadamente para o lado e aparece a China e os Estados Unidos a serem os dois polos da solução do problema. Isto devia levar-nos, como a pensar, que o multipolar que eles defendem nas relações internas se pode transformar novamente num bipolar. Mas
José Maria Pimentel
entre os Estados Unidos e a China? Exatamente. Mas como é que a China vê a Rússia? Vê enquanto aliada ou enquanto...?
José Milhazes
A China nunca teve aliados na história. A China tem interesses. Que também são nossos aliados, quando não se coincidirem, deixam de ser aliados. Os chineses são muito pragmáticos nessas coisas. Sim, como em outras… Exato, eles são muito pragmáticos e eles vão ser da mesma forma pragmáticos com a Rússia. Se há um forte enfraquecimento da Rússia no futuro, a China vai tentar reivindicar territórios do Extremo Oriente Russo. Sim, já está
José Maria Pimentel
de certa forma a entrar na Rússia dentro, embora via migrações, não
José Milhazes
é? Exatamente. Já vivem milhões de chineses no extremo oriente russo e a população russa diminuir, por exemplo. E são estes problemas que deviam ser resolvidos e não são. Ou seja, os problemas internos ficam para trás E a Rússia vai se meter numa coisa chamada Síria que não tem
José Maria Pimentel
fim,
José Milhazes
por causa de projetos que talvez lhe dessem algum lucro, mas que eu penso que são lucros inferiores aos prejuízos que a Rússia vai
José Maria Pimentel
ter. Em última análise, a pessoa tende a olhar para os países como... E olhar casuisticamente para aquilo que os países decidem fazer. No caso da Rússia, obviamente que agora, havendo sobretudo um poder quase absoluto nas mãos de Putin é tentador a pessoa a avaliar aquilo que ela está a fazer bem e o que está a fazer mal, que é muito, e o modo como devia fazer de maneira diferente. Mas, na verdade, aquilo que leva a políticas económicas e de outro tipo acertadas é muito menos vezes quem está no poder e muito mais vezes a força da sociedade civil. Isso é que leva normalmente os países a progredir. E, na Rússia, aquilo que existe sobretudo, e desde sempre, que aliás é curioso, é um Estado Central muito forte que leva a praticamente a ausência de uma sociedade
José Milhazes
civil. Não é praticamente, não existe. Não existe, justamente, exatamente. Ainda há um fenómeno contrário que é muito daquilo que estava a ser desestatizado volta a ser passar às mãos do Estado. Por exemplo, neste momento há toda uma série de bancos que estão com problema e que vão ser, já estão a ser nacionalizados e daqui a pouco na Rússia corre-se o risco de haver dois bancos estatais abertos e dois bancos que não são fechados porque têm capital estrangeiro, seja num país daqueles quatro ou cinco bancos. Sim, o regresso ao
José Maria Pimentel
EUCB é que tem certo
José Milhazes
sentido. Está a haver, está a saber, uma grande centralização no sector do petróleo. A Rosneft, a bem e a mal, é dirigido pelo antigo agente do serviço secretos, que por acaso fala muito bem português. Ah, sim? Sim, foi espião em Angola e Moçambique. E ele está a concentrar na Rosneft toda uma série de empresas e está a construir um gigante. Está a consolidar um… Um gigante, como é a Gazprom, por exemplo, que é monopolista praticamente no campo do gás. E isso aí... E não há, digamos, campo para a criação de pequenas e médias empresas. Porque, além, mesmo que haja dinheiro, há o problema da corrupção, há o problema de quem controla, do ponto de vista mafioso, uma outra área. Claro, não há confiança no sistema. Os agentes não têm confiança no sistema, o que é o pior. E o principal é que, com o preço do petróleo como ele se dá agora, Putin precisa de dinheiro para vencer as eleições do ano que vem. Ele vai ter que dar alguma coisa a oferecer. Ele vai ter que ir buscar algum lugar. E esse lugar podem ser, por exemplo, algumas petrolíferas que estão a ser absorvidas pela Rosneft, porque aumentar imposto não aumenta, porque senão é um problema.
José Maria Pimentel
E elas estão a ser absorvidas de que forma? Estão a ser adquiridas? Estão a ser expropriadas?
José Milhazes
São, é mais ou
José Maria Pimentel
menos,
José Milhazes
umas são adquiridas, mas quase de forma... Coerciva. Exato, exato. E o que acontece é que para o ano vai haver eleições na Rússia, Putin vai ter que despender dinheiro para, digamos, manter o arde que o país está a desenvolver. Mas depois das eleições, as pessoas com quem eu falo, economistas e isso, dizem que a situação vai ser de apertar o cinto, aumento de impostos e etc. Porque não há dinheiro. Porque o dinheiro do petróleo, se se registar, se mantiver, se não existir um salto grande, não vai ser suficiente. Não vai ser suficiente e uma grande parte das reservas que foram acumuladas já estão gastas. Claro, já estão
José Maria Pimentel
a ser gastas e o Estado fica... O Estado ao centralizar tudo também não cria possibilidades ao país de enriquecer e, portanto, até por via dos impostos, criar um círculo virtuoso, quase um círculo vicioso que se cria
José Milhazes
aqui. Exato, exato.
José Maria Pimentel
Voltando à questão histórica, eu acho sempre interessante olhar para trás, porque a pessoa olhando para trás percebe uma série de coisas, não é? E aquilo que existe hoje na Rússia não é, por muito que a figura de Putin tenha invadido o sistema E mudado muitas coisas a seu favor, a verdade é que muito vinha atrás. E a Rússia tem particularidades engraçadas, tem... Engraçadas isto é, curiosas. Desde logo foi um país, lá está, tinha um Estado Central muito forte.
José Milhazes
Teve sempre.
José Maria Pimentel
Sempre, foi visível mesmo no tempo de Pedro Grande que fez uma série de reformas, foi sempre com a mão de ferro do Estado. Sim. Teve, foi um país onde o feudalismo durou até muitíssimo tempo. 1861 é quando termina a servidão da gulab, pouco mais de 150 anos. Sim, 1861. Sim. Exatamente. E mesmo assim formalmente, não é? Depois na prática...
José Milhazes
Sim, na prática, os problemas chegaram até 1917 e foram uma das razões da Revolução Comunista.
José Maria Pimentel
E aliás, a questão da servidão, do feudalismo é engraçada porque há quem sustenta uma tese interessante de que um dos fatores que fez divergir o Ocidente Europeu do Leste Europeu em termos de desenvolvimento económico foi a Peste Negra, que teve uma série de repercussões, mas uma delas foi o facto de ter diminuído brutalmente a população e ter diminuído brutalmente a população servilha. O que aconteceu, o que acontece nesse caso, é que o poder de regateio, digamos assim, o poder negocial dessas pessoas aumenta porque passam a ser menos. Claro. E no Ocidente, sobretudo em Inglaterra, o fenómeno que aconteceu na altura foi que o feudalismo, de certa forma, começou a terminar porque as populações começaram a juntar-se e a pedir condições melhores e a pedir salários mais altos e, sobretudo, mais liberdade de trabalho. No leste europeu e, sobretudo, na Rússia, em vez de acontecer isso, o que aconteceu foi que por haver um jogo de forças ligeiramente diferente, ou seja, por haver as populações, as cidades e as povolações eram mais dispersas e os senhores feudais estavam mais
José Milhazes
unidos, levou a que acontecesse justamente o contrário. Claro, eu vou dar um exemplo que é um mito que existe muito em certa estereografia, que é o caráter liberal da Cezarina, Catarina II. Isso é completamente falso. O decreto, ou o caso, que ela escreveu tudo muito bonito, a correspondência com Voltaire, a quem ela considerava um parvo, não na correspondência,
José Maria Pimentel
mas no diário,
José Milhazes
no dia a dia, e de Diderot e outros. Ela é que toma a decisão, que é o cúmulo, digamos, o ponto mais alto da servidão da gleba, em que um serbo depende completamente do senhor até à vida. Ele pode ser morto como um animal.
José Maria Pimentel
Claro, por prioridade, não é? Exato. É um escravo mais do que um ser humano, na verdade.
José Milhazes
Exato. Quer dizer, isto nós já estamos em finais do século XVIII e as coisas vão-se arrastando até 1861, quando A Europa já está na revolução industrial. Quando na Rússia começa a aparecer alguma indústria, já existia alguma indústria, mas era uma indústria na base da servidão. E depois o grande problema foi da distribuição da terra depois da servidão, porque muitos dos serpos continuaram a depender dos senhores fieldais. E não houve, digamos, não houve... Há algumas tentativas e até importantes de industrialização do país no início do século XX, mas que não foram elevadas até ao fim por várias razões. Ou porque o Czar não confiava no primeiro-ministro, ou porque o primeiro-ministro foi assassinado e depois começa a Primeira Guerra Mundial, que é outro momento muito importante para, digamos, dar uma estocada no regime do último Czar Russo, que deve ter sido dos mais incompetentes da história da Rússia.
José Maria Pimentel
Em relação à questão do centralismo do Estado russo, há quem considere que a Rússia está de certa forma condenada a ser uma autocracia com um Estado forte. Pelas várias questões nós já falámos, sobretudo a questão territorial, um território enorme com fronteiras permeáveis e que isso cria quase uma impossibilidade de construir uma democracia à imagem das democracias ocidentais. Concorda?
José Milhazes
Pois. O problema aí está... Eu olho para isso de forma diferente. Claro que a Rússia, sendo um país europeu, eu não tenho dúvida, é um país europeu diferente de qualquer outro país europeu. Você pega num português e pega num finlandês e num russo e diga o português é mais próximo de quem em termos de mentalidade. Do russo, não é? De finlandês? Sim,
José Maria Pimentel
sim. E já lá vamos. Já vamos falar sobre isso.
José Milhazes
Mas isto é importante para dizer o quê? Que não existe uma democracia única. Existem normas fundamentais que determinam a democracia, que regem o sistema eleitoral, a liberdade de imprensa, etc. Agora, há nuances, há pormenores que são diferentes nos diferentes países. Eu penso que o grande erro, o grande erro de Putin, e talvez por medo daquilo que aconteceu na Tchichénia, foi não começar um
José Maria Pimentel
processo de descentralização. De bagar, com cuidado, mas fazer. Mas qual, o meu ponto é, qual era o incentivo dele para o fazer?
José Milhazes
Primeiro, dava às regiões uma autonomia maior para se desenvolverem e retirava do aparelho de Estado funções
José Maria Pimentel
do central, que são desnecessárias. Mas esse é o benefício para a Rússia e para o povo russo. Agora Vladimir Putin enquanto no fundo monarca absoluto da Rússia, que foi aquele em que ele se tornou, que incentivo é que ele tem para fazer isso? Porque nós se olharmos para a história... Tem
José Milhazes
a sobrevivência dele como política. Tem a sobrevivência dele como política.
José Maria Pimentel
E tem uma coisa... Acha que ele não crê que consegue manter o estado atual das coisas durante a década ou década e meia que falta até ele deixar o poder? A palavra de ordem é, Putina é a Rússia, Rússia é Putin. O meu ponto é o seguinte, um senhor absoluto, quer dizer, se nós olharmos para a história, um monarca absoluto não abriu mão do seu poder, foi forçado a fazê-lo, no Reino Unido aconteceu isso, na Inglaterra, não é? Em França aconteceu exatamente o mesmo.
José Milhazes
Acaba mal. Mas
José Maria Pimentel
ele não tem incentivos para o fazer, tem que ser o povo no sentido lato, isto é, a sociedade, as forças da sociedade a forçarem-no a fazer isso, caso contrário é difícil que ele...
José Milhazes
Mas se ele queima todo o território à sua volta, em termos de sociedade civil, para que ela não exista... Claro, justamente. Se as eleições não são livres, se há repressão da oposição, como é que pode aparecer essa sociedade civil? Não
José Maria Pimentel
pode. Claro. No fundo é o dilema.
José Milhazes
Por exemplo, ontem domingo, dia 10 de setembro, houve eleições municipais em toda a Rússia. Em Moscou a oposição ganhou em alguns bairros. Pronto, tiveram 10% dos vereadores, mas tiveram 10%. Aquela oposição extra-parlamentar, não é o Partido Comunista e o Partido Jirinovski, porque isso é folclore, não é oposição. A tal dita oposição extra-parlamentar, que o Putin chama radicais, venceram, mas é Moscou, não é a província, também temos que ver isso, mas isto são coisas muito, muito, muito pequenas porque ele e toda a sua corte não permite o aparecimento de forças que desafiem o poder ou que obriguem o poder a trabalhar melhor. Esse é o problema, mas aqui é que não houve autocracia nenhuma, nem ditadura nenhuma, que tenha acabado bem. Quer dizer, pode acabar na China porque a China, a ditadura chinesa, está a fazer um trabalho de desenvolvimento do país gigantesco.
José Maria Pimentel
E a ditadura chinesa tem muito cuidado e vive muito nesse dilema justamente, que é tentar fazer o país progredir, mas não sacrificar a mão que tem no país. E tem sabido, de certa forma, fazer isso,
José Milhazes
pelo menos até ver. Exato. E, por exemplo, respeitam a propriedade
José Maria Pimentel
privada. Exatamente.
José Milhazes
E, de certo modo, há um respeito pelos investidores estrangeiros.
José Maria Pimentel
Mas é um mistério, é um enigma que ninguém realmente consegue cifrar, possaria fazer futurologia, saber como acabará a história. Acabará a história, salvo seja, como estará a China daqui a 20 anos, por exemplo. Ter-se-á convertido numa democracia, continuará no caminho da liberalização económica, mas sem a liberalização política, por exemplo. 20
José Milhazes
anos para a China são poucos, são minutos. Na China o tempo é muito mais longo. Mas
José Maria Pimentel
pronto, a história de que falamos agora começou nos anos 70, 80, não é? Exato, exato.
José Milhazes
Nós vamos, temos que esperar algum tempo, mas quando aparecer, como está a aparecer, uma classe média forte, aí poderá aparecer uma, digamos, pelo menos algumas sementes de obriguem o regime a abrir, a dar mais liberdade. Por exemplo, os chineses agora podem viajar para o estrangeiro. Antes não podiam. Claro. Os soviéticos não podiam, só com autorizações especiais.
José Maria Pimentel
Claro, claro, claro. Os chineses já podem. É, eu tenho um... Quer
José Milhazes
dizer, só que os chineses, a mim parece-me que eles andam muito devagar. Por exemplo, Eu dou sempre este exemplo quando se fala da questão da Crimea. Você imagina os chineses a invadirem Taiwan. Não o vão fazer. Claro. Porquê? Porque sabem que Taiwan pode demorar 50, 100 anos, vai fazer parte da China. Assim como Macau, assim como Hong Kong, etc. E a Rússia, o que lhe faltou? A paciência. Porque a Rússia não se pode tornar um pólo da atração, como pretendia, por exemplo, a União Soviética e como a Rússia pretende mostrar-se o defensor da paz, etc., etc. Entrando em confusões como estas e precipitando-se, como se precipitou Putin. Agora, deixe-me só para terminar. A autocracia vai acabar mal porque eu não estou a falar em revolução de massas, do povo sair à rua na Rússia. Aqueles filmes sobre a revolução comunista, as massas todas saírem à rua, aquilo é tudo... Folclore. É um bocado folclore. Porque ninguém acreditava, como uma cambada de loucos bolcheviques, que eram algumas dezenas de milhares, que conseguiam tomar o poder e ficar com o poder durante muito tempo. Mas, voltando à Rússia moderna, eu acho que as mudanças não vêm da sociedade civil. Têm que vir de cima, têm que vir da corte. Era o Churchill que dizia, a política na Rússia é uma luta de bulldogs debaixo do tapete. Tem que ser a elite russa, quando constatar que a política de Putin está a conduzir o país a um beco sem saída, ou estão a ter problemas, que poderá aparecer uma corrente ou que obrigue Putin a mudar ou que o obriga a sair. Esta é a minha convicção.
José Maria Pimentel
O que me parece estar a acontecer é que essa elite russa que não está já comprometida com Putin é cada vez menor, seja porque ela se vai comprometendo mais com o Putin, seja porque aquela que não se compromete é forçada a sair,
José Milhazes
não é? Portanto, vai emagrecendo cada vez mais o… Claro, bem, e sim, embora preferem viver no Ocidente em paz e segurança do que viverem lá. Isso é outra das consequências dessa política, é a fuga de cérebros.
José Maria Pimentel
Exatamente, ou seja, quanto mais tempo passa, o que eu quero dizer é, quanto mais tempo passa, menos provável se torna uma transição desse género. Exato. E no caso extremo da Coreia do Norte, por exemplo, na prática é isso que acontece, não é? Se há exemplo de país sem sociedade civil, tanto quanto a pessoa
José Milhazes
consegue perceber é a Coreia do Norte, é que não há contestação nenhuma. Não, e se arrebentar a Coreia do Norte tem que ser lá em cima. Ou alguém dá um tiro ao homem ou em Banan. Mas o problema é que este estado de coisas, esta situação, leva também a uma fuga de cérebros da Rússia. Primeiro, a educação, universidades, isso desceram muito nos ratings internacionais.
José Maria Pimentel
Isso é curioso, ou seja, o ensino universitário hoje é pior do que era na era soviética.
José Milhazes
É, e isso é uma da... Não há nenhuma universidade soviética entre as 100 melhores. Rússia,
José Maria Pimentel
a Universidade Russa agora. Sim, a Universidade
José Milhazes
Russa. Eu estudei na quinta melhor universidade do mundo, que era soviética. Exato. Isto aqui... Mas o que mudou? O que mudou foi o desinvestimento, o desinvestimento no ensino e a falta de oportunidades que as pessoas têm. A corrupção, claro. As pessoas entram para a universidade, as pessoas pagam, têm que pagar para entrar na universidade, lubas, corrompe-se para fazer exames e etc. Porquê? Porque os professores ganham muito mal, por exemplo. Há professores que têm salários miseráveis. Depois dizem-me assim ''ah, claro, que se vão embora, vão''. E nós temos um exemplo muito concreto, que é um dos fundadores
José Maria Pimentel
do Google. Exatamente.
José Milhazes
Você vai ver nos últimos anos os prémios nobres. Estão lá russos, mas não trabalham na Rússia. Trabalham na Holanda, nos estados unidos, etc. Isto é fatal para um sistema que se pretende modernizar.
José Maria Pimentel
O que eu acho interessante é isso, sobretudo, e isso liga a uma pergunta que eu lhe queria fazer, porque o Milhares viveu na União Soviética desde meados dos anos 70, portanto ainda apanhou o fim da União Soviética em certo sentido, mas ainda, uma boa década e meia, quase duas décadas de União Soviética. E viveu no início da Rússia contemporânea, portanto tem a percepção, até há muito pouco tempo, e tem a percepção dessa realidade e da comparação entre uma e outra com os seus vários defeitos. E é interessante essa questão do ensino porque, no fundo, a pergunta que me ocorre é qual era o interesse que os líderes soviéticos tinham na educação que hoje em dia os líderes russos não têm. Eu julgo que tenho parte da resposta, é que a investigação, por muito que fosse canalizada para a parte militar e da indústria pesada, era importante na altura.
José Milhazes
Sim, isso era um grande estímulo.
José Maria Pimentel
Exatamente, tinha um interesse estratégico grande e depois havia aquela questão de poder soviético decidir, como há pouco o Milhares falava, daquilo que eram ciências que se podia estudar, daquelas que não se podia estudar, mas aquelas que tinham a sorte, salvo seja de ficar do lado daquelas que deviam ser estudadas, tinham um ensino de qualidade por trás dela e que depois dava lugar. Melhares refere isso no seu livro, que é quase uma biografia, por exemplo, a prática médica, pelo menos em alguns hospitais, era muito avançada, se não podiam ter até tecnologia de ponta, mas pelo menos tinha pessoas com grande
José Milhazes
conhecimento. Às vezes até tinha tecnologia de ponta, mais de ponta do que no ocidente, só que existia um paradoxo. A mim utilizaram raios laser para me tratar. Eu quando cheguei a Portugal e disse isso aos especialistas, eles ficaram de boca aberta. Diz como? Então quando eu expliquei como é que os reis laser eram um colega meu que tinha que, digamos, segurar a pistola do raio laser Porque não havia enfermeiras para tratar daquilo, porque as enfermeiras ganhavam muito mal. Existia desses paradoxos. Mas eles tinham grandes médicos e essas, às vezes, até essas dificuldades obrigavam os médicos a fazer milagres verdadeiros. Quer dizer, agora, quando se pode comprar diplomas, se pode corromper professores nos exames, claro que quando saem das universidades vêm muito menos preparados. Os que têm dinheiro têm o problema resolvido. Desde criança, agora é moda entre os ricos a mandar os filhos para Inglaterra, França, Suíça, Estados Unidos. Universidades, a mesma coisa. Quantos deles é que voltam à Rússia? E se voltam, quanto tempo aguentam na Rússia? Esse é que é o problema. E é um problema que se vai agudizando. Putin fala do intelecto artificial e quem tiver... Quem chegar à inteligência artificial irá dominar o mundo, drones e não sei quanto. Quer dizer, tudo isso é muito bonito. Mas até lá? Mas até lá alguém vai ter que fazer isso. E nós vemos que, salvo o antivírus Kaspersky, você não vê mais, digamos, tecnologia russa que seja empregue no ocidente. Há os motores pós-foguetões norte-americanos que são fabricados ainda na Rússia, alguns deles, e pouco mais. E é, isto é outro problema que se vai fazer, que já se está a fazer sentir, e se sente cada vez mais, que é o baixo nível. O problema na União Soviética era o outro no ensino, principalmente naquilo a que se chamava as ciências sociais, a que as ciências sociais estavam completamente truncadas. Quer dizer, nós estudávamos marxismo-leninismo e pouco mais. E tudo tinha que encaixar naquilo. A história, a filosofia, tudo. A cibernética e a genética não se encaixaram no marxismo-leninismo e tiveram o destino que tiveram.
José Maria Pimentel
O molde surgia antes da investigação, não é? Exato,
José Milhazes
ou seja, formavam-se pessoas no campo técnico muito fortes, no campo humanitário havia pessoas muito fortes, mas que tinham que ir além do marxismo-leninismo.
José Maria Pimentel
Eram quase autodidatas.
José Milhazes
E Não era só autodidatas, era, por exemplo, só em determinado nível é que se podia ter acesso a determinado nível de livros, jornais, por exemplo, estrangeiros, revistas estrangeiras, etc. E tudo isto dificultava o desenvolvimento, eu diria, da ciência na União Soviética. E impediu o pensamento livre, que
José Maria Pimentel
é o que subjaza
José Milhazes
a atividade científica. Sim, exatamente, exatamente. Agora, havia sectores em que eles aplicavam tudo ou por questão de necessidade para meios militares e outros, ou então para propaganda. Nós temos que ser campeões em xadrez e no desporto. E então, na RDA, a República Democrática, há uma correria só de hopping mais famosa, os soviéticos não eram apanhados, mas tudo era feito para a grandeza da União Soviética, para em inglês ver. Claro. Que é isso que leva...
José Maria Pimentel
Americano no caso.
José Milhazes
No caso americano e não só. E não só, claro. Também português, porque eu fui para a União Soviética porque imaginava que aquilo não era só fachada, que aquilo tinha algum conteúdo. E esse é um problema, que quando
José Maria Pimentel
digo para inglês ver, utilizo a frase normal, mas no meu caso foi para português ver. Mas deixa-me pegar, isso é interessante. Quando foi para a União Soviética, na prática para a Rússia, tendo ido para Moscou, quais foram os maiores choques culturais? E por outro lado, e no reverso da medalha, quais foram as maiores parecenças inesperadas entre uma cultura e
José Milhazes
outra? O choque principal advém da... O não conhecimento da língua. Isso é fundamental, quando chega uma sociedade daquele tipo e não se sabe a língua... Claro. Não,
José Maria Pimentel
mas Eu digo no trato das pessoas e na maneira como a sociedade funciona.
José Milhazes
Os russos têm uma particularidade. Os russos são muito frios na primeira abordagem, o contrário dos portugueses. Mas depois, se você é amigo, eles são amigos a sério. Eu tenho muitos amigos, e não só russos, porque na Rússia não vivem só russos, têm muitos amigos judeus e de outras nacionalidades que lá vivem e a experiência humana, tive experiências humanas muito, muito, muito positivas. Agora, um jovem comunista que chega a Moscou, por exemplo, e não consegue compreender porque é que andam putos atrás de você a pedir uma chiclete, ou ainda parece um cidadão ou uma cidadã qualquer que lhe quer comprar as calças de ganga que você tem vestidas. Primeiro, tenta-se explicar sempre. Um comunista tenta sempre explicar, mesmo inexplicável, que isso aí são coisas da burguesia, porque se pode beber sem jeans e sem chicletes, E depois pode-se viver sem muito mais coisas, quer dizer, sem nada de… Sem o limite… No limite pode-se viver como na Coreia do Norte, o resto é tudo… Superficial. É tudo superficial. Pode-se pensar dessa maneira, compreende? Agora, quando você vê que você vive numa superpotência, num país que devia ser riquíssimo, cuja população deveria viver muito bem, e lá a nomenclatura come a mesma coisa que come o meu pai e a minha mãe, que o meu pai era pescador, come melhor do que eles, porque o meu pai comia peixinho fresquinho todos os dias e
José Maria Pimentel
eles nem vêem. Também, diga-se passagem, também comia melhor do que eu. E provavelmente que nós dois.
José Milhazes
Mas quando eu falo peixe, falo carne, falo fruta, etc. Aquelas coisas que nós pensávamos que é uma coisa alimentar. Chegar numa loja e comprar bananas ou comprar laranjas. Claro que nós andávamos sempre atrás de uma explicação. Epá, a Segunda Guerra Mundial, mas depois passavam. 50 anos da Segunda Guerra Mundial. Claro. 60 anos da Segunda Guerra Mundial. E o pessoal dizia, epá, isto começa já a não servir bem para mostrar a calma, está mal nesta sociedade. Era uma economia de guerra que nunca terminava. Claro, claro que nunca terminava. E essa foi a grande tragédia. E depois quando você ia para a província, que era uma espécie de montra, ou uma outra cidade, São Pintarburgo, Leningrado naquela altura, Kiev, onde existia mais ou menos um nível de vida semelhante ao de Moscou. Agora, o resto da província viveu sempre com cenhas de racionamento até ao fim do comunismo. Quer dizer, isso era uma coisa que não se encontra explicação. Encontra-se explicação, é que o sistema é ineficaz, não funciona. É bonito, promete tudo, mas na realidade...
José Maria Pimentel
Sim, parece explicar a realidade bem, não é? Parece dar uma explicação... Tudo. Total.
José Milhazes
Quando se lê uma obra de materialismo histórico, materialismo dialético, está lá tudo, tudo explicadinho.
José Maria Pimentel
Uma espécie de estética,
José Milhazes
não é? Exato. E tem um grande problema. É que você vê que está tudo de tal forma descrito é o determinismo. É o determinismo, porque não pode ser de outra maneira. Depois do feudalismo vem o capitalismo, depois do capitalismo vem o socialismo.
José Maria Pimentel
Tirando por Norte que na Rússia não chegou a haver capitalismo, não é? Portanto, dessa forma não... Quer
José Milhazes
dizer, existiu uma fase de capitalismo de Estado, em chamar-lhe-ia, muito breve, mas aconteceu no final do século, no final dos séculos XIX, início do século XX. E estava a haver um grande desenvolvimento, por exemplo, industrial.
José Maria Pimentel
Mas não chegou a criar as forças que Marx previa. Não. Uma das coisas que se comentava na
José Milhazes
altura é que o comunismo... O Lenin teve que ir além de Marx para explicar a revolução russa.
José Maria Pimentel
Exatamente. Porque aquilo não cabia para...
José Milhazes
Era o elo fraco do imperialismo, porque segundo Marx e Engels, as revoluções iriam acontecer nos países capitalistas desenvolvidos. Exatamente. E não num país como a Rússia. Teria que ser uma
José Maria Pimentel
revolução... Não correspondia minimamente à previsão. Claro.
José Milhazes
Depois foi uma questão de adaptar.
José Maria Pimentel
Claro. Tal como depois Mao fez na China.
José Milhazes
Na China, sim. E a construção do socialismo num país só. Porque Marx e Engels previam que era uma revolução que iria, pelo menos, tomar uma grande parte do continente europeu e etc. Eles, os ideólogos russos, iam, ou soviéticos, iam arranjando, digamos, motivos para explicar essas mudanças que eram precisas de ser feitas. Mas, que tinha que ser, depois Claro, depois do socialismo vinha o comunismo, mas como o socialismo já estava construído na União Soviética e em 1956 ou 54, Khrushchev, num desses anos, prometeu, disse, dentro de 20 anos vamos viver no comunismo, mas isso não aconteceu. Então criaram uma etapa intermediária que era o socialismo desenvolvido, que era uma espécie de anteporta do paraíso, onde eles tinham que esperar pelos outros. Mas quer dizer que o socialismo desenvolvido não se distinguia nada do outro socialismo. Não havia. Havia ali uma... Até porque tinha que se, por exemplo, explicar se o marxismo-leninismo previa uma descentralização do poder até ao ponto do poder desaparecer e no comunismo não havia poder de Estado, o Estado desaparece. Nós temos na União Soviética o contrário. É claro que se arranja o contrário, porque estamos cercados por países imperialistas, somos uma muralha cercada, temos que estar aqui todos unidos para que não deem cabo de nós. E pronto. Mas o certo é que quem ganhou com tudo isto foram os europeus, por paradoxal que pareça. Porque A Europa Social começou a aparecer antes de 1917. Os operários já começam a ter alguns privilégios, poucos, mas começam a ter. Já se luta por oito horas de trabalho diário, etc. Depois da Revolução de Outubro, o processo de, digamos, de melhoramento das condições de vida das classes inferiores na Europa e principalmente depois da Segunda Guerra Mundial é muito grande devido à pressão soviética, porque era a única forma de travar a União Soviética, era, além do poderio militar, mostrar que a capacidade económica era muito maior. Claro, e a União Soviética E
José Maria Pimentel
a União Soviética funcionava como o resultado que podia ter uma política econômica inepta, não é?
José Milhazes
Era um papão para os patrões. Exatamente.
José Maria Pimentel
Hoje não temos. Hoje não existe, exatamente. Mas é verdade.
José Milhazes
É, é, é uma coisa que é verdade. Nós, europeus, ganhámos muito com isso. Os soviéticos não ganharam nada. Nós ganhamos. Às vezes, eu digo isto muito sinceramente, eu às vezes penso, mas não seria melhor que a União Soviética continuasse a existir? A ver se o pessoal tinha mais juízo na distribuição da riqueza? Porque funcionava. Hoje nós não temos mecanismos de substituição. Era
José Maria Pimentel
uma espécie de mecanismo de equilíbrio do
José Milhazes
sistema. Exato. Fronteira
José Maria Pimentel
de... Era um limite quase... Era uma espécie de força que limitava a oscilação. Exato. Não, isso é verdade. E a questão do Fogo e Yama do fim da história, a história não acabou, mas mudou. E também mudou no Ocidente e aquilo que depois deu origem, muito daquilo que deu origem à crise económica começou na altura em que os Estados Unidos ganharam a hegemonia solitária do mundo, não é? Da geopolítica. Mas voltando àquilo que lhe estava a falar há pouco, eu fiz dar um bocado a esta pergunta, mas não tão aberta, e gostava de lhe fazer de forma aberta, que é, comparando A União Soviética com a Rússia atual, e quando eu falo da União Soviética estou a falar da parte russa da União Soviética, que é aquela em que o Milhares viveu maioritariamente. O que é que é melhor agora e o que é que é pior? Eu já percebo que o ensino paradoxalmente piorou. Houve outros aspectos que tenham piorado também, apesar das limitações que já existiam na altura na União Soviética?
José Milhazes
Em alguns lugares, principalmente na província, as coisas pioraram, porque...
José Maria Pimentel
Apesar das cenhas de racionamento?
José Milhazes
Sim, porque se antes existiam os calcosos e os chaufcosos, aquelas unidades cooperativas de produção que mantinham alguma organização, quando tudo isso se desintegrou, a aldeia russa entrou em crise. Agora não, está-se a reorganizar outra vez. Começam a aparecer grandes explorações agrícolas. Os pequenos e médios, digamos, camponeses têm grandes dificuldades de sobreviver, Mas eu acho que é muito difícil avaliar, fazer esse tipo de avaliação.
José Maria Pimentel
Claro, é sempre superficial.
José Milhazes
Porque, por exemplo, em termos médicos, a assistência médica piorou. Piorou em toda a parte. Claro, agora quem tem dinheiro...
José Maria Pimentel
Claro, certo, bem entendido, mas aí é um jogo
José Milhazes
diferente. Vai à Alemanha tratar-se, ou vai à Suíça. Mas, em geral, é difícil fazer esse tipo de comparação, porque quando havia liberdade de expressão e as pessoas pensavam, quando se estava a formar a tal sociedade civil, aí havia esperança de que as coisas iam melhorar, que as coisas iam tomar outro rumo. E hoje essa esperança não há. Quer dizer, por exemplo, em termos de, sei lá, professores primários, eles recebiam tão mal na época semiética como recebem agora. Mas também depende, se tiverem escolas privadas em Moscou, ganham muito mais. Claro,
José Maria Pimentel
cada caso é um caso.
José Milhazes
Cada caso. É muito difícil fazer uma avaliação desse tipo e muito ampla. Agora, o que se pode dizer é que não houve nenhum salto civilizacional, ao contrário do que aconteceu em Portugal. Porque nós, independentemente de toda a situação crítica e difícil em que nós nos encontramos, e eu não tenho dúvida que o nosso país deu um salto civilizacional. Desde a minha partida em 77 até hoje Portugal modernizou-se muito. O tipo de possibilidades de acesso ao ensino, Por exemplo, na minha altura, quantas pessoas, filhos de pescadores, andavam a estudar na universidade? Claro. Era eu e não sei se havia mais. Claro, claro. Havia mais um. Havia mais um. Hoje os meus sobrinhos, eu tenho doutores entre os meus sobrinhos. Não doutores. Formados, é. Mesmo doutores. Exatamente. Quer dizer que é uma coisa... É um salto muito grande, porque os pais deles continuam a ser pescadores, mas eles já são doutores. Claro,
José Maria Pimentel
sim, com todas as limitações do sistema, a verdade é que tiveram...
José Milhazes
Exato. Claro, é difícil, têm problemas de trabalho, têm que emigrar, mas houve. Nós notamos isso. Nós vivemos melhor. Quando há uma pessoa que me diz que antes de 25 de Abril viviam melhor do que agora, eu digo, vocês deviam ter vergonha na cara, porque eu vivia antes de 25 de Abril. Claro. Claro, que eu vivia numa camada social muito baixa. E por isso tenho a sensação do grande salto que demos. Agora, do fim da União Soviética e na Rússia não se deu... Sim,
José Maria Pimentel
esse salto não é possível.
José Milhazes
Claro, há luxo, tem-se acesso a tudo. Deixou de haver racionamento, não é? Claro, tendo dinheiro, você pode comprar tudo o que quiser e mais alguma coisa, em Moscou. Não falta nada. Isso aí é uma coisa que na época soviética nem sonharam. Mas isso aí não é sinal de... Sim, foi simplesmente uma abertura das fronteiras
José Maria Pimentel
comerciais e não necessariamente uma maior...
José Milhazes
Exato, e até uma concentração de riqueza que passou a ser de clandestina, passou a ser estar à luz do dia e ser visível.
José Maria Pimentel
Exatamente. E até demonstrativa. Sim, sim, até uma certa ostentação. Exato, exato. Há uma coisa que, como já te falo no livro, muito engraçado, engraçado de novo não é nada engraçado mas é curioso, que é a questão do antissemitismo na Rússia, que eu confesso que desconhecia. A pessoa obviamente conhece o antissemitismo no Ocidente, conhece o antissemitismo que esteve na base do regime nazi, mas na União Soviética, até por ser o opositor do regime nazi, a pessoa quase tendia por defeito a assumir que esse não era um problema.
José Milhazes
E isso é um problema muito complicado, mas é um problema muito antigo, já antes da Revolução.
José Maria Pimentel
Claro, exatamente. Existia
José Milhazes
o antissemitismo. Os judeus só podiam viver em determinadas regiões do Império. Por exemplo, eles não eram livres de ir viver para Moscou ou para as grandes cidades. Só podiam ir se fossem médicos, advogados, músicos e pouco mais. Mas
José Maria Pimentel
qual era a explicação? Qual é a origem desse...
José Milhazes
É a mesma origem que do Antinomia do Ocidente. É o povo que matou Cristo, é o povo que explora toda a gente e... Porque a
José Maria Pimentel
questão do... No Ocidente havia o Ocidente ligado à Igreja Católica, a Igreja Católica rejeitava toda a atividade económica financeira, via os juros, com mesura, não é? Eu confesso que no caso da Igreja Ortodoxa Russa...
José Milhazes
Também. Era uma visão muito semelhante. Claro, nesse sentido, os únicos que podiam, digamos, emprestar dinheiro e transacionar eram os... Os judeus. Os judeus. E
José Maria Pimentel
não há...
José Milhazes
Não havia grandes diferenças. Agora, na União Soviética, parecendo um paradoxo, era uma chaga muito grande. Por exemplo, claro que alguns da teoria da conspiração dizem que o golpe de Estado comunista em 1917 foi feito pela maçonaria e os judeus. Há sempre uma pequena parte de razão nisso, que é um grande número de dirigentes da Revolução eram judeus ou tinham sangue judeico. Porque na Rússia há muita gente que diz, não, não, eu sou russo e não sei quanto e tal, depois vai ver a avó e avisa a avó, e lá tem o tal sangue judeu porque neste mundo não, quer dizer, é impossível... Sim, andar o suficientemente para trás. Travar o... Por exemplo, na União Soviética, no chamado Passaporte Interno, Bilhete de Identidade, lá estava escrito a sua etnia. Era chamado ponto número 5, o maldito ponto número 5, que estava lá judeu. Claro que um judeu podia adotar por meter lá russo. Qualquer povo da União Soviética, se não quisesse lá meter, por exemplo, estónio, podia meter Russo. Só que, como diziam as anedotas judaicas na União Soviética, que eram muitas, a polícia quando bate não bate no passaporte, bate no focinho.
José Maria Pimentel
E o livro tem uma série de anedotas com
José Milhazes
piada. Exato, exato. Ou seja, há historiadores que defendem, e eu estou também de acordo em grande parte com esta tese, que Staline ia exatamente repetir o que Hitler fez com os judeus durante a segunda guerra mundial. Depois, quando ele começa, os judeus só foram salvos porque Stalin morreu, porque senão eles eram, iam ser liquidados. Como já tinham sido liquidados muitos anos, mas em massa.
José Maria Pimentel
Sim, o Estelino fez isso com uma série de povos. Sim, por isso com os
José Milhazes
judeus. Os judeus, claro que existe aquele ódio porque Normalmente as pessoas que mais sucesso têm são os judeus, mas isso também é fruto da história e culpa das sociedades que não sabem absorver que durante séculos tiveram um antissemitismo com política dessa. Vamos pensar, os judeus não podiam comprar terras. Só em casos extraordinários, na Rússia, recebiam autorização do Cesar ou até recebiam títulos de nobreza, nobiliária. Por exemplo, eu escrevi um
José Maria Pimentel
livro, um
José Milhazes
português, foi um desses, Os pais de Trotsky, por exemplo, também. Mas, salvo raras exceções, eles dedicavam-se e tendo em conta o antissemitismo e os chamados Pagrom, o que é um Pagrom? Pagrom é uma matança dos judeus. A palavra Pagrom é uma palavra eslava. E porquê que um judeu não se dedica a cultivar a terra e é médico ou é músico ou é advogado ou é... Tem muitas das chamadas, digamos, profissões intelectuais. Porque lhe
José Maria Pimentel
era vodado o acesso ao
José Milhazes
outro. E não só, e nem só, porque em caso de fuga eles levavam a cabeça com eles. E o médico, tanto pode ser médico na Rússia como em Portugal, ou um violonista, mesmo que perca o violino pelo caminho.
José Maria Pimentel
Se continua a saber tocar. Continua
José Milhazes
a saber tocar. O alféata a mesma coisa. Essa
José Maria Pimentel
É uma visão interessante, por acaso. Mas
José Milhazes
é curioso observar isto, que eles não eram como qualquer acólogo, não podiam andar com a casa às costas, porque arriscavam-se, principalmente em países onde o antissemitismo era tradicional. Claro, na União Soviética, quando se dá a Revolução de Outubro, a onda antissemita baixa, mas depois ela volta, mas é uma coisa muito interessante. Quando se fala com os antissemitas russos, isso lhes começa a perguntar e a vossa cultura? Por exemplo, qual era a etnia de escritores como o Boris Pasternak? Era judeu. Vassily Grossman? Era judeu. E muitos. Weissenstein, o famoso homem do cinema, era judeu. Claro, facilmente se torna incoerente. É uma incoerência. E porquê? Claro que na época de Yeltsin, grande parte da oligarquia, dos oligarcas, os chamados sete boiardos, os sete donos do país, eram todos judeus, de etnia judeica. Abramovich, Radarkovski, tudo isso. E que criava uma certa alergia para os judeus. Claro, gerava inveja e ressentimento. Toma-me conta de tudo e não sei quanto. Mas eu quando falo com os antissemitas russos, digo-lhes assim, apá, quantos judeus vivem na Rússia? Registados. Na União Soviética viviam 2 milhões e meio. Uma grande parte foi para Israel. São um terço da população de Israel.
José Maria Pimentel
Ah, sim? Sim. É interessante.
José Milhazes
E bem, vocês sendo não sei quantos milhões, vocês não podem resolver o problema de controlar um ou dois milhões e de competirem com eles?
José Maria Pimentel
Sim, deixa de ser uma ameaça.
José Milhazes
Não, mas é que depois, quando nós começamos a falar com alguns deles, é interessante porque eles também têm o tal sangue de judeu.
José Maria Pimentel
Claro, a xenofobia tem sempre essa limitação.
José Milhazes
Exato. Por exemplo, muitos dos amigos do Putin que neste momento estão no poder e foram substituir a velha oligarquia, por exemplo, os irmãos Rottenberg, que têm quase o monopólio lá na construção de pontos e não sei quanto, são judeus. Um deles foi professor de judo do Putin e há muitos judeus que continuam a estar em cargos de responsabilidade. Agora, se eles lá estão, é o que eu digo, quer dizer, é verdade que eles têm um... Entre ajudam-se, sei não sei quanto, Mas também é verdade, quando se odeiam, odeiam-se da mesma forma que se odeiam os outros.
José Maria Pimentel
Claro, e entre ajudam-se porque são forçados a isso, calhau.
José Milhazes
Normalmente o antissemitismo é incentivado a partir de cima. É a partir de cima. Não nasce no povo. É trazido, é lançado como propaganda. Os judeus são isto. E Infelizmente, infelizmente, entra a intelectualidade russa do século passado. Nós temos, por exemplo, o caso de Osteriebsky, que era um antissemita acabado. O Tolstói nunca se decidiu muito bem. Por exemplo, no caso de algumas matanças de judeus, ele ficou calado, não se pronunciou em defesa. Mas também
José Maria Pimentel
não se pronunciou
José Milhazes
contra. Não, ficou calado. Há outros momentos em que ele sai em defesa, outros não sai. Mas nós temos uma coisa aqui que é importante, é que o antissemitismo é utilizado em momentos em que o poder tem problema. E então, como diz uma quadra famosa que se cantava na Rússia, é se na torneira não há água quem somos culpados?
José Maria Pimentel
Os judeus.
José Milhazes
Claro, não podem ser o povo, o povo principal. É o voto expiatório, não foi? É o voto expiatório. Claro. Assim como qualquer povo, basta incentivar e encontrar votos expiatórios.
José Maria Pimentel
Claro, e é sempre essa atração do...
José Milhazes
Exato, exato. Nós já não somos antissemitas, porque não temos judeus, ou temos muito
José Maria Pimentel
pouco judeus. Mas ainda temos algumas porções, o que é curioso.
José Milhazes
Exato, exato.
José Maria Pimentel
Um semítico, não é?
José Milhazes
Exato, mas temos as porções que ficaram, mas que já não têm um conteúdo ofensivo. Exato,
José Maria Pimentel
perderam o... Estão distantes da etimologia, não é? Exatamente. As judiarias
José Milhazes
e o resto do que... Exato, exato, e fazer judiarias. E
José Maria Pimentel
foi a conversa com José Melhades, uma conversa que ficámos a compreender melhor a Rússia, nos seus vários aspectos, que são muitos, e na sua grande complexidade. Até à próxima! Legendas pela comunidade Amara.org