#1 António Araújo - Cultura e Política (qualidade de som inferior)

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José Maria Pimentel
Bem-vindos! No episódio que segue estarei à conversa com António Araújo a propósito do seu livro Da Direita à Esquerda. O livro aborda a evolução das culturas de esquerda e direita em Portugal ao longo das últimas décadas. Falámos, portanto, sobre a sociedade e a evolução dos seus hábitos e valores, mais do que propriamente ciência política ou ideologias. Isto porque são, na essência, esses valores e práticas que influenciam a evolução das ideias políticas e do próprio sistema político. António Araújo é, atualmente, entre outras ocupações importantes, diretor de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos e editor do blog Malumil. É, além disso, o convidado ideal para compreender este tema, pois não dá atributos que não costumam coincidir na mesma pessoa. Por um lado, tendo formação em Direito e doutoramento em História, para além de ser estudioso destes temas, conhece bem o sistema partidário político português. Por outro lado, o que não é comum, é também alguém atento à evolução da sociedade no que diz respeito quer à moral da população, quer aos seus hábitos de entretenimento, tudo fatores que influenciam inevitavelmente as preferências políticas dos cidadãos. A tese principal do livro da direita à esquerda, embora este apresente várias outras conclusões relevantes, é de que existem hoje muitas afinidades ocultas entre esquerda e direita, afinidades essas que os conflitos que vão preenchendo os noticiários procuram muitas vezes, e de certa forma, camuflar. É sobre esse e outros temas que vamos falar no 45° à conversa com António Araújo.
José Maria Pimentel
O convidado de hoje é, portanto, o António Araújo, que apesar do seu currículo imponente aceitou ser tratado pelo nome próprio. António, bem-vindo ao podcast. Eu é que agradeço. Hoje vamos falar de política e vamos falar de cultura, mas falando um pouco das duas coisas, a propósito do livro da Direita à Esquerda, que é um livro interessante porque é um livro que começou como um projeto único, a quatro mãos com o João Pedro Jorge, depois acabou por se incidir e acabou por ganhar este... E este bocado depois disso, ainda por cima, acabou por ganhar a vida própria. Exato. E acabou por ser, por se estender para lá, daquilo que pretende ser uma análise da cultura de direito em Portugal, e por ser, mais do que isso, uma análise, bem, por um lado não só, não uma análise no sentido tão lato da cultura de direita e por outro lado a análise da cultura também de esquerda.
António Araújo
Sim, é quase impossível dividir as duas. Portanto, como é que isto começou? Foi um convite da editora para fazermos um livro, até se cansou se calhar, fazer um livro único daqueles livros dupla face, para traduzir o duplo face, e ser a cultura de esquerda e a cultura de direita. Depois eu com a minha prolixidade avancei um bocadinho, o João Pedro Jorge está agora a escrever sobre a cultura de esquerda, e eu realmente comecei o primeira parte, era até um texto que já tinha
José Maria Pimentel
publicado,
António Araújo
precisamente sobre a cultura de direita, mas mais fixado nos anos 80, e depois prolonguei um bocadinho até à atualidade e fui-me apercebendo, talvez, que estas distinções entre esquerda e direita não é recuperar as teses do fim das ideologias, mas que as ideologias hoje têm uma função um bocadinho acessória e marginal, se quisermos, na fragmentação, nas divisões que existem entre os diferentes campos políticos.
José Maria Pimentel
Um dos aspectos que o livro tem de interessante é que, para alguém que está posicionado no círculo dos intelectuais, embora possa rejeitar esse rótulo eventualmente, mas é um facto, pelo menos da maneira como é visto, não é normal abordar a cultura neste sentido. Lá, a cultura é uma palavra ultra-polissémica, serve para várias coisas, mas a cultura neste sentido não é alta cultura, mas a cultura no sentido de um fenómeno dos hábitos da população e dos valores da população em geral, normalmente é rejeitado pelos intelectuais que preferem viver numa redoma e de alguma forma alimentar-se a sua
António Araújo
própria cultura. Sim, isso Eu talvez rejeito o rótulo de intelectual naquilo que tem de bom, de pessoa que vive do intelecto, e naquilo que tem de mau, de pessoa que só vive para o intelecto que segrega os seus gostos. Análises de consumos e hábitos culturais do ponto de vista sociológico, tem havido há estudos sociológicos sobre os consumos televisivos, até as telenovelas, etc. Portanto, acho que aqui também não inovei propriamente. Eu vejo mais é cultura, não no sentido, há aquelas distinções entre cultura, alemã e bildung, digamos, da formação da pessoa, aqui cultura no sentido mais tribal, num certo sentido, culturas de esquerda e culturas de direita, contudo que isso implica que não é só estritamente da área cultural, das idas aos teatres de esquerda ou das idas aos teatres de direita, mas o que eu entendo é que para se compreender a cultura inserida na sociedade portuguesa, que é isso que eu faço, não posso deixar de referir fenómenos como o José Rodrigo de
José Maria Pimentel
Santos,
António Araújo
ou concertos do Tony Carreira, porque isso, não estou a dizer que tudo é cultura, mas cultura no seio da sociedade e para compreendermos a nossa sociedade, há um mal dos intelectuais, é que, por exemplo, não leem, isso é uma atitude sensata, por um lado, mas não leem os Erros Ericustiantes e descartam-no como um subproduto, mas é o que eu Tenho dito em várias ocasiões, uma pessoa que vende 100 mil exemplares, por menos é o que indicam, é algo que merece ser analisado, não é? Do ponto de vista... Eu até num blogue tenho, um mal-humil, analisei talvez um bocadinho causticamente, mas é algo que tem que ser escrutinado. E sobretudo... Porque é que existem estes fenómenos.
José Maria Pimentel
Dizia que existe a análise sociológica
António Araújo
da sociedade, o
José Maria Pimentel
plionagem. E... O que não existe normalmente, e esse livro fala, é casar as duas realidades. Ou seja, casar a análise política com a análise sociológica. Ou seja, há ciência política com a sociologia, se quiser...
António Araújo
Sim, num certo sentido... Desta forma. Eu acho que este livro não pretende ser um livro académico, de especializado numa área, mas nós vemos que em Portugal, apesar de tudo, há algum divórcio e especialização, digamos, dos saberes, portanto, há pessoas de ciências da comunicação e de outras áreas que fazem estudos sobre os fenómenos televisivos e segregam uma linguagem própria do que o rodear, do que o bordear, do que o que quiser, sobre os fenómenos televisivos, e depois há pessoas da ciência política que também o fazem. Portanto, há uma espécie de estanquecidade do bucho. Exatamente. E há uma interdisciplinaridade muito reduzida. Claro, há pessoas que tentam fazer isso, por exemplo, José Santana Pereira, que publicou e isso não passa publicidade na Fundação Francisco Mural de Santos, um livro sobre política e entretenimento. Exatamente. Há cada vez mais estudos que procuram casar isso, mas também se compreende que cada ramo do saber tem de desenvolver, até se quisermos, uma linguagem, muitas vezes até quase deliberadamente hermética, para que o mundo dos mortais não lhe aceda e até valorize muito, quanto mais essa linguagem for hermética, maior a cientificidade existe, portanto nós pegamos muitas vezes em livros até de direito e não compreendemos nada. Este livro não, este livro é um livro, digamos, para essa entidade mítica que chama o grande público. E é um livro que procura, de uma forma, obviamente, parcelar, superficial, muitas vezes utiliza-se como, em termos de perspectivos, quase jornalístico. Eu aí procurei abordar uma série de realidades. Procurei compensar isso com um conjunto quase sufocante de notas, mas isso
José Maria Pimentel
é um... Quase equivalente
António Araújo
ao livro. Exatamente. Portanto, quem comprou o livro vai enganado. Há aqui um produto avariado, porque metade não é carne do lombo, é gordura de notas.
José Maria Pimentel
Eu não acho que vai necessariamente enganado, porque o tamanho de letra é
António Araújo
mais pequeno. Exatamente. Exatamente, leva mais, mas a questão é, eu achei que era importante em algumas afirmações fundamentar com referências, por exemplo se eu digo que pornografia é o número de consumidores, se eu retirar essa informação de uma publicação científica que me ocorreu da manhã, eu tenho que pôr qual é o dia e até porque pode ser falível e tudo, há muitas realidades aqui que eu falo, por exemplo o número de consumo de ritalina etc, que eu não fui verificar totalmente os números oficiais, fui muitas vezes basear-me em notícias de jornais, etc. Por outro lado, este livro também tem, como é evidente, lacunas quando aborda, há várias direitas aqui que não estão referidas, por exemplo a direita, digamos, monárquica, tradicionalista, digamos mais conservadora, não aparece aqui muito, ainda recentemente saiu um livro de Ricardo Marqui sobre as direitas extra-parlamentares no Instituto de Ciências Sociais, eu por acaso fiz a recensão a esse excelente livro no Público, no Ypsilon, que esse é um livro que aborda aquela direita digamos extrema, quase caceteira, o período é de 76 a 1980, mas que hoje em dia essa direita está um bocadinho diluída em Portugal, mas eu nem sequer, mesmo quando vou aos anos 80, não falo nesses...
José Maria Pimentel
E até os membros dessa direita, muitos deles, ou alguns deles, passaram a mentir destruir-me, não é? Exatamente,
António Araújo
temos vários casos que nos anos 70 eram desse lado, José Miguel Júdice, até de certa forma Francisco Lucaspíri, José Miguel Garapinto, etc. Se bem que, por exemplo, no caso de José Miguel Garapinto continua a afirmar-se dentro de um certo universo, dos livros, não deixou de ser o defensor oficioso de Salazar naquele programa, ter um livro sobre Salazar, de ter aquele livro de novembro e nas suas intervenções tem agora no Observador, com o Dr. Jaime Gama, portanto o Jaime Garapinto não a dedicou muito a isso, agora entrou um bocadinho no mainstream e eu acho que isso também é prova de alguma maturidade já da nossa democracia, que admite pessoas com grande qualidade intelectual, sendo apesar de pessoas que no passado estiveram conotadas, já nem sequer diria com o Estado Novo, mas mais até com o salazarismo naquela vertente contra Marcelo Caetano, tido Marcelo Caetano como homem que foi o coveiro, digamos, não só do Império, mas também do regime do Estado Novo. Portanto, era uma linha que foi muito marcada nos anos 70. Havia várias obras, até uma delas, acho que é do Eduardo Freitas da Costa, e acabava com um ponto de exclamação, como é evidente, acuso Marcelo Caetano, era essa uma coisa, portanto, Marcelo Caetano era figurado como o homem que tinha sido responsável com aquela sua tímida abertura pela derrocada do regime, que numa visão muito mirífica e quase de história virtual, poderia ter durado até hoje em dia. Até a eternidade. Exatamente.
José Maria Pimentel
Eu acho que vale a pena mergulhar nos vários temas do livro. O caso do Jaime Nogueira Pinto, por acaso, é um caso interessante.
António Araújo
Sim, eu acho que não falo muito dele, porque, como digo, essa direita, se quisermos mais...
José Maria Pimentel
Não, é referida para a SEM, mas eu o retivo porque já tinha pensado nisso. É um fenómeno... Vou dá-lo como exemplo. Como é, Vini? Porque acho um exemplo interessante. É um fenómeno de alguém que entrou no Mente do Cime de tal forma que tem um programa com o Jaime Gama e outro programa com o Ruben de Carvalho.
António Araújo
Pois, não sabia. Não sabia. E eles
José Maria Pimentel
coabitam perfeitamente no programa. Claro. E a razão para que eles coabitarem, na minha opinião, tem muito que ver com o facto do objeto das divergências políticas ter mudado. O objeto das divergências políticas hoje em dia, maioritariamente, é a economia. E a verdade é que alguém como Jair Moura Pinto ou outras pessoas daquela área têm uma visão da economia que não é tão diferente assim da esquerda, está mais perto da visão da esquerda do que do neoliberal, para usar o termo que é hoje comum. E a crise, por exemplo, trouxe isso muito ao de cima e reabilitou, na minha opinião, muitas figuras que estavam, por exemplo, no caso muitíssimo mais recente a Manuela Ferreira Leite, por exemplo, tinha sido, de certa forma, colocada de parte e reemergiu durante a crise como alguém a opor-se às medidas da austeridade e a defender o papel do Estado. E isso é um efeito interessante, quer dizer, no fundo, a mudança do objeto que motiva as discussões das pessoas e que motiva a opinião publicada também leva a um realinhamento das pessoas.
António Araújo
Sim, sim, sim, por isso é que é um realinhado constante de posições.
José Maria Pimentel
Porque isto não é... A pessoa fala de esquerda e direita, que é obviamente uma simplificação brutal porque estamos a colocar num único eixo realidades que têm que ver com
António Araújo
dimensões muito diferentes. Se bem que eu continuo a achar que há uma, em entender, que há uma divisão entre esquerda e direita que até é muitas vezes autoinduzida e é necessário haver festas do avante, de um lado a outras questões, para sinalizarmos as diferenças. No caso, eu não conheço esse programa com o Ruben Carvalho, mas também há, penso eu, falando do Jair Magrepinto, uma inteligência da parte dele, uma grande cultura e, por outro lado, uma dutilidade pragmática que o faz também perceber que para estar a dialogar, tem que ambos pôr um bocadinho... Claro, exato. Aquilo que é... Que os divide um bocadinho de partes, isto é, não vão discutir ali o Tarrafal ou outras coisas, porque isso daria um choque... E fazia... Agora, uma coisa mais importante, propriamente analisado, o Jânio Negra Pinto ou esses programas, é, por exemplo, em questões muito importantes como a participação de Portugal no Euro e o compromisso europeu, nós devemos recordar-nos que houve uma direita nacionalista, ou assim que podemos chamar, que não era totalmente extra-parlamentar, por exemplo a direita de Manuel Monteiro, a direita de Paulo Portas, quando Era candidato ao Parlamento Europeu numa campanha em que participou até o Miguel César Escardoso, muito do discurso anti-Maastricht, era um discurso, uma crítica à União Europeia feita pela direita. Por outro, que viu de certa forma confirmados, assim o entender, os seus receios sobre o projeto do euro que se avançou demasiado, por exemplo um, ainda que jurista, mas muito inclinado para estudar questões económicas e europeias, Paulo Pity Cunha, um professor de Direito, sempre defendeu que a nossa entrada no Euro tinha sido demasiado apressada e pouco. Mas enfim, todas essas pessoas acabaram por se reencontrar, ou por encontrar, com a esquerda, que começou por ser uma esquerda muito extrema, e começou por se diluir e começar a avançar já como uma esquerda de centro, que devido à crise começou a repensar o Euro e a repensar as nossas obrigações na União Europeia, esquecendo-se muito, possivelmente, que não foi a entrada no euro, nem, excepte talvez o euro campeonato de futebol, mas não o euro moeda bonica, não foi propriamente a entrada no Euro ou a nossa participação da União Europeia que nos levou à situação de endividamento que obrigou ao governo José Sócrates a chamar a Troika.
José Maria Pimentel
O problema não foi o único fator, certamente. Claro, o
António Araújo
único fator não terá sido porque se existia a necessidade de liquidez na nossa economia e
José Maria Pimentel
tudo,
António Araújo
o problema não era talvez o euro, mas a falta de euros. Era mais uma questão de falta de euro. Agora, depois disso, como é evidente, a partir daí, isso é clássico, em uma situação de crise aparecem sempre profetas com uma série de soluções. Eu não estou a caricaturá-los como profetas a dizer que são inviáveis, mas era desta reestruturação da dívida, até à saída de Portugal. E sim, normalmente. Sim, e muitas vezes até apresentadas quase como livro de autoajuda para um país inteiro, ter um manual de fitness económico ou financeiro, e portanto um livro para o grande público em 100 páginas, que resolveu os problemas nacionais de Portugal de saída do Euro. Tudo o que eu não estou a tentar descredibilizar ou caricaturar isso, porque houve grandes cabeças, esses inverderes intelectuais portugueses que discutiram essas questões, João Ferreira da Moral, etc. O João Ferreira
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da Moral tinha uma posição antiga. Exatamente,
António Araújo
portanto, são pessoas que também não surgiram só pela crise, muitos é que viram muito confirmados os seus scepticismos em relação ao projeto do Euro. Agora, ainda está muito por fazer, e acho que será necessário uma certa distância, uma análise destas crises do Supreme, das influências na Europa, o que é que, no fundo, é uma crise, o que é que nestas crises foi importado, porque é uma economia, como se isso é clássico, as pessoas dizem, uma pequena economia aberta ao exterior, portanto o que é que vem de fora, o que é que é autoinduzido, mas se nós olharmos para Castanheira de Pera e outros nomes, percebemos que Portugal não era propriamente um país que funcionasse como um relógio suíço e que de um momento para o outro tinham sido bruxelas a perturbar uma harmonia que existia no funcionamento da nossa economia, da nossa sociedade, etc. Nós devemos pensar, por exemplo, se entrar também no economismo, 90 e tal por cento do nosso, ou quase 90 por cento do nosso tecido produtivo são pequenas e médias empresas. Devemos pensar que dessas, não tenho agora a porcentagem, dessas pequenas e médias empresas são muitas delas familiares. E dessas pequenas empresas familiares, também uma esmagadora porcentagem deles, os próprios empresários e os líderes dessas empresas não têm sequer formação académica ou não têm formação para estudos. Portanto, depois há um bocadinho, um bocadinho a conversa das startups, etc., mas Portugal anda sempre um bocadinho à procura dos seus Brasis, não é? Cá dentro, seja o Brasil do Ouro, de há muitos anos, seja Angola é nossa, Salazar, seja a Europa de Bruxelas, de onde vem os dinheiros dos fundos, seja agora a Galinha Desalvejadora do Turismo, seja agora estes projetos, eu tenho aqui um capítulo neste livro sobre esta linguagem, digamos, do empreendedorismo, como se fosse possível construir um país com base em palavras, no fundo, como se diz, não sei, Words, words, words, isto não é com base em empreendedorismo, eu digo aqui, um grande empreendedor, e nós temos algum grande empresário, nunca precisou de grandes cursos de empreendedorismo para formar... Agora, como é evidente, há questões que na nossa economia que se calhar têm que ser estudadas, de inovação tecnológica, etc. Mas quem sou eu se quer para me pronunciar sobre isso? Eu limito-me, se quisermos, a caricaturar até o excessivo uso de anglicismos, etc., em vários domínios.
José Maria Pimentel
Aliás, o livro não tem essa pretensão e o livro, do meu ponto de vista, acaba por ser, e que é a sua objetiva, acaba por ser muito mais interessante pela relação que estabelece entre fatores aparentemente não correlacionados e leva a algumas teses, algumas delas preliminares, outras mais conclusivas não só a tese principal, que é de que hoje em dia a intersociabilidade entre pessoas de esquerda e direita conduziu a uma aparência muito maior entre as duas áreas do que existia antigamente, que é de certa forma camuflada por divergências à superfície. Mas há muitas outras conclusões pontuais que vão sendo feitas ao longo do livro e que são interessantes porque são contraintuitivas, o que nos torna necessariamente certas, mas pelo menos fazemos pensar. O ponto prevetor mais interessante do livro tem a ver com a análise exatamente da evolução na cultura da população em geral, em termos de valores e de hábitos, latente e cuja relação com as orientações políticas e a evolução das preferências políticas da população, por vezes, não é óbvia. Houve alguns fatores que eu retivo, alguns deles sobre os quais eu já tinha pensado. Um deles muito interessante tem a ver com o facto de hoje em dia haver uma espécie de rendição da esquerda ao capitalismo, não o capitalismo enquanto sistema económico, que continua a ser contrariado, mas capitalismo do ponto de vista dos bens de consumo e serviços que põe à disposição e no fundo todos nós de uma forma ou de outra abraçámos uma série de bens e serviços sem os quais hoje em dia teríamos dificuldade em viver que são providenciados pela economia do mercado, indiscutivelmente, e que não são específicos de esquerda ou direita, sendo que muitos deles até são de esquerda, ou poderiam ser tendencialmente mais de esquerda, e outros são perfeitamente neutros, como restaurantes, viagens, festivais de verão, uma série de benesses que as pessoas se habituaram a apreciar e que no fundo, sem as quais hoje o teria dificulado em viver, provavelmente. E isso conduz, e julgo que essa é uma das teses do livro, a essa convergência da água e do sul.
António Araújo
Sim, são estas convergências ocultas, isto é, o triunfo, eu nem diria já do capitalismo, mas o triunfo da sociedade de consumo, e esse consumo é não um empresário só se fosse suicida, a não ser neste mercado muito específico de crachás ou de emblemas, é que produz uns ténis para pessoas de esquerda ou uns ténis para pessoas de direita, um festival de verão, tirando o festival do avante, mas onde também vão pessoas de direita, digamos, por causa da música, por causa da oferta cultural, o PC intuiu isso, que era interessante, digamos, alargar e ter até, há pessoas que vão, não por serem comunistas e por se reverem no projeto do Guixávez, mas por ouvirem o Janita Salome ou outra coisa qualquer, mas estes festivais que prolougam de verão, os concertos do Tony Carreira, Tony Carreira que vão milhares de pessoas, não têm um conteúdo ideológico. Eu não estou a dizer, não é a tese do fim das ideologias, porque depois há coisas que as pessoas quase necessitam de inventar, muitas vezes causas fraturantes, para sinalizar diferenças. Se bem que hoje em dia também seja difícil, porque vivemos numa sociedade muito pós-secular, já não é uma sociedade secular, já é uma sociedade, como diz Charles Taylor e outros, pós-secular, em que os valores matriciais da igreja, etc., só contam e são praticados por uma minoria, isso também tem muito a ver com fatores como a sexualização da sociedade, etc. E, portanto, é cada vez mais claro que há um conjunto de hábitos e de consumo que pressupõe o bem-estar material e, portanto, pressupõe compactuar com a sociedade do mercado. Não só houve essa esquerda que começou com o Tony Blair, cá também já antes Maria Soares tinha posto o marco do socialismo marxismo na gaveta, e portanto agora havia aquela frase, quando ouço falar não sei o quê, puxo de um revolver. Agora, posso dizer que quando ouço falar em Marx, puxo do iPhone, isto é, há pessoas que o iPhone não é típico só das pessoas de esquerda ou de direita, pelo contrário, e, portanto, há muitas vezes as pessoas, não é aquele argumento que a pessoa por ser de esquerda tem que ir comer ataz, resneinada, não é esse argumento que é um bocadinho até básico e muito redutor. Mas o que é facto é que há clivagens, tem muito mais a ver com o tipo de gostos, com o tipo de consumos, com as redes de sociabilidade que se frequentam, os locais, locais até de veraneio, do que propriamente... E, portanto, a clivagem é muito maior entre uma elite e as não elites, portanto as pessoas que não vão para a praia, não diria, não digo que não haja praias mais de direita, ainda continuam a haver, mas há uma série de praias ditas exclusivas, ou mesmo discursos de direita articulados por intelectuais de esquerda. Manuel Alegre tem discursos com lives nacionalistas muito grandes, o Miguel Soto Tavares também, quando ele fala na necessidade de proteger o Algarve é proteger o Algarve dele e da infância dele, como é evidente que não era um Algarve para as massas irem sujar aquilo, até um cartão do Quine sobre a Cezaninha que ela diz o poder ao povo, não para o poder ficar empurcalhado com novas chouriços, não aquilo nunca podia ser, para ser devassado pelo...
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Aquela velha frase, algo do género de queremos defender o povo, mas há distâncias.
António Araújo
Exatamente, portanto, há até formas, esta ignorância militante dos críticos, dos partidários e cultores da alta, altíssima cultura que está, digamos, num olimpo, esta ignorância em relação àquilo que nós entramos numa livraria e está, ocupa 80, 89% de uma livraria, que são os livros embrulhados em setim, são os livros das posições de ata-me, desata-me, enforca-me, desenforca-me, algema-me. Tudo isso, não é aquela frase também do futebol, isso é o que o povo gosta. Bem, se aquilo ocupa o espaço que ocupa numa livraria, e se uma livraria é um ponto por excelência, ou era, não sei como estará agora em tempos de internet, é um ponto de excelência no veículo cultural, como é que esses fenómenos todos, dessa literatura que surgiu na sequência das 50 sombras de Gréia, etc., continuam a ser olimpicamente ignorados pelas pessoas que devem ir comprar a Bíblia do Federico Lourenço, ou uma tradução do grego, o que for, mas não estou a dizer que toda a cultura está invadida por isso. Mas, da mesma maneira que as divisões ideológicas foram muito
José Maria Pimentel
esmagadas
António Araújo
por esta hipertrofia dos bens de consumo, também a própria cultura, a velha cultura que entendíamos dos livros do Joaquim Ribeiro, do Jorge de Sena, etc, foram, do ponto de vista daquilo que as pessoas efetivamente leem, esmagada pelas Guerras dos Tronos, pelo Harry Potter, por isso tudo. Não estou com isso a fazer juízes de valor, procuro não fazer juízes de valor. É uma constatação de facto. Só faço juízes de valor às pessoas que persistem numa cegueira em ignorar este facto, que é um facto tão óbvio, e um facto cultural, político, social, tão óbvio, basta entrarmos num livrario. Claro.
José Maria Pimentel
Foi esse um dos fatores que me fez pegar neste livro, porque senti que seria essa análise. E já há muito que eu tinha essa opinião de que não olhar para esses fenómenos é ir no fundo não compreender o mundo. O mundo não no sentido do mundo países diferentes de Portugal, mas o mundo no sentido daquilo que nos rodeia. Em última análise o país, última análise a democracia, uma vez que vivemos nós numa democracia, se não conseguirmos compreender o eleitor médio, e o eleitor ms médio.
António Araújo
Aquela questão, o voto do... E isso numa democracia, o voto do leitor do Correio da Manhã, que aliás tem muitos leitores, vale tanto como o voto de um leitor do Times Literary Supplement. O que eu quero dizer é que as pessoas que eu dedico ali, E o livro tem que ser um bocadinho exaustivo, muitas vezes até chato, até na enumeração dos livros das dietas, para que as pessoas quase fiquem exauridas e esgotadas e pensem, não surgiu apenas um livro de dieta, livro sobre os intestinos. As pessoas têm que perceber que saíram cinco livros que venderam muitíssimo sobre a importância dos indestinos para a nossa felicidade até mental. E o que é curioso é que uma das críticas que é legítimo, feita por amigos e pessoas. Então para que é que foste perder tempo com isto? Mas isto são coisas do... As pessoas persistirem
José Maria Pimentel
olimpicamente
António Araújo
a ignorar e mais a criticar quem se interessa e entendendo isso como um divertissima... Apenas uma bela brincadeira, uma loucura do António Araújo de Ouro. Porquê?
José Maria Pimentel
Uma espécie de multipleasure.
António Araújo
Exatamente. É um dito de tantismo. Ah, foi para as livrarias tirar os títulos. É verdade. A Biblia dos Cristais, a Biblia dos Pastéis de Nata, a Biblia do Kama Sutra, a Biblia do Sexo, o que for. Mas o que para mim é importante nós percebermos é que as pessoas consomem isso. Muitas vezes a academia faz abordagens, e não só, faz abordagens a fenómenos como este, ao nível da antropologia, ao nível da sociologia, mas tendo um olhar um bocadinho complacente e paternalista, que é um bocadinho brincar aos pobrezinhos da academia. Isto é como houve aí uma tia que foi para a comporte e disse que estava a brincar aos pobrezinhos. Muitas vezes a academia olha para estas coisas com um
José Maria Pimentel
olhar
António Araújo
e um sorriso travesso. Vamos ver o que é que aquela tribo de busquimans que se chama povo, que por acaso são 8 milhões ou quase 9 milhões de portugueses, o que é que eles fazem, como é que vivem aqui estes macacos na Cava da Moura. Não estou a dizer que não haja depois estudos sérios. O que eu estou a dizer é que há uma figuração do povo, por parte dos intelectuais, sobretudo dos intelectuais urbanos e de Lisboa, há uma figuração do povo que é uma figuração meramente imaginária. Eu dou três ou quatro exemplos, construído um texto do José Pacheco Pereira, ou da Clara Ferreira Alves, ou do Miguel César Tavares, onde constam todos os clichés e estereótipos daquilo que nós imaginamos que seja o povo. O mesmo se passa no humor. Muito do nosso humor é feito no retrato, e desde sempre, desde o Bordal Pinheiro, no retrato do mecanismo complacente e, se quisermos, altivo, em relação àquilo que é o povo. Se, por exemplo, vir o humor que é feito pela porta dos fundos, também tem apontamentos sobre o brasileiro em si, um ou outro livro, um ou outro episódio sobre o brasileiro, mas exploram coisas muito diferentes da sociedade brasileira sem estar sempre a caricaturar o povo. Nós, aqui, com algumas exceções, mas temos sempre a ideia de pôr nos anúncios telemóveis o Tochin, ou temos o camponesa Alentejano que fala com um Alentejano que nem os Alentejanos falam serradíssimo, cabecinha pensador, temos muitas coisas e com respeito e admiração que tenho pelo trabalho dele, do Ricardo Arouche Pereira a falar da princesa de Rubiães num hilariante número do... Na Era dos Gatos Fodorentos, há dois programas que ele tem, mas tudo aquilo é sempre a caricatura um bocadinho do povo. Eu confesso que muitas vezes também, nesse blog que tenho, ao colocar cartazes a autarca, etc, etc, há também esta tendência. Porquê? Também temos que compreender que o país real em si é uma fonte inesgotável de humor e sobretudo do melhor humor que é o humor involuntário. Aquelas candidatas à aula do TARC, por exemplo, ainda recentemente um que propôs, no dia das eleições, o seu casamento com o município e, portanto, até tinha ele, propunha casar-se com o município, que a cerimónia será desde as nove da manhã em Boa Bratura das Urnas até às dezenove, e durante quatro anos as prendas de casamento será aquilo que ele dará ao município. Portanto, tudo isso, como é evidente, nós não podemos também, não vamos gozar com o país real, Mas o país tem...
José Maria Pimentel
Não, é evidente, claro. Embora, no futuro, nós estejamos muito longe disso, com o politicamente correto... Claro. Como ameaça à liberdade de expressão. Voltando àquilo que eu estava a falar há pouco, da questão da sociedade de consumo, Eu aliava isso a outro fenómeno que eu acho interessante e que é referido no livro. Aliás, até agregaria três coisas que têm ocorrido, três evoluções da última década, porventura, ou duas décadas. Uma, o maior liberalismo social, ou seja, a sociedade em si é mais liberal em termos de costumes. Muito mais. Muito mais liberal do que era há uns anos. De forma, aliás, sobretudo para alguém mais velho, porventura de forma estranha e ultra-imprevisível. Por outro lado, a sociedade é bastante mais hedonista. E eu digo isto sem qualquer juízo
António Araújo
de valor. Uma coisa está a ligar na outra.
José Maria Pimentel
Até porque eu faço parte desse movimento, vivendo no século XXI. E um terceiro fator interessante, mais recente, porventura o mais recente dos três, tem que ver com uma certa autopromoção muitas vezes incaputada, que utiliza hoje em dia, sobretudo as redes sociais e uma espécie de promoção da imagem, o gestor da própria imagem, o fundador desse género. Estes três fatores são muito interessantes e manifestam-se em várias realidades, manifestam-se no consumo, a questão das experiências, com as viagens, ir às restaurantes, tornou-se quase uma nova
António Araújo
religião. Até se fala em experiências, tudo é uma experiência, Portanto, a pessoa já não vai comer num restaurante ou para se alimentar, vai ter uma experiência gastronómica.
José Maria Pimentel
E isso é interessante, por exemplo, o Valarari, que produz os sapiens e do homo adeus, que eu não li, eu apenas o sapiens, E ele falava disso a certo ponto no livro, explicando que todas as sociedades precisam de ter uma referência, precisam de ter uma crença comum. E essa crença comum, que até há pouco tempo era maioritariamente divina, era qualquer tipo de religião, no caso português seria a crença em Deus e em Cristo, e nomeadamente no catolicismo, esse espaço não é deixado vazio e é substituído muitas vezes por outras crenças coletivas, mesmo que não sejam tão evidentemente uma crença. E esta religião das experiências é muito isso. Outro livro interessante é do David Brooks, que é um livro chamado The Road to
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Character.
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É um livro, na minha opinião, não completamente bem conseguido, mas tem um ponto... E julgo que ele estremou um bocadinho
António Araújo
aquilo que defende... Sim, as pessoas quando defendem
José Maria Pimentel
o Bruce Connor... Ele faz parte do que defende o... E romantiza muito aquilo que ele entende que eram os valores de outrora. Claro, é muito típico. Mas ele tem um ponto que faz sentido a propósito do fim ou da perda de relevo do que ele chama a escola do realismo moral,
António Araújo
que era da contenção
José Maria Pimentel
e do...
António Araújo
É um fenómeno muito típico nas abordagens conservadoras, as pessoas terem muitas vezes nostalgia de um passado que nunca existiu e portanto isso é, mesmo em grandes pensadores e pessoas que escrevem, o Roger Scruton, por exemplo, há sempre a ideia, em Inglaterra, das cabines telefónicas que nós conhecíamos, em Inglaterra, daqueles marcos de correio, como se tudo aquilo fosse uma sociedade apenas de gentlemen e de que as pessoas da classe média estavam os bons pais de família a fumar cachimbo, de certa forma. Mesmo pensadores que não têm muito a ver com isso, Tony Jude, naqueles livros dele mais pessoais, o tratado sobre os nossos descontentamentos atuais, ou o chalé da memória, ele tem uma nostalgia, ainda que referindo a sua infância, adolescência pobre, mas por um período austeritário em que havia, apesar de tudo, consumos culturais, e eu não escondo, que também de certa forma subjacente, se calhar a esta crítica velada ao hedonismo contemporâneo que eu faço aqui, pode haver esse discurso um bocadinho de nostálgico. Mas que É óbvio que hoje em dia vivemos numa… isto varia muito de sociedade para sociedade. Se calhar nós… mas isso dependerá depois dos inquéritos e de dados mais factuais e empíricos, mas o que eu prescinto é que do ponto de vista dos valores gerais, uma sociedade que era até há poucos anos extremamente conservadora, ou tida como tal como uma sociedade espanhola, e que ainda tem, como é evidente, as pessoas, um país com a dimensão de Espanha, porque as pessoas muitas vezes esquecem-se geograficamente é dos países maiores da Europa, muito maior que as alemães reunificadas, no termos de superfície, só a França é maior. Mas um país com aquela dimensão terá necessariamente bolsas bastante conservadoras e pessoas bastante conservadoras, nostálgicas do franquismo, mas não foi só comovida do Tierno Galvão em Madrid, mas a sociedade espanhola sofreu uma transformação do ponto de vista de valores, se calhar superior até a uma sociedade que era tida como arquiliberal como a sociedade holandesa. Na sociedade holandesa ainda pode haver fundo, e claro que depois tem outras questões, deseutanásias, etc., mas há fundos vindos do Protestantismo, e bolsas vindas do Protestantismo, que são muito mais, num certo sentido, conservadoras, rígidas, puritanas, austritárias, do que propriamente, não quero figurar a sociedade espanhola, reduzindo-a à castelhana e à movida madrilena, mas do que a sociedade espanhola. Se calhar, nas sociedades mediterrâneas e do sul da Europa, Portugal e Espanha, da mesma maneira que queimamos etapas de desenvolvimento económico e tecnológico, sobretudo, Nós não tivemos, por exemplo, na questão dos telefones, saltámos etapas que outros países tiveram que percorrer. Também há etapas de desenvolvimento moral, como disse o Kohlberg, e se calhar nós queimamos etapas de desenvolvimento moral e caímos logo numa sociedade que, do ponto de vista dos costumes, se calhar até por falta de uma sedimentação, passou, se quisermos, de um período se calhar até falso, de falso puritanismo, salazarista e pós-salazarista, para um hedonismo, e isso tem muito a ver também com a sexualização, com a perda das referências católicas, etc. Mas o que é comigo curioso, eu não falo isso num livro, é nós sabemos até que ponto o próprio discurso da Igreja Católica e mesmo as práticas de grupos católicos não estão a ceder, como isto não defende o integrismo católico do Mons. Lefebvre, não estão a ceder a esta lógica do giro, entre aspas, do FAM, da Viola, isso vem desde os anos 60, mas eu não estou a criticar isso, estou apenas, como sempre, a fazer uma constatação. E a igreja não teve também, se calhar numa estratégia inteligente, mas se calhar ainda não muito patente, de fazer manuais como o YouCat, de haver... Eu noto muito em certos grupos de jovens, que até têm o nome que é os sacrobetes, há esse nome, os sacrobetes, que no fundo nos trazem identificadores de alguma distinção social, as t-shirts, as fitas que se põem, os cordões da pregrinação a Santiago, etc. Portanto, há toda uma parafranália de sinais e dispositivos identificadores, não apenas religiosos, mas também sociais, que alguns atores da igreja, porventura minoritários, ainda praticam. Por outro lado, a própria vivência da fé foi sujeita a esta lógica de consumo. Isto é, da mesma maneira que nós chegamos a um IP Mercado e um dia gostamos de ter uma experiência porque precisávamos experimentar o arroz basmati e outro dia um riso de qualquer coisa também a fé, as pessoas dizem eu tenho a minha fé, cada vez mais uma fé autoconstruída que prescinde daquilo que se chama na sociologia das religiões as estruturas de mediação, isto é, o que é que digam os bispos ou o que é que digam, não interessa. Realmente,
José Maria Pimentel
e relevantes no catecismo.
António Araújo
Exatamente, sobretudo se eu disserem coisas que não vão confirmar aquilo que eu quero, que é sexo, que é comprar objetos, que é estar ali, se é um discurso diferente, as pessoas, prescindem das estruturas de mediação, prescindem da doutrina da igreja e do Manavita e das questões sobre sexo pré-matrimonial, etc. E depois dizem, eu cá construo a minha fé. E a minha fé é feita numa espécie de bricolage religioso, em que eu ponho uma peça de lego que me interessa, é, Portanto, aqui eu feito um bocadinho à minha maneira. Eu não estou a criticar isso, porque também, se quisermos, as vivências da fé, se calhar, sempre foram um bocadinho assim. Agora, isto é mais aberto. Houve alturas em que se calhar havia uma duplicidade e até uma hipocrisia entre os discursos e as práticas. Outras alturas, havia as indulgências há muitos anos. Se calhar sempre houve, se quisermos, um compromisso entre desejo e crença. Mas que hoje em dia é muito patente as pessoas misturarem uma espécie de sincretismo, coisa da religião católica. Eu sou católico à minha maneira, eu tenho a minha fé com coisas vindas até de... Outras religiões. Claro, do Budismo. Porquê? Porque as pessoas vivem num ambiente geral de alguma angústia e ansiedade, o Alden dizia, a idade da ansiedade, e as pessoas precisam de, se quisermos, de uma série de amparos, seja de psiquiatra, seja de padres, o que for, e é um facto que a igreja em si, no seu todo, eu sei que agora o Papa Francisco reconciliou muita gente que nem sequer é católica com a igreja, o discurso do Papa Francisco, mas a igreja, não estou a dizer que não se tem sabido adaptar, não é a questão de saber adaptar, é a igreja percebe que, se calhar, o seu grande território já não é sequer o hemisfério norte nem o ocidente, é sim a evangelização das Áfricas, etc. Porque realmente a fé floresce muito e a crença floresce muito em países onde há necessidades. Não por acaso o principal inimigo da igreja, se quisermos, não é o comunismo, porque esse foi um fenómeno, digamos, historicamente localizado, é o capitalismo, não estou a dizer o capitalismo, a economia de mercado sempre vinha sendo praticada. Não era por acaso que, já desde a idade média, os judeus é que eram os únicos que podiam emprestar dinheiro. Porquê? Porque a economia creditícia e fiduciária, com base em juros e os onzeneiros, que eram criticados nas peças do Gil Vicente, era uma espécie de ameaça, porque sentia-se que aquilo tivesse uma expansão muito grande. Claro, ganhava uma vida própria. Claro, porque era concorrente com o poder da igreja e com aquilo que são os seus dispositivos de fidelização dos crentes. Por exemplo, todas as religiões, as grandes religiões monoteístas têm preceitos sobre alimentação e sexo das pessoas. Porquê que a igreja se preocupa tanto com o sexo, não deixando que os seus servidores o pratiquem? Porque é um dispositivo de fidelização, se eu proibir a pessoa aquilo que instintivamente mais lhe apetece e ela abdicar do que aquilo instintivamente mais lhe apetece, mas ela está fidelizada do ponto de vista do clube. Isso, como é evidente, a preocupação e todas as ideias da moral social têm muito a ver com dispositivos de fidelização das pessoas e por isso é que todas as religiões têm, ou sobre os hábitos alimentares, claro que as explicações são historicamente mais complexas, têm a ver até com a conservação dos alimentos.
José Maria Pimentel
Há várias e em alguns casos não se tem a
António Araújo
certeza do que é. Exatamente. Mas estou aqui a generalizar muito, isso também não é propriamente um maul, nem tenho capacidade sobre isso de estar da religião, mas é um dispositivo de civilização das crentes, em duvida.
José Maria Pimentel
Houve, me parece, Agora que falamos da questão da Igreja, o que me parece sobretudo acontecer, e não sei de que forma isso pode ser contornado, é que há a Igreja, no caso português ou no caso ocidental, a Igreja está de certa forma inadaptada à sociedade atual e não é fácil readaptar-se, porque lá está, a sociedade de consumo...
António Araújo
Se se adaptar é perder a identidade.
José Maria Pimentel
Mas é uma luta difícil, porque por um lado a sociedade de consumo fornece grande parte do serviço, passo a expressão, mas para podendo comparar aquilo que aconteciantes, parte do serviço que a igreja prestava aos fiéis, não é? Ou seja, enquanto benefício não só de entretenimento em certo sentido, mas também de paz mental e de... Claro. E de dia a dia. E é muito difícil, não me parece que seja fácil decidir entre ficar acantonado, onde está a tornar-se anacrónico, ou ceder completamente à nova realidade. Não me parece que o futuro seja brilhante. Pois,
António Araújo
quer dizer, o diagnóstico sobre a morte da igreja, a igreja passou por várias... Mas
José Maria Pimentel
isto admite que há uma progressão linear de onde nós estamos, o que não é liso.
António Araújo
Claro, porque... Pode não acontecer, não é?
José Maria Pimentel
Claro. Ou seja, pode haver uma inversão de bem-estar económico facilmente? Claro.
António Araújo
Não... Por exemplo, houve um fenómeno de grande anticlericalismo e laicismo até em Portugal, na Primeira República e em França, e depois houve uma grande tormenta que foi a Primeira Guerra e aí houve um fenómeno, se eu já expliquei isso, não deve ser chamado de Sons de Sindos, chamado de Regresso aos Altares, que foi também aí que surgiu um bocadinho o espiritismo, porque as pessoas queriam falar com os entes desaparecidos, que foi a primeira guerra industrializada, em que os corpos estavam esfaçalados, as pessoas não sabiam os entes queridos, refugiavam-se no que podiam, começaram a falar com os mortos através do espiritismo ou então através da fé e da religiosidade. Portanto, em tempos de... Pode aparecer uma crise que leva as pessoas de volta, se quisermos, até aos valores religiosos, eu acho que eles também não estão em si totalmente perdidos, mas nós notamos na escassez dos sacerdotes, no declínio dos missalizantes, portanto aqueles que em linguagem de sociologia da religião se chamam as pessoas que têm prática dominical de ir à missa, e notamos que há realmente um declínio. O que nós não podemos cair é no erro de julgar que as pessoas que estão em Roma ou a noutros locais são necessariamente estúpidos, se quisermos, ou que não têm consciência na sua cegueira fundamentalista. Como é evidente, uma pessoa com a estatura intelectual de um ratzinger tem plena consciência do abalo que vem sendo sentido no pós-guerra. Portanto, a igreja foi muito vítima do boom económico dos anos do pós-guerra. E nos anos 60, não é por acaso, que começa a surgir correntes. Mesmo cá, a minha tese é sobre a Capela do Rato. Quando começou ali na Capela do Rato uma viola a entrar, era a missa da viola, e isso para os católicos mais conservadores, aquilo, quando o padre Alberto Neto a levou, aquilo era uma
José Maria Pimentel
coisa
António Araújo
quase herética. Portanto, a igreja vai fazendo essas pequenas adaptações. Agora, os grandes líderes de igreja, as pessoas que pensam dentro e fora da igreja, percebem que a adaptação àquilo que se seja, o que se pode chamar a pós-modernidade, num certo sentido, levaria à perda de uma grande identidade. Como é que a Igreja passaria a dizer que é bom as pessoas não irem à missa, irem para a praia bronzear-se, que é bom haver sexo em grupo, coisas assim, portanto, uma série de questões. A Igreja, se quiser manter a sua unidade e a sua projeção enquanto igreja católica, se quisermos, universal, tem que manter uma série de valores. E com isso não estou a defender o conservadorismo da igreja, estou a dizer que é bastante básico. Nós pensamos que as pessoas na igreja não têm consciência disso e que não vão sendo feitas adaptações. E
José Maria Pimentel
que não vivem neste mundo, não
António Araújo
é? Exatamente, e que são quase... A Igreja Católica não é o Estado Islâmico e...
José Maria Pimentel
Mas há um exemplo claro de uma parte da igreja que fez uma adaptação grande na forma, preservando o conteúdo. O exemplo que eu conheço muito de longe, mas que é o caso dos jesuítas, sempre que eu ouço, sempre que alguém me diz que conhece um padre muito bom, normalmente é... Claro,
António Araújo
os jesuítas é que levam um bocadinho a vanguarda, sempre foi assim, agora para remeter também para a minha descassa bibliografica, também tenho livros jubitas de antigos jubitos, mas é só no Portugal Republicano, mas os jubitas sempre foram, num certo sentido, até devido à sua profundidade intelectual, uma vanguarda, num certo sentido, e até uma vanguarda incómoda, nós lembramos o que aconteceu ao Padre Arrupe, e muitos destes grupos que eu referi de uma certa pós-modernidade e uma vivência mais festiva e mais jovem da fé passam muito pelos jesuítas, que são realmente pessoas de um modo geral, de um elevadíssimo estatuto intelectual. E é uma estratégia, desde longa etapa é uma estratégia. Mas também as pessoas precisam, e eu acho isso legítimo, as pessoas precisam de ter padres com que se identificam, o padre Clementino, até do ponto de vista que se identificam intelectualmente, para que haja uma adesão de fé, a fé não é uma coisa que surge, para que haja uma adesão de fé, as pessoas precisam que o seu mediador seja alguém que, se o meu mediador for uma pessoa que eu desconsidero, até intelectualmente ou de outra forma, a palavra que ele me transmite, eu já estou a agradar, como é evidente. Mas há uma coisa curiosa, e desculpe só em interromper sobre isso, é, falámos há pouco da crise, a igreja, ou alguns sectores da igreja, por exemplo o Papa Francisco, os seus discursos em favor da pobreza, da crise etc, esta crise económica e tudo, também favoreceu um bocadinho, um certo discurso, uma condenação, dos excessos, porque eles existem, dos excessos do capitalismo. É do que falávamos há pouco, não é? Claro, do excesso do capitalismo, que nós aqui vimos em fenómenos que são, digamos mais, sociais de consumo, mas que são entre as disparidades salariais. É um tema que está muito na mesa, portanto os Piketty's e não só, os livros sobre os super ricos, os livros sobre as desigualdades salariais e fenómenos que estão a ser muito, muito graves. Já agora podemos falar, por exemplo, num documentário, creio que se chama A Torre do Marfim, não sei, mas é assim, sobre o ensino universitário americano, em que um estudante, que há 15 anos precisava de 5 anos de trabalho para pagar... E agora precisa de uma brutalidade, não é? Tem que trabalhar até aos 100 para pagar, porque as propinas nas universidades subiram colossalmente, fazendo com que haja uma diferença até social muito maior. Por muitos mecanismos que hajam de apoio social, etc. Isso passa-se nos sistemas de ensino, passa-se nos sistemas de saúde. Por exemplo, uma coisa que as pessoas pouco se perceberam, é que o processo de bolonha, as pessoas que gritaram muito contra as propinas, agora com bolonha, estão de uma forma indolora a pagar muito mais do que alguma vez foi a atualização das propinas, mas como agora dizem, ah meu filho andou no mestrado, como se no fundo estes mestrados não fossem, num certo sentido, prolongamentos de licenciatura, Ia pagar 3 mil ou 4 mil euros por um ano de mestrado, não estou a tirar os valores para lá. Mas, a conversa foi para aqui, só que percebemos que há um conjunto de bens públicos, quer a saúde, quer a educação, etc, que o afunilamento dos recursos por uma série de fatores, o desequilíbrio das pirâmides demográficas, etc, hoje em dia estão em crise. E essa crise em si é muito mais profunda do que a crise, digamos, de contas públicas e privadas que vivemos, que essa pode ser sanada episodicamente, mas há crises e problemas em Portugal, como o envelhecimento da população, as questões da floresta que recorrentemente, todos os anos, aparecem para depois serem esquecidas. Porquê? Porque a velocidade em que os assuntos também são tratados e têm que passar. Isto tem muito a ver com o que o Capuco falou, que era a tirania da opinião. As pessoas têm que ter opinião sobre tudo, eu chamar de estudo, se calhar eu também estou a ser aqui, e sou noutras ocasiões, mas é impossível a pessoa ter uma opinião fundamentada sobre tudo, sobre todas as realidades, sobre o aborto, a eutanásia, o aquecimento global. E portanto as pessoas recebem, digamos, uma informação já pré-cozinhada e se a pessoa... Por isso é que as ideologias muitas vezes servem, que é, se eu sou de esquerda, Vou já comprar, claro, antes de quer dizer que sou contra as toradas, sou a favor do aborto, sou a favor da eutanásia. Quanto mais eutanásia eu tiver, melhor. Se eu sou de direita, antes de quer pensar. Porquê? Porque as ideologias servem muito para esta georreferenciação e servem para as pessoas abdicarem de pensar o que é grave e, quer dizer, a nível de informação que existe e que foi muito exponenciado pela internet, mas também pela complexidade de assuntos como as alterações climáticas e tudo, nós precisamos, e isso se vê nos mídias, dos tais explicadores, dos tais, digamos, descodificadores de informação, e muitas vezes as pessoas vão a explicadores hora de esquerda, hora de direita, para confirmarem no fundo aquilo que são as suas tendências. Uma coisa que está relativamente pouco estudada é porque é que as pessoas se arrumam na direita e na esquerda, isto é, não há uma coisa genética, mas o peso dos fatores... Eu acho, não conheço estudos de ciência política, certamente haverá, porque é ignorância minha, mas nestes posicionamentos, esquerda e direita, os fatores familiares contam muitíssimo. Muitas vezes há outros, filhos de pais ultraconservadores, que se tornam de extrema-esquerda, até se quisermos uma questão quase edipiana e freudiana. Claro, de criação. Mas a socialização, o meio envolvente, etc., As pessoas acabam por ser muito moldadas por isso e para esses posicionamentos. O que se verifica hoje em dia, e isso já são estudos que eu já conheço e sobre os quais posso falar, é que fenómenos como o Donald Trump, o que se compreende a outros, levaram a uma polarização muito grande em que as pessoas de esquerda muitas vezes já nem falam em sete meios com as pessoas de direita. Isso pode parecer contraditório com o que eu há pouco dizia, que as redes de sociabilidade então convivem todas, etc. Não, é preciso nós percebermos que, entre nós, ainda não chegaram fenómenos de polarização, quando surgiram, são alturas de grande trepidação, por exemplo, a contestação às medidas de austeridade, mas depois isso passa. Enquanto em certos países, quer dizer, durante a presidência de D.C. Trump, durante o mandato todo do D.C. Trump, essa polarização, e ele próprio é um filho, um produto dessa polarização, essa polarização vai existir. Portanto, a América vai viver num ambiente de guerra civil permanente, enquanto durar a
José Maria Pimentel
vida esperante. O caso americano é particularmente interessante, e aliás, é um fenómeno que não se sente nos Estados Unidos, mas que eu concordo que não se sente dessa forma, pelo menos ainda em Portugal. E porventura nunca se sentirá, porque há condicionantes muito diferentes. Mas nos Estados Unidos o que existe e é particularmente estranho de quem observa de fora é que essa polarização muitas vezes não tem por base questões concretas e divergências ideológicas concretas, mas é uma polarização quase emocional.
António Araújo
Claro, tem muito a ver até com o estilo, com a performance, com... Não é... As palavras depreciativas que o Donald Trump dirige às mulheres, não estou a ver, não são necessariamente de direita nesse aspecto. Pode-se dizer que o feminismo também não, acho eu, ou a defesa dos direitos das mulheres, não é um património exclusivo da esquerda. Portanto, tem muito mais a ver com o estilo bussal, brutal, etc. Nós em Portugal temos uma série de airbags que nos protegem um bocadinho dessa polarização, que são, por um lado, ainda o legado do Estado novo, eu sei que se vai diluindo com o tempo, mas que fez com que uma direita extrema nunca tivesse grandes possibilidades de se afirmar, por tanto fenómenos como o Lupin, e até mesmo em Espanha ainda há uma memória, por um lado há os que querem apagar a memória toda do franquismo naquilo que teve mal, tirar as placas e exumar os cadáveres das execuções na Guerra Civil, mas ainda há pessoas nostálgicas do franquismo. Cá em Portugal poderá haver uns nostálgicos dos social-zarismos, mas é tudo muito mais folclórico e sem expressão política.
José Maria Pimentel
Até porque nós temos a questão do regime em Portugal, mas ela vai estar
António Araújo
resolvida. Sim, também. Com o ouvido, com o ouvido, sim. Também está resolvida, não temos bem a questão... E já estava de certa forma, não temos uma questão de regime, Temos uma coesão territorial, um país
José Maria Pimentel
coeso,
António Araújo
temos, não temos fenómenos que possam levar a grandes, por menos até agora, a grandes conflitos como por exemplo a presença de uma comunidade islâmica muito forte ou, quando eu digo forte, não entendo que eles não devem ser, não é isso. É, fenómenos como a xenofobia, o nosso discurso sempre foi, por menos ao nível das práticas discursíveis, não estou a dizer depois da realidade do dia a dia. Sempre foi anti-racista, não sou racista, não sou racista, e portanto, tudo aquilo que noutros países, por exemplo em França, é visto devido à forte presença de uma comunidade islâmica ou inglaterra e dos terrorismos e das imigrações, nós não recebemos aqui um conjunto muito significativo de refugiados, se ele fosse muito significativo, não duvido que sentimentos xenófobos, etc., nasceriam. A nossa condição periférica, e se quisermos para o que há-lo e diminuta, e digamos o pouco que temos para oferecer a esse género de pessoas que passam por cá e querem mais aí para a Alemanha ganhar mais dinheiro, se quisermos até a nossa relativa pobreza, acabam por nos proteger um bocadinho, criar aqui uma espécie de ilha, o que não significa que movimentos que estejam na Europa não possam vir cá e colidir, não quero ser alarmista, mas do ponto de vista do terrorismo, a presença tão grande de turistas nas baixas de Lisboa etc., já torna remunerador do ponto de vista propagandístico e tudo, atentados em Lisboa. Portanto, se nós temos o turismo, não estou a querer fazer turismo e terrorismo, não estou a fazer aqui um verde. Claro, mas coloca o país no mapa nesse sentido. Claro, sendo o país muito mais internacionalizado e com mais pessoas, isso como é evidente. Agora, do ponto de vista de questões domésticas, nós não temos. Muitas vezes a esquerda, como é mais conflitual, precisa, porque a esquerda vive mais do conflito, ainda é um bocadinho aquela herança da luta de classe, muitas vezes precisa de inventar, Só que já é difícil andar a escavar mais causas fraturantes. Porque muitas vezes essas causas fraturantes escondem os problemas, por exemplo, a terceiridade. Não há um debate a sério sobre o que fala-se muito de racismo, mas agora já há alguns, até por exemplo a Sibila e Marques, num livro também da Fundação, chamado Discriminação da Terceira Idade, a discriminação a que é sujeito o idadismo, a discriminação a que são sujeitos a terceira idade em tudo. Mas isso não é remunerador, isso não é fã, isso não é uma coisa que seja interessante para fraturar as
José Maria Pimentel
pessoas. Não, e sobretudo não gera identificação a quem está a ler. Exatamente. Há um... A propósito da questão do racismo, ou da xenofobia, que eu vou usar o termo mais genérico, há uma particularidade da nossa sociedade que sempre me despertou alguma curiosidade, que é o facto de nós não sermos de todo um país racista em termos de práticas, isso não há discriminações explícitas, como por exemplo, ainda apesar de tudo ser observado nos Estados Unidos, nunca houve. E no entanto, é inegável que entre quem frequenta as universidades, por exemplo, ou quem tem, quem ascende a caros mais bem remunerados, Há uma presença ultra desproporcionada de...
António Araújo
Nem diria ultra desproporcionada, há uma indistência...
José Maria Pimentel
Praticamente. Indistência. São casos raríssimos
António Araújo
de alguns que não... Que são apontados muitas vezes é precisamente aquele que confirmar a regra. Exatamente. Ah, temos uma ministra da Justiça e temos um secretário de Estado, qualquer signo. Bom, é a partir daí. Não significa, não critico isso, mas é para que estejam lá. Eles obviamente estarão lá por outras razões. Eu quero crer que não estão lá apenas para sinalizar o multiculturalismo da sociedade portuguesa, que se calhar é mítico. Agora...
José Maria Pimentel
Mas o que eu acho, desculpe interromper, mas o que eu acho interessante aí, sempre achei, é que esse é um fenómeno pelo qual parece que tanto a direita como a esquerda convivem relativamente bem. Com essa ambiguidade da sua gerência, isso não é um... Algumas semanas surgiram no público uns artigos sobre isso, mas não é um tema que seja discutido. Quando é evidente que há uma deficiência na sua esquerda. Como é evidente
António Araújo
e... Há pessoas, também percebo, se calhar porque têm uma certa agenda militante, e quando a pessoa quer demonstrar uma tese, quer demonstrar uma injustiça, tem que ser uns furos acima, uns decibéis acima e ser mais inflamada. Mas há pessoas, o público, por exemplo, pela zona de agressão RX e uma série de coisas, que têm vindo, se calhar num tom, como digo, uns 10 cv acima, a sustentar que existe racismo, etc. Depois há pessoas de outro espectro, Gabriel Mita-Ribeiro, que tem uma leitura muito diferente, até tem um livro, o colonialismo nunca existiu, que no fundo é, digamos, uma paráfrase daquele fascismo que nunca existiu do Eduardo Lourenço. Agora, os estudos que são feitos com bases mais empíricas e estatísticas, como por exemplo os de Jorge Valla, falam num racismo subtil, que é o racismo que nem sequer tem consciência de si e mais, não tem essa tal consciência sexual, como dizem os franceses, mas para além de não ter consciência de si, se figura a si próprio como não racista. Isto é, nós conseguimos não ter, se calhar, dois, três, cinco, se calhar temos um ou dois negros no parlamento, não temos nenhum negro líder de uma grande empresa, porque segregamos muito, isto permite uma perpetuação de um status quo, se quisermos, em que há uma nítida exclusão de pessoas, mas muito mais sutil, por isso é que se fala em racismo sutil, não é aquela questão, os negros não podem entrar aqui, como havia nos
José Maria Pimentel
anos 60, não é. Não é
António Araújo
explícito de maneira nenhuma. Exatamente, e mesmo o discurso do Estado Novo, a partir de certa altura, sobretudo, foi um discurso muito mais assimilacionista e muito mais integracionista, em buscar inclusive as teses do luso-tropicalismo do Gilberto Freire. Agora, portanto, o português nunca foi racista, misturoso com todas as pessoas... Uma cisnação... Mas, quer dizer, isso também é um item que as pessoas quiserem... É uma visão romântica de tal que não foi exatamente assim... Claro, E por outro lado, está a conquistar cada vez mais terreno nas universidades, no âmbito dos estudos pós-coloniais, uma visão que está nos antípodes dessa e pelo contrário procura figurar a presença de Portugal nos territórios ultramarinos com uma presença, Nós temos até algumas obras de ficção disso, por exemplo, Memórias de Cadeirantes Coloniais de Isabela Figueiredo, uma presença, se quisermos, muito hegemónica, que foi, mas mais do que hegemónica, brutal, etc. E agora sobre as discussões sobre a escravatura, etc. Portanto, isso tudo depende, ainda não se encontrou, se quisermos, um equilíbrio, nem se encontrará, mas eu penso que é consensual e podemos dizê-lo que a sociedade portuguesa não figura-se a si própria como não racista, um cidadão português médio diz logo, eu não sou racista, e depois quando se começa a desdobrar naquelas questões, casaria a sua filha com um negro ou não sei o que, aí as questões começam a mudar. E ele, uma coisa são os inquéritos, que ele aí aparece como o mais multicultural e o mais progressista possível, outra coisa é quando vêm ciganos instalados num bairro social, da câmara com um jardim infantil ao lado e portanto o que é que se passa aqui nisto. De vez em quando eclodem fenómenos que são explicáveis pela vivência das populações, pela convivência também com pessoas de outras comunidades e outras visões e mesmo o discurso politicamente correto leva a que haja tabus. Exatamente. Nós em nome do respeito pela cultura cigana não discutimos os casamentos combinados, portanto nós somos muito a favor da igualdade de género e contra o machismo, e bem, a favor das mulheres, mas isso para quando se entra num acampamento ou numa comunidade cigana. Aí, já nós temos que obedecer, se quisermos ser progressistas e fashion, Temos que obedecer a dois valores. Não temos o mínimo laivo de racismo, portanto vamos tratar da cultura própria dele. Mas o tratamento dado às mulheres, na parte da cultura cigana, é algo que merece a história analisada, como aliás, infelizmente, algumas culturas africanas que há, a xisão genital feminina, etc. Portanto, a realidade muitas vezes impõe-se às nossas convicções que nós gostamos de cultivar. E
José Maria Pimentel
O Lira é um tema politicamente correto, que é o tema que está presente numa série de fenómenos hoje em dia. Esteve presente na eleição de Donald Trump, ou seja, claramente não será a maioria da população americana, porque ela não teve a maioria dos votos, mas pelo menos quase metade da população americana que não se revê naquilo que é publicado na imprensa mainstream e nas televisões mainstream e restringido pelo politicamente correto. Da mesma forma, em Portugal têm-se observado uma série de fenómenos, da mesma forma, muito menores do que aqueles que se observam nos Estados Unidos, como, por exemplo, universidades com conferências canceladas e livros que são excluídos, uma série de... Coisas absolutamente excessivas. Claro, de limitações que em última análise limitam a própria liberdade de expressão. Sim, obviamente. E ao limitarem a liberdade de expressão, em alguns casos, porventura uma minoria, vão limitar opiniões ou visões que importaria discutir porque são relevantes. Mas mesmo nos casos, que até pode ser a maioria, que limitam opiniões com as quais a pessoa não concordaria, a verdade é que estão a impedir parte da população de se expressar. Claro,
António Araújo
é evidente. Vamos, aqui... Eu há pouco tempo vi aquele filme sobre o julgamento da Deborah Lips, de fato que foi uma ação disposta contra ela, pelo David Harving, aquele historiador negacionista. Há aqui que distinguir uma questão, e eu não me acompanhei muito esse episódio, mas, por exemplo, não a entrada de uma pessoa que falámos há pouco, Jaime Nogueira Pinto, numa universidade, para discutir, é uma coisa perfeitamente anómala, porque é uma coisa absolutamente anómala.
José Maria Pimentel
Mas foi também uma questão que depois
António Araújo
foi viciada. Sim, sim, sim, claro, obviamente, e se quisermos foi ouro sobre a zupa ou já no garpinho de pente. Conseguiu uma vitimização, no certo sentido, com todo o respeito que tenho por ele, mas uma vitimização, até se quisermos, interessante, e normalmente isto acaba sempre por se virar contra as pessoas, quem capitaliza, o mesmo se passou, por exemplo, há muitos anos, quando o liderado, pelo entanto, presidente da Câmara, Cruz Edipacis, algumas pessoas tentaram impedir a projeção do filme de Juscelino Marri. É claro que as pessoas vão recordar isso e diziam que entravam e partiam, acho que era na Cinemateca, partiamos isto tudo, um grupo de católicos muito empenhado. Claro que isto vira sempre contra as pessoas, como é evidente. Portanto, para um lado ou para o outro, há comportamentos, digamos, inflamados e irracionais que acabam sempre por se virar contra quem as pratica. Agora, que há excessos do politicamente correto, há. Que há liberdade de opinião, tudo certo. Mas o que por exemplo a Deborah Lipstadt dizia em relação ao David Irving, ela acho que Nunca defendeu que os livros fossem proibidos. Defendeu, foi o direito dela, a dizer que aquilo era inconsistente, e o mal era bicho, e manipulação, e foi isso que levou o Irving, não foi a Deborah Lipstadt que colocou a ação contra o Irving, foi o Irving que, se quisermos sentir desultrajado e ofendido, colocou contra ela. Mas... Analisa a
José Maria Pimentel
liberdade de expressão.
António Araújo
Claro, a liberdade de expressão, tudo bem. E eu, venho aqui uma pessoa negacionista do Holocausto, Mas isso são discussões até jurídicas que as pessoas não podem ter, na América existe uma grande liberdade para o hate speech e para o discurso do Klu Klux Klan, etc, na Europa mais limitada, ainda que a jurisprudência do Tribunal Europeu de direitos humanos agora e o Tribunal de Justiça sejam mais abertas à liberdade de expressão. Agora, o que se pode dizer é que quando há erros factuais e as pessoas estão a poluir com base num erro factual, mas num erro factual que seja óbvio e consensual, Eu sei que há sempre questões que nunca serão consensuais, as vacinações ou não vacinações, haverá sempre, ou as alterações climáticas, etc. Mas, se existe, eu não defendo a censura a sites negacionistas. O que Defendo é a necessidade deles, por exemplo, não se constarem dos programas de ensino. Por exemplo, discordo absolutamente do que se passa muitas vezes nos Estados Unidos em que querem ministrar em paridade, não em igualdade de circunstâncias, o criacionismo e o evolucionismo. Não estou a dizer que se possa que o evolucionismo tenha que ser militante, porque há várias formas até de evolucionismo e até pode haver erro ou coisas que o evolucionismo assim não explica, é uma teoria em si incompleta, agora não se pode pôr nos mesmos termos, em termos de, sobretudo quando chegamos ao ensino, o evolucionismo e o criacionismo bíblico ou de outra...
José Maria Pimentel
Claro, porque não é de uma opinião...
António Araújo
Exatamente, e já é uma questão... Agora, nas questões das alterações climáticas, há pessoas que criticam... Que pode haver um... Até há um livro, que é o Ambientalista Cético do Nórdico, o Bjorn Mambó... Já tem uma série de livros... Exatamente, já tem... Que questiona algumas coisas das alterações climáticas. Agora, aí pode haver flutuações, e haverá certamente, mas temos que perceber que, sobretudo nos sistemas de ensino, um sistema de ensino e o desenho de um currículo e de um programa tem que basear-se naquilo que é uma espécie de consciência dominante, que é o evolucionismo, que é o não vai, que é a existência de alterações climáticas, etc.
José Maria Pimentel
Claro, é questão da maioria, não é? Ditadura
António Araújo
da maioria. Sim, não é só disso. A maioria é uma espécie de... Quer dizer, a visão da história de Portugal, umas vezes as pessoas podem dizer, é mais mitificada, mais virada para os reis, e não aborda os negros, e devíamos fazer uma história alternativa. Tudo bem, ela que venha, ela que tem a lugar. Mas compreende-se que, ainda com as visões muito diferentes, o ensino da história, ou o ensino dessas matérias, não falo das mais técnicas da matemática, tem que assentar um consenso dominante sobre o que foi o nosso passado, e quer dizer, se não, quer dizer, até do ponto de vista pedagógico seria quase impossível os alunos perceberem. É um zig-zag, é verdade. Então a escravatura foi assim, foi má, claro que foi má, mas foi intensa, não foi intensa, quer dizer, nós vemos, por exemplo, intervenções de uma pessoa que tem escrito sobre escravatura, João Pedro Marcos, que se afasta um bocadinho de algumas teses mais, por exemplo, politicamente corretas ou sobre a nossa escravatura. E, portanto, há espasmas, isso é, a níveis não pode constar dos programas de ensino. Eu fui para os programas de ensino, mas... Sim, podíamos falar de qualquer coisa. Podemos falar de outra
José Maria Pimentel
coisa. O politicamente correto, e... Estamos quase a acabarmos de avançar para a última pergunta, mas ainda em relação ao politicamente correto, o que é... O... Não é por acaso que... Que este fenómeno tem sido tão prevalente e tão
António Araújo
difícil. Também se tornou um bocadinho politicamente correto, criticar o politicamente correto. Exatamente. Há tantas,
José Maria Pimentel
já há tantos. Claro, exatamente. O assunto quase que dá a volta. Mas é um assunto difícil, porque ele surge... Ele tem um mérito inicialmente, que é proteger determinadas minorias, mas acaba, muitas vezes, por quase forçar alguém que possa fazer parte de uma minoria qualquer. E as minorias, a definição de minorias pode ser de todo o tipo, mas forçar quem está fora dessa minoria a tratar aquela pessoa como se ela fosse definida pela pertença àquela minoria, o que em última análise não faz sentido, é um indivíduo separado, individual autonomamente e caso contrário é uma limitação da
António Araújo
liberdade social. E até muitas vezes há componentes quase paternalistas de género em relação aos negros, quer dizer, antes, precisamente o politicamente correto e esses discursos, muitas vezes acabam por entrar em contradição, porque dizem este tem que ser tratado primeiro de tudo como ser humano e não como negro. Exatamente.
José Maria Pimentel
E isso nos Estados Unidos, lá está, é muito mais prevalente no dia a dia do
António Araújo
que aqui. Claro, porque a questão é muito...
José Maria Pimentel
Exatamente. E as minorias lá têm um peso muito maior. Em Portugal há uma homogeneidade étnica, por exemplo, muito grande. Mas eu lembro-me, por exemplo, de um episódio do Seinfeld, que era uma série de televisão já com alguns anos, em que havia um tipo que era dentista e se tornava judeu para poder dizer piadas sobre judeus.
António Araújo
Pois, exatamente. Porque é o que está lá.
José Maria Pimentel
E ele dizia, agora posso porque sou judeu. Não, há
António Araújo
questões que se passam e que nós vemos, até caricaturamos, nos programas de ensino, não só nos Estados Unidos, mas muitas vezes pela Europa fora, etc. E silenciamento de pessoas, de vozes discordantes, quer dizer, é coisas que em nome da tirania desse politicamente correto...
José Maria Pimentel
É um desafio, Junqueira, que é o maior desafio da...
António Araújo
Sim, Sim, sim, é um desafio grande, vamos ver, o livro Submissione, do Michel Houellebecq, não é propriamente um livro politicamente correto, numa tese mais ou menos que ele tem implícita, que seria o domínio de França por uma espécie de islamismo soft, etc. Mas também não houve censura, acho eu, Michel Wielbeck. Agora, porque compreendo, falando de um tema quase muito lateral, sobre o Tintin no Congo, agora o Tintin no Congo as pessoas não conseguem aceder a ele, está na secção de adultos nas livrarias em Nova Iorque. Ah,
José Maria Pimentel
sim, foi muito criticado. Claro, mas aí
António Araújo
compreendo que não se quer amaldar as crianças, mas que um adulto, até como objeto histórico, quer ver a versão original, tudo certo. Agora fez uma versão mais politicamente correta. Coisa diferente é que até um...
José Maria Pimentel
E o Mark Twain, não é? A questão do Mark Twain...
António Araújo
Sim, é que também se compreende que há também, eu compreendo, um ressentimento, uma necessidade de ajuste de contas com barbaridades que foram feitas nos tempos coloniais. Isso eu compreendo. Uma compensação, em certa forma. Mas está, muitas vezes, está a chegar a extremos que isso vai ser mau para a defesa da própria causa, porque depois isso vai ter uma reação das pessoas. Exatamente, que é exatamente o que se observa nos Estados Unidos. Exatamente, as pessoas... Depois, aí se é assim, então votamos Trump. Aí se é assim, votamos Trump. É claro que não devemos ceder também à lógica do tirânico, ceder nos nossos valores, para que as pessoas não fugam para o voto no Trump. Mas há reequilíbrios que têm
José Maria Pimentel
que ser preservados. A questão é que as alterações sociais têm que decorrer de uma forma progressiva, Porque senão acabam por ser rejeitadas por maioria da população. Claro, claro. No caso americano é evidente que tinha que haver um reequilíbrio, mas para haver esse reequilíbrio houve muitas pessoas que não terminaram as condições de vida e as perderam. Mas
António Araújo
mesmo falando em Portugal, ainda há pouco, aqueles movimentos LGBT, está certo, mas depois agora já com uma série deles, travestis, etc. Havia até uma crónica do João Miguel Tavares sobre isso. Criou-se já, são os travestis sem sexo, os poliamorosos, e não sei o quê. Isso cria um sentimento que se torna ridicularizável, caricaturável e passível de gozo e, portanto, nem serve sequer os intentos das pessoas.
José Maria Pimentel
Para vir a contra o próprio. Exatamente.
António Araújo
Temos chegado, não estou a dizer que não haja homofobia na sociedade portuguesa, mas tendo chegado a um momento em que é possível casar, que, a parte de algumas exceções, acho que não existem discriminações formais da nossa lei, haverá muito a mudar em termos de mentalidade. Prato, o que se mentira são políticas, porventura. O que eu quero dizer é que as militâncias, muitas vezes, o que também é compreensível quando as pessoas são muito militantes, mas chega um fervor que depois são ridicularizáveis ou descartáveis àquilo travestis e poliamorosos ou pessoas que nem sequer sexo querem ter. E, portanto, isso acaba por ser negativo até para os próprios. Mas,
José Maria Pimentel
enfim. Vou fazer a última pergunta. Havia aqui uma série de pontos que eu gostava de falar, mas o tempo não é ilimitado. Há um ponto que é...
António Araújo
Nem a paciência de nós ouvintes. Nem a paciência
José Maria Pimentel
de quem ouve. Há um ponto que é... Eu perguntei muitas vezes ao longo do texto, e foi aliás daqueles até que... Depois foram mais postos nos médiuns com recensões ao livro, e na repercussão que o próprio livro teve que tem a ver com e já falámos disso, de resto, a diferença entre o povo e as elites eu por acaso não sei se estou inteiramente de acordo...
António Araújo
É simplificador, como é que é? No
José Maria Pimentel
sentido que essa diferença sempre existiu, obviamente, e eu não estou certo que seja maior hoje do que foi. Não, não. Mas não era disso que eu queria falar, porque eu queria fazer apenas uma última pergunta que tem a ver com... Há uma frase que é citada do Vasco Polido Valente em que ele diz a propósito do historial de políticos de origens humildes que existem em Portugal, que é muito curioso, sobretudo numa sociedade com muito pouca mobilidade social em que ele fala da notória incapacidade da classe dominante em gerar os seus próprios
José Maria Pimentel
dirigentes.
José Maria Pimentel
Essa será uma incapacidade da classe dominante? Ou será que aqueles com o maior poderio, hoje em dia económico, mas outrora não necessariamente económico, não preferem dominar da sombra, ou seja, controlar essa sociedade da sombra. Sendo que muitas vezes, no caso de Salazar, paradigmático, muitas vezes ter-se já virado a criatura contra o criador. Mas no caso de Salazar, por exemplo, há um vazio de poder que me parece demasiada coincidência para não ser deliberado. E uma coisa mesmo que se observa hoje em dia é que, por exemplo, falando do caso de Ricardo Salgado, por exemplo, claramente grande parte do poder vinha de dominar da sombra e não de dominar sob os holofotes. Claro. E o poder, aliás, para terminar, o poder hoje em dia é cada vez mais desagradável, o poder público é cada vez mais desagradável para quem o pratica, porque há uma... Desgaste de nós, despretinho. A pessoa está sujeita a um escrutínio brutal. Não é remunerada adequadamente, desde logo. E está sujeita a um escrutínio com que é muito difícil de conviver e o... A tentação de tentar controlar da sombra, o prefeitura é ainda maior do que já foi. Sim,
António Araújo
eu talvez não concordo muito com o mal, se calhar, da frase do Vasco Lito Valente, é ele transformar isto numa regra, dizer que todos os nossos dirigentes foram pessoas vindas de estratos humildes. Nós tivemos, o que não é verdade, e temos uma coisa, muitas vezes o dirigente em si pode ser uma cabeça de estratos humildes, mas depois todos os... Nos tempos do João Franco ou de outras coisas, depois das câmaras dos pares, etc, havia uma série de pessoas de outros lados. Também não tenho uma visão, se calhar, tão conspirativa, dizendo que há pessoas que preferem governar... Não, não digo isto conspirativo, não. Não, não, mas há uma coisa importante que diz. Passional, não tem problema. Claro, mas há uma coisa que disse que é importante. É a corrusão que provocam, no próprio confiante, isso é quase óbvio, a banalidade, que eu vou dizer, casos como o Ricardo Salgado, independentemente, não vou pronunciar sobre este em particular, pois não transito a julgado,
José Maria Pimentel
mas
António Araújo
as investigações, mas isso cria, não admira que depois haja uma desconfiança, que não é só de esquerda, digamos do povo de esquerda, o povo de direita pujadista ou trampista, os trampistas portugueses também têm o antissistémico, portanto há uma, isto confirma muito os sentimentos antissistémicos de uma parte das pessoas, eu bem tinha razão, são todos uns bandidos, etc, etc. Portanto, é um péssimo serviço que foi prestado e quer pelas pessoas, os Lehman Brothers, etc, à economia de mercado. Não é por acaso, é para, digamos, defesa do bom nome e do funcionamento da economia de mercado, que existem grandes mecanismos de regulação, que muitas vezes não funcionam, nos Estados Unidos ou cá podem não funcionar, e de supervisão. Esses são absolutamente essenciais para que o capitalismo continue a fortificar ou a desenvolver-se. Agora, o que disse em relação às nossas lideranças. Há sempre, ou alguns líderes, um certo culto de uma... De um valor. De uma heranjez humilde, etc. Que não é uma questão que venha necessariamente a se alisar, porque isso pode... Uma questão cultural, não é? Sim, Isso pode significar meritocracia, uma espécie de antissistema, portanto a pessoa que vem de fora, eu não pertenço ao Pantan, porque em Portugal sempre houve, sobretudo a partir do nascimento, vai lá da política parlamentar no século XIX e vemos aquelas caricaturas do Bordal, a porca da política, um sentimento de antipolíticos. E não estou a dizer que isso seja dominante, mas é também como o racismo, as pessoas têm esse sentimento de antipolíticos para que tudo continue na mesma. Claro,
José Maria Pimentel
e os políticos, agora um parênteses, os políticos no início do liberalismo tinham uma visão, basta daí eu achar que essa clivagem
António Araújo
elites-povo era a maior, tinham uma visão ultra-soberanceira em relação ao povo e paternalista. Obviamente, o que eu quero, eu aqui coloquei elites-povo, como é evidente a sociedade portuguesa era muito mais stratificada há 40, 50 anos, quer dizer, ainda havia maior concentração de riqueza numa elite. O que eu quero dizer hoje em dia é que, por elites, aqui não estou a fazer aquela análise marxista das classes, estou muito mais numa visão do Vilfredo Preto, ou do Max Weber, ou o que quiser, mas as elites, por exemplo, culturais, não coincidem necessariamente com as socioeconómicas, Porque os hábitos até de consumo das socioeconómicas, se calhar são, livros do José Rodrigo de Santos, iguais às pessoas de classe média. Portanto, há aqui também, a realidade é muito... Não, há várias maneiras de definir. ...No poliédrico. E, portanto, eu tive que ter uma visão mais redutora, simplista e manicaísta em dizer elites-povo. Não me parece que a clivagem hoje em dia entre elites-povo seja maior do que há, de modo nenhum. Pelo contrário, hoje em dia há uma democratização, quer voluntária devido a um programa, se quisermos, do Estado, no pós-25 de Abril, de maior democratização, querem voluntária pela importação de fenómenos como a internet, isso nota-se, por exemplo, um jovem de Bragança que esteja interessado pode ouvir este podcast, Coisa que há 60, 60 anos tinha as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, que passavam uma vez por mês. Não, a democratização...
José Maria Pimentel
E pode ouvir o podcast de todo mundo, não é? Exatamente. É português.
António Araújo
Exatamente. Não, e mesmo essa internacionalização, como é evidente, é todo um fenómeno positivo. Não tem nenhuma visão nostálgica de um passado que nunca existiu. Claro, claro.
José Maria Pimentel
Pronto, como disse, havia muito mais do que falar, mas eu tenho que agradecer.
António Araújo
Obrigadíssimo pelo convite.
José Maria Pimentel
Nada, foi um gosto e fica a recomendação da leitura do livro Da Direta à Esquerda, que será sucedido pelo livro Da Esquerda à Direta que estaremos para ver a análise que fazem e que será... Não é
António Araújo
meu, é do João Pedro Jorge. Claro, exatamente,
José Maria Pimentel
do João Pedro Jorge, e que fará a análise da cultura de esquerda e porventura o responderá também ao
José Maria Pimentel
reparto.
José Maria Pimentel
E assim terminámos. Vários temas interessantes ficaram para abordar, inevitavelmente, como a recente onda de populismo no Ocidente, as ameaças à liberdade de expressão e, na esfera da política nacional, a evolução dos valores dos partidos políticos portugueses nos últimos anos, e mesmo a diferença, que é poucas vezes discutida, entre a direita liberal e a direita conservadora, entre muitos outros. Ficam para uma próxima conversa.